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JEAN ROSMORDUC UMA HISTORIA DA FISICA E DA QUIMICA De Tales a Einstein Traducéo: Leila Velho Castro Faria _ Revis&o técnica: Nelson Velho Castro Faria Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Titulo original: Une Histoire de la Physique et de la Chimie (De Thales a Einstein) Tradugao autorizada da segunda edic&o francesa publicada em 1985 por Editions du Seuil, de Paris, Franga Copyright © 1985, Editions du Seuil Copyright © 1988 da edigdo em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor. rua México 31 sobreloja 20031 Rio de Janeiro, RJ Todos os direitos reservados. A reproducio nao-autorizada desta publicagio, no todo ou em parte, constitui violacdo do copyright. (Lei 5.988) Produco editorial Reviséo: Claudio Estrella (copy); Gléria Nunes, Nair Dametto, Cectlia Devus (tip.); Diagramagdo: Maurfcio Arruti; Composi¢do: ATP Ltda.; Arte-final: José G. de Lacerda (texto), Capa: Gilvan F. da Silva sobre ilustracio de Louis Pasteur (Museu do Louvre, Paris); impressdo: Tava- res e Tristo Grafica e Editora de Livros Lida. ISBN: 85-85061-99-5 PERIODOS DE PROSPERIDADE E DIAS SOMBRIOS As ciéncias fisicas na historia das civilizacSes ——— “Sendo a ciéncia um dos elementos auténticos da Humanidade, ela é inde- pendente de qualquer forma social e eterna como a natureza humana”, es- creveu, em 1848, Ernest Renan no livro l’Avenir de Ia science. Afirmagao discutfvel diante do contetido geral desse livro em que ele tenta fundar, no quadro de uma sociedade capitalista em plena expansdo, uma verdadeira religido da ciéncia. Hoje seria mais dificil para ele se exprimir dessa forma. Como toda criagdo humana, toda ciéncia — inclusive as ciéncias fisicas, que particularmente nos interessam aqui — é um produto social. Isto quer dizer que ela é a realizagdo de individuos que trabalham em uma dada sociedade, dispondo de certas condigdes de existéncia, de meios determinados (inte- lectuais e materiais) de investigac¢do, pensando sob influéncia da mentalida- de dominante de sua época.:Pode-se perfeitamente imaginar que esta ou aquela descoberta poderia ter sido feita um século, ou dois séculos, ou vin- te séculos antes que ela efetivamente se desse. O cérebro dos sdbios desses tempos o permitia, assim como os elementos de reflexdo de que dispu- nham. Paul Langevin -- um dos maiores fisicos franceses do inicio do sécu- lo XX — escreve, por exemplo, que a idéia de geometrias nao-euclidianas’ existe desde Euclides, matemdtico grego do século Ill a. C. Seu contem- pordneo Joseph John Thomson — um dos pais do elétron — afirmna que a hipdtese de uma dualidade da natureza da luz — ao mesmo tempo onda e particula — j4 existe no tratado de Otica escrito por Isaac Newton em 1675. O sabio inglés seria entdo o precursor de Louis de Broglie, que imaginou sua mecanica ondulatéria em 1923. Langevin e Thomson, um ¢ outro, tém e ndo tém raz4o, ao mesmo tempo. Eles estdo certos porque os textos de Newton e Euclides podem efetivamente ser interpretados deste modo. Esto errados porque nés os compreendemos assim 4 luz de nossos conhecimentos atuais, deformando talvez o pensamento original dos auto- res. A realidade, de qualquer modo, é que as geometrias ndo-euclidianas se desenvolveram no século XIX de nossa era, e ndo no século IIL a. C. Do W 12 uma histdria da fisica e da quimica mesmo modo, a teoria da dualidade onda—partfcula foi desenvolvida no inicio do século XX, nao no fim do século XVIII. Nao estdo sendo postas em duivida a genialidade e a criatividade de Euclides e Newton; 0 conjunto de suas obras é a melhor garantia dessas qualidades. Entretanto, a cién- cia, e toda teoria cientffica, é um produto historico. Uma interpretagao, que surge em determinado momento e nfo em outro, sé é poss{vel porque condigdes para sua elaboragdo estdo reunidas naquele momento. Um fato que ilustra esta afirmagdo é a multiplicidade de casos onde descobertas, em datas muito préximas, foram feitas por dois sdbios que muito provavel- mente nZo conheciam o trabalho um do outro. Isto aconteceu com o cdl- culo infinitesimal, inventado ao mesmo tempo por Leibniz e Newton; com a relatividade, por Einstein e Langevin etc. Poder-se-ia entdo dizer que o conhecimento cient{fico ndo represen- ta a realidade, que a ciéncia é apenas um conjunto de relagdes entre fatos que por sua vez dependem do observador, como pensam 0s filésofos posi- tivistas, que ela é tao-somente uma “linguagem comoda’”’, como declarava no inicio deste século o matemdtico Henri Poincaré? Nao cabe aqui uma discussio filos6fica sobre a natureza da ciéncia. Contentar-me-ei em afir- mar meu desacordo com as teses positivistas.? As ciéncias — cada uma em seu proprio dominio — tentam determinar as caracteristicas do fendmeno que elas estudam, analisar seu mecanismo, conhecer suas leis. Para com- preender, inicialmente, e para agir, em seguida, sobre uma realidade, que pode ser estritamente material em se tratando, por exemplo, de certos fe- ndémenos ffsicos, mas que pode também comportar outros elementos, psi- colégicos por exemplo, em se tratando de intervengdes no dominio social. Estes passos — de compreensdo e de ago — sao realizacado de seres huma- nos, que sé se aproximam desta realidade, que s6 agem sobre ela até o limi- te dos meios de que dispGem. Isto quer dizer que nao é imutdvel 0 conheci- mento que a comunidade cientifica teve e tem atualmente e que terd no futuro sobre um mesmo objeto de estudo. Nao é nem mesmo uma espécie de edificio, construfdo pedra por pedra ao longo dos anos e séculos. De um conhecimento ao seguinte, existem contradigdes; ds vezes, inclusive, eles so totalmente contraditérios. As ciéncias tém uma historia, uma his- téria que coloca em jogo um objeto — que ndo muda fundamentalmente de uma época 4 outra se considerarmos apenas as ciéncias da natureza e aqueles que a estudam. Suas possibilidades variam e evoluem. O resulta- do de sua investigacdo se modifica, se aperfeicoa e constitui portanto, nao uma construgao puramente intelectual e forma!, mas “uma aproximacado continua do mundo real”, como afirmava o grande fisico Max Planck. Sendo assim, a evolucdo das ciéncias conhece perfodos de flores- cimento, outros de estagnacdo, as vezes de regressdo. Nas diversas ciéncias estes perfodos sfo bastante coincidentes — certa disciplina se desenvolve — por raz6es as-quais voltaremos — mais precocemente que outra; uma espe- periodos de prosperidade e dias sombrios 13 cialidade conhece, em dado momento, um impulso particularmente rdpi- do. Mas, fora estas pequenas diferencas, quando o conhecimento da natu- reza pelo homem progride, faz-se globalmente. E esta progressdo se si- tua, sobre o plano tedrico, em um contexto de transformag6es, de movi- mento em todos os dominios. “Interagdes das técnicas entre si, interacdes das ciéncias e das técnicas, interagdes das ciéncias e das técnicas com os fatores econdmicos e sociais”, escrevem D. Furia e P. C. Serre, historia- dores das técnicas, exprimindo bem assim, na minha opinido, as razGes profundas da concomitancia destas transformagOes. Ea luz se fez! O diciondrio nos ensina que o termo “fisica”, designando uma parte das ciéncias da natureza, vem do latim physica, que deriva do grego physiké, que significa “‘conhecimento da natureza”’. No tratado Do céu, Aristételes escreve: “A Ciéncia da Natureza tem manifestadamente por objeto em sua maior parte ou quase, os corpos e as grandezas, as modificagdes que eles sofrem e seus movimentos.” Em 1708, Fontenelle, que foi secretdrio per- pétuo da Academia de Ciéncias Francesa de 1697 a 1757, dé a definigao seguinte: “Ciéncia que estuda as propriedades gerais da matéria e estabele- ce as leis que descrevem os fendmenos materiais.” A definigéo pode hoje em dia ser mantida para caracterizar o conjunto das “‘ciéncias fisicas””. Com a condigdo, entretanto, de deixar claro que s6 se trata aqui da maté- ria ndo-viva, a matéria viva dando origem a outras ciéncias: a biologia, a botanica etc. A classificagdo atual das ciéncias ¢ basicamente herdada do século XIX, principalmente de Augusto Comte. O termo “quimica’’ é deri- vado do latim chimica, 0 qual vem de alchimia, deformag4o do arabe al- Kimiyd, ou “grande arte dos filésofos herméticos e sdbios da Idade Mé- dia”. Por um lado, a propria fisica e a quimica tém portanto origens que ndo sido totalmente confundidas, suas histérias durante um tempo bastante longo sendo diferentes. Isto explica a definigdo que o diciondrio dé da se- gunda: “‘Ciéncia que tem por objeto a estrutura interna dos diversos cor- pos, suas transformagGes e suas propriedades.”” No século XIX, suas pré- ticas sio basicamente diferentes e elas s6 ocasionalmente trocam seus mé- todos. Essa diferenga ndo tem mais grande valor hoje em dia. Certamente algumas diferengas subsistem, comandadas ds vezes por preocupagSes dis- tintas, 4s vezes por estruturas herdadas de hdbitos de dois séculos. Nin- guém pode dizer que as fronteiras atuais, separando as diferentes discipli- nas que estudam as ciéncias da natureza, subsistirdo ainda por muito tem- po. Cada vez mais, ao contrdrio, ao lado de uma especializacdo sempre maior de cada matéria, as interconexOes se multiplicam, criando-se espe- 14 uma hist6ria da fisica e da quimica cialidades novas que tiram parte do seu conhecimento das diversas catego- tias existentes. Estabelecidas estas definigdes, parece evidentemente impossivel da- tar o nascimento das ciéncias fisicas. Os estudiosos da pré-histéria, assim incluindo os antropélogos, nos ensinam que as tribos primitivas — as da pré-histéria — dispunham de um nimero jé considerdvel de conhecimentos aos quais é necessdrio atribuir um cardter cientifico. Saber reconhecer ro- chas, escolher aquelas que sfo mais adequadas a fabricagdo de certa ferra- menta, ou arma, ou de um ornamento, saber talhd-las, depois poli-las, nos leva 4 geologia. O reconhecimento das plantas, para a alimentagdo e ds ve- zes para os cuidados médicos, faz parte da botanica e da farmacologia. A fabricacdo de propulsores para armas de tiro, em seguida de arcos, de ferra- mentas, do torno de oleiro, a utilizagdo do movimente circular etc., su- pdem conhecimentos de fisica. As cores que foram utilizadas para a deco- tacdo das ceramicas, para os desenhos policromdticos de Lascaux e de Al- tamira, sio, ou de origem animal, ou de origem vegetal. Descobrir o mate- tial apropriado, reconhecé-lo, preparé-lo ete., faz parte da quimica. E, além da habilidade, que minuciosas observagdes sobre anatomia e sobre movimento dos animais necessitaram os desenhos dos mamutes de Rouf- fignac, os cavalos de Lascaux e de Pechemerle, os bisdes de Altamira etc.! Estes conhecimentos — e muitos outros ainda — certos povos ja dis- punham deles hé oito mil anos antes da era crista. Aproximadamente na mesma época, a evolugdo do saber e das técnicas (de caga, de pesca, de co- lheita) permite aos homens, em certas regides, possuir excessos quase per- manentes de provisdes. Foi ent&o possivel dedicar uma parte do alimento — antes totalmente consumido pela tribo — para plantar, e em seguida para criar animais domésticos. Isto representava um progresso das condi- ¢Ges materiais de existéncia, evidentemente, mas este progresso foi, em grande parte, obra do préprio homem e um progresso do conhecimento. Pode-se dizer 0 mesmo — com mais forte raz@o — sobre o nascimento, du- rante o quarto milénio, da metalurgia do cobre, seguida da do bronze no Egito, em torno de 2700 a. C. Estes tiltimos fatos sobrevém ao longo da época histérica, a que se inicia com 0 aparecimento da escrita. Tudo 0 que precede, porém, € obra dos povos da pré-histéria. Simples técnicas, ndo ciéncias, dizem alguns. Talvez, mas com a condig&o de sé se chamar de ciéncia um conjunto de fenémenos ordenados e classificados, relaciona- dos por leis e relagdes bem conhecidas; em resumo, uma construgdo, se n@o acabada, pelo menos muito avancada, uma disciplina que j4 possui cardter adulto. Mas é forcoso admitir que 0 ativo da pré-histéria necessitou de milhares de observacdes, multiplas e longas reflexdes a partir destas obser- vagGes, que, na maioria das pequenas invengGes, pouco a pouco conduzi- ram a espécie humana do australopiteco ao camponés do vale do Nilo, o acaso desempenhou sem divida um papel, mas muito mais a reflexdo, co- perlodos de prosperidade e dias sombrios 15 mo as pacientes e repetidas tentativas de melhoramento. O caminho assim seguido 6, quer se deseje ou nao, de cardter cientffico. Muito fragmentaria- mente e muito imperfeitamente, sem duvida! E tudo isto é englobado em um sistema de pensamento — que certos autores chamam de “‘pensamento mégico” — muito-diferente do nosso, fechado em um conjunto de supersti- Ges, determinada por uma religido primitiva da qual um dos eixos princi- pais é a fraqueza do homem diante da natureza. Mas € em parte sobre esta “‘pré-fisica”, esta “pré-quimica”, esta “pré-botanica” etc., sobre todas as técnicas, das quais algumas jd eram muito elaboradas, que se edificaram as ciéncias antigas, pontos de partida de varias de nossas ciéncias atuais. “A origem da ciéncia... nés a encontramos na curiosidade”®, escreve um histo- riador contemporaneo. Co-fundador do marxismo, Engels observa: “Assim, desde o infcio, o nascimento e o desenvolvimento das ciéncias so condi- cionados pela producao." Afirmagdes contraditérias, para o espirito de M. Mousnier, pelo menos. Jé que é justamente a reflexdo do homem e sua fome de conhecimento — que se pode chamar de “curiosidade”, se se desejar - colocadas a servigo da necessidade que ele tem de se servir da na- tureza, e depois de transformé-la, para atender cada vez melhor a seus dese- jos que, pouco a pouco, levaram 4 edificagdo das ciéncias, como as com- preendemos hoje. No principio foram a astronomia e a matematica Durante 0 quinto milénio antes da era crista, o surgimento da agricultura e da pecudria permitem, no vale do Nilo e na Mesopotémia, uma melhora do nivel de vida. A quantidade de provisdes aumentou, o que permitiu que certos individuos, liberados da procura de alimento, pudessem dispor de seu tempo de outra forma. Alguns fabricaram ferramentas, armas; os off- cios se especializaram. Outros se dedicaram a fungdes de dirego e de ad- ministrag4o, ou a fung6es religiosas. Uma parte da populacdo, antes total- mente némade, tornou-se sedentdria; as cidades apareceram. As tribos, que até entfo produziam quase inteiramente a totalidade de sua subsistén- cia, passaram a trocar os produtos cultivados e fabricados. Em seguida, elas se reagruparam, pela necessidade de grandes trabalhos — de irrigacdo, particularmente — constituindo a origem de grandes impérios, politica e administrativamente muito atualizados. E 0 caso da Suméria e do Egito ao longo do quarto milénio, da China no terceiro, e da India no segundo. Para trocar produtos, é preciso saber contélos quando eles so pou- co numerosos. No caso de graos, por exemplo, ou de Ifquidos, a compara- do de capacidades ou de peso se impGe. Disto devem ficar vestigios durd- veis. Sua representagdo simbélica ¢ permitida pela escrita, sobre papiros 16 uma histéria da fisica e da quimica no Egito, argila na Mesopotamia. A propriedade privada da terra dé origem a heranga, o poder politico centralizado cria o imposto — um imposto que pode ser calculado a partir da quantidade de mercadorias produzidas ou da superficie cultivada. O camponés deve saber que grdos semear, e em que época; e deve saber quando colher. Deste conjunto de imperativos nasceram a mateméatica e a astrono- mia. O calenddrio que fixa o ritmo das estagdes se fundamenta sobre a observagao do céu.° Uma observagao que, embora suméria no inicio, aper- feigoa-se progressivamente. Os mesopotémicos, particularmente, se sobres- saem e inventam aparelhos que permitem determinar as altitudes dos astros e dos planetas acima do horizonte, medir os angulos, e, grosseiramente, os tempos. Ha uma limitagdo, que subsistird até 0 inicio do século XVII de nossa era: s6 é possivel observar os corpos celestes visiveis a olho nu; os homens ndo conhecem as lunetas de longo alcance. Entretanto, os calen- darios de estrelas s40 estabelecidos, trajetérias de astros e de planetas, de- terminadas. Os egfpcios, os sumerianos, os chineses e os indianos tém sis- temas de numeragdo, conhecem as quatro operagdes da aritmética, sabem resolver empiricamente certos problemas de Algebra, equagdes a uma incég- nita, e mesmo a duas. O cdlculo de superficies, 0 de numerosos volumes e os problemas de arquitetura levaram ao desenvolvimento da geometria, da qual, alids, a astronomia também necesita. Assim, a partir das necessidades crescentes da vida cotidiana, a astro- nomia e a matemdtica tornaram-se as ciéncias constitufdas, compreenden- do um conjunto de observagées, de medidas, de relagdes etc. Esta evolu- ¢ao, favorecida pelo desenvolvimento da técnica, veio favorecer como re- sultado a existéncia de uma classe social rica, dispondo de variados lazeres. E as outras ciéncias que conhecemos atualmente? Fora a medicina, que tem também uma existéncia real, existem outros conhecimentos, mas de modo disperso. Eles ndo estdo, em sua maioria, nem interligados, ou mes- mo reagrupados. As técnicas se aperfeigoam, mas de maneira empirica, sem que as causas de seus mecanismos sejam estabelecidas. Platao qualifi- cou 0 povo egfpcio de ‘“‘povo de comerciantes’’. A denominagao — desde- nhosa para o filésofo grego — traduz uma realidade: o conhecimento dos habitantes do antigo Egito, como alids o de seus contempordneos sumeria- nos, babil6nios, chineses... é antes de tudo utilitdrio. As mesmas constatagdes podem ser feitas a propdsito das diversas ci- vilizagdes que, do in{cio do quarto milénio ao século VII a.C. (hitita, babi- lonia, fenicia, indiana, israelita, cretense, grega arcaica), se desenvelveme se sucedem em torno da bacia do Mediterraneo e no Extremo Oriente. O cor- pus dos conhecimentos adquiridos cresce; a roda e o vidro sao descobertos; 4 metalurgia do cobre sucede a do bronze, em seguida a do ferro etc. Mas o quadro geral no qual se situa esta evolucdo ndo muda, a preocupacio prin- cipal nfo parece ser compreender este conjunto de conhecimentos acumu- periodos de prosperidade e dias sombrios 17 lados. De fato, a ciéncia antiga, apds um tempo considerdvel, parece mar- car passo ou, pelo menos, limitar-se a um progresso continuo mas lento, sem mudangas extraordindrias. Milagre grego? Subtitulo mal utilizado e, por essa razdo, criticdvel. De fato, a ciéncia grega da época cldssica — do século VIII ao século Ill a.C., 0 perfodo cléssico por exceléncia correspondendo ao perfodo do governo de Péricles em Atenas (de 460 a 430) — nao surge bruscamente do nada. Ela foi a herdeira das ci- vilizagdes micénica e dérica que durante um tempo dominaram o pais. E por terem sido os regimes gregos da Antigiiidade comerciantes e coloniza- dores, ela € herdeira principalmente de suas co-irmas egipcia, mesopota- mica e mesmo indiana. E preciso, entretanto, reconhecer, sem ocidentalis- mo injustificado, que a Grécia antiga, no dominio cientifico, deu novo im- pulso, tentou uma compreensio racional — no limite, evidentemente, das possibilidades da época — do mundo material, em resumo, a ciéncia que o historiador J. P. Vernant chama um “‘ideal de inteligibilidade”. Nesse tempo ela ndo € auténoma, e menos ainda dividida em especialidades dis- tintas como € hoje. O conhecimento da natureza é apenas uma parte do co- nhecimento em geral, que pertence por sua vez 4 filosofia. Na filosofia da natureza dependendo desta ou daquela escola filoséfica, um aspecto serd mais desenvolvido que outro, as preocupagées poderdo eventualmente ser invertidas. Mas € 0 Unico esbogo de especializagdo que af se pode encon- trar. Nosso objetivo ndo pode ser aqui o de fazer o balango do conjunto da ciéncia grega; existem obras bastante completas sobre o assunto. Contente- mo-nos em constatar sua impressionante extensdo e citar suas caracteristi- cas principais. Um grande ntmero de observagoes, raciocinios légicos es- sencialmente especulativos — voltaremos a eles a propdsito da evolugao dos métodos cientificos — nenhuma experiéncia, no sentido pleno do termo, apenas medidas. Depois de Tales, a escola pitagérica produz importantes trabalhos em matemiética, entre os quais figura a descoberta dos numeros irracionais. Inspirando-se nisso, a parte cientifica da filosofia de Platdo concede a esta disciplina um lugar importante. A reflexdo sobre a consti- tuigdo da matéria ocupa um grande espaco. Formada a partir de um ele- mento tnico (0 fogo, a dgua) para os fildsofos de Mileto (Tales, Anaximan- dro, Anaximenes) e para Herdclito; formada a partir de quatro elementos (o fogo, a dgua, a terra e o ar) para Empédocles, os pitagoricos, Plato. . . Se so seguidas as observagdes astrondmicas, o fato predominante neste campo € a elaboracdo de um sistema do Mundo, conforme as constata- goes feitas, tanto pelos astrénomos, quanto pelos navegadores, e que ultra- 18 ‘ uma histéria da fisica e da quimica passa as primeiras concepges ingénuas das civilizagdes precedentes, inte- grando-se totalmente em uma unido de conjunto do Universo, do lugar que nele ocupa o homem. A Terra de Tales € “um disco achatado flutuando so- bre ondas”, a de Anaximando é “semelhante a base de uma coluna”, a de Anax{menes € achatada e “parecida com uma mesa”. A hipotese de uma Terra esférica foi sem duvida emitida por Pitagoras. Autores posteriores — Eud6xio particularmente — a imaginam imével no centro de um Universo constitu{do por esferas transparentes concéntricas; a mais exterior é imével e contém as estrelas fixas; a esfera intermedidria gira com movimento cir- cular e contém as outras estrelas ¢ os planetas. Se todos os filésofos pare- cem estar relativamente pouco preocupados com a biologia, a botanica etc., em compensag4o, gracas principalmente 4 escola hipocratica, a medi- cina se-ap6ia sobre o estudo da anatomia e ultrapassa assim os catdlogos de receitas que foram, mais ou menos, as medicinas anteriores. A escola de Alexandria O esplendor do pensamento, grego se situa em um contexto historico mar- cado por uma poténcia politica e uma atividade econdmica, como alids, uma produgdo artistica e cultural, em geral, correspondentes. Sao, essen- cialmente, obra da Grécia continental e¢ de suas colénias proximas: Sici- lia, Samos, Mileto etc. Mas as guerras continuas entre cidades, os confron- tos polfticos no interior das proprias cidades minam, pouco a pouco, a po- téncia grega. De 347 a 336, Filipe da Maced6nia. conquista uma parte da Grécia. Apés sua morte, seu filho Alexandre termina a invasdo, em seguida combate os persas de Dario Il, invade a Asia Menor, o Egito, estende seu império até a India. Com sua morte, em 323, seus generais repartem 0 Impé- tio. A Ptolomeu — que se faz coroar rei com o nome de Ptolomeu I Séter — cabe o Egito. De Alexandria, fundada por seu antigo chefe, ele faz sua capital e af empreende a organizagdo de um notavel centro intelectual. Es- te centro compreende uma escola, um museu e uma biblioteca, onde sio conservados milhares de manuscritos, 0 todo constituindo ao mesmo tem- po um organismo de ensino e de pesquisas, onde a elite dos pensadores de todo o mundo helénico vem trabalhar. Seu raio de influéncia se estende por toda & bacia do Mediterraneo e persiste ent#o mesmo quando a realida- de politica do Egito dos ptolomeus se enfraquece, que a influéncia politica helénica diminui até desaparecer. Desde 753, com efeito, um poder se constitui, se desenvolve, se amplia: Roma. De 343 a 272 as armadas romanas conquistaram toda a Itdlia, em seguida a Sardenha e a Corsega, a Galia Ci- salpina, a costa oriental da Espanha. De 215 a 196, a Grécia e a Maced6nia caem sob 0 protetorado romano, a independéncia grega desaparece com- periodos de prosperidade e dias sombrios 19 pletamente em 147. A vitéria definitiva, em 146, sobre Cartago traz a colo- nizagao da Africa do Norte; ela & seguida pela da Siria, da Galia, da Armé- nia, depois Egito, em 30. Mas, no essencial, apesar de sua poténcia polftica € econdmica, a vida cultural do enorme Império romano é apenas um pdli- do reflexo daquela da Grécia. Isto é particularmente verdadeiro sobre a vida cientffica, da qual 0 pélo principal permanece, mesmo sob a ocupacao Tomana, a escola de Alexandria. Sua obra, notdvel sob varios pontos de vis- ta, distingue-se da produgdo anterior. A ciéncia apareceu menos misturada a filosofia do que ela foi anteriormente, uma relativa especializacdo se ope- ra, um papel importante é desempenhado Por muitos engenheiros (Arqui- medes, Ctesfbio, Héron de Alexandria, Filon de Bizancio) que aliam a pes- quisa tedrica 4 prdtica. A influéncia aristotélica é dominante na origem da escola, Aristételes, antigo aluno de Plato e durante um tempo preceptor de Alexandre, havia fundado em 335, em Atenas, o Liceu, para af ensinar doutrinas que englobavam, com excegdo da matemdtica, a quase totalida- de das cigncias. A ele sucederam Teofrasto (autor de um tratado de mine- ralogia) e, em seguida, o fisico Estratdo de Lampsaco. Este ultimo, convo- cado por Ptolomeu I, toma a direcdo da escola de Alexandria. Citamos da produgao desta época — excluindo a fisica, sobre a qual voltaremos mais tarde — os trabalhos matematicos de Euclides, de Diofranto, de Apolénio de Perga, de Arquimedes; a astronomia de Aristarco de Samos, de Eratéste- nes, de Hiparco e de Claudio Ptolomeu; as ciéncias naturais de Erasistrato, de Heréfilo e de Dioscérides; as geografias de Estrabao e de Claudio Ptolo- meu; a medicina de Galeno. Depois do século III da era crista, Alexandria continua, mas sua atividade decresce, seu esplendor se enfraquecé. Apesar da insignificancia do trabalho cientifico em Roma — além de Alexandria, algumas cidades (Pérgamo, Siracusa, Rodes) tiveram uma vida cientifica teal, Roma ndo — € preciso constatar a coincidéncia entre a queda politica do Império romano e esta diminuigfo da atividade cientifica. Ao longo dos séculos II e III da era crista, os motins dos soldados e as diversas insurrei- ges se sucedem. Em seguida se iniciam as invas6es “barbaras’’: os godos (a partir de 230), os francos e alamanos (260-272) etc. Em 285, o imperador Diocleciano dividiu o Império em dois: 0 império do Ocidente e o império do Oriente. Constantino, no poder em 312, reunifica os dois Estados, alia-se em seguida aos crist&os e transfere em 331 a capital de seu império para Constantinopla, uma nova cidade fundada no lugar da antiga colénia grega de Bizancio. O império é novamente desmembrado em 395, coma morte de Teodésio, o Grande. O rei visigodo Alarico conquistou Roma em 410; a cidade é ainda assolada em 455 pelos vandalos, depois, em 476, pe- los godos — que eliminam o imperador Rémulo Augustulo e edificam um teinado na Italia. O império romano do Ocidente tendo desaparecido defi- nitivamente, s6 subsiste ao naufrdgio o Império bizantino, continuagao da civilizagdo helenistica. A escola de Alexandria ainda existe, mas os traba- 20 uma hisiéria da fisica e da quimica thos realizados e o ensino dispensado nfo tém comparago com o que fo- ram durante os séculos de prosperidade. Entretanto, no século. VII, uma nova forga — polftica e religiosa — surgiu e cresceu, antes de constituir um império que, particularmente no domfnio cientffico, vai tomar o lugar da Grécia Antiga: o Isldo. Em 622, Maomé fugiu de Meca para Medina. Ele voltou em 628 4 frente do exército e tomou a cidade. Antes de morrer, em 632, langa as bases de uma nova re- ligifo, que inspira daf em diante os exércitos arabes conquistadores. Eles se apoderaram da Sfria.em 634, depois venceram os persas, os arménios. . . Em 640, Alexandria é conquistada, a biblioteca e o museu sdo incendiados pela segunda vez (cles j4 o haviam sido ao longo dos combates entre 0 exér- cito dos ptolomeus e o de César), seus manuscritos ¢ seus tesouros sao dis- persados. O perfodo antigo da historia das ciéncias e do pensamento cien- tifico chega ao fim. Esplendores mu¢ul/manos e escura noite ocidental No século VIII, o Império drabe se estende dos Pirineus 4 China. Em segui- da sfo0 colonizados o sul da Itdlia, a Sicilia, a Sardenha. Suas conquistas fi- zeram dos muculmanos 0s herdeiros de todas-as contribuigdes da cultura antiga: grega, persa, indiana etc. A Europa crist@ est4 durante este tempo, segundo o grande historiador das ciéncias Alexandre Koyré, mergulhada em “uma barbarie profunda, politica, econdmica, intelectual”’, que se pro- longar4 praticamente até o século XI. Assolada pelas invasdes sucessivas, fragmentada, com as comunicag6es tornadas diffceis pela inseguranga ge- neralizada, ela, além disso, é separada de qualquer heranga grega, detida pelos arabes e bizantinos. A vida cultural — e particularmente cientifica — do Império muculmano é to brilhante, quanto a da Europa é pobre, e mesmo inexistente. Elas tém, entretanto, um ponto comum, que repartem com a de Bizancio: todas trés sfo 0 resultado de uma sociedade dominada e regida por uma religido revelada. A relativa liberdade intelectual, caracte- ristica dos gregos e dos romanos, praticamente nao mais existe na Idade Média. As sujeigGes sdo varidveis de uma religiao a outra. Passagens do Co- rdo, livro sagrado do Islao, foram interpretadas como um incitamento ao conhecimento, inclusive ao da natureza. Os sdbios foram portanto — exce- to em certas épocas e em certas regises dominadas por seitas mugulmanas integristas — diretamente ajudados pelo poder politico-religioso. Os califas financiaram universidades, a construcdo de observatérios etc. Ao contrario, © cristianismo constitui para o pensamento cientifico, tanto na Europa quanto no Império bizantino, uma verdadeira coagao intelectual. Daf o extraordindrio balango cientifico da civilizagéo muculmana, perlodos de prosperidade e dias sombrios- 21 balango muitas vezes negado, por razGes politicas, hd dois séculos na Euro- pa. Antes de tudo traducdes dos grandes textos gregos da época cldssica. Em seguida trabalhos notdveis, tanto em matemdtica quanto em astrono- mia, ffsica, quimica, mineralogia, botanica, medicina etc. Tudo isto por ve- zes facilitado pelas contribuicdes chinesas (a bissola) e indianas (0 surgi- mento do zero na numeragao decimal), recolhidos pelos comerciantes dra- bes. Em contrapartida, o balanco europeu € nulo® e o de Bizdncio é bem medfocre: alguns comentarios de obras gregas, algumas descrigdes de plan- tas e animais, algumas observagOes ilustrando a astronomia de Ptolomeu. . . aparentemente muito de alquimia e de astrologia, que, a despeito de algu- mas contribui¢Ses sobre as quais voltaremos, n&o poderiam ser catalogadas como disciplinas cientificas. O paradoxo chinés A existéncia de conhecimentos cientfficos notdveis na China antiga j4 foi evocada anteriormente. Eles foram elaborados num quadro de Estados or- ganizados posteriormente aos do Egito e da Mesopotamia, embora também muito antigos. A tradi¢fo legenddria chinesa data de 2850 a.C. 0 inicio do reinado dos “reis sabios”, que teria sido a idade de ouro da China. A partir de 2200 se situa a dinastia Hsia, muito provavelmente real, ainda que sua histéria seja muito pouco conhecida. Em seguida, ao longo da An- tigiidade e da Idade Média, sucedem-se, através de guerras e movimen- tos diversos, os Shang, os Chou, os Ch’in, os Han, os Weis, os Tang, os Song, os Kin etc. O sistema social é — como na Europa ocidental e nos pai- ses muculmanos, ainda que diversas caracteristicas sejam muito diferentes de um grupo a outro — de base feudal. A burocracia af desempenha um pa- pel considerdvel, e o Estado é, em comparagiio com outras regides do mun- do conhecidas, muito centralizado.® O conjunto dos conhecimentos cientf- ficos acumulados pela sociedade chinesa é tal que J. Needham pode escre- ver: “Feito o balango, antes do Renascimento na Europa, antes da aparigdo de so- ciedades de um novo tipo (nag6es capitalistas, onde o desenvolvimento cient - fico devia tomar a forma de uma progressdo exponencial) a China era de fato a regigo do mundo onde havia ocorrido, ao mesmo tempo, o maximo de conhe- cimentos cientificamente exatos de detalhes da natureza e a visio ‘mais justa de seu conjunto”’. Se isto vale relativamente pouco para a matemdtica, a opiniao parece exata no caso da medicina, diversos componentes de quimica e de botani- ca, o estudo dos fésseis, a astronomia e a geografia. E, principalmente, os 22 uma histéria da tisica e da quimica chineses tinham um grande conhecimento, antes da Europa, de muitos ele- mentos que desempenharam um papel importante no desenvolvimento téc- nico, econémico ¢ cientifico desta ultima: a bassola, a imprensa, a pélvora, a relojoaria mecdnica, 0 papel, a fundicao, etc.” Entretanto, a existéncia desse conjunto de triunfos maiores nfo se traduziu por um progresso espetacular do conhecimento cientifico chinés. Um-certo nimero de descobertas foram, ou mantidas no estado de esbo- gos, ou inexploradas. E ainda, quando foram utilizadas, elas no produ- ziam as transformagoes das quais elas foram a causa em outras regides do mundo. Por qué? A razao nao reside no isolamento, como foi 0 caso de ou- tras-civilizagdes. Faziam-se trocas com os paises vizinhos evidentemente, ¢ também com o Império drabe e, mesmo, com a Europa crista. Certas con- tribuigdes chinesas — como a bissola, por exemplo — foram, alids, determi- nantes para esta wltima..A resposta, segundo Needham, pode ser descober- ta na estrutura e no funcioriamento da sociedade chinesa e de seu governo. O fato é explicdvel certamente, mas permaneceu paradoxal. Ele ndo 6, to- davia, Unico em seu género, e outros exemplos do mesmo tipo serdo cita- dos ao longo desta obra. Da renovacao ocidental 4 era de Copérnico Os contatos entre o Império mugulmano e os diferentes reinos cristaos ndo foram, durante a Idade Média, apenas militares. Na Espanha, particular- mente, e na Itdlia do Sul, as trocas comerciais e culturais foram pratica- mente permanentes. E, a partir do século XI, se as diversas cruzadas nao melhoraram as relagdes entre as duas civilizag6es, favoreceram bastante o comércio no Mediterraneo oriental, particularmente entre algumas cida- des italianas (Veneza, Génova) e os paises muculmanos. No campo cientifico, esses contatos permitiram aos ocidentais reata- rem coma heranga grega, fazendo com que conhecessem os conhecimentos adquiridos pelos arabes — um incontestdvel renascimento. Ele comegou 4 se manifestar com a criagdo da Escola de Medicina de Salerno (fundada em 900) e pela obra de Gebert — eleito papa em seguida com o nome de Sil- vestre II (940-1003) —, que faz particularmente com que sejam conhecidos os algarismos ardbicos!® e o astrolébio. O movimento se acentua a partir do século XU, refletindo-se principalmente no inicio pela tradugao em la- tim de obras gregas (Ptolomeu, Arquimedes, Apol6nio) e, em seguida, dra- bes. Seguem-se as obras originais das quais a mais notével 6, em matemati- ca, a de Leonardo Fibonacci, conhecido como Leonardo de Pisa (1170- 1245). A descoberta da obra de Aristételes, apesar da oposigao da Igreja catélica, favorece a renovacdo. O século XH é particularmente produtivo perlodos de prosperidade e dias sombrios 23 na Europa. Universidades sao criadas (Bolonha, Montpellier, Paris, Oxford). Sob a inspiracao dos ensinamentos de Arist6teles revistos por Tomas de Aquino, o pensamento escoldstico se codifica. Devem ser notados os pro- gressos da matemdtica, a evolugdo das consideragGes sobre a luz, as primei- Tas experiéncias sobre o magnetismo e a publicagdo de enciclopédias, tudo isso sendo acompanhado por um desenvolvimento compardvel no plano técnico, o que justifica a opinido do historiador J. Gimpel: “Do século XI ao século XIII, a Europa ocidental conheceu um per {odo de in- tensa atividade tecnolégica e esta 6 uma das épocas da histéria dos homens mais fecundas em invengdes. Dever-se-ia chamar de a primeira revolucao indus- trial, se a revolugdo inglesa do século XVIII @ XIX jd n&o tivesse sido gratifica- da com 0 mesmo tftulo”.? Entretanto, a autoridade do aristotelismo medieval j4 era contesta- da desde sua implantacao. Isto é principalmente verdadeiro no caso da sua fisica, da qual trataremos mais adiante. Esta oposicado foi, desde o século XIV, obra de homens, como Nicole Oresme e Jean Buridan. Ela se acentua no século XV para constituir, no século XVI, um dos componentes princi- pais da transformagdo do pensamento cientifico da qual Copérnico, Vesd- lio e Galileu foram os autores Principais. Em 1453, Constantinopla é con- quistada pelos turcos; o Império bizantino desapareceu definitivamente; seus intelectuais voltam para a Itdlia trazendo com eles algumas das rique- zas manuscritas ainda conservadas na capital. Dilacerado desde muitos sé- culos por lutas internas, fragmentado em vdrios Estados, o Império mucul- mano parou de exercer o seu papel dominante no campo cientifico. Em 1492, a tiltima possessdo drabe na Espanha ~ 0 emirado de Granada — é tomado pelos exércitos catélicos. No mesmo ano, Crist6vao Colombo, na- vegador genovés, descobre-a América. Assim se inicia nova era de grandes viagens, de descobertas de territérios até entdo desconhecidos; uma era também _de transformagdes econémicas e sociais, favorecidas pela importa- ¢40 na Europa das riquezas pilhadas nas regides conquistadas, transforma- gGes que seguem e completam as conclufdas no Ocidente medieval desde o século XI. O desenvolvimento do comércio causou o nascimento de uma nova classe social: a burguesia. Essencialmente comerciante no inicio, o burgués tornou-se muitas vezes comanditdrio de artesdos a domicflio, os quais passam a ser, freqiientemente, apenas executantes, privados da pro- priedade dos seus meios de producao. O burgués é as vezes também ban- queiro, fungao cuja importancia social e econémica cresce constantemente. Durante um momento limitado pela insuficiéncia da massa monetaria dis- ponivel na Europa, esta mutago se acentua no século XVI. A oficina evo- lui cada vez mais para o que serd a manufatura; antes de tornar-se fabrica. Os camponeses, freqiientemente expulsos de suas terras por medidas auto- ritdrias, vém engrossar as fileiras da mao-de-obra urbana.? Desde entdo a 24 uma histéria da fisica e da quimica nobreza feudal, cuja supremacia é fundada essencialmente sobre a proprie- dade da terra e sua exploracdo agricola, perde a dominagdo econémica em proveito da burguesia. A época € portanto, em todos os dominios, propicia as transforma- des e mesmo ds grandes transformacoes. Transformagao do modo de pro- dugdo e das relagdes de produgdo econdmicas entre os homens; transfor- macio do modo de vida, transformacao das mentalidades. E o tempo do questionamento, da contestag¢ao — portanto da riqueza — intelectual. Pri- meiro beneficidrio da extensfo do comércio, a Itdlia ¢ também o primeiro lugar geométrico da revolugao cultural. O decréscimo, em seguida, do trafi- co comercial no Mediterraneo em beneficio do que se efetua entre a Euro- pa e a América desloca este lugar em diregdo ao norte da Europa e a Fran- ca. Suas conseqiiéncias sdo: em literatura, o humanismo; nas artes plasticas, a extraordindria produg&o das escolas italianas, flamengas; em ciéncias, 0 que se chamou a “revolugao de Copérnico”. O sistema cosmolégico em vi- gor desde a Antigilidade era o de Ptolomeu, adaptacdo complexa do de ‘Aristoteles, Este sistema era geocéntrico, isto é, supunha a imobilidade da Terra no centro do Universo. Retomado pela Igreja, ele se tornara um dos dogmas catélicos. As grandes navega¢oes haviam demonstrado a existéncia de erros grosseiros nesta outra grande parte da obra de Ptolomeu: a geogra- fia; a critica de Arist6teles, entre outros, tinha fortemente abalado 0 reco- nhecimento do “princfpio de autoridade” como elemento de uma demons- tragdo cient{fica; a acumulagdo das observagGes astrondmicas tornava 0 sis- tema de Ptolomeu cada vez menos confidvel. Neste contexto, Copérnico faz publicar em 1543 De revolutionibus orbium caelestium, onde ele argu- menta a favor de um Universo centrado sobre o Sol, a Terra girando, como qualquer outro planeta, com um movimento circular em torno do astro central. Abordaremos mais tarde as implicag6es ¢ conseqiiéncias desta nova afirmagao. No mesmo ano, a aparigdo do livro do médico belga André Ve- sdlio, Humani corporis fabrica constitui um acontecimento de importancia equivalente. A descoberta da América conduziu os europeus a tomar conhecimen- to das civilizagdes pré-colombianas, um conhecimento que, para elas, aca- bou sendo mortal. Se estas ultimas foram em diversos setores — artistico, agricola etc. — as fontes de varias inovagdes na Europa, 0 mesmo nao ocor- reu com as ciéncias. Isto ndo quer dizer que os maias, os astecas e os incas fossem ignorantes em matérias cientificas, Existiam sistemas de numera- g40, alguns elementos de cdlculo e de astronomia, um grande numero de conhecimentos sobre animais, plantas e sua utilizagdo medicinal, mas os vestigios interpretaveis so relativamente pouco numerosos, jd que destrui- Ges considerdveis foram operadas pelos colonizadores, e em alguns casos, pela propria natureza. Desse modo, as civilizagdes amerindias mais brilhan- tes (as citadas anteriormente) ndo parecem, no campo cientifico, ter ultra- perlodos de prosperidade e dias sombrios 25 passado o n{vel do Egito antigo. Considerando o estdgio atingido pela cién- cia ocidental no século XVI, ela no se péde beneficiar das notdveis contri- buigdes trazidas pela colonizacao do México, da Guatemala e do Peru.'® No caminho da ciéncia contempordnea A partir do século XVI 0 rumo das ciéncias torna-se diferente, assim como seu lugar no conjunto dos’conhecimentos e suas ligagdes com outros seto- res da atividade humana. O desenvolvimento cientffico, a partir do século XVIII e até nossos dias, € pouco ligado a filosofia. Certos sébios dos sé- culos XVII e XVIII (Descartes, Leibniz, d’Alembert. . .) so também fil6- sofos, mas sua atividade essencial (exceto, talvez, Descartes) é cientffica. No século XIX e hoje em dia, a partir de uma pratica cientffica das desco- bertas, da evolucdo das teorias, os homens se interrogam, constroem por vezes sistemas filos6ficos, ou encontram confirmagao para uma determina- da obra de um “‘filésofo profissional”. E 0 caso de Ampére, de Lamarck, de Claude Bernard, de Ostwald, de Duhem, de Berthelot, de Poincaré, de Langevin, de Einstein, de De Broglie, de Heisenberg etc. Mas as ciéncias se tornaram matérias autonomas deixando de ser parte de uma filosofia. O desenvolvimento cientifico estd, em compensacdo, cada vez mais ligado 4 técnica. Esta ultima ajudou-o notavelmente a partir do Renascimento e continua a fazé-lo. J4 0 processo inverso se produziu principalmente a par- tir do infcio do século XIX com as ciéncias passando a ser, atualmente, um dos elementos da produ¢do. Quando tem infcio, com Copérnico, a era da ciéncia moderna, a as- tronomia e a matemdtica estéo, como j4 dissemos, h4 muito tempo consti- tufdas. As observagdes astrondmicas eram exatas assim como os calendé- rios, enquanto os “modelos” sucessivos do Universo permaneciam erré- neos. Pode-se fazer a mesma constatacao sobre os calculos e teorias mate- maticas. Uma e outra ciéncia progrediram, desde a mais remota antigitida- de, ndo de maneira cont{nua, certamente, mas, mesmo assim, de modo ge- ralmente regular. Ao contrdrio, as outras ciéncias tém in{cio, essencialmen- te, no fim do século XVI. Elas utilizam os meios (materiais, intelectuais, matemdticos etc.) nascidos nessa época. A mecdnica toma a dianteira; vol- taremos mais tarde sobre as conseqiiéncias deste fato. Mas, em outras disci- plinas, durante o século XVII e XVIII, multiplicam-se as observagoes, as experiéncias, na maioria das vezes de modo muito empirico; classificam-se, também, os fenémenos e os individuos por categorias; tenta-se as vezes en- contrar vinculos que os poderiam unir; arriscam-se algumas hipdteses expli- cativas, 4s vezes ingénuas, sempre parciais. Deste progresso nascem novas necessidades: necessidades tedéricas, que suscitam um desenvolvimento da 26 uma histdria da fisica e da quimica matematica; necessidades experimentais, que precisam de um maior aper- feigoamento do trabalho dos artesdos; necessidade, também, de trocar in- formagGes e de uma maior organizacdo. A correspondéncia do padre Marin Mersenne, com toda a Europa erudita, responde por isto durante a primei- ta metade do século XVII. Em seguida sao fundadas as academias cientifi- cas, criadas revistas especializadas etc. Constituem-se assim em trés séculos e meio: a astronomia de observagdo moderna, a mecdnica celeste, e, em se- guida, a astrofisica; a biologia, a botanica, a cristalografia; enfim, a quase to- talidade da fisica e da quimica. Da reflexo individual ao esforco coletivo Como esta répida descrigéo permitiu constatar, a evolugdo das ciéncias e do pensamento cientifico nao se produziu — assim como o haviamos anun- ciado — num sistema fechado. De 4000 a.C. a 1985 ha progresso, certa- mente, e mesmo progresso considerdvel. Mas este movimento nao se efeti- vou independentemente da evolugao social, da evolucdo das sociedades. A pertodo brilhante, ciéncia brilhante. Aos perfodos de declinio, ao con- trdrio, corresponde também uma ciéncia ¢m regressdo, ou mesmo nenhuma ciéncia. Mas, na relagdo entre as ciéncias e a sociedade, houve mudangas? Incontestavelmente sim, e o estudo da evolucdo das ciéncias fisicas 0 con- firmard. Uma constante, inicialmente. A producdo pré-cientffica, depois cientifica, foi constantemente obra de homens que fazem parte da classe social, ou do grupo, assumindo 0 poder econérhico e politico, ou depen- dendo desta classe social: os feiticeiros dos povos pré-histéricos, os padres € os administradores do antigo Egito e dos impérios contempordneos, os “padres-reis” da Grécia pré-classica,'* os clérigos da Europa medieval assim como os sdbios oficiais dos califas e de certos principes feudais, os burgue- ses em seguida, os trabalhadores cientificos, empregados de organismos do Estado ou de laboratérios de grandes fabricas, enfim. Esta produgao’ teve inicialmente objetivos imediatamente utilitérios. Ela adotou depois um ca- rater mais especulativo e a unio do pensamento cientifico e da pratica tec- noldgica sé se realizou em raros momentos (em Alexandria, por exemplo), sem que por esse motivo seja possivel consicerd-los como totalmente inde- pendentes. A uniao se realiza novamente no fim da Idade Média e ao longo do Renascimento e se acentua em seguida. Os sabios precisam dos técnicos para realizar os elementos de suas pesquisas; e os artesdos tém necessidade dos sdbios para certas concep¢Ges e para racionalizar sua producao. Os ar- tesfios de inicio, os fabricantes em seguida, os industriais, enfim. Até 0 sé- culo XVIII, no entanto, a criagdo cient{fica permanece uma realizacdo de perlodos de prosperidade e dias sombrios 27 individuos isolados, ocasionalmente ajudados por alguns discfpulos. Es- sencialmente, eles adquiriram sozinhos seus conhecimentos cientificos, j4 que nao existia nesse campo nenhuma verdadeira formagao. Eles dispdem de gabinetes e de pequenos laboratérios, financiados por seus proprios re- cursos ou por algum mecenas. As relagGes entre eles, mesmo apds a criagdo das academias, limitam-se no maximo a algumas trocas de informacoes, muitas vezes acompanhadas por polémicas, as vezes asperas. O interesse do Estado, no entanto, torna-se cada vez maior. A poténcia econédmica, com efeito, e principalmente a poténcia militar dependem de modo crescente das possibilidades de inovag6es tecnolégicas e cientfficas. Um {ndice deste interesse foi a criagdo por Lufs XIV da Academia de Ciéncias de Paris, cujos membros so pagos para “fazer ciéncia”. E um interesse ainda limita- do, mas, em todo caso, um interesse. Este fato se acentua, alcanca uma no- va dimensdo, com o desenvolvimento da indtstria capitalista e da tomada do poder politico pela burguesia. O fato é patente na Franga no infcio do século XIX. O Estado funda escolas assegurando a seus alunos uma boa formacdo, laboratérios (o primeiro criado foi o da Escola Politécnica), pa- ga saldrios aos cientistas, integra 4s vezes alguns dentre eles (Chaptal, La- place, Fourier) em seu pessoal politico. Os industriais passam a utilizar os servigos de alguns pesquisadores (no inicio, principalmente na industria quimica), associam-nos as vezes diretamente a gest de seus negécios.'* O interesse que o poder polftico traz a ciéncia dé por outro lado a medida do predominio — cientffico, mas também econémico e politico — do pafs:a ’Franga no infcio do século XIX, depois a Alemanha, que foi substituida no século XX pelos Estados Unidos.!® Todos sabem a importancia da pesqui- sa cient{fica nos dias de hoje, o papel que desempenha nas inovagGes tec- noldgicas e nos progressos econémicos (militares também, infelizmente!), a parte tomada pelos governos no seu financiamento, sua organizagao e, tal- vez com excessiva freqiiéncia, na definic¢do de seus objetivos. O trabalho cientffico individual tornou-se coletivo, sua sede passou do “gabinete” do século XVIII ao laboratério, depois ao instituto e aos grandes complexos contemporaneos. A histéria das ciéncias ffsicas €, sob todos os pontos de vista, bastan- te exemplar. Tendo perthanecido por muito tempo fragmentdrias ou no estado de simples técnicas, elas se beneficiaram grandemente dessa primei- ra “revolugéo industrial” da Idade Média, depois das conseqiiéncias da obra de Copérnico. A matemética contribuiu bastante para o desenvolvi- mento das ciéncias ffsicas que, em troca, lhe forneceram numerosos rumos para seu trabalho. A mecdnica — ciéncia semimatemdtica, semifisica e por outro lado ensinada nos programas de uma e outra matéria, ainda que de modo diferente — foi a primeira a tomar impulso e influenciou assim, am- plamente, as outras ciéncias. A Otica, por muito tempo simples ramo da geometria, diversificou-se no fim do século XVII. Para a quimica, como pa- 28 uma historia da fisica e da quimica ra a eletricidade e o magnetismo, o século XVII e a primeira metade do XVIII foram o tempo das observagdes miultiplas e empiricas, da experi- mentacdo por vezes desordenada, das teorias freqiientemente fantasiosas. O estudo do calor se restringiu 4 calorimetria, antes de se tomar termodina- mica a partir de Sadi Carnot em 1823. Se adotamos a divisdo classica das diversas disciplinas que compéem as ciéncias fisicas, podemos dizer que elas se constitufram essencialmente no século XIX, com excegdo da mecé- nica. Inicialmente a quimica, depois a termodinamica, a eletricidade e 0 eletromagnetismo foram diretamente envolvidos no processo do desenvol- vimento industrial ao longo deste mesmo século, o que ocorre em maior in- tensidade em nossos dias. Os diversos elementose as influéncias abordadas serao tratadas no de- corter deste livro. Isto serd feito por vezes de maneira cronoldgica e, fre- qlientemente, a partir dos debates, das controvérsias, dos erros e das retifi- cages que marcaram a histéria dessas ciéncias. Notas 1. A geometria euclidiana é baseada num postulado que hoje pode ser enunciado como: por um ponto exterior a uma reta, s6 se pode passar uma paralela a essa teta e somente uma. Por outro lado as geometrias ndo-euclidianas ou postulam que se pode passar uma infinidade de retas ou nenhuma reta. 2. 0 “positivismo” — filosofia elaborada por Augusto Comte (1798-1857) — atri- bui 2 ciéncia o papel tinico de constatagZo dos fatos ¢ pesquisa das leis, relacdes que existem entre os fatos. Portanto est4 fora das possibilidades cientificas a de- terminagdo da natureza dos fendmenos e de suas causas. Os positivistas postulam assim a impossibilidade de conhecer efetivamente 0 mundo real. Estao ligadas a estas correntes de pensamento contemporaneo, ditas “‘neopositivistas’’, fisicos eminentes como os da escola de Copenhague (Bohr, Heisenberg). R. Mousnier, Progrés scientifique et technique au XVIII€ siécle, Paris, 1958. F. Engels, Dialectique de la nature, Paris, 1952. O primeiro calenddrio conhecido foi elaborado no Egito entre 4242 e 4245 a.C. Exceto, evidentemente, o das regides européias (Espanha, Sicflia) no todo ouem parte sob dominio muculmano. 7. Isto s6 é valido para‘as ciéncias, nao para os outros dominios da vida cultural. A arte bizantina, por exemplo, é muito interessante. 8. Exceto ao longo dos numerosos perfodos de desordens. 9. J. Needham, La science chinoise et l’Occident, trad., Paris, 1973. 10. Com excegio do zero. 11. J. Gimpel, La révolution industrielle du Moyen Age, Paris, 1975. 12. O fendmeno é, no que concerne 4 Inglaterra, muito bem descrito na célebre obra de Thomas More, A utopia. 13. Exceto alguns medicamentos e certos corantes. 14. G. Thomson, Les premiers philosophes, trad. fr., Paris, 1973. 15, O caso do quimico Gay-Lussac, diretor de Saint-Gobain, ligado igualmente a so- ciedade industrial de Mulhouse é, com relacio a isso, muito tipico. 16. R. Gilpin, La science et l’Etat en France, trad., Paris, 1970. DAARW

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