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A IGREJA CATOLICA E O MOVIMENTO DOS MONGES BARBUDOS Henrique Kujawa* A temiatica aludida faz parte de um estudo am- plo que apresentei como dissertagio de mestrado na Universidade de Passo Fundo - UPF, no qual busco re- construir 0 Movimento dos Monges Barbudos e entendé- lo como uma manifestagdo politico-cultural, inserida no contexto da década de 30, marcada pelo governo de Vargas e pelo projeto de construgdo de uma identidade * Graduado em Hist6ria, Especialista em Historia do Rio Gran- de do Sul e Mestre em Historia Regional pela UPF. £ co-autor das obras Passo Fundo uma historia varias quest0es ¢ Visdes da histéria do Planalto Rio-Grandense (1980-1985). Atualmente leciona na Universidade de Passo Fundo, na Universidade do Oeste de Santa Catarina - campus Chapec e é educador popu- lar no CEAP, atuando na 4rea de controle social das politicas publicas. Cadernos do CEOM - Ano 14 -n° 13 - Unoese-Chapecd - Junnto/2001 nacional, a partir de um - € buscando enguaciren os demais - modelo de modernidade e de desenvolvimen- to econémico e social. No mesmo contexto € possive} perceber que a Igreja Catélica buscou reconhecer-se como elo dessa identidade nacional, cooperando na sua constituigéo e, ao mesmo tempo, Padi aes do prestigio junto ao Estado para concretizar seu projeto de Igreja Nacional.” Com este artigo, pretendo estabelecer alguns ele- mentos de anélise da participagdéo da Igreja Catélica na legitimagao do Estado Varguista e na construgao de uma identidade nacional, sob a égide da concep¢ao populista de cooperagao entre as camadas sociais. A andlise da tematica referenciada objetiva compreender os fatores que levaram o Estado e a Igreja a coopera- rem, embora cumprindo papéis diferenciados no pro- cesso de eliminagao do Movimento dos Monges Barbu- dos. Nessa perspectiva, num primeiro momento, fago uma breve contextualizagéo teorico-metodolégica, em seguida, uma reconstrucéo do Movimento €, por fim, a identificagdo das relagdes que a Igreja e o Estado esta- belecem com o mesmo. 1. Contextualizagio tedrico-metodolégica Do ponto de vista tedrico-metodolégico, 0 traba- tho insere-se na compreensao de que as ciéncias sociais vivem uma crise de paradigmas. A Escola dos Annales’ questiona a historiografia politica, procurando construir uma hist6ria da sociedade e de uma forma A Igreja Cat6lica e 0 Movimento dos Monges Barbudos interdisciplinar. Questiona-se a historia predominante- mente politica, propondo, em seu lugar, uma histéria mais social. Nas décadas de 60 e 70 a historia cultural e a historia das mentalidades buscaram dar um fim defi- nitivo as macroabordagens. Abandonaram-se as estra- tégias analiticas e estruturais, indo-se ao encontro da hermenéutica e passando-se a valorizar o especifico, particular, 0 cotidiano. Abandonou-se a linearidade temporal, buscando-se a valorizacdo do efémero e da descontinuidade. Historiadores, fildsofos, antropélogos e socidlogos dividem-se na conceituacao desse contexto. Alguns apontam que estarfamos vivendo o fim da modernidade; outros, que seria esta a pés-modernidade, ou, ainda, como se expressa Diehl, utilizando-se do pensamento de Jean Francois Lyotard, uma contraface da modernidade: “Os pés-modernos nao se situariam depois dos modernos, nem contra os modernos, mas que eles estariam dentro dos préprios modernos, mes- mo que ocultos”.” Junto a essa crise nos paradigmas positivos, lineares e, o aumento da importancia do hermenéutico e do especifico, surge a perspectiva dos trabalhos regionais que ganham as mais diversas for- mas e configuragGes: uns que ficam apenas no especifi- co, acreditando serem auto-suficientes; outros que bus- cam no especifico a exemplificagéo das grande teorias, e, ainda, aqueles com os quais compartilho, que to- mam 0 regional como uma forma de andlise que deva permitir 0 aparecimento do especifico e,ao mesmo tem- po, relacionar 0(s) micro(s) com o(s) macro(s). 81 Cadernos do CEOM - Ano 14-1” 13 - Unoese-Chapecd - Junho/2001 Portanto, ao estudar 0 Movimento dos Monges Barbudos, busco resgatar um fato especifico, regionalizado, até ha muito pouco tempo excluido da tematica histérica, mas que para ser entendido deve ser relacionado com os elementos macros com os quais tem conexées. E nessa perspectiva que ganha importancia a anélise da institucionalidade da Igreja e do Estado para compreender 0 especifico. As mudangas apontadas na historiografia acima esto associadas a um novo tratamento dado as fontes, através do qual sao postas em evidéncia as fontes orais eamemiéria. A utilizagdo da historia oral, assim como na compreensao de regiao e de historia regional, possui diversos entendimentos. Amado aponta, de forma ge- nérica, trés diferentes maneiras de utilizar a historia oral: como técnica, como disciplina e como método. No primeiro, a maior preocupagao é com a forma de coletar as fontes, com a aparelhagem utilizada nas entrevistas, com a formacao de acervos de entrevistas. Nesse caso, a fonte oral é utilizada como complemen- tar. Na segunda, busca-se conferir na historia oral um status de disciplina auténoma, alegando que, com a sua utilizacao, surgiram novos conceitos delineadores de um novo corpo tedrico. Por fim, na terceira, com a qual es- tou de acordo, reconhece-se que a hist6ria oral trouxe grande contribuicdes para a reconstituigao dos fatos hist6ricos e atribui-se a ela a mesma importancia dada a histéria escrita, mas verifica-se que, assim como esta, aquela também nao é auto-suficiente. A historia oral possibilita o acesso a novas informagées e, sobretudo, 82 A Igreja Cat6lica e 0 Movimento dos Monges Barbudos a novas perspectivas sobre diversas tematicas, contu- do, é insuficiente em si mesma, uma vez que nao conse- gue subsidiar explicagdes aos Processos histéricos.” 2. O Movimento dos Monges Barbudos O Movimento dos Monges Barbudos aconteceu no interior dos municipios de Soledade e Sobradinho, no Estado do Rio Grande do Sul, tendo o seu auge em 1938, quando foi violentamente reprimido pelas forcas policiais. Esse movimento consistiu na articulagado de um conjunto de camponeses em torno de crengas e pra- ticas religiosas, liderados por Deca Franga e Tacio Fiuza. A sua origem € atribuida a uma suposta visita do Mon- ge Jodo Maria (0 mesmo que liderou 0 movimento de Contestado em Santa Catarina) ao Deca, em 1935, na qual o beato teria passado ensinamentos ao camponés e conferido-lhe a missao de divulgd-los. Entre os ensinamentos, estavam também a previsao de tempos dificeis, o aparecimento de doengas incurdveis, a ne- cessidade de respeitar a natureza e os cuidados que deveriam ter com 0 fumo, pois 0 seu cultivo prejudica- va a satide. Para se prevenir desses males, as pessoas deveriam rezar e tomar cha, principalmente de caroba. Joao Maria da Silva, um dos componentes do movimen- to, assim relata a pregacao de Deca: Ele (Deca) avisava para se defender do mal, rezar, ir na igreja rezar para os apéstolos proteger. Ele (Deca) dizia: fagam os grupos de dois, trés vizinhos e fagam as oragdes, as novenas. Um dia na casa de um, outro dia na casa 83 Cadernos do CEOM - Ano 14 -n® 13 - Unoesc-Chapecd - Junho/2001 doutro, vito se trocando. Ele ficou encarregado para ensinar remé- dios de ervas. Primeiro a caroba, 0 cipé milomem, toda a raiz de Srvore de remédio, casca de gabritiva, angico vermetho. Tinha que tomar para purificar 0 sangue, porque mats tarde, por perto dos dois mil anos, viriam as doengas que os doutores nao iriam curar, Em poucos anos, estas idéias aglutinaram um grande grupo de pessoas que buscavam p6-las em pré- tica, fazendo novenas, tomando cha, adorando Santa Catarina, Sao Francisco e os Santos Apostolos. Na Quin- ta-Feira Santa de 1938, reuniram-se pessoas, vindas de toda a regiao, na igreja de Bela Vista (Sobradinho) para rezar. Durante a noite, por alarme da populagao vizi- nha, temerosa pela integridade de suas propriedades e cética quanto as crengas dos Monges, 0 grupo foi sur- preendido pela policia de Sobradinho que chegou ati- rando, matando alguns, ferindo varios, prendendo ou- tros tantos e dispersando o restante. As autoridades locais e estaduais, nao satisfeitas com a dispersao feita, que nao baniu todos os adeptos e nao prendeu Deca e, temendo uma possivel rearticulacao do Movimento, mobilizaram grande con- tingente armado, advindo de Passo Fundo, Santa Ma- ria, Cruz Alta e Porto Alegre, no intuito de vasculhar a regiao, eliminar o principal lider, que ainda estava fo- ragido, e abolir qualquer vestigio da organizacgao. As forgas policiais circularam em toda a regiado, cortavam barba e bigode de todos que encontrassem pela frente. A miss&o sé terminou quando conseguiram matar Deca Franga, deixando, com isso, o movimento 6rfao. A Igreja Catélica e 0 Movimento dos Monges Barbudos 3. A Igreja Catélica e o Estado versus 0 Movi- mento dos Monges Barbudos A acao da Igreja Catélica, embora questionando a violéncia praticada pelas forgas policiais, também foi efetivada com o intuito de eliminar 0 movimento. As crengas do grupo foram desqualificadas em fungao de nao se enquadrarem nos padrées romanizados da Igre- ja, que as consideravam como fruto da ignorancia e do fanatismo, apontando-se, portanto, a necessidade de bani-las. A questao que busco entender gira em torno des- tas perguntas: 0 que justifica a cooperagao do Estado e da Igreja na repressao? Que elementos unificam 0 po- der estatal e clerical? Em que medidas os Monges Bar- budos sao opositores a esse projeto? A hierarquia catélica “abengoou” a proposta do Estado e 0 projeto social desenvolvido por Vargas a partir de 1930. Essa béngao demostra um alinhamento entre as duas instituigGes e, diferente do que possa parecer, 0 alinhamento nao aconteceu de forma superficial e conjuntural, pelo contrario, a Igreja assumiu, mesmo que nao necessariamente compreendesse na totalida- de, os desdobramentos sociais e politicos da proposta Varguista. Isaia, ao comentar as relagdes entre a Igreja e o Estado nos anos 30,'nos coloca que: Na medida em que a hierarquia catélica sob o comando do Cardeal Leme hipotecava solidariedade a Vargas, comprometia-se, na priti- ca, com os desdobramentos que nos campos sociais e econdmicos passavam a ser implementados pelo novo poder. Ao alinhar-se ao 85 Cadernos do CEOM - Ano 14 -n° 13 - Unoese-Chapecé - Junho/2001 lado de uma solugio politica, a hierarquia catélica passava, implici- tamente, a ‘abengoar’ 0 desenvolvimento Varguista, uma vez que inexiste independéncia entre as instancias politicas e econémicas (ISAIA, 1998, p. 146). A pergunta que se impée é: 0 que levou a Igrejaa empenhar 0 seu apoio a0 modelo politico implementado por Vargas e seus desdobramentos socioecondmicos? Para compreender a questao é preciso lembrar que a Igreja, a partir da Proclamagao da Republica, viveu di- vorciada do poder do Estado. O Estado Republicano buscou sustentacao em bases liberais positivistas, reti- rando a Igreja como fonte de sustentagao ideoldgica e fornecedora da cosmovisao que justifica suas agOes. Nesse periodo, as elites buscaram um afastamen- to da estrutura clerical e a Igreja passou a ser vista como forga politica contraria aos interesses do Estado e da sociedade. Nessa perspectiva, a Igreja Catélica no Bra- sil desenvolveu, durante a Primeira Republica, uma agao desatrelada do Estado. Contudo, mesmo nao tendo mais o Estado como unificador de suas agoes, nem como aparelhador e cooperador de seus projetos, a Igreja con- tinuava vinculada as elites, que controlavam o poder local. Com isso, nao quero dizer que nao tenham surgi- do propostas de constituir uma alianga com 0 povo para substituir as antigas relagdes com o Estado, mas essa alianca com as camadas populares, como nos coloca Beozzo, mostrava-se invidvel: Cortada do aparelho do Estado e do pequeno circulo das oligarquias liberais, ela (a Igreja) continuava profundamente ancorada em sua alianga de classe com as oligarquias conservadoras, participando A Igreja Catélica e 0 Movimento dos Monges Barbudos ativamente do sistema coronelistico e guardando através desta alianga com os proprietérios rurais sua hegemonia sobre a dl massa rural (BEOZZO apud FAUSTO, 1096, p 278). eee A Igreja continuou, mesmo divorciada dos apa- relhos do Estado e das oligarquias liberais, a estabele- cer relacdes com as elites, construindo um dominio “por cima”. A exemplificagaéo mais clara 6 a postura que a Igreja adota frente aos movimentos que, neste periodo, questionam 0 status quo, como € 0 caso, a titulo de exem- plo, de Canudos e Contestado. Todas essas revoltas buscam na religido o seu ponto de partida e sua forca de aglutinagio. A Igreja porém marca sua distancia de todo esse povo despossuido e explorado dentro desta nova ordem liberal. Ela é a primeira a condenar o que chama de fanatismo religioso dos seguidores de Conselheiro ea emprestar seu apoio a repressito do Estado que vem a seguir (BEOZZO, 1996, p. 278) A manutengao do vinculo da Igreja com as elites locais, patrocinando, embora que moralmente, a repres- sao das praticas religiosas populares e os movimentos de resisténcia que se manifestavam como expressdes religiosas, pode ser entendida a partir de seu projeto de romanizagao. Entende-se por romanizagao 0 projeto da Igreja de reforgar a sua hierarquia e construir, de for- ma verticalizada, os dogmas, as crengas e as praticas de fé. Neste sentido, concorda-se com Oliveira quando coloca que: Fala-se de romanizagao porque a ago reformadora dos bispos, pa- dres e congregagées religiosas tém por objetivos moldar o catolicis- mo brasileiro conforme 0 modelo romano. Seus tragos essenciais siio a espiritualidade centrada na pritica dos sacramentos ¢ 0 senso 87 Cadernos do CEOM - Ano 14 -n° 13 - Unoese-Chapecé - Junho/2001 da hierarquia eclesidstica; 0 bom catélico, segundo esse modelo, é uele que freqiienta regularmente o sacramento e obedece incon- a a oie is eeclesidstien (OLIVEIRA, 1985, p. 283), dicionalmente @ autori Os agentes da romanizagao opunham-se ao ca- tolicismo luso-brasileiro e, principalmente, ao catolicis- mo popular, pois, embora nao contrariasse a hierarquia eclesidstica nem recusasse os sacramentos, deixava-os para um segundo plano. Os elementos mais valoriza- dos pelo catolicismo popular eram as irmandades, as festas religiosas, as promessas que estabeleciam um di- dlogo e um compromisso direto entre os fiéis e seus san- tos . As praticas religiosas populares eram muito ecléticas e, por isso, consideradas ignorantes e fandati- cas, nao seguidoras do verdadeiro cristianismo. Com essa visdo, a Igreja encontrou na alianga com as elites locais, que exerciam uma influéncia coronelistica e ti- nham uma pratica de compadrio, a forma para influ- enciar 0 maior ntimero de adeptos possivel e buscar a concretizacao do seu projeto. O tinico lugar que se constituiu em excegao a esse distanciamento dos grupos populares foi o Rio Grande do Sul. Nesse Estado, a Igreja conseguiu estabelecer s6- lidas relagdes com as camadas subalternas da popula- ¢4o, sem a intermediacaéo de grandes proprietarios, nas regides de imigrantes italianos e alemaes. Esse vinculo nao pode ser estendido a grupos de caboclos (grupos sociais que participaram do Movimento dos Monges Barbudos) que possuiam, como ja mencionamos, uma pratica de sua fé, embora crista, ndo uniformizada e modelada pela romanizacao do catolicismo. 88 A Igreja Catélica e 0 Movimento dos Monges Barbudos Entao, podemos entender que, no final dos anos de 1920 e inicio da década de 30, a Igreja estava seden- ta por construir um projeto politico em que pudesse usu- fruir de maior participacdo do poder estatal e das benécias de seus aparelhos institucionais de larga abrangéncia e, com isso, facilitar sua acgao em busca da constituigao de seu projeto de cristandade. Por outro lado, 0 projeto de construgdo de uma nova identidade nacional, proposta por Vargas, também via a Igreja como uma aliada de grande valia. A alianga entre 0 catolicismo, liderado por Dom Leme (Bispo do Rio de Janeiro), e 0 Estado Getulista pode ser entendida a partir de trés razdes principais. Primeiramente, por que possibilitava grandes avancos a Igreja. Como nos aponta Silva, aumentou a sua influéncia junto ao poder constituido e ao mesmo tempo viabilizou projetos importantes para a hierarquia eclesial como universidades catdlicas, Agio Catélica, Circulos Opertri- os (1980, p. 15) A segunda razao_ indica a vinculagao da alianga a um contexto mais amplo de apoio da Igreja ao desen- volvimento capitalista como forma de contengdo ao projeto comunista’, extremamente nefasto para os seus interesses. A proposta de construgao de uma sociedade de cooperagao de classes, buscando a harmonia e de- senvolvimento do capitalismo era visto, pela Igreja, como uma forma de diminuir a abomindvel influéncia dos soviets sobre a sociedade. A terceira razao que pode ser apontada para o apoio da Igreja ao Varguismo éa visualizacdo, por parte da hierarquia clerical, da possi- 89 Cadernos do CEOM - Ano 14 -n° 13 - Unoese-Chapec - Junto/2001 bilidade de concretizar o seu nacionalismo catélico (RICHARD, 1984), © qual teria na aproximagao com o Estado o seu ponto de partida e um escudo para os seus opositores, entre eles, o comunismo - que era inimigo comum & Igreja e ao Estado -, os protestantes e espiritualistas que vinham crescendo junto aos grupos urbanos . Compreendemos, portanto, que a Igreja via na aproximagao com o Estado a possibilidade, que se concretizou, de ampliacgao da rede educacional e o re- cebimento da subvencao oficial a todas as suas agGes, © que permitia-Ihe grande influéncia sobre uma cres- cente camada social média urbana, diminuindo o es- pago para a proliferagao de outras religides. Se a Igreja tinha suas razGes, apontadas acima, para buscar uma alianca com o Estado, este também buscava, em sua relagdo com a Igreja, 0 apoio e a legitimacao de seu projeto por uma instituigao que era respaldada por diversos e amplos setores sociais. Como nos aponta Isaia, esta alianga era uma via de mao du- pla, beneficiando ambas as partes: Se para o projeto populista de Vargas o apoio da religito da maioria do povo brasileiro [...] era sumamente relevante para manter a coesiio do regime, para a Igreja este apresentava-se como capaz de possibilitar-Ihe uma ampliagao de sua base social e uma garantia contra o fantasma do comunismo (ISAIA, 1998, p.51) Este casamento, ao contrario do que possa pare- cer, continuou apés a implantagao do Estado Novo, mes- mo quando Vargas anulou algumas das conquistas da Igreja, consolidadas em 1934 e extintas com a consti- tuicdo Polaca de 1937.0 Bispo Dom Joao Becker justi- 90 4 A Igreja Catélica e 0 Movimento dos Monges Barbudos ficava o estado autoritério como um regime de excecao, necessdrio para impedir 0 avango do comunismo. A de- cretagado do Estado Novo era legitimada dentro de uma linha de argumentagao, na qual a medida impunhava- se como razao de estado, visto que em diversos momen- tos historicos os governos foram obrigados a adotar me- didas excepcionais para garantir 0 bem maior. Dentro do quadro nacional, a Igreja gaticha nao foi excegao, pelo contrario, mantinha um alinhamento em sua agdo e defesa integral ao Estado Novo, como nos demostra Isaia: D. Frei Candido de Caxias, bispo de Vacaria, apoiava totalmente a ‘grande obra patridtica do governo em reprimir todos os agitadores assalariados pelos soviets’. Do Bispo de Santa Maria, vinha em irrestrita solidariedade a Filinto Miiller, colocando-se o secretério Geral de D. Antonio Reis 4 inteira disposigito do Chefe de Policia do Distrito Federal para relatar-the fatos que o auxiliariam ‘na conse- cugio da limpa desses indesejéveis na nossa querida patria’. Jé D. Joaquim Ferreira de Mello, bispo de Pelotas, enviaa Felinto Miiller cépia de uma circular, na qual orienta o seu clero para colaborar com a obra do Estado Novo, através de um trabalho educativo junto a0 povo, bem como valendo-se da organizagio da Agio Catélica (1998, p. 51). Soma-se ao relato o sustentaculo da autoridade eclesial mais influente do sul do pais, Dom Joao Becker que, além de ter apoiado incondicionalmente, propa- gava a agao do Estado Novo através de seus discursos e pronunciamentos ptblicos . E importante frisar que Dom Becker era defensor do projeto por identifica-lo como fundamental a construgdo de uma sociedade sob os designios de Deus. Dom Becker apontava a religiao como a tinica capaz de gerar uma identidade nacional. 1 Cadernos do CEOM - Ano 14-n° 13 - Unoese-Chapecd - Junho/2001 Numa sociedade formada por diversas etnias sé a reli- giao conseguiria formar um conjunto de valores unificadores. D. Joiio Becker usaa metéfora da familia, na qual convivem pessoas de diferentes temperamentos reunidas pela solidariedade propria de pertencer a uni tronco comum. Assim, o Brasil, formado por povos tio distintos, tendia a integré-los em uma unidade espiritual formada por valores compartilhados (ISAIA, 1998, p. 166). Nesta circunstancia de constituigao do projeto de unidade nacional, defendido e construido conjunta- mente pelo Estado e pela Igreja, é que nds podemos compreender a relagdo que essas instituigoes estabele- ceram com o Movimento dos Monges Barbudos. Soma-se ao contexto e aos projetos institucionais do Estado e da Igreja a compreensao oficial registrada pelos documentos da época que apontavam dois fato- res como sendo os motivadores e responsdveis pelo surgimento do movimento, sao eles: 0 afastamento da regiao (Sobradinho) dos recursos urbanos, da modernidade e a desassisténcia da Igreja ao povoado. A mesma concep¢ao é nitidamente expressada pelas duas principais obras que abordam a tematica. Para Verdi “O fendmeno dos Monges de Soledade teve por principal ingrediente altas doses de misticismo, cre- dulidade [...] de um grupo abandonado ao atrasadismo” (1987, p. 91). Pereira e Wagner mostram-se mais enfaticos ao tentarem demostrar que, em meados de 1980, a situa- cao daquela regiao era precaria: A Igreja Cat6lica e 0 Movimento dos Monges Barbudos E uma regio de terras dobradas, com Serras, pequenos rios, onde 0 chamado progresso nifo apontou até hoj s loje [...] Por ouvir falar em plas anticoncepconas. Essensa viram, nao tomam (WAGNER e PEREIRA, 1 981). lheres nunca Dentro do padrao de modernidade constituido, o grupo social participante do Movimento dos Monges Barbudos nao se inclufa. Seu padrao estético, suas rela- Ges sociais, sua forma de produzir e suas crengas nao eram compativeis 4 modernidade pretendida pelo pro- jeto em construgao na década de 30. Para o Estado, o Movimento era a expressao de segmentos que, por seu atraso politico e seu carater de insubordinagao, representava uma pedra no projeto de identidade nacional que deveria ser esmagado pelo rolo compressor dos aparelhos repressivos. Na verdade, todo e qualquer movimento regional ou de minorias deveria ser aniquilado, pois entendia-se que somente dessa for- ma triunfaria a identidade nacional. Sob essa concep- cdo reprimem-se, brutalmente, movimentos como o Pau de Colher (Bahia) e Monges Barbudos (Rio Grande do Sul); profbem-se os imigrantes de falar seus respectivos dialetos e, até, contém-se os movimentos operarios que se pretendiam independentes da tutela estatal. E possivel perceber, desta forma, a exemplificagao da reflexdo feita anteriormente sobre a relagao entre a Igreja e o Estado Getulista, na construgao de seus projetos de identidade nacional e de cristianizagao e romanizagao da Igreja. Dentro deste projeto nao havia espaco para minorias dissidentes, tampouco pata gru- pos que nao se adequassem ao projeto, justificando, 93 A Igreja Catélica e 0 Movimento dos Monges Barbudos 8.A constituicdo de 1934 no: i mando lei constitucio nal, diversas relagdes entre a lone come 1937, a implantagao do Estado ditatorial, a nova constituigao (Pola. ca) diminui esta regulamentagao promovendo um regresso conquista do espaco legal da doutrina catélica. Entre as nee pais meee pases citar a alteragio na legislagao pases no religioso nas escolas e i ‘ibil nae ae 0 estabelecimento da possibilidade 9. Entre os discursos, podemos citar: Discurso i Catedral por S. Ex" D. Joao Becker, no 25° renee posse no governo da Arquidiocese de Porto Alegre. (UNITAS, Porto Alegre, v.24,n. 11-12, nov/dez., 1937). : Discurso de encerramento do Congresso Eucaristico de Bento Gonsalves. (UNITAS, vol. 27, n. 5-6, maio/jun., 1940). Discurso pronunciado por S. Ex’. D. Jodo Becker na missa cam- pal de 27-11-39, em comemoragao aos heréicos tombados na revolta comunista de 27-11-35. (UNITAS, Porto Alegre, vol. 26, n. 11-12, nov./dez., 1939). 5. Referéncias AMADO , Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org,) Usos & abusos da historia oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundagio Getii- lio Vargas, 1998. BEOZZO, José Oscar. A igreja entre a revolugao de 1930, o Esta- do Novo ea redemocratizagao. In: FAUSTO, Béris(org,). Historia geral da civilizagio brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1996, v.11. BOSI, Eclea. Memdria e sociedade: lembranga de velhos. 6.ed.,S80 Paulo: Companhia das Letras, 1998. BURKE, Peter. A Escola dos Annales 1929-1989. 3* ed. Si0 Paulo: Unesp, 1991. DIEHL, Astor Antonio. Consideragdes sobre a discussaéo em torno da microistoria. In: Revista de Filosofia e Ciéncias Humanas, Universidade de Passo Fundo, n. 1 e2jan./dez 1996, p.71 -86. 6 Cadernos do CEOM - Ano 14 =n? 13 - Unoese-Chiapecé - Junto/2001 _ Vinho velho em pipa nova. 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