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SJURUA EDITORA PSICOLOGIA Editora da Jurué Psicologia: Ana Carolina Bittencourt ISBN: 978-85-362-5919-2 eusil ~ Ay. Moshoe da Rocha, M3 ~ sews — one: (1) 4099900 URUR > Be day. ecb tonsa Cusine Part Desl « Europa —Rua General Torres, 1.220 — Lojas 15 ¢ 16 ~ Fone: (351) 223 710 600 — Cnt Gann DOr 0.08 - Via Nova Calor Prd Editor: José Emani de Carvalho Pacheco Evangelista, Paulo Eduardo Rodrigues Alves. E92 _ Psicologia fenomenolégica existencial: a pritica psico- logica a luz de Heidegger./ Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista,/ Curitiba: Jurué, 2016. 258p. 1. Psicologia fenomenoligica. 2. Psicologia existencial. 3. Fenomenologia. I. Titulo. CDD 150.192 22.e4.) 99218 DU 159.994 Vist nossos sts naintenet war jraapsicolagia.com bre wow. editorial Nenossos in plcolopnaheuacom eee Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista PSICOLOGIA FENOMENOLOGICA EXISTENCIAL APRATICA PSICOLOGICA ALUZ DE HEIDEGGER Curitiba Jurud Editora 2016 Apresentacao © leitor tem em maos a publicagdo da tese de doutorado apre- sentada na Universidade de Sao Paulo para obtengao de titulo de Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Foram feitas pe- quenas corresdes ¢ alteragdes minimas em relagdo ao texto entregue. Da elaboragio do projeto de pesquisa a versio final transcorre- ram cinco anos. Mas as dividas e questionamentos que animam esta apresentagio de uma possivel contribuigdo da filosofia de Heidegger, chamada de “fenomenologia existencial” ou “fenomenologia hermenéuti- ca”, a Psicologia sd0 mais antigas. Meu interesse pela “psicologia feno- menolégica existencial” me levou & descubeita Ue iiuilas teorias © prati- cas diversas, quigé contraditérias, entre si. E 0 aprofundamento na obra de Heidegger, ocorrido durante a redagio de dissertaglo de Mestrado em Filosofia (PUC-SP), revelou a necessidade de dirimir confusdes, contra- digdes e equivocos. Afinal, a fenomenologia ensina que modos de dizet (evelar) um fendmeno podem apresenté-lo tal como é ou tal como nio é (encobrimento). Este estudo busca explicitar uma psicologia fenomenoligica hei- deggeriana, diferenciando-a de outras abordagens psicoldgicas que langam ‘iio do adjetivo ‘fenomenolégica’ sem serem realmente fenomenologicas. © mesmo ocorre em relagio ao adjetivo ‘existencial’, que pode significar tantas ages e atitudes diferentes. O que é a existéncia para Heidegger e ‘como pode (se & que pode) fundamentar uma psicologia? Essa é a outra Pergunta que anima minha pesquisa e convida a diferenciar uma psicologia existencial ‘heideggeriana’ de outras abordagens existenciais. Este objetivo pode soar pretensioso, como toda filosofia é. Mas minha proposta de uma psicologia “heideggeriana’ reconhece a limitagao ¢ a finitude de todo empreendimento humano, de modo que o que oferego 40 leitor é apenas isso: uma proposta. Se, as vezes, a andlise & meticulosa demais, uma definigdo, idem, é porque 0 rigor fenomenolégico assim 0 2 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista exige. Por outro lado, esse aparente preciosismo realiza 0 que poucas vezes se vé nas psicologias fenomenoldgicas, que € 0 estudo rigoroso da fenomenologia (filosofia) que a estrutura. Ademais, pode oferecer a0 leitor uma apresentagio didatica de alguns temas dificeis, sobretudo para pessoas pouco acostumadas com o linguajar filoséfico. Participaram da defesa da tese como banca arguidora os professo- res: Dra. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, Dr. Roberto Novaes de Sa, Dra. Dulce Mara Critelli e Dr. Gilberto Safra, a quem agradeco imensa- mente as consideragdes e sugestdes, dentre clas, a de publicacio da tese. A professora Dra. Henriette Tognetti Penha Morato orientou a pesquisa, sus- tentando um contraponto constante e cuidando para que as reflexdes ndo se apartassem dos fendmenos que as originaram. Por isso, néo ha ninguém ‘mais indicado para prefaciar este livro e, também por isso, agradego-a, Aproveito para agradecer & Marcia, por tanto amor e tanto apoio desde o dia em que nos conhecemos; aos meus pais, que sempre me in- centivaram e deram liberdade para seguir meus sonhos; aos amigos do LEFE, que leram e releram esta pesquisa e, como leitores, tornaram 0 trabalho de escrita menos solitirio; aos pacientes, alunos e supervisio- nandos, que tio frequentemente tiram 0 chio de sob meus pés; a Univer- sidade de Sto Paulo, pelas condigdes oferecidas, e Universidade Paulis- ta, onde levionu e de oude brotaram muitas das perguntas que tento aqui responder. Agradeco, por fim, a Jurua Editora, que tio prontamente acei- tou o manuscrito deste livro. Prefacio Tarefa desafiadora, mas tentadora e prazerosa, é escrever um prefiicio, Mas escrever para apresentar as reflexdes de Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista é, particularmente, pertinente para além de mera retorica, No inicio de seu doutorado, ofereci a ele a provocagdo para uma indagagio: € possivel atribuir a Psicologia a denominagao fenomenolég ca existencial como uma outra possibilidade tedrica? E mais: como com- preender tal atribuigdo considerando a variedade de expressées emprega- das, encontradas entre profissionais e estudiosos, para referirem-se a Co- ‘mo compreendem essa pertinéncia? Preocupado, mas disposto, Paulo abriu-se a transitar por refle- xBes que conduzissem a desvelar “o que pode um psicélogo fenomenolo- ‘gico-existencial?”. Ele assim apresenta seu projeto no resumo de sua tese (Evangelista, 2015) © sentido conhecer como a filosofia de Martin Heidegger, filésofo ttadicionalmente associado 4 fenomenologia existencial, influenciou a psicologia. Na literatura psicolégica ela aparece em modalidades de pritica muito distintas entre si, A confusio & grande também no que tange as abordagens tedricas psicolégicas que se denominam fenome- nolégicas e/ou existenciais: Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), Gostalt-Terapia, Dascinsanalyse, Andlise Existencial Empenhado a perseguir sua pergunta-guia, percorreu cuidado- samente autores ¢ textos que procuravam esclarecer como essas denom nagdes foram percorrendo “a abordagem” dita fenomenolégica existen- cial, bem como a partir de quais origens elas se fundamentavam para assim apresentarem-se. Nesse sentido, sua imersio reflexiva € cuidadosa € rigorosa, permitindo ao leitor problematizar e questionar, contribuindo “para a dissolugo da confusio no campo das psicologias fenomenolégi- “4 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista _ cas, existenciais e humanistas”. Acentuo, ainda, a pertinéncia do presente texto para a formagio critica de futuros psicdlogos e compreenstio de sua ago no exercicio do oficio, um dos objetivos que levaram a sua produgao. Retomando escritos de Heidegger, percorre passagens do pen- samento do filésofo no sentido de buscar como a ontologia fundamental, procurando pelo sentido do ser, se mostre como possibilidade aberta por Heidegger & Psicologia, na medida em que a anilise fenomenologica da existéncia tem o sentido de deixar que se mostre a si mesma a partir de si mesma fazendo com que assim seja vista. Nessa direc2o, para refletir ‘como a Psicologia ainda ¢ perpassada por uma visdo metafisica de ir atrés da pergunta “o que é7", convoca o investigador a aproximar-se de como acontece a prépria experiéncia cotidiana. ‘Assim refletindo, 0 autor coloca-se em questo para pesquisar o que pode um psicdlogo”, percorrendo a realizagao de seu préprio exis- tir como um poder-ser. ‘Ao indagar pelo que pode, dé-se que a resposta ¢ encontrada pela des- crigdo de possibilidades existenciais. Nesse sentido, a pergunta tam- ‘bém resguarda 0 entendimento de que a Psicologia realizada a cada ‘vez por um psieslagn, isto é, no é uma entidade impessoal, mas um modo de ser. Isso me conoca a responder como eu sou (tenho sido) psicdlogo, inserito numa tradisfo, projetando-a ¢ a mim no porvir. (Evangelista, 2015, p. 233) Dizendo de modos de ser, questiona refletidamente as possibili- dades do ser psicdlogo, marcado no e pelo mundo, historicamente impli- cado com outros. E por essa via, retoma caminhos percorridos por com- preensées teéricas da pritica psicolégica que se denominam fenomenol6~ gicas existenciais em seus modos de ser com outrem. Encontrou-se com dois caminhos para a possivel influéncia da ontologia heideggeriana na Psicologia: um europeu e outro norte-americano. Nesse percurso, discute a aproximagao da Psicologia 4 Filosofia e como foi esse acontecimento no Brasil, através da disseminagao da ‘Terapia Centrada no Cliente e da Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, a partir dos anos 60. Detém-se em analisar essa proposta, princi- palmente pot ter sido abragada por psicélogos clinicos e ser incluida nos curriculos da formagao desses profissionais. Por reflexes ainda amparadas na ontologia de Heidegger, dis- cute a denominagio de Psicologia fenomenol6gica existencial dada por humanistas, por ainda indicarem compreensdes metafisicas. Tais entraves Psicologia Fenomenoligica Existenial 15 dio a ver como a indagaco ontoldgica fenomenolégica nao se presta a uma objetividade nem tampouco & aplicabilidade Gntica, pois, tematizan- do a fenomenalizagdo do real, nao pode ser nem uma abordagem nem um adjetivo da Psicologia. _ Contudo, a questo do que pode um psicélogo fenomenoligico existencial persiste, explorando a agdo clinica como a possibilidade do encontro entre duas existéncias, pelo qual ambos se descobrem no sentido de descobrir algo. Diz de uma agio nao técnica, mas sem diivida ética, piiblica e politica. Ser-clinico ¢ dispor atengao a outro existente, pela qual exercta a possiblidade existencial de inci: agi ivemente propiciando Seri esta a resposta a “que pode um psiclogo fenomenaégico- existncat?, Ele pode encontrar o outro, Enconttndo-o, testemunha @ desvelamento de aun stsgdo © a convocaglo &agto, Ao mesmo tempo, dewvela sua prdpriacondigao de ter-queser, gutimente dee: tado,possiel eimiado, (Evangelista, 2015p. 214) : Ser-clinico transita entre ser terapeuta ¢ ser professor/super- visor. Porém nfo & especificn de psicdlagas, assim coma a ontologin heideggeriana nao é uma psicologia. Propondo-se a descrever a existén- cia, a fenomenologia existencial dispde fundamentos & pratica de qual- quer outro profissional de Ciéneias Humanas. “Nao é um modelo teérico a set aplicado na Psicologia, assim como Dasein nao é uma representagio ou um universal de existéncias particulares” (Evangelista, 2015, p. 215). Ser-clinico diz de um cuidar de si e do outro como existentes na direga0 de-um poder-ser fictico, ‘Ao remover entulhos e obsticulos que impedem 0 entendimento de si € 0 agir livre proprios da existéncia ests sendo terapéutico. F isso ndo é prerrogativa do psicdlogo. Pode ser realizado por fildsofos, por cien- tistas, por padres, por amigos. Nesse sentido, a Psicologia pode ser an- serapeutica, poi encore a existeia com modelos fecionas. Sendo a anélise existencal terapéutica, quem a realizaé clnico. (Ev saan péatica,q aliza€ clnico. (Evangelista penta pase ant Perztiadesendeante do present exo se are. yuscando compreender quem é 0 psicélogo. E Ev ena psicélogo. E Evangelista (2015, 16 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Ser psicblogo é uma possibilidade datada historicamente e, como todo ser-no-mundo, passivel de retomar a ocultaglo misteriosa de onde surgiu. Ao retomar cuidadosamente a analitica existenciriae as indicagdes de Heidegger para uma Psicologia nela fundada, sinto ter contribuido pa- ra dirimir as confusdes minhas e da Psicologia quanto a esse modo de, como psicélogo, encontrar outro. (...) Descobri-me como ser finito, limitado 8s possibilidades existenciais que meu contexto s6cio- historico dispoe. Sera que este modo como sou psicélogo e que reco- nnhe¢o na pritica de colegas esgota as possibilidades de ser-psicélogo neste momento hist6rico? Fica, assim, 0 convite a uma leitura instigante de texto criterio- samente rigoroso para encontrar as possibilidades e pertinéncia da pratica psicologica. Afinal, interrogar pelo que merece ser interrogado € uma indicagdo de Heidegger para o humano ser humano. Obrigada, Prof, Dr*, Henriette Tognetti Penha Morato Sumario Tatrodug 1 Método? ‘Método cientifio em pesquisa 32 Aaalitica do Sento : ce = 34 CConfrontamento com adie ne Fenomenologia como método. 2 Método fenomenoligeo de investigato. “4 TL “Meu Caminho para a Fenomenologa” 9 ‘Meu pimeiro contato com a Psicologia Fenomenolégica 9 Fenomenologia como atitudeingénua $0 Fennenengin come evticn& paicaniie 2 Fenomenologia como imediatidade sintticahomem-muno. con SS Fenomenologia como coexstncia es 37 Fenomenologa etemporlidade a) Fenomnenologia como attude de nao julgaments : 6 TIL Dols Camiahos da Psicologia Fenomenolégica Existencial or 0 desenvolvimento da psicoatologia fonomenoldgica 69 ‘Uma tenaiv de sistematiagdo das psiclogis fenomencldgicas e exiseniai va. 72 Pricologia Humanista Norie-americana e Psicologia Fenomenolégica Existencial Buropeia e IV AExistincia.. A diferenca ontolégica : 85 "A ‘esstnca” do Dasein reside em sua existncia” 88, See triplice abertura : 90) Beontarse (Befindlichket) : 91 Eatender (Versichen) 93 Discurso (Rede) 99 Bercom. 101 Germortal..... _ . 106 ‘Angist 13 Ber-Preocupagdo (Sorge) 1 18 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista V__Desdobramentos da Ontologia Heldeggeriana na AA Daseinsanalyse de Ludwig Binswanger (1881-1966) AA Daseinsanalyse de Medard Boss (1903-1990), (Psico}terapia daseinsanalitica Psicologia “heideggerians” Winnicott, um psicanalista heideggeriano?, ologia VI_ A Fenomenologia Existencial na Psicologia Brasiler (0s primérdios Psicologia humanistafenomenoldgica existencial Psicologia Fenomenolégica como pesquisa qualitativa Sobre o conceit de vivénciae a psicologia fenomenologics VII_ A Fenomenclogia.. Pensar dizer, ser. 137 Brentano e uma Psicologia do Ponto de Vista Empirico seed 8 Hiusserl ea resunito de sujito€ objet eases 160 Fenomenologia como Filosofia Transcendental... : 167 ‘VIII Carl Rogers © a Psicologia Fenomenolégica Existencial.. A atitude do psieblogo centrado na pessoa. Em diregEo a uma Filosofia da Pessoa ‘A ontologia rogeriana IX Sobre o Ser da Ciéncia Psicologia. Psicologia ea Era da Técnica O real Teoria Psicologia eomo teoria do real X — ATarefa de uma Nova © psicéloge como profissional do encontro. (© sentido da destruigho do conceit de animal racional,fundante da Psicologia.....20 Heidegger e uma nova ciéncia do homem: a Daseinsanalyse aniropologica. 210 ncia do Homem XI Que Posso Eu, Psicéloge’ Ser-psicélogo psicoterapeuta Ser-psicélogo supervisor. Ser-psicélogo plantonist Ser-psicélogo professor. . A.agio clinica como modo de ser psicdtogo. : 231 Enfim, 0 que Pode um Psicélogo Fundamentado na Ontologia Heideggerian Referfacias. indice Altabético _ 253 Introducao Comego a dar aulas na Universidade Paulista (UNIP) nas cadei- ras de “Abordagens Humanistas em Psicologia” e “Fenomenologia, Exis tencialismo ¢ Psicologia” em 2008. Nesse mesmo ano comeco a supervi- sionar atendimentos em psicodiagnéstico infantil e psicoterapia, ambos na “abordagem fenomenolégica existencial”. O modelo de psicodiagnés tico que utilizamos é desconhecido para mim. Chama-se “psicodiagnésti- co compreensivo-interventivo” (Ancona-Lopez, 1996) © apresenta-se como “psicodiagnéstico fenomenolégico-existencial”. Vou descobrindo junto aos alunos que é um modelo caracterizado pela alterndncia de aten- ddimentos aos pais e as criangas, a fim de propiciar modificagdes no com- portamento da crianga e na relagdo com sua familia. Rompendo com a roposta tradicional do psicodiagnéstico de elaborar um laudo psicolégi- co ¢ realizar 0 encaminhamento, 0 modelo “compreensivo-interventivo fenomenolégico-existencial” coloca-se como interventivo, pois promove transformagGes na dindmica familiar ao longo do processo. Para ampliar © espectro de informagdes acerca da crianga, esse modelo propde visitas dos estagiérios (alunos do quarto ano de psicologia) & escola e a casa da crianga. No ano anterior ao estagio em psicodiagndstico, os alunos tém as referidas aulas de “Abordagens Humanistas em Psicologia” e “Feno- menologia, Existencialismo ¢ Psicologia”. Os estagidrios de psicodiag- néstico “compreensivo-interventivo fenomenolégico-existencial” trazem para compreender a pritica do estagio as teorias que aprenderam nos anos anteriores, com énfase nesses cursos. E dai surgem as questdes: “Entdo 0 psicélogo fenomenologico existencial pode fazer atendimentos em domi- cilio?” “Pode visitar a escola?”. Essas sto algumas das perguntas que ouvi e ainda ougo, na condi¢do de professor-supervisor de psicoterapia nessa abordagem. Também ougo dos alunos afirmagdes como “a psicolo- gia fenomenolégica existencial ¢ a abordagem psicolégica mais util de todas, pois esté voltada para a pritica” ou “pois promove mudangas mais 20 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Psicologia Fenomenolégica Existencial 2 rapidas” ou “é interventiva, enquanto as outras so explicativas”. Ougo também falas de alunos sobre a nao necessidade de estudar teorias psico- logicas para set psicdlogo fenomenolégico existencial, ja que a fenome- nologia “‘suspende” as teorias Desde que trabalho como docente e supervisor, portanto, reco- tho dos alunos muitas questdes referentes ao que caracteriza um psicdlo- g0 fenomenolégico existencial. Nas reflexdes em supervisio discutimos a “teoria” da fenomenologia existencial que fundamenta nossas compreen- sdes. Nestas situagdes sou surpreendido, pois os alunos raramente ouvem, falar de Medard Boss ou Ludwig Binswanger, autores que, na minha formagao, estio intimamente ligados ao pensamento de Martin Heidegger €, portanto, a uma “psicologia fenomenolégica existencial”. “O que € para vocés a fenomenologia existencial?”, pergunto a eles. As respostas so as mais variadas. Uns indicam a importéncia de uma “atitude fenomenolégica”, que descrevem como a “suspensio de preconceitos”, sem conseguir explicar o qué € como realizar essa suspen- sto. Outros falam da “compreensio empitica” e “aceitagdo incondicional do ser do cliente”. Perguntam: “o psicdlogo fenomenoldgico existencial pode chamar 0 cliente de paciente?”. Falam de “envolvimento existencial” ¢ “distanciamento reflexivo”. Outros alunos defendem a importancia do gqi-e-agora nesta abordagem. Afirmam que a gestalt-terapia & fenome- nolégica, ou ainda que é 0 modelo fenomenoldgico existencial de psicote- rapia. E a grande maioria nfo a distingue das abordagens humanistas, que so apresentadas em outra disciplina. Sob quais aspectos fenomenologia existencial, gestalt-terapia, terapia centrada no cliente sfo diferentes? Ao longo de minha pratica docente descubro uma enorme confusio em tomo dessas questdes. Ao ‘mesmo tempo, minha dificuldade para apontar diferengas revela a mim que estou confortavelmente assentado em uma compreensio tacita sobre © que € uma psicologia fenomenoldgica existencial, até entdo identificada com a Daseinsanalyse de Medard Boss. Seria, entfo, essa confusio fruto de pouco estudo dos alunos? Ou estaria ela nas explicagdes dos professo- res? Ou ainda na bibliografia sobre o tema? Uma série de perguntas co- ‘mega a surgir para mim. Como professor sou convocado a explicitar minha compreensio sobre isso e encontro dificuldades, caio em aporia. Como 0 estrangeiro de Eléia, d’O Sofista, de Plato, citado por Heidegger como epigrafe de Ser e tempo: “[..] outrora acreditavamos certamente entender mias que agora nos deixa perplexos” (Heidegger, 1927/2012, p. 31). Todas as citagdes de Ser e tempo sto feitas com base na traduedo de Fausto Castiho (eidegger, 1927/2012). Revorro a esta tradusdo por dois motivos. O primeiro é pa- Encontro essas mesmas inquietagdes nos estagiérios do quinto ‘ano do curso, dos quais sou supervisor clinico de atendimentos psicotera- péuticos. Nas supervisdes, os alunos esperam que thes ensine a ‘ser um psicdlogo fenomenolégico existencial”, de modo que muitas vezes per- guntam: “nesta abordagem o psicélogo pode...?”, completando a pergunta com alguma forma de intervengao, postura, atitude, compreenso, com- portamento etc. Nao raro, antecedem a apresentago de algum aconteci- mento da sessio de psicoterapia com a frase “"nio sei se fiz certo, mas...", aguardando uma confirmagdo de que a atitude esti de acordo com a “abordagem teérica”. Também apresentam grande dificuldade na elabo- ragdo de relatérios psicolégicos. Nestes, precisam apresentar um relato da sesso realizada, seguido por uma andlise fundamentada do ocorrido. Alguns alunos entregam um relato “objetivo” do ocorrido, como se fos- sem observadores extemos a sessio, relatando 0 que disseram, 0 que o paciente disse etc. Pedem ajuda para fundamentar suas anslises na “teoria fenomenolégica”, pedindo indicagdes bibliogréficas sobre “a depressio para a fenomenologia existencial”, “problemas de relacionamento inter- pessoal para a fenomenologia”, etc., indicando uma compreensio de que 1 fenomenologia existencial, assim como as outras teorias em Psicologia, tem explicagdes gerais para os diversos assuntos ‘psicolégicos", Em sala de aula, son professor de ahordagens humanistas @ fe- nomenolégicas em psicologia e apresento a Abordagem Centrada na Pes- soa, @ Gestalt-terapia, a Daseinsanalyse, passando por psicdlogos huma- nistas e existenciais, que fundamentam suas ideias nas filosofias de Hus- serl, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Kierkegaard, Buber e outros. No didlogo com os alunos e mesmo nos meus estudos preparativos para essas aulas descubro que ha muitas obscuridades nesse campo das psicologias hhumanistas, fenomenolégicas e existenciais. Sempre parecera claro para mim que eram abordagens diferentes. Mas so mesmo? Sob que aspec- tos? Por que os alunos entendem que o gestalt-ierapeuta exerce uma compreensfo empatica ou que o facilitador rogeriano € fenomenolégico a0 enfatizar 0 aqui-e-agora? Eu, por outro lado, tomo conhecimento das Psicologias Huma- nistas somente quando comeco a lecionar na UNIP. Na PUC-SP, onde fui formado, no se apresenta a obra de Carl Rogers na graduagao. J4 uma poder confrontar com o texto original os termos técnicos, jé que cada tradutor de Heidegger o traduz a seu modo, promovendo confusto ente os leitores das tradugdes © segunco motivo é que por muitos anos estudei a tradugto de Mrcia de Si Cavaleante (Heidegger, 1927/1998). Recorrer & nova tradugfo provoca um estrashamento da line ‘guagem, dos termos, etc., 0 que esti em consonincia com o método fenomenolégico de conffontar a tradiglo, deserito no capitulo 2 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Psicologia Fenomenolégica & apresentada desde o primeiro semestre ‘como uma perspectiva psicolégica ao lado de psicandlise, psicologia comportamental, sécio-histérica e junguiana. As abordagens fomentam disputas entre 0s alunos, cabendo a eles ao longo do curso “escolher” ou “ser escolhido” por uma delas. Por que essas abordagens e no outras? Por que sio apresentadas do modo como o so? Lecionando na UNIP e, atualmente, participando das atividades na pés-graduagdo na USP, perce- ‘bo que cada universidade ensina Psicologia do seu jeito, selecionando o que entende por essa ciéncia, sem que isso fique claro para os alunos. Eu aprendo o que é psicologia fenomenolégico-existencial na PUC-SP. Seré cla a mesma na UNIP, na USP ou em outras universidades? Em sua dissertagdo de mestrado, Celidonio (2007) narra sua ex- periéncia apresentando a Daseinsanalyse na UnB a uma turma de alunos de varios semestres do curso de Psicologia. Esses alunos jé tinham ouvido falar de fenomenologia através da disciplina de Aconselhamento Psicolégi- co, que apresentava a versio de Yolanda Forghieri (2007) dessa modalidade de pritica psicolégica. Mas, ao término da primeira aula, um aluno pergun- ta & pos-graduanda: “vocés so quantos no mundo?” (p. 15). Esse questio- namento deixa Celidonio perplexa, mostrando que a Daseinsanalyse, que Ihe ¢ tdo familiar, é desconhecida na UnB e que a fenomenologia nessa universidade est relacionada a uma concepsao de Aconselhamento Psico- logico. E importante apontar que Celidonio ¢ formada psicéloga na PUC- SP, de onde vem sua familiaridade com essa abordagem. ‘Assim como Celidonio (2007), espanto-me diante do estranha- mento dos meus alunos. Afinado com as dividas deles, deixando que minha confortivel compreensio técita se rompa, descubro que eu tam- bém, cotidianamente, tenho diividas em rela¢o ao que é um “psicélogo fenomenol6gico existencial”. A pergunta que orienta a formagdo dos alunos é a mesma que também me inquieta: “O que pode um psicélogo fenomenoldgico-existencial?”. Retomando minha histéria na Psicologia, dou-me conta de que ‘esse questionamento me acompanha desde 0 inicio da graduagao em psi- cologia. Minha histéria na fenomenologia existencial comega em 1997, quando entro na faculdade de psicologia da PUC e tenho como primeira aula do curso de Psicologia uma aula de fenomenologia. A bibliografia desse curso compreende O Paciente Psiquidtrico (Van den Berg, 1994) ¢ O Ser da Compreensao (Augras, 1986). No semestre seguinte, algumas dessas diividas cedem lugar a compreens6es. O curso é de Gestalt-terapia, compreendida a luz da fenomenologia. Comego entio meus primeiros passos na fenomenologia estudando Gestalt-terapia. Logo aprendo que a Psicologia Fenomenolégica Existencal 23 Gestalt-terapia pode ou nao ser fenomenolégica e que se fundamenta na filosofia Existencial. No semestre seguinte, que aparece na grade como “Fenomenologia III — Fenomenologia Existencial”, estudo 0 livro de Rollo May (1993), A Descoberta do Ser. Aproximo-me da questo de que a realidade nfo tem um iinico significado, mas varios, dependendo de quem a habita. A abordagem desenvolvida nos Estados Unidos por Rollo May & chamada de Existencial-Humanista, também recorrendo a filosofia Existencial. Em que difere da Gestalt-terapia e da psicologia fenomeno- ogica existencial? Esta deve ser distinguida da filosofia fenomenologica Também Existencialismo ¢ Fenomenologia so diferentes, embora com- partilhem muitos aspectos. Por que sfo apresentados como um bloco? A primeira obra mais densa que leio sobre uma perspectiva fe~ nomenolégica existencial em psicologia & Existential Foundations of Medicine and Psychology (Boss, 1994). A edigio traz. um fac-simile do texto em alemio escrito por Boss, corrigido mao por Martin Heidegger, © filésofo do qual ouvira falar algumas vezes ao longo dos semestres anteriores. Considero este o meu primeiro aprofundamento na fenomeno- logia existencial. 0 livro traz longas consideragdes sobre os fundamentos da Medicina e da Psicologia. Eu fico fascinado por elas, mas encontro ppoucas pessoas na faculdade que compartilhem desse interesse. Nessa Spoca, comegam a aparecer para mim chins possihilidades da psicologia do ser-psiclogo: a aplicagao de teorias e técnicas prontas no saber sobre © outro ¢ o lento desvelamento do sentido singular da existéncia de quem ‘me vem ao encontro. # a partir deste background que escolho como tema de mew TCC na graduago “O inconsciente freudiano a partir da daseinsanalyse de Boss”, explicitando a compreensao desse psiquiatra dos fenémenos chamados “‘inconscientes” pela psicandlise’. Através desse estudo, apro- ximo-me da Daseinsanalyse de Boss, que passa a ser sinénimo para mim de psicologia fenomenolégico-existencial ‘Ao longo da graduagiio tenho a oportunidade de estagiar em di- versos campos de atuagao do psicélogo. Estagiando em ho: rimento outras formas de ago profissional distintas da pré consultério, que até entdo eu considerava o principal modo de ser psicé- ogo. No hospital-dia acompanho um grupo de terapia ocupacional, traba- Tho numa marcenaria e realizo grupos de saida do hospital com os pacien tes. Sio experiéncias de muita proximidade com o sofrimento chamado de psiquico, que instigam a aproximagio com a psicopatologia fenome- ‘OTC é publicado posteriormente como 0 artigo “A recepedo do inconsciente feu diano pela dascinsanalyse de Medard Boss” (Evangelista, 2006). 24 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista nol6gica existencial, ao mesmo tempo em que me revelam a possibilidade da pratica psicolégica em instituigdes, que tento compreender a luz dessa abordagem. Isso ¢ inovador para mim, pois a formagio em Psicologia na PUC-SP tem uma énfase muito grande na Psicologia Sécio-Histérico, materialista-dialética, que € apresentada como a abordagem psicologica da pritica institucional. E como se ficasse dividido: psicologia fenomeno- ogico-existencial no consultério particular, psicologia sécio-histérica ou anilise institucional nas instituigdes. A histéria da psicologia fenomenolégica existencial na PUC-SP ainda no esté documentada. O que sei sobre ela me foi passado através de conversas com professores. Sua origem esté ligada a profa. Maria Fer- nanda S. Farinha Beirdo, que, trazida de Portugal pela organizagao cat ca Opus Dei em 1962 para lecionar na Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras de Sao Bento’, traz consigo a fenomenologia de Husserl na baga- gem. Ela participa da fundacdo da Faculdade de Psicologia, onde leciona Historia da Psicologia e Psicologia Filosdfica. Nessas disciplinas, suas reflexdes filosdficas contribuem para a formagao dos primeiros psicélo- 0s da PUC-SP. Defende tese de doutorado em 1970, na qual recorre & fenomenologia para explicitar a vivéncia artistica, sendo uma das pionei- ras nesse campo no Brasil. Maria Fernanda Deirdo reine um grupo de alunos © professures mais envolvidos com a fenomenologia e funda o Centro de Estudos Fe- nomenolégicos de Sao Paulo (CEF), que publica trés livros sobre psico- logia fenomenoldgica nos anos 80 e comego dos 90, evidenciando a in- fluéncia de Husserl, Heidegger, Sartre e Kierkegaard na Psicologia (Cano, 2013), Nessa mesma época, 0 Psicélogo da Educacao Joel Martins se aprofunda na fenomenologia de Merleau-Ponty e colabora com 0 gru- po. Seus estudos contribuem para a fundamentagio de um método de Pesquisa qualitativa’, associando a fenomenologia a essa pritica de pes- quisa. Esse psicélogo & importante influéncia para as psicdlogas Maria Aparecida Vigginani Bicudo e Yolanda Forghieri, expoentes da psicolo- gia fenomenoldgica no Brasil (Lima, 2005). Eu me formo psicélogo na PUC-SP, sendo apresentado feno- ‘menologia existencial por Nichan Dichtchekenian. No tiltimo ano do curso realizo estégio de psicoterapia daseinsanalitica sob supervisio de Ari Rehfeld (participante do CEF) e tenho aulas de Psicologia Fenomeno- légico-Existencial (apresentada como sindnimo de Daseinsanalyse) por > APUC-SP é fundada em 1946, a partir da unio da Faculdade de Filosofia, Ciéncias € Letras de Sao Bento (fundada em 1908) e da Faculdade Paulista de Direito. * Por exemplo, Martins (1988) Psicologia Fenomenol6gica Existencial 25 membros da Associagao Brasileira de Daseinsanalyse. Depois retomno & PUC-SP para fazer mestrado sob orientago da filésofa Dulce Criteli. Prestes a defender a dissertagio de mestrado sou convidado a lecionar na UNI. © Curso de Psicologia na UNIP contempla a fenomenologia existencial em sua grade com o objetivo de formar uma “atitude fenome- nolégica” nos alunos. Para isso, 0 Curso compreende disciplinas tedricas voltadas para a Psicologia Humanista e Psicologia Fenomenoldgica Exi tencial’, que se articulam com os estigios de Psicodiagndstico, Psicotera- pia, Plantio Psicolégico em clinica-escola e em instituigdes, Oficinas de Criatividade e pritica psicolégica em contextos institucionais (escolas, hospitais etc). ‘Na USP também niio & como psicologia clinica que a fenom: nologia existencial desponta. Enquanto a tradigio fenomenoldgica exi tencial na psicoterapia é forte na PUC-SP, na USP ela esté vinculada ao Aconselhamento Psicolégico e & pritica psicolégica em instituigdo. A prof. dra. Yolanda Forghieri & protagonista dessa historia. Tendo iniciado seus estudos e prética do Aconselhamento Psicolégico na Abordagem Centrada na Pessoa, entra em contato com autores da fenomenologia existencial na sua defesa de doutorado por indicagao de Joel Martins. Passa, assim, do referencial teérico rogerian para 0 fenomenuloyice (Forghieri, 2000). No mesmo Departamento em que leciona Forghieri ~ Psicolo- gia da Aprendizagem, da Personalidade e do Desenvolvimento Humano na USP — acontece a chegada da fenomenologia existencial para a prit a psicoldgica nas pesquisas lideradas por Henriette Morato. O Plantéo Psicolégico como modalidade de Aconselhamento Psicolégico € catali- zador da mudanga paradigmatica da Abordagem Centrada na Pessoa para a Fenomenologia Existencial. Instalado para responder a demandas individuais no momento de procura por psicélogo, logo o Plantio Psico- légico descobre-se agindo no sentido de cultivar a responsabilidade do cliente pelo cuidado com seu existir. Concomitantemente, a apreensio dos atravessamentos das condigdes sociais e institucionais na vivéncia individual toma a Abordagem Centrada na Pessoa problematica (Nunes, 2006). A reflexio leva a0 questionamento da pertinéncia da ontologia ogeriana no contexto brasileiro € & subsequente rearticulagio tedrica em diregdo & ontologia fenomenolégica existencial e 4 fundagao do Laboratério de Estudos em Fenomenolégica Existencial e Pritica em + Quando comecei a lecionar em 2008 a disciplina chamava-se Fenomenologia, Exis- tencialismo e Psicologia. Atualmente chama-se Psicologia Fenomenoldgica 26 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Psicologia’ (LEFE)’. Sobre a aproximagio com a filosofia, Morato (2008) explica: ‘al aproximago nfo se trata de mera aplicagdo, nem transposigo ou ‘experimentagdo; foi justamente 0 seu contrario: um ancoradouro pos- sivel para reflexdes j em andamento, que encontraram nessa perspec tiva filoséfica uma fundamentagto possivel para a compreensiio de ser do homem. Mas tal possibilidade de compreensio encontra-se inti- ‘mamente vinculada ao lugar no qual foi possivel o seu surgimento € elaboragdo: as diversas modalidades de prética psicolégica em insti- tuigto. (p. 6) Através das aulas na UNIP, entro em contato com essas histé- rias e, posteriormente, ligo-me ao grupo do LEFE. A pritica psicolégica li desenvolvida fundamentada nas filosofias de Heidegger, Arendt ¢ Benjamin revela-se familiar, ao mesmo tempo que gera estranhamento. Seré o que realizam psicologia fenomenoldgica existencial? Para mim, a psicoterapia ¢, tacitamente, 0 modelo de pratica psicolégica. Refletindo sobre minha histéria como psicélogo, percebo que realizei iniimeros primeiros atendimentos ou processos psicoterapéu- ticos breves que, othando a partir do modelo tradicional da psicoterapia, considerei como “terapias que no aconteceram’”. Porém, hoje repenso que esses encontros podem ter sido acontecimentos na existéncia dos pacientes. Passo a considerar isso mais seriamente quando sou convidado para planejar e lecionar na UNIP a disciplina Atendimentos Breves em Psicologia. E quando conhego aspectos teéricos do Aconselhamento Psi- coldgico, do Plantao Psicoldgico, da Psicoterapia Breve, da Oficina de Criatividade. Nessa mesma época eu jé estou realizando atendimentos em grupo com pacientes intemados em hospital psiquiétrico. Sio grupos abertos ¢ de alta rotatividade, contrariando quaisquer nogdes sobre a im- portincia do vinculo e do tempo do processo psicoterapéutico que eu possa ter. Seré mesmo a psicoterapia a tinica possibilidade de uma psico- logia fenomenoldgica existencial? Em sintese, a experiéncia docente e meus trabalhos como psicé logo trazem a tona divvidas sobre o que é uma psicologia fenomenolégica (© LEFE ¢ fundado com 0 nome Laboratério de Estudos e Pritiea em Psicologia Fenomenolégica e Exisiencial em 1998 (Aun, 2005), E renomeado para Laboratério de Estudos em Fenomenologia Existencial e Prética em Psicologia para evitar que a ‘enomenologia existencial seja tomada como adjtivo de Psicologia, como se fosse uma perspectiva, Essa histriaesté bem narrada em Eisenlohr (1999). Psicologia Fenomenoldgica Existencial Ea cexistencial. Na bibliografia, descubro que também no hd consenso em tomo dessa perspectiva. Alias, pergunto-me se pode ser considerada uma “abordagem”, uma “‘perspectiva”, uma “teoria”. Estes termos so usados irrefletidamente no cotidiano académico, mas 0 que querem dizer? Estu- dos realizados na USP, por exemplo, apresentam a fenomenologia exis- tencial sob aspectos diferentes dos que me foram apresentados na PUC. Eu sempre me referi ¢ grafei “psicologia fenomenolégico-existencial” — com hifen -, pois foi assim que aprendi e subentendi que indicava uma Psicologia que langava mio da descri¢do da existéncia realizada por Hei- degger por meio do método fenomenolégico. Mas encontro no Laborat6- io de Estudos em Fenomenologia Existencial e Pritica em Psicologia (LEFE) a grafia sem o hifen. Qual é 0 sentido disso? Serd que o hifen, esse pequeno sinal definido no diciondrio co- mo “traco de unitio” (Houaiss, 2012) faz diferenga? Hifen vem do latim grego hyphen, que significa uma marca que junta duas silabas. E um substantivo formado por hypo — sob, por baixo — e hen ~ um, traduzido literalmente por “sob um", junto, em um, de modo que fenomenolégico- existencial indicaria a unidade de fenomenologia e existéncia, ao passo que sem hifen indica que so coisas distintas. “O hhifen, além de unir, separa as palavras”, lembra Morato (1989, p. 44). E um sinal diacritico, que ao unir duas palavras cria um todo diferente da soma de suas partes. Seria a psicologia fenomenolégico-existencial diferente da psicologia fenomenolégica existencial? Morato (2009) indica trés articulagdes possiveis dos termos “fe- nomenologia” e “existéncia”. Segundo ela, Diferenciam-se trés formas de nomeagto que articulam os termos fe- nomenolégico ¢ existencial, geralmente empregadas pela orientagio hhumanista em Psicologia: 8) fenomenoldgico-existencial: tentativa de aproximagto de aspectos da fenomenologia em geral ¢ do existencialismo, através de autores como Husserl, Nietzsche, Sartre, Buber, Kierkegaard; b) fenomenoldgico e existencial: distingo, dentro da fenomenologia, enire uma forma mais transcendental e uma mais existencial; ) fenomenolégica existencial: perspectiva da fenomenologia existen- cial de Heidegger e aportes de Merleau-Ponty nela baseados. (p. 34) E como fica a Daseinsanalyse, desenvolvida por Medard Boss com contribuigdes de Heidegger? Seria algo diferente? Boss defende diferencas em comparago & andlise existencial proposta por Sartre. E 28 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista chama a atengdo que ele nunca se refira a “abordagem” clinica que de- senvolve como “fenomenolégica existencial”, preferindo o termo alemao Daseinsanalyse, Haverd diferengas entre psicologias que se apresentam Iancando mao dos termos “fenomenolégica” e “existencial”? Eu poderia usar a expressio que me € mais familiar — psicologia fenomenolégico- -xistencial — que aprendi ainda na faculdade, agora ciente de que seu uso & problematico. Mas a pesquisa exige que o familiar se tome estranho. Da ‘mesma forma, poderia seguir a indicagdo de Morato (2009) e usar “psico- logia fenomenolégica existencial”, que indica a influéncia de Heidegger e de Merleau-Ponty na psicologia. Mas 0 que busco conhecer ¢ como a ontologia de Heidegger, baseada na fenomenologia de Husserl, influencia 4 Psicologia e que possibilidades nela abre, Assim, a expressiio mais ade- ‘quad seria psicologia fundamentada na ontologia heideggeriana’. A pergunta de Julieta ecoa aqui: What's in a name? Romeu res- ponde-Ihe que o nome traz a historia, as rusgas, a inimizade e prenuncia a tragédia. O nome confere identidade a uma familia ou um grupo; sua origem, situagao © porvir, promovendo um sentimento de pertenga € compartilhamento de valores e de adversarios comuns (Morato, 1999). Seré que alguém a estaria entendendo errado ou serd a fenome- nologia existencial miltipla? Pode um psicdlogo nessa perspectiva reali- zar psicodiagnéstico, plantio psicolégico om instituigdcs, aconsclhamen- to psicolégico, pesquisa qualitativa, psicoterapia? O que caracteriza a psicologia fenomenolégica existencial nesses casos? Em que difere de outras perspectivas, como a rogeriana, a gestiltica? De repente, encontro-me mum campo de pesquisa delimitado: ser-psicdlogo fenomenolégico existencial. E percebo esse campo como problemitico, pois o que significa “fenomenologia existencial”? E, por- tanto, relevante discriminar esses termos, Debate semelhante ¢travado a respeito da nomenclatura das psicoterapias existencial- chumanista, humanista-existencial, humanisia e existencial, narrado por Burston (2003). Enquanto 0 psiediogo americano Rowan defende a semelhanga entre a psico- terapia humanista ea existencial,o brtinico Spinelli sublinha o caréte filosifico, eu- ropeu e irigico do Existencialismo, eclipsado pelo carter liv, criativo e postive da psicologia norte-americana, Burston conclui contra Spinelli que ha diferenga histri- as significativas, mas nfo a ponto de os psicblogos humanistas americanos precisa- rem abandonaro adjctivo “existencial”, ao passo que discorda de Rowan. oravante, como a pergunta que me veio e inaugurou esta pesquisa é “O que pode um psicélogo fenomenoldgico-existencial?,o hifen sera mantido toda vez que essa fase for indicada. Quando o que estiver em questi for essa “sbordagem psicoldgica", gra- fo sem hifen,seguindo a indicagdo de Morato (2009). Quando 0 indicado for o que es- ‘4 em questo ~ habitar a ontologia heideggeriana ~ uso a expressio psicologia fur damentada na onologia heideggeriana, é i Psicologia Fenomenoldgica Existencal 29 Lembro que uma das passagens que mais me marcaram nos ‘meus estudos iniciais e que ainda hoje anima minhas pesquisas ¢ de Me- dard Boss. Dizele: Hi boas razdes para assumir que a ‘andlise do Dasein’ de Martin Hei- dogger é mais apropriada para © entendimento do homem do que os cconceitos que as ciéncias naturais introduziram na medicina e na psi ccoterapia, Se isso puder ser realmente comprovado — como esperamos conseguir ~ a andlise do Dasein merecera ser chamada de mais ‘obje- tiva’, assim como mais ‘cientfica’ que as cincias do comportamento, que usam os métodos das ciéncias naturais. Devemos entender esta palavra no seu sentido original e genuino, ‘Cientifico’ significa apenas fazer conhecimento’ (scire, conhecer; facere, fazer). Se ‘cientifico for usado desta maneira sem prejuizos, a alegagtio de que somente os métodos das ciéncias naturais podem fomecer informapées precisas toma-se injustificdvel. [..] Se o pensamento daseinsanalitico realmen- te se aproximar mais da realidade humana do que 0 pensamento das ciéncias naturais, conseguird nos dar algo que até © momento no en- contramos na teoria psicanaltica: um entendimento sobre 0 que esta- ‘mos realmente fazendo (e por que nos fazemos deste modo especifico) quando tratamos um paciente psicanaliticamente; tal entendimento sendo bascado em intuigSes da esséncia do ser humano. Um entend mento mais aprofundado de nossas praticas s6 pode trazer efeitos be- néficas a elas. (Boss, 1963, p. 29) Investigar 0 que eu entendo € 0 que se entende por psicologia fenomenolégica existencial aprofunda 0 conhecimento da prética psico- légica. Além disso, essa pesquisa realiza o sentido etimoldgico do termo ‘ciéncia’: conhecer. Desse modo, 0 objetivo geral deste estudo é desvelar 0 ser- psicélogo findamentado na ontologia heideggeriana como possibilidade de pratica psicologica. Como objetivos especificos aponto 1) um estudo teérico sobre a recepgao da fenomenologia de Heidegger pela Psicologia; 2) um questionamento do modo como a Psicologia baseada nesse fildsofo tem sido apresentada; 3) a explicitagdo de possibilidades que a ontologia hheideggeriana abre para a psicologia; 4) 0 questionamento do estatuto tural da Psicologia; 5) uma reflexdo baseada em minha prit ca psicolégica. Tais objetivos contribuem para a dissolugio da confusio ‘no campo das psicologias fenomenol6gicas, existenciais e humanistas, assim como para a formacdo de psicdlogos. 30 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Portanto, pretendo desenvolver um estudo teérico sobre a histé- ria da influéncia da fenomenologia e seus desdobramentos, com énfase na fenomenologia da existéncia realizada por Martin Heidegger. Considero este fildsofo o primeiro a se apoiar no método filoséfico chamado de Fenomenologia, delineado por Edmund Husserl, para descrever a exis- téncia, Tanto é assim que sua “analitica do Dasein” influencia os demais, filésofos fenomenolégicos. Em seguida, considero como essas ideias filoséficas aparecem na psicologia, possibilitando o surgimento de abor- dagens psicolégicas que se nomeiam a partir dos termos ‘“fenomenologia” e“existencial”, conforme supracitado. A revisto bibliografica indica que esta pesquisa nao foi desen- volvida até o momento, So muitos os trabalhos que apresentam as raizes filoséficas das psicologias humanistas, existenciais e fenomenolégicas, mas nenhum que acompanhe o desenvolvimento histérico dessas abords- gens e delimite, se for possivel, o que caracteriza uma psicologia baseada na ontologia heideggeriana. Compreender as possibilidades de ser-psicélogo fenomenolégi- co existencial, que também so minhas possibilidades, responde ao senti- do do termo fenomenologia: “fazer ver a partir dele mesmo 0 que se mos- tra tal como ele por si mesmo se mostra” (Heidegger, 1927/2012, p. 119, § 7). Mas... como proceder? Qual método seguir? RE er ee RIE Método? ‘A pergunta “o que pode um psicélogo fenomenolégico-existen- cial?” ¢ inquietante. Toda vez que a compartilho com colegas a0 longo da pesquisa ela provoca respostas répidas ou reagbes criticas ou de apoio. Por que sera? Numa rpida conversa com o prof. Dr. Roberto Novaes Sé, quando ele veio A USP para palestrar no XXV Coléquio LEFE, em 18.10.2013, conto-the essa pergunta e ele me responde: "O que pode um psicélogo fenomenolégico-existencial? Nada!” Fico eu perplexo com sua resposta. Como entender esse “nada”? Serd um “nada” negativo ou pleno de possibilidades? ‘Jé entre alguns colegas, a pergunta é taxada de “heideggeriana”, animada por um espirito filoséfico, voltada ao entendimento de si mesma, refletindo sobre o contexto do perguntar, que, quando explicitado, desfaz ‘a pergunta. Assim, a resposta no oferece nada positive; ndo define con- cretamente 0 que pode ou no pode um psicélogo fenomenolégico exis- tencial. Isso aproxima esta obra de um ensaio, distanciando-a de uma pesquisa “cientifica”. Serd isso um problema? Outros a acusam de ser nfo fenomenolégica, pois pergunta por um “o que”, entendendo que a investigagiio fenomenoldgica sempre des- reve um “como”, mas nunea um “o qué”. Descreve modos, ndo essén~ cias. Ademais, entendem que ela convoca uma resposta positiva, forne~ endo um modelo de pritica psicologica nesta abordagem, categorizando ‘uma perspectiva ou atitude, possibilitando a identificagdo ou exclusdo de modos de ser psicdlogo. Penso que todas as reagdes remetem a concepgdes prévias do que & fenomenologia e de como a ontologia heideggeriana influencia a 2 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista pratica psicolégica que podem ser explicitadas nesta pesquisa, pois per- ‘manecem implicitas. As reagdes indicam a pertinéncia da pergunta e a necessidade de explicitagdo do que se entende por fenomenologia exis- tencial em psicologia. Mas... como proceder? Isto é, qual método devo usar na realiza- ‘so desta pesquisa? Método cientifico em pesquisa Logo no comego do meu percurso no doutorado, entro com pedido de bolsa de estudos na universidade. O trabalho como psicélogo no consultério e as aulas na faculdade somadas as exigéncias da pés- -graduagio sobrecarregam minha rotina e interferem na realizagio de pesquisas ¢ estudos. Mas a universidade ndo tem bolsas disponiveis € sugere que eu solicite junto a FAPESP (Fundacdo de Amparo a Pesqui- sa do Estado de Sao Paulo). Esta instituigdo & uma das principais agén- cias de fomento 4 pesquisa cientifica e tecnolégica do pais, ligada a Secretaria de Desenvolvimento Econdmico, Ciéncia e Tecnologia do Governo do Estado de So Paulo. Informo-me que preciso enviar 0 pedido acompanhado do projeto de pesquisa, que segue um modelo diferente do projeto que apresentei no concurso para ingresso na pés- -graduacdo. Sua estrutura é, por assim dizer, mais ‘cientifica’. Precisa contemplar os seguintes itens: 1) Introdugao e justificativa, com sintese da bibliografia fundamental; 2) Objetivos; 3) Plano de trabalho e cro- nograma de sua execugio; 4) Material e métodos; 5) Forma de anélise dos resultados. ‘Num primeiro momento, nio vejo nada de estranho... Desde 0 colegial, quando estudava quimica, fisica, biologia estou acostumado a proceder assim. Na faculdade esse modelo foi utilizado muitas vezes Estou acostumado a proceder cientificamente assim e me sinto A vontade para afirmar que a Psicologia esté acostumada a recorrer a esse modelo de pesquisa. Também na condigdo de professor universitario auxilio os alunos na elaboragdo de trabalhos cientificos, cuja ordem das razdes se- gue essa sequéncia. Independentemente de a pesquisa set ‘tedrica’ ow ‘pritica’, deve-se iniciar com a fundamentagdo tedrica, que € 0 recolhi- mento do conhecimento desenvolvido nesse campo até enti, a partir de qual a pesquisa a ser desenvolvida contribuir para o avango dessa cién- ¢ia, produzindo novos conhecimentos que, acumulados, compdem 0 cor- ‘pus tebrico, findamento de novas pesquisas. Além disso, a introdugo Psicologia Fenomenolégica Existencal 33 tedrica situa o pesquisador € os possiveis leitores em relago ao contexto tedrico, entendido como o recorte da realidade tomado como objeto ¢ a perspectiva a partir de qual esse recorte seré acessado. Feita essa introdu- ‘40, indicam-se os objetivos. O objetivo de toda pesquisa é conhecer algo que ainda nao se conhece, que deve ser formulado como hipétese a set confirmada ou refutada, ‘Também ja se tomnou habito formular 0 objetivo das pesquisas na forma de hipéteses. © método é 0 conjunto de procedimentos que sera usado para perseguir a hipétese, devendo ser correspondente ao tipo dos ‘entes presentes nesse recorte da realidade. A intervengio no recorte do real através dos procedimentos delineados pelo método de pesquisa gera re- sultados, que, em geral, so dados brutos que precisam de um novo recorte, isto é, uma determinaco da perspectiva a partir da qual esses resultados sero avaliados, analisados. Esse modelo ¢ resumido por Heidegger como: 2) da delimitagdo da matéra; b) da doutrina do trabalho met6dico com 1 matéria (a e b podem ser resumidos assim: fixagdo do conceito de objeto e da tarefa da ciéncia); c) da observagio historica das investiga 96es precedentes de colocar e resolver tarefas cientificas. (Heidegger, 1920/2010, p. 11) Esse modo de pesquisar é muito familiar. E tio familiar que qualquer tentativa de perguntar pelo sentido desse modo de fazer pesqui- 48 j6 € imediatamente interpretado como anticientificista. Aquele que questiona (no sentido de convidar para uma reflexio) esse modelo de pesquisa & imediatamente conftontado e acusado de nfo reconhecer as onquistas que a ciéncia proporciona: melhores condigées de higiene, ‘levago na expectativa de vida, tratamento de doengas etc. ‘Também na Psicologia este é 0 modo de pesquisar: 0 método } olentifico. Mesmo as psicologias que questionam 0 Positivismo e postu- Jam-se ndo cientifico-naturais seguem esse modelo: introdugao, objetivo, | método, resultados. A pluralidade de abordagens psicolégicas abre para luma diversidade de métodos: estatistica, andlise do comportamento ob- tervivel, quantitative, qualitativa, empfrica, dialética, pragmética, pesqui- sa-participante, pesquisa-agao etc. (Amatuzzi, 2001). Sao varias perspec- tivas possiveis, mas todas seguem a mesma estrutura. Por qué? Por que as Pesquisas iniciam com uma introdugao teérica, hipéteses, método de oesso 20 real e de anzilise de dados? 34 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Sera assim que devo proceder nesta pesquisa? Se for, meu ca- minho jé est tragado. Recorro aos fundamentos filoséficos da fenomeno- logia da existéncia de Heidegger e mostro como foram aplicados na Psi- cologia por outros psicélogos ou aplico esses fundamentos num campo previamente delimitado. Por exemplo, posso fazer a aplicagao da feno- menologia de Heidegger num caso clinico ou numa supervisto ou na anilise de uma situago grupal ou institucional. Procedendo assim, a fe- nomenologia existencial revela-se abordagem ou perspectiva, isto é um viés de aproximaco de um dado bruto da realidade. Assim como se aces- sa a ‘realidade’ pela perspectiva fenomenolégica existencial, poderia acessé-la pela psicanélise, pela psicologia sécio-histérica, junguiana etc. Mas isto envolve o pressuposto de que a realidade é, num primeiro m« ‘mento, um dado bruto e que a psicologia fenomenolégica existencial € ‘mais uma abordagem no mercado das abordagens psicolégicas. Chegarei a uma determinagdo do que pode um psicélogo fenomenolégico existen- cial, no sentido de descrever que tipos de interpretagdes e intervengdes sto ou ndo correspondentes a essa abordagem? Serd que descrevendo um. método ou um conjunto de modalidades de intervencao estarei respon- dendo o que caracteriza a perspectiva fenomenoldgica existencial? E este ‘o método que devo seguir? Analitica do Sentido Ainda na faculdade aprendo que a fenomenologia existencial é contréria a0 método cientifico-natural de pesquisa. Mas, considerando isso agora, se ja a assumo como contréria, estou tomando partido sem clareza do sentido disso. Por isso, suspendo essa critica por ora e recorro a um método de pesquisa que me foi apresentado como fenomenolégico cexistencial: a analitica do sentido, desenvolvida por Dulce Critelli (1996). ‘Tomo conhecimento desta obra em 1999, quando estou no ter- ceiro ano da faculdade de psicologia. No semestre seguinte me matriculo pela primeira vez numa disciplina ministrada por esta fildsofa na PUC- SP, na qual sio apresentados com enorme clareza os pensamentos de Heidegger e de Hannah Arendt, suas proximidades e divergéncias. Assis- to essas aulas do curso de Filosofia nos quatro titimos semestres de aha formagio em Psicologia. Quando retorno a universidade para o m trado € sob orientagdo da mesma professora que desenvolvo uma pesqui- sa em Filosofia sobre a interpretagdo fenomenolégica da existéncia proto- cristi com base nas epistolas paulinas. Por isso, considero 0 modo de Psicologia Fenomenolégica Existencal 35 articular a fenomenologia existencial de Critelli uma das principais refe- réncias ao longo de minha formacao. A analitica do sentido ¢ uma reflexdo sobre metodologia de pesquisa ¢ investigagdo inspirada nas filosofias de Heidegger e Arendt. E provavelmente 0 tinico texto em Iingua portuguesa a discutir um método de pesquisa com esse embasamento, Nao é & ta que figura como funda mentagiio de muitas pesquisas em psicologia fenomenoldgica existencial |, Mas serd que sua proposta pode ser assumida como um método, no senti- {do de procedimentos aplicaveis de investigagao e interpretacao de dados? Sendo a pesquisa uma possibilidade de ser-psicélogo, sera a obediéncia ‘40 método da analitica do sentido uma resposta a pergunta “o que pode ‘um psicdlogo fenomenolégico-existencial”? Criteli (1996) contrapde 0 pensamento metafisico ao fenome- nolégico, mostrando o sentido da escolha do método para cada um. Essa ‘escolha esti findada no entendimento prévio sobre o que € conhecimen- to, verdade e ser. Isto ¢, esté fundamentada numa ontologia. Ontologia é a compreensio prévia do qué e como é a realidade, subjacente a toda lida cotidiana. As ontologias, embora no sejam tematizadas pela Psicologia, filo por ela pressupostas. Toda ciéncia esta fundada numa compreensio do que como € a realidade e de como se acessa ¢ produz conhecimento sobre ela. Ademais, toda existéncia é atravessada pela ontologia vigente, {sto é, compreende e lida com a realidade © consigo mesmo do jeito que nesta época historica se a entende e habita Compreender a ontologia da Psicologia ¢ uma tarefa que extra- pola o campo da pritica psicolégica. Por outro lado, ¢ o tema da filosofia, tcita ou explicitamente, desde seu surgimento. A ontologia acontece no modo como cada um lida consigo mesmo, com 0s outros e com as coisas. F um modo de responder as gran- des questdes humanas: Quem sou eu? Qual é meu sentido no mundo? O que é 0 real? etc, Essas perguntas, que podem ser formuladas explicita- Mente, estio constantemente presentes no cotidiano. Por isso, Critelli ‘firma que o ser das coisas — isto é, 0 que sfo e como sfo - esta no lidar ‘¢0m e falar sobre elas. “Ser das coisas est4 numa trama de significados ‘0s homens vdo tecendo entre si mesmos e através da qual vio se refe- ¢ lidando com as coisas e com tudo o que ha” (Critelli, 1996, p. 17). Toda relacdo é ‘mediada’ por uma trama de significados que dé consis- tincia a realidade e a si mesmo. Essa trama de significados pode ser in- \vestigada a partir dos modos como cada um lida consigo, com os outros om as coisas. Dai a possibilidade de, recorrendo & analitica do sentido, desvelar os modos como se habita uma instituigo, uma organizagdo, uma tupervisio etc. Esta metodologia busca na lida cotidiana o sentido que a ustenta, isto é, a compreensao de ser subjacente, para explicit 36 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Este modo de proceder difere do método cientifico-natural, cujo sentido é a elaboragdo de uma representagdo una, permanente, imutavel, precisa e segura sobre o que se quer compreender. Tal representagdo formulada como conceito uno, etemo e incorruptivel, de acordo com as decisdes tomadas ao longo da histéria do ocidente. Se 0 método cientifico-natural for seguido nesta pesquisa, o re- sultado obtido seré uma representagio clara que responde 0 que € a psico- logia fenomenolégica existencial, apresentando suas propriedades. Mas a analitica do sentido mostra que mesmo as ciéncias naturais so um modo de existir e habitar o mundo. A caracteristica principal desse modo de ser & a busca por seguranga diante da pluralidade de modos de a realidade aparecer, da multiplicidade de opinides possiveis e da inconstincia do conhecimento produzido pelo homem. Jé a verdade buscada pela feno- ‘menologia no evita a inconsténcia, nem a considera erro. Pelo contrario, assume-a como marca humana; 0 conhecimento verdadeiro & fruto do existir humano, que é inconstante, incerto, inseguro. Contrariamente, portanto, & metafisica que busca a chance de pensar nna seguranga da representagdo, a fenomenologia ¢ a postura do conhe~ cer que medra na angiistia, na inseguranca do ser. Assim, enquanto a etafisica se articula no Ambito da conceituagto, a fenomenologia se articula no ambito da existéncia. (Criteli, 1996, p. 23) Levando as tiltimas consequéncias esta proposta metodolégica, a resposta & pergunta “o que pode um psicélogo fenomenolégico-exis- tencial?” € proviséria, incerta, relativa e descritiva de um modo de ser e de habitar a realidade que considera tanto as tramas de sentido comparti- Thadas quanto a possibilidade de ruptura das mesmas. “Viver como ho- ‘mens ¢ jamais alcangar qualquer fixide2” (Critelli, 1996, p. 16). Retomando o perguntar pelas possibilidades de ser psicélogo fenomenolégico existencial quanto ao modo como surgiu, percebo que brota de uma inquieta¢do, que, por sua vez, gera inseguranca. Eu tinha tao certo para mim o que é ser psicélogo nesta abordagem e, de repente, 0 chio desaparece de sob meus pés e ja nao conhero mais o que conhecia nem me reconhego mais como me reconhecia. i desse estranhamento que nasce a possibilidade de pesquisar, segundo Critelli (1996). Por que © como é isso exige uma compreensio do modo de ser do pergunta- doripesquisador, de modo que aparece aqui um tema a ser investigado nesta pesquisa paki Psicologia Fenomenolégica Existencial 30 86 € possivel pesquisar quando algo se apresenta como desco- hecido ao pesquisador; algo que se insinua a ele de modo a suscitar-the curiosidade. Na Grécia antiga, 0 pathos da ciéncia era 0 thaumazein, 0 espanto, um estranhamento. O impulso interrogador brota de uma crise'®, advém da ruptura da trama de significados que sustenta 0 cotidiano. Todo conhecimento esté fundado nas ontolégicas liberdade humana e inospita- lidade do mundo (Critelli, 1996). A analitica do sentido defende, portanto, a insuficiéncia de qualquer conjunto de procedimentos na tentativa de compreensio da exis- téncia humana. O conhecimento ¢ uma possibilidade humana. Enquanto tal, esté fundado na existéncia e carrega as marcas de seu criador. Existir uma busca constante por fixidez deparando-se com a inospitalidade do mundo. Como possibilidade humana, 0 conhecimento s6 pode ser provi- s6rio, mutavel, relativo e perspectivo, cerzido na lida cotidiana com os outros. Ser e pensar se entrelagam no movimento fenoménico da reali- dade, esquematizado didaticamente por Critelli (1996) em cinco momen- tos: 1) desvelamento — a desocultagao de um significado por alguém; 2) revelago — 0 acolhimento na linguagem do desocultado e sua expresso; 3) testemunho — o ver ouvir dos outros daquilo que foi revelado por Alguém; 4) veracizaga0 — 0 referendar como relevante & comunidade aquilo que foi testemunhado; 5) autenticagao ~ a vivencia singular do que foi veracizado. A luz desta compreensio da fenomenalizagao da realidade, 0 método cientifico-natural de pesquisa é reinterpretado como um modo ttutenticado de ser-persquisador, mas relativizado. E um modo de buscar guarida no mundo assegurando-se de sua estabilidade que a cada vez fracassa. Por isso, © método como sequéncia ou conjunto de procedimen- tos é abandonado em nome da comunicagdo de uma experiéncia compar- tilhavel. Método ¢ reconduzido ao seu sentido original, preservado na etimologia: meta-hodos. Hodos & caminho, enquanto meta é um prefixo {indicativo de estar em busca de... e em meio a... significando também Junto com e em comum. Meta-hodos & percorrer um caminho, estar a ‘eaminho, trihar. Serd a analitica do sentido o modo de pesquisar do psicélogo fenomenolégico existencial? A fenomenalizacdo do real tem sido aludida por pesquisadores em Psicologia que assumem a obra de Heidegger © [Em consondncia com este contextotebrico, Cautela J. (2012) define ‘ese’ como a “esgargadura da malha existencial e a perda de rumo” (p. 20) O sentido de “rise” so 1k pensado no dltimo capitulo, 38 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Arendt como fundamentagdo tedrica. Ao descrever uma experiéncia de Pratica psicolégica, 0 psicdlogo esta revelando-a para o testemunho, ve- Tacizagiio e autenticaedo da comunidade cientifica. E assim que Morato ¢ Cabral (2003) defendem o pesquisar e que tem sido 0 modo de refletir sobre e publicizar a pritica psicolégica no LEFE. Todo 0 trabalho de pesquisa, desde 0 polimento da questdo, definigao de objetivos, passando pela pesquisa bibliogrifica, elaborago da me- todologia, trabalho de campo, analise, até a escrita final do que vai sendo desvelado, é uma experiéncia propriamente dita. Dito de outro ‘modo, essa é uma maneira fenomenolégica possivel de compreender e realizar pesquisa. (Morato & Cabral, 2003, p. 158) A pesquisa é uma possibilidade de ser psicélogo fenomenologi- co existencial? Sim, mas certamente no a tinica. Na minha formagio, antes da pesquisa é a priética psicoterapéutica que se apresenta como campo da psicologia fenomenolégica existencial. Na psicoterapia, a regio 6ntica ¢ a compreensao do sentido da experiéncia narrada pelo outro inter- ppretado a luz de Dasein a fim de propiciar-Ihe a apropriagao de seu modo de ser-no-mundo, Nesse contexto, as pesquisas so apenas estudos de caso. Mas ‘pesquica’ oe refere a fenomenalizagio do real, isto é, abrange muito mais do que 0 que acontece entre as quatro paredes do consuitério. _____ Como caminhar, 0 meta-hodos tem uma proveniéncia e um des- tino, isto é, seu de onde e seu para onde. Nenhum caminho parte de lugar nenhum. Esta reflexdo sobre 0 que pode um psicdlogo fenomenolégico existencial é parte de um trilhar de minha existéncia histérica, Desse mo- do, minha perspectiva ¢ de “dentro” desse trajeto. No seria necessério situar-me fora para olhé-lo? Confrontamento com a tradigiio ___. Como descobrir 0 que pode um psicélogo fenomenoldgico exis- tencial? Nao preciso de um crivo para isso? Mas, se o tenho, no estou impedindo que se mostre a partir de si mesmo? Ento, o primeiro passo é conhecer qual é minha pré-compreensdo da psicologia fenomenologica cexistencial, isto é como ela se mostra para mim. Mais do que uma apari- ‘edo imediata e directa, esta psicologia aparece num processo histérico de mostragio, cujo inicio demarco no meu ingresso na Faculdade de Psico- Psicologia Fenomenolégica Existencial 39 logia da PUC e se estende até a atualidade. © descerrar-se da psicologia fenomenolégica existencial para mim acontece nos lugares e situagdes em que estudo, sou formado, trabalho, existo. Na minha histéria como estu- dante de psicologia, psicélogo e docente de psicologia entro em contato, compartilho ¢ acabo repetindo e assumindo como meus definigdes, con- ceitos, determinagdes, preconceitos; em suma, tradigbes. A tradigdio Metatisica é uma das primeiras reflexes de Heidegger ‘em Ser e tempo quando justifica a recolocagto da questio do ser. Pot Metafisica Heidegger se refere a0 pensamento filos6fico ocidental desde Plato, quando se determinou definitivamente a verdade do conhecimento como representagao imutavel, absoluta ¢ inica da esséncia (universal) das coisas, desembocando na ciéncia moderna, na técnica modemna e na tecnologia, Para Heidegger, a pergunta “que é ser?” deixa de ser colocada desde Platio. Cada fildsofo que o segue assume como dada a resposta platonica e, desenvolvendo-a ou argumentando contra, permanece ligado ela. No comeco do século XX, colocar a questo do ser é perguntar & luz do que ja foi respondido sobre isso. Ha uma historia de problemas, ‘perguntas e respostas que compdem uma tradi¢do. A tradi¢ao, ao mesmo tempo que lega questdes, delimita respostas possiveis ou mesmo aprisio- nna nas j4 dadas. Cada existencia historica esta imersa em tradigoes que @ antecedem e que passam a ser seu senso comum, delineando possibilida- des de ser. Em cada modo de ser que Ihe é proprio e, portanto, também no entendimento-do-ser que Ihe é préprio, o Dasein ingressa numa interpre~ tago-do-Dasein que Ihe sobrevém e na qual ele cresce. A partir desta, ele te entende de imediato e, em certo ambito, constantemente. Esse enten- dimento abre e regula as possibilidades de seu ser. Seu proprio passado — © que significa o passado de sua ‘geragio’ — no segue atrés do Dasein ‘mas, ao contririo, sempre o precede (Heidegger, 1927/2012, p. 81, § 6). Isso pode ser dito de minha histéria na Psicologia. Herdando 0 ‘que se entende por psicélogo fenomenolégico existencial nos contextos de minha formago, assumo as possibilidades de ser delimitadas por essa tradigio, norteado por ela. Mais especificamente, herdo 0 que pode um icblogo fenomenolégico existencial do que se entende por isso na IC-SP, trago isso para a UNIP, onde encontro outra tradi¢o, que me ‘gonvoca a conhecer e confrontar ainda outra, a da USP. E quantas outras haverd! Habitar tradigdes ¢ constitutivo do existir. O enredamento na tradigfo revela a inseparabilidade do existir de seu mundo histérico: set-no-mundo, Mas ha também um perigo do 40 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Psicologia Fenomenolégica Existencial 41 habitar tradigdes, que & a cegueira parcial que elas impdem. Segundo Heidegger: (© Dasein nio tem somente a propensfo para cair em seu mundo, no qual ele é,e para se interpretar a partir do que & por este refletido, mas para a um s6 tempo decair dentro de sua tradig#o, mais ou menos ex- pressamente apreendida. Esta Ihe subtrai a prépria conduta, o pergun- tar eo escolher. (Heidegger, 1927/2012, p. 85, § 6) Sendo incontomAvel, no ¢ possivel uma suspensio para além ou para fora da tradigao. Mas é possivel torné-la tema de pesquisa, refle- tindo cuidadosamente a cada passo. Heidegger nomeia este movimento de “destruicio” (Destruktion), que significa “dar fluidez a tradi¢&o empe- demida e remover os encobrimentos que dela resultaram” (Heidegger, 1927/2012, p. 87, § 6) Assim, tomo como tema de reflexZo a tradi¢o que me foi lega- da, a fim de langar luz sobre as possibilidades abertas para 0 psicélogo fenomenolégico existencial. Essa destruigio (que, portanto, nao é algo negativo) tem por objetivo mostrar os entendimentos, os pressupostos, as tendéncias, 05 objetivos e as significagdes que se reiinem na determinacao do ser-psicdlogo fenomenolégico existencial que aprendi ¢ assumi a0 longo de minha formago e que passo adiante aos colegas e alunos. O modo de conduzir esta reflexao ¢ pela repetigdo (Wiederholung) e pelo confrontamento (duseinandersetzung) com a tradigao. Etimologi- camente, re-petigdo & re-petere, significando pedir de novo. Heidegger uusa-o no contexto de recolocar a questo do ser na histéria da filosofia, significando perguntar de novo (Inwood, 2002). Assim, assumo como nova pergunta, pergunto novamente sobre as possibilidades de um ser- psicélogo fundamentado na ontologia heideggeriana: “o que pode um psicélogo fenomenolégico-existencial?”. Para colocar novamente a per- gunta ¢ necessério confrontar-se com a tradi¢ao, assumindo-a como ou- tro, estranho. Conftontamento (duseinandersetcung) & 0 termo usado por Heidegger ¢ que significa “discussio, porém no sentido de colocar-se um. fora do outro, aftontar-se ¢ defrontar-se” (Giacoia Jr., 2013, pp. 42-3). Por isso, esta pesquisa necessita a retomada da histéria da fenomenologia existencial na psicologia, que é a tradigdo que me foi legada e a que dou continuidade. Mais do que um ponto de partida, a referida pergunta € guia, sentido e direcionadora do questionar. A cada passo dado, a pergunta também precisa ser retomada e reinterpretada. Por isso, antes de assumi- -la € necessério refletir sobre o que é uma pergunta. O que é perguntar? Segundo Heidegger, Todo perguntar é um buscar. Toda busca tem sua dirego prévia a par- tir do buscado. Perguntar € buscar conhecer o ente em seu ser-que € fem seu ser-assim. © buscar que conhece pode se tomar ‘investigar’ como determinago que pBe-em-liberdade aquilo por que se faz a per- gunta, (Heidegger, 1927/2012, p. 41, § 2) Isso significa que ¢ impossivel que uma pesquisa brote do nada. Toda pergunta depende de algum envolvimento prévio com aquilo que se quer esclarecer. Isto é, pesquisador © pesquisado ja esto enredados & algum conhecimento, mesmo que técito, aquele ja detém sobre este. O ‘que caracteriza a pergunta é o assumir-se como tal, isto é, a determinagao de tematizar um ente para que este se revele. Toma-se investigago quan- do, na diresio de explicitar o ente investigado tal como ele é, 0 modo de aicesso (0 perguntar) é colocado em questo a cada momento, a fim de ‘garantir que aquilo que se pergunta possa se mostrar tal como é, livre de atravessamentos. Isso € necessirio, pois a pergunta jé esta articulada pe- Ins interpretagdes tradicionais sobre o que se quer compreender. Heidegger destrincha a pergunta em 1) aquilo de que se pergun- ta, 2) aquilo a que se pergunta ¢ 3) aquilo que se pergunta. Por exemplo, ‘posso perguntar o prego do pao ao padeiro. Pergunto 0 prego (3) do pao (1) ao padeiro (2). A diregao prévia da pergunta me indica a padaria co- mo o lugar onde encontrarei paes ¢ padeiros. Toda pergunta, portanto, ja traz consigo interpretagdes prévias que a contextualizam, Essas interpre- tagdes so aquelas veiculadas pela tradi¢ao, que, do ponto de vista daque- Je que a habita, apresentam as coisas tal como sempre foram. Isto é, & ecessério estranhar, desentranhando-se da tradigao, para perguntar. E. [Por este motivo que Husser! chama a atitude do fildsofo de atitude antina- tural; ela rompe com a naturalidade do existir cotidiano. A pergunta “o que pode um psicélogo fenomenolégico-exis- tencial?” esté fundada na psicologia fenomenolégica existencial, que her- dei daqueles que me formaram, visando por em liberdade o que tal psico- logia é. Na considerago sobre o perguntar, Heidegger aponta ainda um_ quarto elemento: 0 perguntador. Delimitando 0 caminho de colocagéo da questo do ser, revela-se a necessidade de explicitago dos modos de irigir-se Aquilo que se pergunta, de entender e conceituar, de escolher corretamente a que se pergunta e elaborar um modo genuino de acesso. E sonclui 2 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Othar para, entender ¢ conceituar, escolher, aceder a so comporta- mentos constitutivos do perguntar ¢ assim sio eles mesmos os modi- de-ser de um determinado ente, do ente que nés, os perguntantes, so- ‘mos cada vez nds mesmos. (Heidegger, 1927/2012, pp. 45-47, § 2) Com alguma licenga poética, 0 mesmo pode ser afirmado desta investigagao, pois eu, investigador, considero-me um psicélogo fenome- nologico existencial, “realizando-me” assim a cada atendimento psicolé- ‘ico, a cada aula, a cada supervisio, a cada leitura, a cada discussio. Re- conhego-me baseado em uma tradigao na qual estou imerso e que vem se tomando estranha medida que encontro outros modos de ser psicélogo. entranhamento na tradigao, do qual retiro a dirego prévia, nfo é consi- derado por Heidegger um erro, pois é constitutivo do modo de ser do ente ‘que pergunta: a existéncia. Assim, ¢ essa tradigo que precisa se tornar explicita, possibilitando 0 confrontamento. Fenomenologia como método No caso desta investigaglo, meu objetive é tomar claro 0 eer- -psicélogo fenomenolégico existencial. A investigagio desse ‘objeto’ — ser-psicdlogo como possibilidade existencial — obriga a investigagio a seguir um método diferente daquele empregado pelas ciéncias naturais, que visam as coisas. Estas operam por abstracdo, produzindo “uma cisio entre 0 fendmeno e a vida, entre o campo de investigacao de seus objetos € 0 nexo vital histérico, material e psiquico no qual esses objetos eles ‘mesmos desde 0 inicio se encontram” (Casanova, 2011, p. 11). A essa compreensio de ‘objeto’ separado do ‘sujeito’ corresponde 0 método como conjunto de procedimentos para garantir ao conhecimento a imuta- bilidade de um conceito geral. Como afirma Critelli (1996), “para o pen- sar metafisico, toda possibilidade de um conhecimento valido e fidedigno é garantida pela construgao de conceitos logicamente parametrados e de ‘uma privagiio da intimidade entre os homens e seu mundo” (p. 14). Nio é essa a forma como procedo nesta investigacdo, pois ser psieélogo & uma possibilidade existencial que eu e outros assumimos como modos de ser- -ito-mundo. O modo de acesso s possibilidades existenciais deve ser fe- nomenolégico-hermenéutico, isto é, desvelando 0 sentido de ser (a onto- logia) que as sustenta (Heidegger, 1927/2012). A luz das consideragdes acima, 0 método de pesquisa visa des- velar a tradigo que recebi e que compartilho, Este modo de compreender ; Psicologia Fenomenotégica Existencial 3 a psicologia fenomenolégica existencial é meu é também compartilha- do, pois quando leciono, supervisiono ou sou psicoterapeuta, atualizo-a € ‘passo-a a outros. Sou, portanto, coautor de uma tradigo. Mas... qual tra- digo? E essa a primeira pergunta para a qual preciso obter uma resposta a fim de esclarecer o que entendo como possibilidades do ser-psiclogo fenomenolégico existencial. © modo de proceder exige a retomada dos textos e autores que me foram apresentados como psicélogos fenomeno- Iégico-existenciais. Essa histéria ¢ minha historia na Psicologia; comega na Faculdade, segue pelas supervisdes, pela pratica docente etc. Conhecer esta tradi¢ao de pratica psicolégica é conhecer minha hist6ria na Psicolo- gia. Isso toma esta pesquisa autobiografica? Pode uma tese de doutorado ser uma autobiografia? Esta obra é ‘uma autobiografia? Seria se 0 que estivesse em jogo fossem apenas mi has ideias e reflexdes e se minha prética autointitulada “psicologia fe nomenolégica existencial” fosse assumida como modelo a ser seguido € explicitado. Nao é 0 caso. Retomar a histéria de minha formagio esté ‘mais préximo de re-petir (re-petere), clamar novamente para um confron- tamento, tornando o que me € tio ébvio algo estranho, digno de reflexio. Neste sentido, esta pesquisa est mais para uma “heterotanatografia”, termo usado por Pessanha (2002) para se referir a historia pessoal como thin de relaydes que se faz ¢ refaz.(gru/lu) com outios (Heterv) em diseya0 & morte (‘anatos). Investigar © que pode um psicdlogo fenomenolégico existencial é confrontar o que os outros com quem me encontrei na traje- thria de tomar-me psicélogo € que encontro e contribuo para formar Gompreendem como “psicologia fenomenolégico existencial” do sentido essa pratica como possibilidade existencial. Ao mesmo tempo que desvelo © sentido de meu ser psicdlogo fenomenolégico existencial encontro as ‘sedimentagdes da tradigdo que compartilho e que me transcende. Na obra Ser e tempo, a proposta destrutiva da histéria da tradi glo ontoldgica metafisica vem seguida da descrigéo do método fenome- Roldgico. Nao seria importante considerar a compreensiio de método esse filésofo, que é inspirador da psicologia fenomenolégica existen- dial? Nas pesquisas realizadas até 0 momento para a composigdo desta ‘ete, surpreende-me que muitas que se apresentem como inspiradas nesta fllosofia nem mencionem esta passagem de Heidegger. Por qué? Até a0 ‘ontrério, essas pesquisas langam mao de métodos pertencentes a outros Gontextos tedricos. Seré que a compreensio do método fenomenolégico de Heidegger ndo tem nada a oferecer & Psicologia? Tendo essas pergun- tas em vista e a fim de refletir sobre 0 método desta pesquisa, retomo 0 Método fenomenolégico de Heidegger descrito no § 7 de Ser e tempo. nT ¥ 44 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Método fenomenolégico dé restigagao Heidegger inicia indicando que o modo de acesso a0 que se ‘quer investigar nao é algo de que se possa langar mao. Pelo contririo, é 0 tema mesmo da pesquisa que precisa indicar como pode ser acessado. E isso que caracteriza 0 adjetivo fenomenolégico: que as coisas elas mes- ‘mas determinam seu modo-de-tratamento. A expresso “és coisas elas ‘mesmas” é 0 lema da fenomenologia declamado por Husserl. Por ser central a esta filosofia precisa ser compreendido mais claramente. Na minha formagao esse lema é sindnimo de buscar a experiéncia vivida antes, de qualquer teorizagdo psicolégica. Serd isso mesmo? Esté claro que no contexto de Ser tempo nao € isso. “As coisas mesmas” significa aqui possibilitar que o ‘objeto’ temético da investigagao mostre como deve ser acessado. O fildsofo € enfatico quanto ao adjetivo “fenomenolégico”: Isso nflo prescreve ao presente tratado nem um ‘ponto-de-vista’, nem a subordinago a uma ‘corrente’, pois a fenomenologia ndo é nenhuma dessas coisas e jamais poderd sé-lo, enquanto tiver o entendimento de ssimesma, (Heidegger, 1927/2012, p. 101) Apesar do aviso de que “fenomenolégico” nao é nem pode ser uma perspectiva ou corrente, é assim que aparece para mim na Psicolo- || gia. Minha primeira aula na faculdade foi Psicologia Fenomenolégica. Na | UNIP coordeno uma disciplina com 0 mesmo nome. Nesta situagao, ‘fe- nomenoldgico’ é usado como adjetivo de Psicologia, 0 que deixa claro || que a Psicologia pode ndo ser “fenomenolégica’. De fato, concomitante- | __ mente a Psicologia Fenomenolégica aprendi Psicologia Comportamental, | __ Psicologia Psicanalitica etc. Nao sera, assim, a Psicologia Fenomenolégi- ca uma contradigao? Ainda é cedo para responder, mas me parece que 0 uso do termo ‘fenomenolégico’ como adjetivo & uma deturpacdo do sen- tido desse termo na obra de Heidegger. No contexto do fildsofo, exprime um “conceito-de-método” caracterizador do como da conduedo da pesqui- sa; a saber, afastando-se do manejo técnico, de construgdes soltas no ar, de conceitos nfo demonstrados nem demonstraveis (Heidegger, 1927/ 2012). Encontro ai alguma concordéncia com a proposta de evitar psico- logizacdes sobre a experiéncia vivida. Mas seria entio apenas isso? Em que a comunicago de uma vivencia por alguém sem formagao em psico- logia difere da descrigdo dessa experiéncia por um psicélogo? Para ser fenomendlogo é necessirio nao estudar psicologia? Ou estudar filosofia? Seriam, entio, as criangas fenomendlogas natas por nao disporem de Psicologia Fenomenolégica Existencial 45 conhecimentos cientificos que deturpem a interpretagdo de suas vi cias? (Van Den Berg, 1955/1994). Ser psicdlogo fenomenolégico nao é um paradoxo? ‘A descrigto de Heidegger do método no para por ai. Antes de pparalisar diante destas conclusdes precipitadas & melhor seguir adiante, termo fenomenologia é composto por dois elementos — fend- meno € logos — cuja etimologia Heidegger resgata a fim de apontar sua origem. O sentido atual destes termos esta entulhado por séculos de inter pretagdes. Logos, por exemplo, é sinénimo atualmente de logica, razdo, roporgao, juizo, ciéncia, Psico-logia é a ciéncia de um recorte da reali- dade, 0 ‘psico’. Fenémeno para 0 senso comum ¢ qualquer coisa que aparece. Dai sua relagGo com algo grandioso, que chama a atengio. O Diciondirio Hoauiss (2012) apresenta sete definigdes: 1) tudo o que se observa nia natureza; 2) evento de interesse cientifico (por exemplo, fendmenos as- trais); por metéfora vém os significados 5) acontecimento raro e maravi- Ihoso; 6) objeto extraordindrio; 7) um individuo extraordindtio. As tercei- ra ¢ quarta definigdes sto oriundas da filosofia de Kant, que é uma das, ‘confrontadas por Heidegger: fendmeno significa aqui 3) a apreensfo ilu- s6ria de um objeto, pois a consciéncia é incapaz de atingi-lo e 4) apreen- sto do objeto segundo as formas a priort (tempo e espayo) da intuigao. ‘Nessa filosofia, a realidade € inacessivel como ¢, s6 podendo ser apreen- dida pela subjetividade que a representa. ‘Na fenomenologia de Heidegger, fendmeno é tomado em seu sentido etimolégico. Deriva do grego phainesthai, que significa mostrar- fe, Phainomenon & 0 que se mostra, termo usado pelos gregos no inicio a filosofia para se referir a tudo ao seu redor, ‘realidade’, também chamado de ‘o ente’. A raiz etimolégica é phainé, de pha, como pho, luz. Indica o “trazer & luz do dia”, para o claro, para que se manifeste, para vigore entre o manifesto (a ‘realidade’), Os entes podem se mostrar diversos modos, inclusive como o que eles ndo so, mas parecem ser. Para evitar confusdes, Heidegger reserva o termo fenémeno para 0 mos- trar-se do ente tal como ele é. O parecer ser algo que nio é ¢ 0 aparecer de algo que no pode se mostrar a si mesmo, mas que € indicado'', sto fimdados no mostrar-se de fendmenos. Fenémeno é “o-que-se-mostra- ¢mn-si-mesmo” (Heidegger, 1927/2012). Também o sentido de logos é resgatado por Heidegger do grego antigo, significando “tomar manifesto aquilo de que ‘se discorre’ no dis- "Por exemplo, os sintomas da gripe a manifestam, mas ela s6 pode se mostrar por meio os stoma. 46 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Psicologia Fenomenelégica Existencial a curso” (Heidegger, 1927/2012, p. 113, § 7), que Aristételes explicitou co- mo carter apofiintico do discurso. Apophanesthai significa fazer ver aquilo de que se discursa aquele que discursa ¢ aos seus interlocutores, tomnando-o acessivel. Composto por apo, fazer ver, e phainesthai, mos- trar-se, 0 discurgo apofantico toma acessivel aos demais aquilo que apa- rece para mim. E possivel fazer isso por um gesto. Quando aponto numa dirego, meu interlocutor vira-se para li. O privilégio da fala esté no deta- Thamento do compartilhado. Logas neste sentido é de-monstrago, mos- tragdo de algo a alguém, desde o desvelamento ao testemunho. Fiel a esta compreensio, o daseinsanalista Medard Boss consi- dera a enorme importancia da fala livre-associativa na relagdo terapéuti- ca, pois, ao falar, o paciente est mostrando algo desocultado para si a0 seu interlocutor, psicoterapeuta, tomando-o testemunha (Boss, 1963). Sera, entdo, este caréter de testemunho do desvelado uma possibilidade do ser-psicdlogo fenomenolégico existencial? Fenomeno-logia significa literalmente legein ta phainomena, “fazer ver a partir dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostra” (Heidegger, 1927/2012, p. 119, § 7). Por isso fenomenologia refere-se a um como (modo) ¢ nfo a um 0 qué (conteiido-de-objeto). Fe- nomenologia é um modo de proceder (método) no sentido de tomar dis- cursivamente manifesto aos demais aquilo que se toma como tema da investigagao, cuidando para receber do tema a indicagdo do modo de acessé-lo, Nas palavras de Heidegger: “uma apreensio de seus objetos de tal maneira que tudo o que esteja em discussao a seu respeito deve ser ‘ratado numa mostrago direta e numa demonstragao direta” (Heidegger, 1927/2012, p. 119, § 7). Na filosofia de Heidegger, o que exige ser toma- do como fenémeno ~ aquilo que é digno e merecedor de ser pensado - € 0 set, confundido no inicio da histéria do Ocidente com o ente. Dai que nesse contexto a fenomenologia ¢ ontologia; & a recolocago da questio do ser, explicitando-o. Na Psicologia é um pouco diferente, pois seu tema nflo é o ser. Qual é 0 ‘objeto’ tematico da Psicologia? Estou certo de que as vérias abordagens psicolégicas tém delimitado um campo tematico, isto é, uma determinagao do ser com que lidam. Teré a psicologia fenomenoldgica existencial um ‘objeto” tematico proprio, diferente das outras psicologias? ‘Mas essa pergunta ndo submete a fenomenologia ao conjunto das varias perspectivas discordantes entre si? E isso no contraria o sentido do ter- ‘mo fenomenologia? Sao muitas as perguntas que surgem. A luz da definigdo de Fenomenologia e para set fiel a este sen- tido na Psicologia, o tecorrer ao “método fenomenolégico” néo poderia significar langar mao de um conjunto de procedimentos para coleta € anilise de dados e, sim, cuidar para desvelar o tema da pesquisa tal como se mostra, Isso quer dizer que métodos no fenomenologicos de pesquisa mostra seus ‘objetos’ tal como eles no so? Como é que outros méto- dos de pesquisa procedem? Aparentemente, eles no retiram do pesquisa~ do 0 modo de acesso correspondente, Este provém da interpretagdo prévia sobre 0 que € 0 pesquisado. Como esta pesquisa precisa acontecer para responder a pergunta “o que pode um psicélogo fenomenoldgico-existencial?”. Fenomenologi camente, precisa cuidar para acessar o perguntado garantindo-Ihe a liber- dade de mostrar-se tal como é, € no de acordo com o que a tradigao jé enuncia, Assim, reencontro novamente a necessidade de explicitar e con- frontar o que é ser-psicélogo fenomenolégico existencial para mim. A tradigio, a0 sedimentar-se, pode encobrir os fenémenos. Ocorre o mesmo com predeterminagdes sobre os fendmenos, como é no caso das teorias. Toda teoria ou abordagem psicolégica jé parte de uma compreensio prévia sobre 0 que € seu objeto - 0 ‘psicologico’. Nesse Brejuizo, corre o risco de encontrar somente o que ja colocou diante de si de antemfo, encobrindo o fenémeno, Heidegger defende a necessidade da fenomenologia contra a tradigdo ontologica sedimentada, que toma aparentemente irrelevante a questo do ser. Mas sua defesa vale para os fenémenos do ambito da cigncia Psicologia ¢ para o risco de encobrimento por teorias e tradigdes. Diz ele: [.-] um fendmeno pode ter sido de novo encoberto, isto ¢, esteve antes descoberto, mas voltou a cair sob o encobrimento. Esse encobrimento pode se tornar total, ocorrendo, no entanto, em regra que o antes des- ccoberto ¢ ainda visivel, mas s6 como aparéneia, Porém, quanto de apa- réncia, tanto de ‘ser’. Esse encobrimento como “disfarce’ é o mais fre- quente eo mais perigoso, pois aqui as possibilidades de engano ¢ ex- travio so particularmente tenazes. Mas as estruturas-de-ser dispon veis, embora ocultas no que se refere ao solo sobre o qual se assentam aos seus conceitos, podem talvez postular seus direitos no interior de um ‘sistema’. Mereé de sua insereo construtiva no interior de um sis- tema, elas se do como algo ‘claro’, nfo necessitando de maior justifi- cago e podendo, portanto, servir de ponto de partida para uma dedu- #0 progressiva, (Feidegger, 1927/2012, p. 123, § 7) Seré que 0 que aprendi e assumi como ser-psicélogo fenomeno- Aégico existencial tomou-se to “claro” que dispensa novas reflexdes? 48 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Nesse caso, corro 0 risco de manter encobertos modos de ser-psicélogo. O mesmo pode ser dito de todo psicdlogo que herda da historia aborda- gens e priticas psicoldgicas sem o cuidado de considerar se correspon- dem A situago atual ou se a encobrem. Também vale para aqueles que se propdem a implementar estratégias interventivas elaboradas algures. A pritica irrefletida contribui para os enganos ¢ extravios mais tenazes, Até as dificuldades na pritica docente e o estranhamento diante das perguntas dos meus alunos, ser-psicélogo fenomenolégico existencial me era claro como a luz do sol. O espanto revela que minha clareza era apenas aparéncia, ‘A necessidade de confrontamento com minha historia de forma- 80 em psicologia fenomenolégica existencial esta se revelando ineluta~ vel. Passo a re-peti-la, considerando meus primeiros contatos com a psi- cologia fenomenolégica existencial. Procuro neles os aspectos da ontolo- gia heideggeriana, se é que esto presentes, e qual é a compreensio a respeito de “o que pode um psicélogo fenomenolégico-existencial” que assumi ao longo da formacdo. Neste préximo capitulo, revisito o que aprendi na PUC-SP na graduagio. E quando minha jomada inicia. Na sequéncia, retomo a analitica existenciéria’® de Ser e tempo. A seguir, retomo outra histéria da psicologia fenomenolégica existencial que en- contrei quando comecei a lecionar na UNIP. Trata-se da fenomenologia cexistencial articulada com uma psicalogia originalmente humanista. ® Como estou usando 2 tradugo de Fausto Castiho (Heidegger, 1927/2012), sigo a ttadugio de existencidrlo para Existenzial cexistencial para Existercill. Aqui encon- tta-se uma das maiores fontes de confusto no estudo de Heidegger no Brasil, pois ‘Marcia Cavalcante faz o oposto, J4 as tradugdes castelhanas seguem a mesma Tinhs roposta por Casio. “Meu Caminho para a Fenomenologia” A busca de respostas para a questo “O que pode um psicélogo fenomenolégico-existencial?” exige que eu re-pita a psicologia fenome- } nolégica existencial na minha historia. De um modo vago ¢ indetermina- do, ja disponho de uma compreensio do que ela pode ser e esse saber révio, que foi se configurando ao longo de minha formacao em psicolo- is, orienta minha investigagao. Como descoberto na introdugdo, esta Pesquisa nfo surge do nada, pois brota de questionamentos ¢ reflexdes ‘oriundas de minha pratica clinica e docente e do encontro com estudantes de psicologia. Emerge, também, dos meus encontros com psicdlogos € filésofos estudiosos de fenomenologia existencial e da ontologia heide- jana, A partir desses encontros foi se marcando uma compreenstio de logia fundamentada na ontologia heideggeriana que tem orientado ratica desde os estigios na graduagio. # essa compreensio pré- vaga e indeterminada que a pergunta “O que pode um psicélogo fe- 10l6gico-existencial?” visa desvelar neste momento. Apresentado desta forma, parece que bastaria uma investigacao rospectiva para que a resposta aparecesse. Mas no é assim. E no con- tamento com a ontologia heideggeriana e com as psicologias nela damentadas (ou que assim se apresentam) que essa compreensio pré se revela. u primeiro contato com a Psicologia Fenomenolégica Como jé mencionado, a disciplina de fenomenologia é a primei- ftula que tenho no curso de graduacdo em Psicologia, E uma terga-feira 50 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista de manha ¢, além do estranhamento do ingresso na faculdade, do lugar diferente, dos rostos diferentes & volta, do mundo novo que se abre, eis ‘que surge meu primeiro professor de psicologia — Max Resende ~ que ja na primeira aula propde que a relago epistemolégica sujeito-objeto deve ser “suspensa”. O que ele quer dizer com isso? Esse primeiro semestre traz como bibliografia bisica O Pacien- te Psiquidtrico (Van Den Berg, 1955/1994) ¢ 0 Ser da Compreensiio (Augras, 1986) e apresenta a mim algo estranho, Sinto que atravesso esse primeiro semestre sem entender do que trata a Fenomenologia, mas com uma inguietagdo em relagao a tal “suspensio fenomenolégica”. Olhando retrospectivamente, o livro do psiquiatra holandés van den Berg & um marco na minha biografia. Revisito-o frequentemente e a cada vez me surpreendo com o que encontro. A esta altura fica impossi- vel dizer se a compreensio que tenho hoje corresponde & que tive quando da primeira leitura. E bem provével que no. Mas desse livro depreendo uma compreensio do que é uma psicologia fenomenologica existencial, Releio-o agora em busca da psicologia fenomenolégica ai presente ¢, sobretudo, para ver como o psiquiatra recorre ~ se & que o faz ~ & ontolo- gia heideggeriana. Parece-me inevitavel que nesta revisitagdo outros es- ‘tudos aparegam. Nao vejo sentido em lutar contra isso; pelo contrario, talvez. seja um modo de deixar serem os fenémenos. Assim, entrelaco a Ieitura de van den Berg (1955/1994) com o livro de Augras (1986), por terem sido lidos no mesmo semestre do curso de psicologia, Fenomenologia como atitude ingénua O Paciente Psiquiétrico ~ Esbogo de uma Psicopatologia Fe- nomenolégica, € um curto livro publicado pelo psiquiatra holandés Jan Hendrik van den Berg (1914-2012) pela primeira vez nos Estados Unidos em 1955 para apresentar a psicologia fenomenolégica ao publico norte- -americano. Em 1963 ele € revisto e publicado na Holanda, No Brasil, a tradugio é feita pelo filésofo tomista Prof. Dr. Leonardo van Acker (1896-1986), imigrante da Bélgica, que vem para lecionar na Faculdade de Filosofia, Ciéncias ¢ Letras de Sao Bento (posteriormente PUC-SP). 0 tradutor salienta que este livro ¢ ttl tanto para profissionais ‘psi’ quanto para os filésofos por apresentar uma aplicagao do método fenomenol6gi- co de Husserl e Heidegger. Segundo ele, esse método é critico do plato- nismo, do cartesianismo ¢ do paralelismo psicofisioldgico, mas deixa intactos 0 aristotelismo e 0 tomismo, “em que a alma ou 0 psfquico se identifica ao corpo ou fisico como a natureza ou forma propria deste, Psicologia Fenomenologica Existencial SL sendo a consciéncia concebida como essencialmente “intencional’, ou rela- ‘40 de mmitua cognoscibilidade com 0 objeto” (Acker, 1955/1994, p. 8). O livro inicia com a descrigao de um paciente ficticio, um estu- dante de 25 anos que no consegue frequentar as aulas jé hé algum tempo € sente-se solitério, desconfiado e temeroso. Tem muito poucos amigos, com os quais s6 consegue conversar sobre assuntos teéricos. S6 se relacio- na com prostitutas, mas mesmo com elas raramente tem contatos fisicos. Evita sair de casa durante o dia, pois da tiltima vez que o fez sentiu que as casas desabavam sobre ele. Sente as ruas vazias e as pessoas, distantes. Procura o psiquiatra devido a fortes palpitagdes cardiacas para as quais nenhum médico consultado encontra explicagdes orginicas, Visita seus pais uma vez a cada trés meses, sempre se sentindo deprimido a partir do momento em que embarca no trem, culpando-os por sua infelicidade. Evita pensar no seu futuro. Van den Berg (1955/1994) prossegue, qual um médico, resu- mindo as queixas apresentadas pelo paciente, dividindo-as em quatro ‘sategorias: 1) seu mundo, 2) seu corpo, 3) as relagdes com outras pessoas 4) seu passado e seu futuro, Ao proceder assim, ele tem dois objetivos. primeiro é apresentar o softimento do paciente tal como experienciado ‘pelo mesmo. Isso corresponde a compreensdo que ele oferece da fenome- nologia no contexto clinico: “O fenomenologista nunca tem necessidade de hipéteses. As hipéteses surgem quando a descrigdo da realidade termi- ‘Ra prematuramente. A fenomenologia é a descrigdo da realidade” (p. 104). Em outra passagem, explica a “atitude fenomenolégica”, que corresponde esse método descritivo: Procura descrever 0s fendmenos como eles sto. E um fenomenologis- 1a, isto &, respeita os fendmenos que sfo registrados e os incidentes da ‘maneira que ocorrem. (..) Ele perturbaria as coisas, se as examinasse reflexivamente, Entfo, ele se abstém de fazé-lo ~ isto nfo significa que, no futuro, ele verd as coisas superficialmente, Pelo contrario, é de ‘opinitio de que, nfo submetendo as coisas a uma inspecsao reflexiva’’, ele seré capaz de vé-las mais claramente © com mais realidade, (Van den Berg, 1955/1994, p. 57) outro livro que me introduz a histéria da psicologia fenome- légica existencial, tomando-a possibilidade existencial minha, é de ‘Van den Berg (1955/1994) diferencia as attudes pré-teflexiva e reflexiva, sendo a primeira a correspondente a vivéncia humana e a segunda & teorizago sobre essa vi ‘vbncia, Para ele o olbar fenomenologico dirige-se ao pré-reflexivo, como na fenome- nologia de Merleau-Ponty (1945/1998). 32 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Monique Augras", O Ser da Compreensdo (1986). Nesse livro ela faz coro com o psiquiatra!® sobre 0 objetivo do método fenomenolégico de Husserl, que visa aprender a esséncia dos fenémenos — seus significados ~ de maneira “mais ‘ingénua’ possivel, a mais despojada de preconceitos” (Augras, 1986, p. 16). Em consonéncia com van den Berg, ela define como objetivo da anilise fenomenolégica de um paciente a descrigdo de “sua histéria (0 ‘tempo), 0 seu corpo (0 espago), a sua estranheza (0 outro), 0 seu fazer-se (a obra)” (Augras, 1986, p. 25), dividindo seu ensaio nesses “grandes temas da existéncia” recolhidos dos estudos de Husserl, Jaspers, Heide gger, Sartre e de psicopatologistas fenomenolégicos, Serdo estes, ento, 0s temas de uma psicologia fenomenolégica existencial? Neste primeiro encontro com a fenomenologia ela se apresenta como um método de investigacao que evita recorrer a teorias e modelos aprioristicos para que os fenémenos se revelem para um observador ‘in- gémuo’, 0 que o tomaria mais capaz de apreender 0 que se mostra tal co- mo € endo de acordo com o que teorias afirmam que seja. E isso? Essa é uma compreensio presente para mim desde o inicio de minha formacdo. Seria um antidoto ao “Leito de Procusto”, o cruel ladrao que oferece hos- pedagem a viajantes em sua casa, onde mantém duas camas, uma pequena outra grande. Aos viajantes baixos, oferece a cama grande e, prendendo- 0s, estica-os até que caibam perfeitamente. Aos viajantes altos ofetece a ‘cama pequena, cortando suas extremidades (Apolodoro, 1921/2006). Desse mito surge a expressdo usada para se referir ao esforgo de encaixar uma situago num quadro teérico, mesmo que seja necessério distorcé-la para que caiba bem (May, 1993). Fenomenologia como critica a psicandlise Além de cumprir 0 objetivo de apresentar 0 sofrimento do pa- ciente tal como experienciado pelo mesmo, o livro de van den Berg obje- Nascida na Franca, estudante de psicologia com Jean Piaget, emigra go Brasil em 1961 € ‘comeya a trabalhar no Instituto de OrientagHo e Sclegl0 Profissional da Fundago Getilio Vagas (RI) aplicando os testes TAT e Rorschach. Com a regulamentagdo da rofisio de psicdlogo no Basil, obtém o rgisto e logo é convidda 8 Iecionar Psicologia, ‘na UFRJ, depois na PUC-RI, onde pesquisa a adaptngio de testes psicol6pios esrangeiros ‘20 contexto brasileiro, a Psicologia Fenomenologicae das Culturas (CFP, 2008) "> A obra de van den Berg nfo figura na lista de referéncias bibliogrifcas da psicdloga. Pde ser que ndo tenha ldo seu liv, mas a compreensio da fenomenologia de ambos 4, a0 meu ver, semelhante, Psicologia Fenomenoldgica Existencal 3 tiva opor-se ao que ele considera o principal Leito de Procusto da Psicolo- ia e da Psicopatologia: a psicanilise. O livro O Paciente Psiquidtrico 6, ‘entio, uma oportunidade de contestar as hipéteses psicanaliticas tio arrai- ‘gadas na psiquiatria. A cada uma das categorias exploradas (mundo, corpo, Outros, tempo) corresponde uma hipétese psicanalitica. A relag#o do pa- cciente com mundo extemno é pensada pela psicandlise como projegdo, a re- Jago com os sintomas corpéreos como converséo, 0 modo de se relacionar com os demais ¢ interpretado como transferéncia ¢ 0 modo de relagio com © passado e o futuro como mitificagao. Todas estas hipéteses se sustentam sobre a principal construgo psicanalitica — o inconsciente -, que van den Berg coloca em questo para mostrar que ¢ conceito prescindivel Para o psiquiatra, a vivéncia é pré-reflexiva e difere das expli cagdes psicolégicas e psiquistricas tradicionais, que so posteriores, se~ ‘cundarias, reflexivas. A caracteristica mais marcante da experiéncia hu- mana ¢ a ndo separagdo entre sujeito e objeto, homem e mundo. Ela se revela também na imediatidade com que a significagiio do mundo apare- 6, isto é, néo hi objetos brutos, puros, desprovidos de significados que, rum segundo momento, recebem significagdes como se fossem etiquetas. Por exemplo, logo no inicio van den Berg narra uma situagdo de ter con- vidado um amigo para jantar e ter comprado um vinho especial para a ecasitio. Pouco antes do hordrio marcado, o amigo liga desmarcando 0 ‘ansiado encontro. Assim que desliga, ele experimenta uma transformaclo no modo de vivenciar espago e tempo, sua casa parecendo mais vazia e silenciosa, o tempo passando mais lentamente. © autor recorre a essa experiéncia cotidiana para demonstrar que para a compreensio fenomenolégica nao ha uma divisdo entre sujeito € objeto; a experincia subjetiva tomna-se acessivel através dos objetos a0 redor. A garrafa (objeto) revela imediatamente, de um s6 golpe, a solidao de quem aguarda o amigo (sujeito). Nao ha na experiéncia a separacao interior-exterior, tio corrente na Psicologia: “Cada esforgo que fago para oncentrar-me no meu puro intimo, resulta na tomada de consciéncia do meu ambiente: 0 quarto, o fogo, a garrafa e, dentro de tudo isso, 0 meu ‘amigo ausente” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 35). Disto depreende-se que a psicologia fenomenolégica supera a dicotomia sujeito-objeto e a separagio interior-exterior. Sujeito e objeto, homem e mundo estio inti mamente relacionados e no ha um sem 0 outro. Nessa correlagio sempre aparecem significados. Estes nao sfo atribuidos posteriormente por uma Gonsciéncia dotada da capacidade de significagdo. As coisas aparecem Aignificativamente como a garrafa, que presentifica o amigo ausente € fevela a solidio daquele que 0 espera. Augras (1986) se refere a isso afirmando que o ser humano existe sempre em ‘situagdo’, Seguindo as 34 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista reflexes do psiquiatra Karl Jaspers, ela afirma que a realidade (objeto) é transformada em ‘mundo’ pela percepgaio humana, de modo que néo exis- tem objetos puros, mas sempre objetos percebidos, e, portanto, significa dos. Por isso pode-se dizer que 0 humano é criador de mundo; “sujeito € objeto, homem e mundo vao criando-se reciprocamente” (p. 20). Van den Berg mostra também que 0 que as coisas so (0 que significa) depende de quem se relaciona com elas. Exemplifica com um carvalho, mostrando que para pessoas diferentes, o carvalho é dife- rente: Para o cacador, 0 carvalho & um abrigo para passaros e uma oportuni- dade para se abrigar do sol. Para 0 madeireiro, 0 carvalho & um objeto que pode ser medido, cortado e vendido. Para a moga romantica, faz parte de uma paisagem apropriada ao amor. (1955/1994, p. 37) Por isso, para compreender quem é 0 outro que busca o psicélo- g0 fenomenolégico, cabe a este investigar seu mundo, tal como “ele 0 vé na observagio direta e didria” (p. 38), pois a relagio entre o ser humano e seu mundo € de tal intimidade que toma equivocada qualquer tentativa de separagio. Isto instaura uma oposigao entre o pensamento fenomenolégico ¢ a filosofia cartesiana, que divide a realidade entre res cogitans e res exten- sa. Criticas semelhantes a0 cartesianismo so frequentes na literatura de psicologia fenomenolégica, assim como em todas as psicologias humanis- tas, Hoje em dia, psicdlogos de todas as abordagens psicologicas conside- ram reducionista a afirmagao de um ‘psiquismo’ isolado do contexto social em que vive. Nao era assim na primeira metade do século XX. Na fenomenologia, a experiéncia humana pré-reflexiva nao se- para o ‘sujeito’ daquilo que ele vivencia ao seu redor. Esta relagdo entre aquele que percebe (sujeito) ¢ 0 que é percebido significativamente (obje- to) é, segundo Augras (1986), uma dialética inesgotavel, pois ha infin veis modos possiveis de perceber ¢ de se perceber percebendo o mundo. Essa interdependéncia dialética desemboca numa sintese sujeito-objeto, superando a dicotomia epistemolégica tradicional. Assim, a fenomenolo- gia pensa a existéncia humana como “ser no mundo”, que Augras define como “existir para si e para o mundo” (p. 21). Desde 0 principio da minha formagdo esta reciprocidade entre sujeito e objeto, homem e mundo figura como pressuposto da Psicologia Fenomenologica. Assim, desde os estigios no quarto ano da faculdade busco conhecer a experiéncia do paciente que atendo de acordo com seu Psicologia Fenomenolégica Existencal 88 mundo-ao-redor, nfo diferenciando aspectos subjetivos/interiores dos objetivos/exteriores. Reconhego aqui uma critica que me vem imediata- ‘mente quando ougo alguém usar 0 adjetivo ‘subjetivo’ no sentido de uma versio desprovida de objetividade (‘realidade") do que acontece, assim ‘como qualquer insinuado de uma divisdo entre interior e exterior. Ao que consta nesta literatura, a superagio da dicotomia cartesiana é um taco da Fenomenologia em geral, no especificamente de Heidegger. Fenomenologia como imediatidade sintética homem-mundo Para a fenomenologia homem ¢ mundo no se separam; qual- quer tentativa de cisio é uma abstragdo que perde a especificidade huma- na, Isso implica que conhecer o outro é conhecer 0 seu mundo. Para isso, 8 Psicologia Fenomenolégica prescinde do conceito psicanalitico de pr ego. Homem e mundo esto tio intimamente ligados que como alguém ‘esté aparece imediatamente em seu mundo. Nao se trata, pois, de projetar | num mundo ‘extemo’ desprovido de significados e coloragdes aspectos psicol6gicos e afetivos ‘internos’. Isso leva van den Berg a concluir que 0 conceito de projegtio nfo corresponde 4 experiéncia humana, podendo 0 sicdlogo prescindir do mesmo. © paciente esté doente; isto significa que o seu mundo esti doente ou, mais literalmente (embora isto parega estranho), que os seus objetos estio doentes. Quando o paciente psiqustrico conta como seu mundo Ihe parece, esti a descrever, sem rodeios © sem enganos, o que ele ‘mesmo (Van Den Berg, 1955/1994, p. 43) Estas ideias me espantam quando as ougo pela primeira vez, is entro na faculdade de Psicologia esperando uma formagdo que me (Masinasse a explicar o comportamento humano & luz de mecanismos que ‘© senso comum desconhece. Percebo o mesmo estranhamento em meus lunos quando reproduzo a eles estas concepgdes. Eles tém ‘clareza’ de © que esta errado ¢ a interpretago que o paciente faz de suas percep- . Mas 0 que a Psicologia Fenomenologica propde é o oposto: é entrar mundo do paciente, atentando para como ele o vivencia. Afinal, “Nada autoriza a afirmar que a nossa observagio é mais verdadeira que ado iente. Também nossa prépria observacdio prova apenas que parece- 0 que somos” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 43). E um trabalho escritivo, nao explicativo. Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Reflito hoje que essas ideias calaram fundo em mim, configu- rando um modo de escutar compreender o sentido da vivéncia de quem me procura como psicélogo a partir de como essa pessoa experimenta 0 seu mundo € ndo do que eu penso sobre ela. E essa atitude que tento apre- sentar aos supervisionandos de estaigios clinicos ¢ aos alunos da graduagao, tao vidos por explicagbes sofisticadas sobre o comportamento alheio. No caso do paciente tematizado no estudo de van den Berg, a afirmacio da vivéncia significa que quando ele relata que sente que os prédios desabam sobre ele, essa experiéncia é real, por mais diferente que ela possa ser daquela de quem ouve o seu relato. © mesmo acontece com as fortes palpitagdes no peito nao explicadas pela medicina, Para a feno- menologia, nio se trata de constatar no drgio-coracio as palpitagdes, ‘como faria um cardiologista, mas de compreender a experiéncia de sentir ‘que seu coragao esté apertado, que algo vai mal em seu ‘centro’ A Psicologia Fenomenolégica revela que a percepgdo da reali- dade objetiva nao pode ser critério para o diagnéstico da psicopatologia, pois ndo hé uma ‘realidade’ ‘objetiva’. Hé realidades percebidas, apenas. A consequéncia disto, bem apontada pelo psiquiatra, é que o convenc ‘mento 0 sugestionamento nao sio intervengdes psicoldgicas vidveis, pois partem do pressuposto de que ha uma realidade erroneamente perce- bida pelo paciente. Assim como critica a cis entre homem e mundo, van den Berg mostra como a ideia difundida de que tenho um corpo também é uma abstragio. Ele propde uma diferenciagdo entre 0 corpo que sou © 0 que corpo que tenho. O corpo que sou é 0 da experiéncia cotidiana, en- quanto 0 que tenho ¢ 0 estudado pelo fisiologista. Este aparece como objeto, mas aquele esté intimamente entrelagado ao mundo ao redor. ‘Num exemplo muito claro, o psiquiatra explica que “o estudante de Me- divina que esté acariciando a mao da sua namorada, cometerd um erro se, no seu pensamento, estiver estudando simultaneamente a anatomia dessa mao” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 47). E necesséria reflexdo para que 0 corpo da experiéncia cotidiana surja como coisa material para ser estuda- da, rompendo com a experiéncia pré-reflexiva. Augras (1986) traz.clareza a esta questo, apresentando a espa- cialidade do mundo se desdobrando a partir da centralidade da existéncia. Assim como nos mitos cosmogénicos, a fundagao do centro define o aqui € 0 la, 0 préximo e o distante, o dentro e 0 fora. Também a existéncia é um eixo a partir do qual 0 espago ao redor se organiza, As dimensdes do espago sto criadas a partir da centralidade do corpo. O espago proprio nao é delimitado pelos limites do corpo, esten- Psicologia Fenomenolégica Existencial 3 dendo-se para além da ciitis até onde perdura uma sensagdo de unidade consigo mesmo ~ ideia que ela remete a Jaspers. Dai que muitas psicopa- tologias sto patologias do espago, como as fobias espaciais, a sensagdo de permeabilidade ou porosidade, a catatonia. O centro do paciente psiquid- trico de van den Berg esté constrito, como revelam as paredes que se incinam e ruem sobre ele. E por isso que o a situago cardiaca do paciente permanece incompreendida até que encontra o fenomendlogo. O paciente € 0 médico se referem a drgios diferentes; este, ao muisculo cardiaco que bombeia sangue pelo corpo, aquele, ao seu centro, O médico trabalha com 0 corpo reflexivo, objeto material, enquanto o fenomenslogo com 0 corpo pré-reflexivo, imerso no mundo da experiéncia cotidiana. A relagdo entre esses dois modos de acesso ao corpo é tema de estudo no século XX da Psicossomatica, que tenta explicar como o p: quismo afeta o corpo. A explicaco, oriunda da psicanalise, € que a ener- gia psiquica & convertida em energia fisica, afetando o corpo. Van den Berg mostra que a hipétese da conversio é desnecessiria quando se com- preende que 0 corpo est imerso na vivéncia cotidiana, intimamente liga- do aquilo com que a pessoa se relaciona no mundo, superando os limites fisicos da pele. Como exemplo, fala de uma moga que se arruma em fren- te ao espelho para um passeio na cidade. Ao avaliar se esté bonita, ela ja esté 16 na cidade, olhando-se através dos olhos dos que a olharao. Mostia, ‘assim, que para a Fenomenologia o corpo humano & primordialmente vivido (pré-reflexivo, corpo que sou). O corpo material é uma abstracao derivada. Essa diferenciag#o se toma ainda mais clara na lingua alemé, que usa 0 termo Kérper para se referit a0 corpo como objeto material e Leib para 0 corpo vivido. O psiquiatra fenomendlogo sintetiza que na fenomenologia a relago homem-corpo-mundo deve ser pensada como de intimidade e entrelagamento. Por isso, van den Berg (1955/1994) conclui que 0 conceito de conversio, proposto pela psicanilise para explicar a felagio do ‘psicolégico” com o corporal, & desnecessétio € até mesmo encobridor da experiéncia pré-reflexiva de corpo e mundo, Fenomenologia como coexisténcia © mesmo tratamento ¢ dedicado & relagdo do homem com seus temethantes. As relagdes entre pessoas, explica o psiquiatra, “realizam-se omo fisionomia de uma palavra, como proximidade ou distancia de de- 58 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista veres € planos, ou seja, de objetos” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 60), em suma, imediatamente no compartilhar das coisas do mundo. Os con- ceitos psicoldgicos que tentam explicar a possibilidade de relagdo entre duas pessoas partem do pressuposto de que sio originalmente entidades separadas. A experiéncia pré-reflexiva ¢ contraria a essa separacdo, pois, as relagdes com outros sto de proximidade, intimidade ou distincia, sem- pre situadas num acontecimento no mundo. O psiquiatra recorre a uma imagem do filésofo francés Jean Paul Sartre para ilustrar i ‘Um homem esté olhando pelo buraco da fechadura coisas que nao the ddizem respeito. Esta absorto pelo que vé. E como se tivesse penetrado ‘no aposento pelo buraco da fechadura (O fenomenologista inclina-se a tomar esta frase quase literalmente). Deixou seu corpo fora da porta; ¢ [por isso que ni percebe como esta ficando cansado. Ouve passos que se aproximam. Ent acontecem diversas coisas. Mesmo antes de se erguer, desaparece 0 quarto que se acha do outro lado da porta, o quar- ‘to em que ele se encontrava em espirito. Volta para fora da fechadure Aquilo que estava tio perto, tio perto que o fizera esquecer do proprio corpo, toma-se — em decorréncia da presenca de outra pessoa ~ um Iu- gar muito e muito afastado. A distincia persiste, quando percebe que a outra pessoa desaprova o seu comportamento. (Van Den Berg, 1955/ 1994, p. $9) Nesse exemplo reaparece a questo do entrelagamento corpéreo com 0 mundo, assim como 0 modo como se relacionam duas pessoas. O olhar de reprovagio do outro — compreendido imediatamente por aquele que olha pelo buraco da fechadura - distancia-o daquilo que olhava. Ao mesmo tempo, a reprovagdo mostra que nao compartilham o mesmo ‘mundo, os mesmos significados; aquilo que suscita a curiosidade de um & considerado errado pelo outro. Assim, a relagdo entre eles se da nas © pelas coisas no mundo. A relago com 0 outro também modula a relagao com meu corpo, aproximando-me ou distanciando-me. Se me aproximo, © corpo que sou envolve-se no mundo compartilhado, Se me afasto, apa- rece para mim 0 corpo que tenho, Em nenhuma situagdo, sublinha van den Berg (1955/1994), a relagdo se dé por ‘transferéncia’, No caso do paciente do livro, a desconfianga que sente das pessoas e suas feigies que 0 amedrontam revelam que seu contato com os semethantes esté perturbado. ‘Augras (1986) também da grande énfase ao outro em seu estudo fenomenolégico. Recorrendo constantemente @ Ser tempo, ela mostra que na fenomenologia existencial eu e outro nao se distinguem to clara- Psicologia Fenomenolégica Existenial 39 ‘mente quanto as nogdes comuns de individualidade e subjetividade dao a entender, A existéncia é sempre compartilhada. E coexisténcia, Com isso, esta abordagem tora supérflua qualquer tentativa de oposigdo ou com- plementaridade entre 0 sujeito € os outros. A primeira € mais imediata implicagdo dessa ideia fenomenoldgica existencial & que conhecer-se (si ‘mesmo) & conhecer 0s outros que (se) &: “A compreensio de si fundamen- ta-se no reconhecimento da coexisténcia, ¢ a0 mesmo tempo constitui-se ‘como ponto de partida para a compreensio do outro” (Augras, 1986, p. 56) Augras (1986) altema, como sindnimos, o termo ‘coexisténcia’, que ela encontra em Heidegger, e ‘intersubjetividade’, presente na feno- ‘menologia de Husserl, dando a entender que ambos se referem ao mesmo fenémeno. Essa semelhanga permanece comigo até hoje, como se Husser! ¢ Heidegger falassem do mesmo fenémeno com termos diferentes. Seré mesmo assim? Augras levanta esta questdo para refletir sobre a possibili- dade do conhecimento. A coexisténcia (intersubjetividade) é seu funda- mento; a verdade cientifica nao ¢ fruto da investigagao objetiva (como nas ciéncias naturais que eu aprendi no colegial), mas da intersubjetivida- de. E nfo s6 as ciéncias seriam assim, pois toda a realidade € uma cons- frugo compartilhada. A psicdloga diz que o mundo é uma Ln] construgdo reciproca de signiticagoes, mediante a qual cada ind- viduo recebe dos demais as chaves para a compreensio do mundo, e pode entilo devolver a sua propria elaboracdo, que por seu tuo passa 1 ser incorporada no conjunto dos sistemas anteriores a ele. (Augras, 1986, p. 21) Subjetividade € intersubjetividade. Existéncia é coexisténcia. Essas chaves de interpretagdo do mundo so as que o apresentam aos demais homens. A linguagem figura como constitutiva da existéncia; ela ¢ reveladora do mundo tal como aparece para alguém. Filosofias, mitos, teorias cientificas e poemas so todos modos possiveis de revelagio de mundo, que se constréi na relagdo entre os homens. Seria a Psicologia somente mais um modo? Fico ainda mais fascinado e interessado pela reflexio de Augras ‘sobre a questio da ‘identidade’ na fenomenologia existencial. Eu ingresso ha faculdade esperando descobrir métodos de investigacdo © determinagao da ‘personalidade’. Mas # fenomenologia vai em ditegao oposta a isso. Ao invés da ‘identidade’, a ‘estranheza’ & mais propria do ser humano. Para ‘Angras, a existéncia humana se estrutura a partir de uma estranheza pri mordial, que se desdobra em dois aspectos: alteridade e temporalidade, Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Ha uma estranheza fundamental por ser constituido pela alteri- dade, pois 0 modo de ser especifico de cada pessoa brota das trocas com 08 demais (intersubjetividade) e a delimitagdo da identidade s6 aparece & luz da diferenga. Quando comego a colaborar no LEFE, entro em contato com a fabula de Arlequim, narrada por Serres (1993). Nessa fabula, 0 imperador Arlequim retorma de uma inspegdo nas terras lunares. Convo- cado a contar como sto as coisas lé, fala que so como aqui. Suas expe- rigncias no estrangeio, entretanto, colorem seu manto e tatuam sua pele. Para ele, tudo segue sendo como sempre foi. Sao seus espectadores que Ihe apontam suas experiéncias. Arlequim exemplifica a emergéncia da identidade na relagdo com a alteridade de maneira bastante clara; o impe- rador s6 reconhece que suas experiéncias em terra lunar foram diferentes das experiéncias cotidianas de seus conterrineos porque estes Ihe apon- tam ¢ acusam as cores e texturas nas vestes e nas tatuagens. Vestes ¢ tatua- gens sto as tradigées que habitamos. Meu estrangeirismo no LEFE é um chamado a confrontar minha tradigao na psicologia fenomenol6gica exis- tencial, assim como minha pritica docente. segundo aspecto da estranheza indicada por Augras tem a ver com a temporalidade, que € outro tema que aparece em ambos os livros, relacionando imediatamente, para mim, a Psicologia Fenomenolégica ¢ & questo do tempo. Fenomenologia e temporalidade Enquanto Augras (1986) reflete sobre essas questdes de maneira teérica, Van den Berg considera-as na vivéncia do paciente. A sua expla- nnagio fenomenolégica considera o aspecto temporal do sofrimento rela- tado. Mostra que 0 ser humano é histérico que seu passado nunca fica registrado tal como aconteceu. O passado sempre reaparece A luz do pre- sente; “O passado que tem significdncia é o passado presente” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 70), é como aparece neste momento da vida o que ja aconteceu, Assim, a fenomenologia rompe com a linearidade cronol6gica passado-presente-futuro. Para mostrar a dimensao futural, recorre ao sim- ples exemplo de sair para fazer compras: as compras sio uma tarefa — algo que ainda no aconteceu, que pode acontecer, que esta por vir — que ‘motiva a saida da pessoa. Para fundamentar estas ideias 0 psiquiatra men- ciona a anélise da temporalidade conduzida por Heidegger em Ser e tempo. Explica: Psicologia Fenomenolégica Existential 61 © futuro & 0 que esté por vir, como est vindo a0 nosso encontro ago- 1a; sublinhando-se agora e vindo. O futuro esti vindo em nossa dire- fo; & Zu-kunf,a-venir. Essas palavras expressam movimento. Pen- sando no faturo, o tempo corre para nos encontrar e nds estamos ai, no tempo que est vindo para nés. (Van Den Berg, 1955/1994, p. 78) Desse modo, também 0 passado, o j acontecido, advém do fu- turo presentificando-se na situagdo presente. Os motivos modulam o pas- sado se fazendo presente. Esta re-petigdo do livro de van den Berg (presente) acontece & Juz do meu projeto (futuro, porvir, ainda nfo acontecido) de compreender as possibilidades abertas pela ontologia heideggeriana para a Psicologia, que me motiva a olhar para a compreensio da Fenomenologia de que ja disponho (pasado). A leitura atual ¢ uma revisitago, que indica que reler © livro como o lino primeiro semestre do curso de Psicologia & impossivel. Ao mesmo tempo, releio-o encontrando aspectos fenomenol6 gicos que imediatamente me remetem a outros autores e a situagBes clini- eas. Como o sentido deste reencontro com van den Berg & perscrutar 0 que pode ter ficado para mim como definigao de uma psicologia fenome- nol6gica existencial, estas remissdes e associagdes nao cabem; 0 motivo modula as possibilidades. Isso signifiva yue uudifivaydes nv futuro tra zem imediatamente consigo modificagdes no passado e vice-versa. Para van den Berg, é isso que possibilita a psicoterapia: “O paciente modifica seu passado e, a0 fazer isso, dé ao seu futuro (de onde o seu passado se apresenta a cle) uma nova conformagdo” (1955/1994, p. 85). Sera uma especificidade da psicoterapia? Por que o psiquiatra articula a fenomeno- logia com esta possibilidade do psicélogo apenas? Serd porque sua tra Glo conhece apenas a psicoterapia como possibilidade de pritica? Acredito que a passagem sobre a temporalidade no livro O Pa- ciente Psiquidtrico tenha sido a primeira vez em que ouvi falar 0 nome do filésofo Martin Heidegger, indicado numa nota de rodapé. Ser sua con- tribuigdo para a Psicologia somente uma nova concep¢do de temporalida- de? Esta questio também aparece no livro de Augras (1986) como 0 se- gundo aspecto da estranheza originéria do existir. Ela se fundamenta em Heidegger e Binswanger para afirmar que: [..1 0 futuro no é apenas experimentado como ‘tempo do projeto do hhomem’, mas se entremeia com a vivéncia do presente e do passado, ‘Nesta ordem de ideias, o passado nfo & imutivel, pois o significado de ‘um acontecimento se transforma juntamente com a hist6ria do indivi- ‘duo, O futuro também atua, enquanto esperanga ou receio. Nesta pers- a Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista pectiva, nio é o pasado que determina o presente, nem este o futuro Ao contririo, & 0 sentido da trajetéria do ser que modifica a significa 0 do passado e do presente. (Augras, 1986, p. 31) A autora refere-se & temporalidade humana descrita por Hei- degger, para a qual existir é ser projeto. Existéncia é possibilidade. Entre- tanto, esse projeto aponta para o limite extremo do existir, que € a morte, a alteridade da vida, reveladora do Nada. Com isso conclui que a morte € © Nada so alteridade imanente constitutiva da existéncia. A estranheza corresponde o espanto, recolhido no despertar da filosofia e enunciado por Heidegger no ensaio “O Que E Metafisica” como “Por que existe afinal o ente e néo antes o Nada?” (Heidegger, 1929/2008, p. 133). Tam- bem Jaspers figura para a autora como revelador dessa conflituosa condi- go humana, indicando as situagdes-limite — “a morte, 0 sofrimento, a culpa, a loucura” (Augras, 1986, p. 23) ~ como manifestagdes do fluxo constante de criagdo ¢ destruigao existencial. Ela conclui que a compreen- sio do humano fundamentada na fenomenologia existencial deve consi- derar a angiistia ¢ 0 Nada como origindrios, ateridade e identidade como copertencentes, E eu, ao ingressar no curso de Psicologia, espero aprender como vinientus do passado ~ chamados no senso comum de ‘traumas* ~ determinam os comportamentos atuais e como devem ser tratados, pos- sibilitando que as pessoas se libertem do passado! Como ser enredado em tradigdo determina nossos modos de pensar e ser! Trago para a Psicologia a interpretagdo cronolégica vulgar do tempo, assim como o reducionismo mecanicista oriundo das ciéncias naturais. ‘A questio do tempo também me gera estranhamento. Antes de ‘estudar psicologia eu imaginava que o tempo nao seria uma questio ‘psico- légica’. Passo todo o colegial estudando o tempo como uma sequéncia line- ar de agoras, que se estende infinitamente para tris (passado) e para frente (futuro). Lembro de gostar bastante de calcular o ‘delta T” nas aulas de fsi ca... Mas a aula de Psicologia Fenomenolégica apresenta como ceme das questdes do homem o tempo, diferentemente das outras abordagens psico- ogicas que nesse primeiro semestre me so apresentadas. Comega a se des- cortinar que para o ser humano o futuro “bana todo o horizonte existencial com uma luz equivoca” (Augras, 1986, p. 32), pois nfo é dado; é sonhado, esperado, temido, mas sempre que se aproxima dele, recua para além, Embora soe estranho, isso faz muito sentido, Eu estou come- ando uma faculdade ja ligado a furura conclustio do curso ¢ inicio da Vida profissional. Eu entro na faculdade ja envolvido com a saida cinco 6 Psicologia Fenomenol anos depois. Eu comeco a cursar Psicologia para ser psicélogo, sem ter muito claro o que esse profissional faz ou pode. Seguindo na questio da temporalidade, 0 raciocinio de Van den Berg desconstréi o conceito psicanalitico de mitificagio do passado, isto 4, a recordacdo de eventos de um modo diferente de como ‘realmente’ aconteceram. Afastando a ideia de que a mutabilidade do passado seja neurética, 0 fenomendlogo a apresenta como condigdo existencial. Pro- le, entio, que a diferenga entre um paciente neurético e um no neursti- 0 refere-se ao modo como o passado e o futuro se apresentam, Para uma pessoa saudavel, o passado é a histéria que fornece as condigdes da situa- 0 presente, articulada pelo futuro (projetos, motivos etc.). Para o paciente neurdtico, o passado € evitado, amedrontador. O futuro € incerto, temeroso (Van den Berg, 1955/1994). Fenomenologia como atitude de nao julgamento 0s conceitos psicanaliticos projegao, conversio, transferéncia & mitificagao apoiam-se em hipdteses sobre o funcionamento psiquico, que, or sua vez, dependem de cuir hipOtese para se susteutaren. v inconsciet= te. A medida que a experiéncia pré-reflexiva de onde partem esses con- ceitos aparece para a fenomendlogo, eles tornam-se prescindiveis. O ser humano nao ‘projeta’, pois esta intimamente entrelagado em experiéncias significativas com 0s objetos que encontra, influenciando-se e revelando- “se mutuamente, Nao ‘converte’, pois a experiéncia humana & sempre corpérea; 0s significados do que é vivenciado no mundo influenciam e Fevelam como corporeamente alguém esta. Quando estou imerso numa situagdo, meu corpo esté tdo intimamente ligado a ela que ele desaparece. Os pacientes nfo ‘transferem’, pois a relagdo entre as pessoas nfo é de individuos isolados que etiquetam os outros com seus significados e sen- timentos solipsistas; as relagdes sto o compartilhar as coisas do mundo, ‘aproximando-se ou distanciando-se uns dos outros. Por fim, nfo ‘mitifica’ ois nfo hé um registro tinico do passado. O passado advém do futuro, Aparecendo a luz dos projetos. Ele é sempre mutvel, adquirindo aspectos daquele que a ele se reporta, ‘A Psicologia Fenomenolégica aparece entio como uma atitu- de" de observacao dos fenémenos tal como so experienciados pré-refle- ‘Numa outra passagem, van den Berg (1955/1994) define-a como “Fenomenologia ‘um método, poderiamos mesmo dizer, uma aitude. O seu método eonstitui um modo “4 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Psicologia Fenomenolégica Existencal 65 xivamente, isto é, antes que teorias sobre a relacdo sujeito-objeto, o espa- 90, 0 corpo, as relagdes inter-humanas e o tempo interfiram no entrelaca- mento com o mundo. O psiquiatra sugere que os adultos, a medida que vio se tomando teéricos, perdem o acesso irrefletido, niio mediado por explicagdes psicolégicas, & experiéncia vivida, Por isso ele é elogioso dos pintores, dos poetas e da crianga: sto “fenomenologistas natos” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 67) Ao longo do livro me aparece também uma critica importante a0 aspecto valorativo da Psiquiatria e da Psicologia. Discutindo com a psiquiatria de sua época, Van den Berg (1955/1994) mostra a moral en- ttincheirada na taxonomia diagnéstica psiquidtrica e na psicandlise"”. “O Julgamento dos parentes e amigos implica geralmente uma condenacko. .] O paciente é um amontoado de equivocos e de erros: ele projetou, coisa que a gente sadia s6 faz excepcionalmente, e deveria mesmo evitar” (p. 49). O esforgo fenomenoldgico de resgatar a experiéncia humana tal como acontece cotidianamente revela-se um antidoto para este compor- tamento moral. Consequentemente, coloca o psicélogo fenomenolégico no lugar de alguém que ndo julga o paciente. A Psicologia Fenomenolé- gica no € corretiva de comportamentos desajustados ou equivocados. Acredito que esta ideia tenha fortemente me impactado, pois perscbo-me até hoje esforgando-me para no cai em julgamentos dos comportamen- tos daqueles que me procuram, por mais diferentes dos meus que eles possam ser. Também cobro os alunos ¢ supervisionandos para que se conhegam, pois assim conseguirdo reconhecer quando a experiéncia do outro convoca repreensées, criticas ¢ julgamentos. Pego-Ihes que abram mio das explicagdes e por qués que aprenderam até entdo no curso de Psicologia para tentarem se aproximar do que se mostra. Em suma, aparecem para mim alguns dos pressupostos atuais que caracterizam meu ser-psicélogo fenomenolégico existencial: a com- preensio da existéncia humana, 0 cuidado com as teorizagdes eo contra- ponto a psicanilise. Vejo também que a psicoterapia se apresenta como de observagdo, nova na ciénia, novo, por exemplo, em psicologia, mas nada novo na vida dria, pelo contri, 0 fenomenologista quer fazer as suas observagdes da mes- ‘ma maneira como toda a gente geralmente faz" (p. 67) Esta concepgio chama a aten¢do, pois ela é tema de Michel Foucault (sob forte i ‘luéncia da fenomenologia de Heidegger) em seu primeiro livre, Doenga Mental e Pricologia (1954/1975), O livro de Van den Berg ¢ publicado no mesmo ano. Nele ‘io hi nenhuma referéocia& obra de Foucault © filésofo fancés retoma as reflexdes sobre o cariter moral e excludente da psiquiatria em Histéria da Loucura (Foucault, 1961/2008). pritica psicolégica na qual a fenomenologia existencial aparece. Mas a psicoterapia no € a iinica possibilidade do psicdlogo. Van den Berg é médico psiquiatra e trata seus pacientes psicoterapeuticamente. Augras explora as possibilidades abertas pela fenomenologia no campo do psico- diagnéstico, com énfase no uso de testes projetivos (que recebem forte influéncia psicanalitica). Meus professores na PUC-SP sao psicoterapeu- tas © apresentam a fenomenologia existencial entrelagada sua pritica, ‘exemplificando-a com situages desse contexto, Eles também defendem a importincia de a fenomenologia ser ensinada aos alunos apés ja conhece- rem outras abordagens devido ao cardter desconstrutivo dos cdnones psi- colégicos (Celidonio, 2007). E nesse contexto que se desvela para mim a fenomenologia existencial, & dessa histéria que me tomo coautor. Assu- ‘mo 0s pontos cegos dos meus antecessores tanto quanto exploro as possi- bilidades que me abrem. Também van den Berg ¢ Augras habitam tradigdes. Nao sto ctiadores ex nihilo da psicologia fenomenolégica existencial. Para me aproximar do que compreendo tacitamente que pode um psicélogo feno- menolégico existencial ndo basta retroceder apenas uma geragao. E ne- } cessério investigar como esses autores consideram essa Psicologia, assim ‘como quem so 0s autores que os influenciam. Ou seja, o que pode, para les, um psicdlogo fenomenolégico existencial? TIr Dois Caminhos da Psicologia Fenomenoldgica Existencial Pergunto: de onde vem esta compreensio de van den Berg e de | Augras? Isto é, quem so os seus interlocutores? Quais sio 0s teéricos que 0s fundamentam? Ou terdo eles chegado a estas compreensdes exclu- sivamente a partir da experiéncia clinica? Mais especificamente, seguindo 9 fio condutor desta pesquisa: ha algo especifica da ontalogia heideggeriana no “esboro de psicopatologia fenomenolégica” de van den Berg? Seré } que a perspectiva oferecida por este psiquiatra & uma possibilidade aberta | pela ontologia heideggeriana? E o trabalho de Augras, que menciona | j f tantos fildsofos, mas também o antropélogo Mircea Eliade, o epistemélogo 4 Gaston Bachelard, o teste de Rorscharch e a psicologia de Carl Jung, 0 que terd de fenomenolégico? O capitulo de encerramento do livro de van den Berg indica al- govasresposias pera exes perp. No émbito a pigusria, Ludwig jinswanger é apresentado como “o pai da psicopatologia fenomenolégi- ta” (Van den Berg, 1955/1994, p. 105). Karl Jaspers ¢ apresentado como ‘0 primeiro psiquiatra a seguir uma metodologia fenomenologica, estrita- | ‘mente descritiva, para compreender a esquizofrenia em artigo de 1913, e, | Jogo em seguida, aplicada a toda a psicopatologia na obra Psicopatologia | Geral. Augras (1986, p. 35) da a Eugéne Minkowski “os louros da desco- | ‘berta do déficit temporal como fenémeno primério de certas psicoses”. No campo filoséfico, van den Berg menciona primeio a distingao | ‘entre ciéncias explicativas e ciéncias descritivas proposta por Wilhelm Dilthey em Ideias sobre uma psicologia descritiva e analitica (1892! 2012). Cabe ao psicdlogo descrever o que vé, pois a psicologia é uma Citncia do Espirito (Cikt ia Humana). O psiquiatra sugere também a 6 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Ieitura dos filésofos Blaise Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Scheler, Bergson, J.G. Herder e Maine de Biran para compreender a necessidade de uma metodologia especifica para as ciéncias do homem (Van Den Berg, 1955/1994). As preocupagdes filoséficas de Dilthey ligam-se a episte- mologia e historia; mais especificamente, as ciéncias do espirito (Geistwissenschafien) ¢ as visdes de mundo (Weltanschauungen). Ele investiga ‘vida’ (Leib) como objeto e, a0 mesmo tempo, como fundamen- to das cincias do espirito ou ‘ciéncias humanas’. A certeza possivel a estas é de cardter diverso daquela possivel as ciéncias naturais, que ope- ram sob 0 modelo hipotético para a elaborago de leis. Dilthey defende que a imediatidade da vivencia (Erlebnis) possui uma seguranga que pode servir de fundamento as ciéncias humanas (Dilthey, 1892/2012). Vida (Leben & 0 modo como Dilthey se refere ao que é anterior e fundante do conhecimento teérico. Com isso, a contribuigio desse pensador advindo da teologia & conhecida como ‘Filosofia da Vida’ (Lebensphilosophie). A vida & um Ambito pré-tedrico que se expressa na conexo de variadas vivencias (Erlebnis). A imediatidade das vivéncias exclui delas a possibilidade de divida, torando-as solo firme para as ciéncias do espirito. Assim, ele baseia suas investigagdes na afetividade, na inteligéncia e na vontade, que s40 os modos do ser humano relaclo- nar-se com o mundo. Dessa forma, Dilthey desloca o foco da questio epistemolégica do objeto para a vida humana. E a vivéneia que deve ser conhecida, pois nela a realidade é dada imediatamente. E pelos signifi- cados das vivéncias que a vida se exprime. Por este motivo, Dilthey figura na histéria do pensamento ocidental como responsdvel pela dis- tingdo entre ciéncias explicativas e compreensivas; aquelas sto as Natu- rais, estas, as Humanas, A Psicologia fenomenolégica existencial se alinha com as Cién- ccias Humanas, Mas tem muitos autores, provenientes de contextos filosé- ficos variados. Esti marcada pela diversidade e por contradigdes. Sera essa fusio necessaria? Mais do que uma fusio, no seria uma confusio? E possivel reunir autores tio diversos num corpus ‘teérico’ coerente? A ontologia heideggeriana fornece alguma especificidade neste campo? Para tentar responder estas perguntas, vejo a necessidade de re- construir brevemente a historia desta ‘abordagem’ na psicologia e tentar sistematizar minimamente os autores e suas contribuigdes. Neste esforgo ‘ganharé contomos uma tradigfio na qual estou imerso € que por isso tomo como clara ¢ coerente, Psicologia Fenomenolégica Existencial 6 O desenvolvimento da ps patologia fenomenolégica A fenomenologia de Edmund Husserl aparece como referéncia na psicologia fenomenolégica pela pena de Binswanger, que retoma 0 livro Investigacdes Légicas, de Husserl, publicado em 1900-1901, em artigo de 1923 intitulado “Sobre a Fenomenologia”. Van den Berg atribui fa Husserl a distingdo entre ‘percepgo objetiva’, a qual corresponde a investigagto reflexiva, e ‘percepgdo categorial’, que nfo ve hiato entre homem e mundo, sendo, portanto, a investigacdo pré-reflexiva a que con- ceme ao psicdlogo fenomenoldgico. F nesta linha de pensamento que van den Berg se inscreve, enfatizando que ha uma diferenga importante entre ‘a fenomenologia de Jaspers, inspirada em Dilthey, e a de Binswanger, inspirada (até 1927) em Husserl. A psicologia fenomenolégica husserlia- tna volta-se para a elucidagdo da experiéncia pré-reflexiva do homem no mundo. Ela é ‘para fora’, por assim dizer, enquanto a psicologia fenome- nolégica de Jaspers ¢ introspectiva (Van Den Berg, 1955/1994). Van den Berg comenta que publicago do artigo de Binswan- ger em 1923 gera forte repercussio no meio psiquidtrico, estimulando Pesquisas dos psiquiatras Viktor Emyl Von Gebsattel e Erwin Straus sobre a vivéncia do espaco na psicopatologia, e F. Fisher, sobre a esqui- [ofrenia. Dez anos mais tarde, Binswanger revoluciona novamente a psi- quiatria fenomenologica com a publicagdo de “Sobre a Fuga de Ideias”, ‘em 1933, sob influéncia de Ser e tempo. Sobre Heidegger, Van den Berg firma que é {..] um discipulo de Husserl, que abriu o caminho para uma nova e ori- ginal descricao da existéncia humana em si, Trata-se de M. Heidegger: Sein und Zeit (Halle, 1927, p. 438), lio que provocou completa mu danga no mundo do pensamento da Furopa Ocidental. (Van Den Berg, 1955/1994, p. 110) Assim, o psiquiatra holandés prope uma divisto em trés fases na ia da psiquiatria fenomenolégica, marcadas por diferentes reflexdes bre a natureza da existéncia humana. A primeira fase vai de 1913 a 1923 (6 caracterizada pela psicopatologia fenomenolégica de Karl Jaspers, sob Iuencia de Dilthey. A segunda fase vai de 1923 a 1933 e é marcada Ia obra de Binswanger, sob influéncia da fenomenologia de Husserl. linswanger também € 0 psicopatologista da terceira fase, que se inicia 1933, agora sob influéncia da fenomenologia de Martin Heidegger. ele, 0s periodos IIe IIL, respectivamente husserliano e heideggeriano, i Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista compartilham 0 mesmo significado do termo ‘fenomenologia’, embora se diferenciem pela concepgio de existéncia (Van Den Berg, 1955/1994, p. 110). Portanto, Dilthey, Husser! ¢ Heidegger ndo compartilham a mesma ‘compreensio da ‘natureza’ humana. Como podem ser agrupados como teéricos da mesma Psicologia fenomenolégica existencial? Divisio semelhante é proposta por May (1958) e Spiegelberg (1972). May divide a psicopatologia fenomenolégica entre uma fase fe- nomenolégica e uma fase existencial. A primeira fase ¢ iniciada pela apropriagdo da fenomenologia de Husserl, que, num esforgo metodologi- co de conhecimento verdadeiro livre de pressupostos, da apoio a0 movi- mento de investigagao da vivencia do paciente psiquiatrico a partir de sua propria descrigdo. A suspensio fenomenolégica (epoché) € 0 passo que permite a descrigdo dos estados de consciéncia na sua forma pura, tal ‘como experimentados. Esse método é assumido por Jaspers, aluno de Husserl e contemporiineo de Heidegger, na elaboragdo de uma fenomeno- logia descritiva das vivencias psicopatol6gicas. Em 1910, Jaspers publica um artigo sobre um caso de paranoia em que apresenta aspectos biogrificos do paciente e descrigdes do mes- ‘mo sobre como se sente. Em 1913 publica Psicopatologia Geral, descre- vendo estruturas dos sintomas psicopatolégicos hauridos de relatos dos pacientes. Segundo Spiegelberg (1972, p. 96), “no ce pode negar que este texto se comprovou ser 0 evento decisivo no surgimento da psicopa- tologia fenomenolégica”, influenciando todos os psicopatologistas que © seguiram, May (1958) também aponta o francés Eugéne Minkowski como representativo desta fase, que é inspirada na fenomenologia husserliana e nna andlise do tempo vivido de Bergson. Este psiquiatra entra para hist6ria da psicopatologia fenomenolégica em 1922, apresentando na 63* sessio da Sociedade Suiga de Psiquiatria de Zurique um caso de uma “melanco- lia esquizofrénica” a partir da perturbagao da vivéncia do tempo. Trata-se de um relato de uma experiéncia vivida no hospital psiquidtrico com um paciente para quem os dias seguem-se uns a0s outros uniformes, monéto- nos, sem conexo um com outro, 0 que leva Minkowski a concluir que 0 futuro na patologia esta bloqueado pela certeza de um evento terrivel € destrutivo. Todo mundo pode vivenciar o futuro assim; ¢ o que ocorre em momentos de desespero, por exemplo, mas logo a vida leva para fora dese modo, abrindo novamente 0 futuro. Nao no caso deste paciente; suas experigncias nfo compéem uma histéria. Concomitantemente, os outros se tomam todos um mesmo outro, indiferenciados; todos the ge- ram sofrimento. A monotonia e uniformidade temporal repercutem na variedade de coisas e pessoas, que também se toruam unificadas. Tudo se Psicologia Fenomenolégica Existencal 7m mostra para ele somente como ameaga, como fonte de softimento. Os ‘objetos sto todos iguais: instrumentos de tortura, decomponiveis em par- tes ad infinitum'* (Minkowski, 1959). ‘A segunda fase é caracterizada pela obra de Binswanger, que assume a descrigio da existéncia humana realizada por Heidegger em Ser € tempo para compreender a esquizofrenia. ‘Além da divisiio em fases, van den Berg propde uma diferenga radical entre a psicologia fenomenolégica na Europa ¢ nos Estados Uni- dos: “a fenomenologia norte-americana é, realmente, de outra natureza, que a europeia: menos filos6fica e mais sociopsicolégica em suas aplica- des” (Van Den Berg, 1955/1994, p. 115). Esta ideia me salta a vista, ois, se a li quando era estudante de psicologia, ela ndio me marcou. Pelo contrario, € sé 4 luz da tentativa de compreender as possibilidades da ontologia heideggeriana na psicologia que comego a ponderar que, no Brasil, fui apresentado a ambas as vertentes como se fossem uma sé. Mesmo no estudo de caso do livro O Paciente Psiquidtrico no sio apon- ‘tadas diferencas entre as fenomenologias de Husserl, Heidegger e Sartre, pois o psiquiatra recorre a todas para compor sua anélise. E na revistio ibliografica que estas possiveis diferengas sto apontadas. Na PUC-SP entro em contato com a psicologia fenomenolé- fica pelas obras mencionadas e através de livros de Rollo May, psicd- Togo norteamericano responsével pela introdugao da psicologia exis- tencial nos EUA. Na UNIP, a psicologia fenomenoldgica existencial apresentada como desdobramento da psicologia humanista americana. Hé uma diferenca entre as vertentes europeia ¢ a norte-americana da sicologia fenomenolégica, que até o momento ndo aparecia claramen- para mim. Por que ser4? Haverd diferencas significativas? Torna-se ycessirio, a fim de conhecer as tradig&es desta psicologia, remontar es dois trajetos. A historia da psicologia fenomenoldgica norteamericana conta ym outros nomes, muitos dos quais desconhecem a fenomenologia eu- ia. Van den Berg indica o trabalho do fildsofo George Herbert Mead. 1863-1931), da neofreudiana alema radicada nos EUA Karen Horney Spiogelberg chama 2 atenco para 0 fato de que, na obra de Minkowski, Husser seja raramente mencionado, Para 0 psicopatoloyista francés, o grande fenomendlogo seria, Max Scheler. Heidegger também nfo é mencionado; quando 0 & aparece apenas co- ‘mo influéncia no pensamento de Binswanger. A principal influgacia no pensamento de Minkowski é Henri Bergson, 0 historiador da fenomenologia conclu: “Isto sugere (que Minkowski no é um fenomendlogo em nenhum sentido téenico. Sua alianga Principal & com o fendmeno da experiéncia vivida, que ele tenta rastrear com uma sensitividade desperta™ Spiegelberg, 1972, p. 236) 2 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista (1885-1952) e do psiquiatra novaiorquino Harry Stack Sullivan (1892- 1949), O interesse pela psicopatologia ¢ pela filosofia europeia cresce & ‘medida que os autores migram para 0s Estados Unidos no final da década de 1930, 0 que ocasiona o surgimento de alguns periédicos voltados para ‘ assunto. Considerando a ontologia heideggeriana na psicologia feno- menolégica existencial, vejo que Ser e tempo figura como referencia em O Paciente Psiquidtrico, mas o autor dispde de um leque de outras fe- nomenologias cujas diferengas ele reconhece, mas ndo explicita. Enfim, na tradigdo que acolhi e da qual van den Berg e Augras slo porta-vozes, a psicologia fenomenol6gica existencial acontece no contexto psiquid- trico, como um modo de compreender os fenémenos psicopatol6gicos, em oposigio a psicanalise e como fundamentagdo de uma psicoterapia. Enquanto a psiquiatria do comego do século XX é organicista e psicana- litica, as fenomenologias de Husserl e Heidegger chegam como contra- ponte. Os psiquiatras europeus ndo se opem 20 Behaviorismo, como acontece nos EUA, pois essa ‘abordagem’ psicolégica nem existia na Europa. Uma tentativa de sistematizago das psicologias fenomenolégicas e existenciais Embora haja muita bibliografia que tematize psicologias feno- menolégicas existenciais, muito pouco se escreveu para sistematizar ¢ diferenciar as diversas abordagens que se apresentam usando os termos “fenomenoldgica’, ‘existencial’ ou ambos. Artigos de Carvalho Teixeira (2006) e Giovanetti (2012) fomecem duas sistematizagdes que mostram mais claramente a existéncia de dois caminhos na psicologia fenomeno- légica existencial: 0 norte-americano e o europeu. As referidas sistemati- zagées preparam o caminho para a anilise de algumas das principais abordagens reconhecidas como fenomenolégicas © existenciais, sob 0 ponto de vista da ontologia’”, de sua historia de desenvolvimento ¢ por sua concepedc epistemolégica. Ao longo deste capitulo, recorro também ‘a outros autores que auxiliam a compreensio destas varias psicologias, ‘como a histéria da fenomenologia na psicologia norte-americana de Misiak Giovanerti (2012) fala de ‘antropologia filosofiea’, isto é, concepglo de homem, a0 inves de ontologia. A meu ver, ontologi étermo mais abrangent refererindo-se @sn- ‘opologia e epistemologia conjuniamente. Psicologia Fenomenologica Existencial B ¢ Sexton (1973), artigos de Amatuzzi (2009), Forghieri (1993), Holanda e Freitas (2011) e Figueiredo (1991) Muitos desses trabalhos apresentam como linhas gerais do que seria uma psicologia fenomenolégica e/ou existencial que o pensamento de Huser! 6a principal referéncia, Holanda e Freitas (2011) buscam uma compreensio do que seria a psicologia tal como pensada por Husserl para, em seguida, indicar como a fenomenologia influenciou vérias abor- dagens psicologicas. Afirmam que para esse fil6sofo a fenomenologia ¢ fundamento para a psicologia empirica”’. Quanto as psicologias influen- Giadas, apontam a Psicologia da Gestalt, as psicopatologias de Jaspers, Binswanger, Straus, Von Gebsattel, Minkowski e os movimentos da An- tipsiquiatria (Laing) e da Psiquiatria Anti-Institucional (Basaglia) ¢ a Paicologia Humanista, esta iiltima englobando perspectivas “amplas ¢ vvariadas (..) que divergem do rigor e das preocupagdes fundamentais Inusserlianas, entretanto, slo herdeiras da fenomenologia e do existen: iso” (p. 111). Nesse artigo, o nome de Heidegger aparece apenas uma vez, como sucessor de Husserl na Universidade de Freiburg em 1928, Portan- {t0, nfo se encontra referéncia alguma a possibilidades abertas pela onto- gia heidegzeriana para a psicologia. Uma hipdtese para isso é que © {psic6iogo Holanda tem se dedicado a pesquisar a fenomenologia de Hus- ser] ¢ sua influéncia para a psicologia. Ele tem defendido que Husser! é jum “fildsofo da existéncia tanto quanto o foram Kierkegaard, Nietzsche, jartre, Merleau-Ponty ou Heidegger...” (Holanda, 2009, p. 88). Seu es- € motivado pela tese de que 0 pensamento fenomenolégico chega 20 Brasil jé associado ao “pensamento heideggeriano, que guarda signifi- tivas distineGes com o pensamento husserliano” (Holanda, 2009, p. 91), to é,atravessado por uma tradi¢io heideggeriana que interpreta Husseri 30 fundamentalmente diferente de Heidegger. Seré que minha pergunta pelas possiblidades abertas pela onto- gia heideggeriana ndo esta imersa nessa mesma tradigéo que Holanda destruir? Segundo ele, a falta de conhecimento da obra husserliana bui para que seu pensamento seja incompreendido, mal interpretado distorcido. O lugar frequente dessas distorgdes ¢ 0 conjunto de psicolo- que se dizem fenomenolégicas. Holanda & Freitas salientam que ha ita confusdo nesse contexto epistemolégico. "No referdo artigo citam duas vezes a mesma passagem do verbete que Huser! escre- yeu para a Encyclopedia Britamica: “A psicologia fenomenologica pretende ser 0 fundamento metdico sobre o qual se possa por principio erigt-se uma psicologia empiricacienificamenterigorosa" (Husserl apud Holanda & Freitas, 2011), Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Ha hoje, certamente, um problema no campo da psicologia quando se pensa nas relagdes possiveis entre a psicologia e a fenomenologia. ‘Com uma profusdo de teorias ¢ priticas que se denominam fenomeno- logicas, percebe-se a fragilidade com que a fenomenologia, © seu mé- todo vem sendo tomados. Por vezes, toma-se pouco clara a filiaga#o ou relagdo entre tais abordagens ¢ a proposta fenomenolégica. (Holanda & Freitas, 2011, p. 97) Os historiadores Misiak & Sexton (1973) divergem sobre a his- toria da Gestalt-terapia, Para eles, 2 Psicologia da Gestalt — importante base teérica da Gestalt-terapia (Perls, 1973/1988) ~ se desenvolve inde- pendentemente da fenomenologia, embora seus principais teéricos a co- nhegam. Kohler, por exemplo, distingue claramente seu pensamento do de Husserl. E somente na década de 1920 que gestaltistas americanos comesaram a fazer referéncias ae a buscar pontes com a fenomenologia de Husserl. Na minha formagio essa histéria nflo é apresentada assim. Pelo contrario, a Gestalt-terapia me € apresentada como uma perspectiva fenomenol6gica. Sob 0 nome de ‘Psicoterapia Existencial’ o psiquiatra portugués Carvatho Teixeira (2006) reime vérias abordagens psicolégicas que sur- ein influeneiadas pola fenomenologia e pelo existencialismo. Refere-se a fesse conjunto como um grupo heterogéneo, que compartilha a base “fe- nomenolégico-existencial” (p. 289). No primeiro nivel da categorizagio, divide esse conjunto em ‘psicoterapia experiencial’ (que ele também ‘chama ao longo do artigo de “Psicologia Humanista”), ¢ ‘psicoterapia existencial’. A divisio ¢ feita com base no objeto, no objetivo ¢ na pro- posta de cada abordagem. grupo das psicoterapias ‘experienciais’ retine a Terapia Cen- trada na Pessoa (Rogers), a Gestalt-terapia (Perls), Focusing (Gendlin) ¢ a ‘Analise Bioenergética. Sao abordagens que surgem e/ou florescem nos EUA. Segundo 0 autor, sio influenciadas pelo pensamento de Kierke- gaard, Buber e William James. Seu objeto é a dimensio atual da vivénci e tém por objetivo a autodescoberta e 0 autoconhecimento que levam ao crescimento pessoal. Jé as psicoterapias existenciais so influenciadas pelo pensa- mento de Husserl, Heidegger e Sartre tém como finalidade a “constru- ¢gdo mais auténtica e significativa da sua prépria existéncia” ¢ “a mudanga © autonomia pessoal” (Carvalho Teixeira, 2006, p. 289). O conceit de “existéncia’ & o eixo destas perspectivas psicol6gicas ¢ é construido com ‘base nas obras dos filésofos mencionados. “Autenticidade’ significa aqui assumir a propria existéncia na tensio da culpabilidade e da ansiedade Psicologia Fenomenolégica Existencial 15 consttutivas do existir. Inautenticidade, em contrapartida, é a negaci Iiberdade e da responsabilidade existenciais e. das limitagbes pean Vida. Para ele, esse conceito é “usado como sindnimo de aufo-decepedo por Heidegger e correspondendo a0 conceito de masfé de Sartre” (Carvalho Teixeira, 2006, p. 292). Sera isso mesmo? A predilegdo deste autor pela filosofia de Sartre pode influencié-lo a ler Heidegger através dele. Sio seis modalidades de psicoterapia existencial: a ali- sgn ie tp ice Dust cial-humanista norte-americana, a Psicoterapia existencial brtinica, Psi- oterapia existencial breve” e a Psicoterapia existencial sartreana. A Logoterapia & desenvolvida por Vi forte intluencin da lost de Max Scheler, da pscalice cccionn, to ppensamento religioso e da propria experiéncia como prisioneiro em cam- 1po de concentragdo. O termo Logoterapia esta ligado ao termo Jogos, que Sigifica aqui significado e sentda O objetivo desta erapia existencial é 0 ido tedescobriro sentido (logos) da vida, que pode desparecer em sinagoes A psicoterapia existencial briténica compreende - ton, O primeiro€ o ds teorizagao de Ronald Laing sobre a eaquiofenin psiquiatra escocés, frequentemente associado ao movimento de ant ‘psiquiatria, tundamenta sua teoria numa base heterogénea proveniente de seus estudos dos fildsofos Kierkegaard, Nietesche, Heidegger, Jaspers, [Husserl, Sartre e Marx, de psicandlise ¢ da psiquiatria de Harry Stack SBullivan. © segundo momento, mais recente, engloba as pesquisas da holandesa radicada no Reino Unido Emmy Van Deurzen-Smith, Emesto Spinelli, DuPlock e Cohn. Estes psicélogos recebem influéncia de Laing dos filésofos que o influenciaram, mas articulam suas pesquisas tame com o pensamento de Merleau-Ponty e Martin Buber e com a Da- analyse. Van Deurzen-Smith apresenta elementos mais sartteanos e 7 Como psicorerapins evisenciis reves Carvalho Ts poss as Brves Carvalho Tecra (206) indica a pr do rrte-anericano Bugental doe ngees Fede e Alison Suse hanammeadan ‘espectivaments, ma pscoterapinexsencia-humansienteameriana enact: i iene ttre eb compari » Sasa ved a to Carat Tei 2006) ‘ mencion uma propos de integra da Logoerapiacom a terapiacopitvo-coponamena, dado Sue amis objet a dexeoert de aver significado Para as situagSes vivenciadas pelos clientes. E uma proposta curiosa, da- Co's tia opntvocomportnenal¢ 2 concen de isenague de faa Logtraia so anagbies Em oto aig (199, p. 2000 pita por Ses ean «Lge ato ua short ries oe em fmensiotanscendntl e inaligade de arrays (al como fora A Masi) fcalzano eseniimente na dimen tas enges n o™ 16. Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista heideggerianos, enfatizando os dilemas ¢ paradoxos do existir, objetivan- do a experimentagio de modos diferentes ¢ mais flexiveis de ser através da descoberta dos valores mais essenciais A vida do cliente, enquanto a de Spinelli é mais marcadamente husserliana, recorrendo & epoché como método para auxiliar 0 paciente a descrever a sua vivencia e para o tera- peuta a escutar, promovendo uma atitude de “estar-com e estar-para” que possibilite a livre exploragdo de “valores, significados, interpretagdes, sentimentos e crengas” pessoais (Carvalho Teixeira, 2006, p. 302). A psicoterapia existencial sartreana é delineada por Sartre nos livros Esboco de Uma Teoria das Emogbes e O Ser e 0 Nada, compreen- dendo a existéncia a partir das escolhas que realiza & luz do “projeto exis- tencial”. A psicoterapia nessa perspectiva tematiza esse projeto origin’- rio, matriz. das escolhas cotidianas, a fim de possibilitar 0 confronto da Pessoa com como projeta seu mundo e que se re-situe, tomando-se mais, coerente com seu projeto ou formulando um, na sua auséncia (Carvalho Teixeira, 2006). Como na Daseinsanalyse ~ baseada na filosofia de Mar- tin Heidegger -, figuram as questdes fundamentais do existir angustia, morte, liberdade, projeto e valores, mas com acentuagdes diferentes. Por exemplo, atribui a Sartre a énfase no carter angustiante de o existente fazer escolhas sem saber quais serdo os resultados, enquanto Heidegger, mais préximo de Kierkegaard, segundo esse autor, enfatiza a angustia do descobrir-se langado no mundo. A questo da morte tem sentidos distin- tos: enquanto, para Heidegger, é assumindo-a que se rompe com a bana- lidade do cotidiano singularizando-se, para Sartre ela indica a dimenséo de incerteza que perfaz as escolhas, ndo sendo suficiente para a singulari- zagio (Carvalho Teixeira, 1997). Todas compartilham que 0 encontro terapéutico esté enraizado no método fenomenolégico, isto é, apreendendo a “presenga do outro ‘tal como” ele aparece diante do terapeuta ~ apreensio da presenca do outro tal como ele se fenomenaliza frente ao terapeuta, sem distorgdes interpre~ tativas” (Carvalho Teixeira, 2006, p. 295). Assim, a fenomenologia apa- rece como método que pode set utilizado tanto pelas psicoterapias ex tenciais quanto pelas experienciais. Encontro essa mesma concepcao em varios autores na psicologia fenomenolégica. ‘Fenomenologia’ e ‘método fenomenolégico’ so tomados como sinénimos e correspondem a uma atitude compreensiva, descritiva, que se ope interpretagao, & explica- do e A teorizago e que focam, portanto, a vivencia do paciente tal como é por ele vivenciada A ramificagio proposta por Giovanetti (2012) se assemelha a de Carvalho Teixeira (2006) na primeira divisto. Para ele, hé uma vertente Psicologia Fenomenolégica Existencial n norte-americana uma vertente europeia das psicoterapias existenciais Tomo sua sistematizagdo como referéncia porque Giovanetti é dedicado estudioso das variadas concepgdes de psicologia existencial hé anos, per- correndo os autores continentais e americanos ¢ interessado muito mais [por suas antropologias filoséficas do que pela pritica clinica. A meu ver, isso contribui para que nao seja seduzido pelos ‘resultados’ da aplicagao dessas antropologias filoséficas. A Escola Americana ¢ composta por Psicoterapia Humanista- Existencial, destacando-se a ACP de Rogers e a Psicoterapia Existencial de Carl Whitaker © Thomas Malone, e a Psicoterapia Fenomenologica Existencial, com Rollo May e Eugene Gendlin, Hé ainda as Terapias Exis- tenciais das décadas de 1980 ¢ 1990, de Irvin Yalom e Salvador Maddi (Giovanetti, 2012) A Escola Europeia se desdobra em Psicoterapia Fenomenolégi ca-Existencial, de Binswanger ¢ Boss; as Psicoterapias Antropolégicas: Logoterapia, de Frankl, e Psicoterapia Antropolégica-Fenomenoligica, de Weizsacker, Christian e Brautigam; e as Psicoterapias Antropolégicas das décadas de 1980 e 190: Psicoterapia Dialytica, de Lous Cencillo, e Psicoterapia Antropoldgica Interativa, de Dieter Wyss (Giovanetti, 2012) Esta sistematiza¢o das psicologias que recebem influéncia da Fenumenologiz, do Existencialismo e do Humanismo apresenta algumas ‘abordagens e alguns autores pouco conhecidos no Brasil, principalmente da vertente europeia. O autor considera psicologias antropolégicas aque- as que se iniciam com uma conceitualizagao do ser humano, a partir de qual decorrem os procedimentos terapéuticos. Psicologia Humanista Norte-americana e Psicologia Fenomenolégica Existencial Europei E14 uma distingo clara entre abordagens humanistas e existen- ciais. As psicoterapias existenciais tém uma base fenomenolégica exis- tencial, pois recorrem ao método fenomenolégico para compreender 0 outro tal como ele se apresenta e a um conceito de “existéncia” oriundo das filosofias de Husserl, Heidegger e Sartre. A existéncia histérica & 0 objeto destas Psicologias, enquanto as abordagens humanistas tém por objetivo a vivéncia do cliente e nao recorrem a esta definigao de existén- cia, pois as influéncias filoséficas so outras (Carvalho Teixeira, 2006). Com a sistematizagao de Figueiredo (1991) pelas matrizes epistemolégi- Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista cas fica clara a disting2o; da psicologia Humanista, a matriz é vitalista e naturista, que concebe no ser humano uma forga vital criativa, tendente ao crescimento ¢ & autorrealizagao, enquanto a Psicologia Existencial tem matriz fenomenolégica e existencialista, Carvalho Teixeira (2006), apesar de diferenciar tio claramente as psicologias humanistas e fenomenol6gico-existenciais, descreve como atitudes e qualidades pessoais desejéveis aos psicoterapeutas existenciais a autenticidade, a aceitagio incondicional ¢ a compreensto empitica, Essa é a triade das condigdes facilitadoras descritas por Carl Rogers. A aceitagao incondicional, pondera o psiquiatra, deve ser alternada com 0 que ele chama de ‘distanciamento analitico’. Psicologia humanista, fenomenolégica ¢ existencial: eis ai um emaranhado dificil de desfazer! Sera possivel? Esse emaranhado é a tra- digo historica da psicologia fenomenolégica existencial brasileira. E quanto mais me aproximo dela, mais visivel fica que a confusdo jé chega instaurada na Psicologia brasileira. Ela se sedimenta aqui desde o inicio da Psicologia, pois misturam-se uma vertente humanista ¢ experiencial mais presente nos EUA e uma vertente mais préxima da filosofia na Eu- ropa. A vertente americana da psicoterapia existencial é influenciada pelo Humanismo Individual, que, quando aparece na Psicologia, confi- gura-se como um retomo ao estudo da experiéncia consciente. Toma-se a “Tereeira Forga da Psicologia”, que se opde & objetividade do behavio- rismo e ao reducionismo psicanalitico do comportamento & dinémica pulsional e ocorre concomitantemente as transformagdes do pés-guerra da sociedade americana, que acentuam a tolerdncia, a permissividade, a autoexpressiio ¢ o centramento no sujeito. Giovanetti (2012, p. 44) rela- ciona a proliferagao de técnicas de autogjuda na década de 1990 a desdo- bbramentos da “exacerbago do eu como centro” promovida pelo Huma- 3 Holanda, Gomes e Gaver (2004) apontam cinco variagdes de movimentos humanistas to lone da hs defen, Desa pr compress a Psicologia Hume: nistao que chamam de Humanismo Individual e 0 Humanismo Citic. Completam os cinco ¢ Humanismo Cléssico, © Humanismo Romfntico e 0 Humanismo Social. O umaname ividual est foremente presente na Fiologi Humanist americans recuperando “valores como independéncia, hedonism, dissidénca, toleincis, per rmissividade,e auto-expressio” (p. 5). Segundo eles, esses valores subjazem as ideias psicoldgicas de Maslow, Rogers e da escola da Gestalt-terapia, fundamentando uma ‘compreensto do objetivo da pritica psicolégica como de promover “revolupdes indi- ‘iduais, isto é, 0 rompimento com um estilo de vida e com uma maneira de pensar” {p. 6). Sob o conceito de Fumanismo Critico, os autores concentram as filosofias de Sante, Heidegger e Merleau-Ponty,filésofos que buscam redefinir a relaglo do ho- ‘mem com seu mundo de maneia fundamentada,aprofundada e técnica Psicologia Fenomenologica Existencial 2 nismo Individual. Nesta modalizagao do Humanismo as abordagens psi- coldgicas existenciais encontram os conceitos de autorrealizagao e auto- desenvolvimento, assim como a ideia de que o homem é um todo, uma unidade, em processo ¢ evolugao. Por isso essas abordagens psicoldgicas ropGem o estudo de ciclos vitais e fases de desenvolvimento humano. Abraham Maslow é um dos fundadores da Psicologia Humanis- ta e dos principais impulsionadores da Terceira Forga. No final da década de 1920 inicia seus estudos de Psicologia com énfase no behaviorismo, que deixa uma forte marca positivista no seu jeito de pesquisar. Expoe suas ideias sempre com muita clareza e esforgando-se para fundamenti- -las cientificamente, isto é, de acordo com o método experimental cien- tifico-natural. Compreende o ser humano como possuidor de “uma natu- teza interna essencial, biologicamente alicergada, a qual é, em certa ‘medida, ‘natural’, intrinseca, dada” (Maslow, 1968, p. 12), limitada e, do ponto de vista moral, neutra ¢ até mesmo boa. Com esta concepso, vé-se complementando a psicologia de Freud, voltada para o ser huma- ‘no doente. Maslow deixa clara a influéncia do Existencialismo em seu ensamento, No artigo “O que a psicologia pode aprender dos existencia- listas” (Maslow, 1968), mostra pontos em comum entre a Psicalagin Hu- manista ¢ o Existencialismo, que, a seu ver, desenvolvem-se paralelamen- te, Mas o Existencialismo pode fornecer aquela uma filosofia subjacente, dado que a fundamentagao positivista légica falha na compreensio da ;Personalidade e da clinica, Desses pontos em comum, destacam-se a sen sagdo de esvaziamento das fontes de sentido exteriores ao individuo, tor- jfando necesséria uma volta para “dentro, para o si mesmo (self), como ocal de valores” (Maslow, 1968, p. 35); 0 reconhecimento de que o ho- mem ¢ realidade e potencialidade, natureza e divindade; a importincia de Juma ‘antropologia filoséfica’ que diferencie radicalmente o homem; a }énfase no cardter auto-realizador, projetivo de si; as varidveis humanas colha, deciséo, vontade, autonomia e responsabilidade; o papel fun- j damental do futuro no desenvolvimento. Dos fenomendlogos Maslow | aprende [..] com suas demonstragdes extremamente cuidadosas e laboriosas [..1 que a melhor maneira de entender outro sex humano, ou pelo me- Ros uma mancira necesséria para essa finalidade, é penetrar em sua Weltanschauung e conseguir ver sew mundo através de seus olhos (Maslow, 1968, p, 20) 80 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista Maslow inaugura a American Association for Humanistic Psy- chology em 1961 com Buhler e Rollo May”. ‘A Psicologia Humanista cresce num contexto de insatisfagio ‘com psicologia behaviorista e freudiana devido ao teducionismo e meca- nicismo que as marcam e reie muitos autores diversos entre si. Mas é ‘também um momento de revolugao cultural na sociedade americana. Os Estados Unidos passam por questionamentos dos valores vigentes nessa Epoca: a moral que valoriza o éxito a qualquer custo, 0 dominio sobre coultros paises, mesmo que pela guerra, o Establishment. & um momento de critica ao materialismo, critica as guerras da Coreia e do Vietnd, de cconflitos raciais, do movimento hippie e da experimentago com drogas (Bathier, 1975). A Psicologia Humanista esté em sintonia com o Zeitgeist 0 colocar em questio o sentido da vida. Mais do que uma ciéncia psico- légica, ela se apresenta, nas palavras de Rogers (1983), como um jeito de set. Por outro lado, do ponto de vista epistemolégico reine uma multipli- cidade de autores e ideias muito variados, quigé contraditérios entre si (Carpintero, Mayor & Zalbidea, 1990). Na Europa a ebulicdo existencialista acontece antes, O Existen- cialismo ganha destaque apés a Primeira Guerra, mostrando sua relevén- ccia na seguinte, mas é em 1968 que floresce. Nesse periodo as ideias fe- nomenolégicas e existenciais ja influenciam a Psicologia ha decadas. Carvalho Teixeira (2006) indica como inicio da psicoterapia existencial-humanista norte-americana a publicagio do livro Existence: A New Dimension in Being (May, Ellenberger & Angel, 1958). Rollo May é seu primeiro tedrico. Sao varias as influéncias deste movimento, como as filosofias de Paul Tillich, Kierkegaard, Nietzsche, William James ¢ Erich Fromm, a psicologia humanista de Rogers e Maslow ¢ as teorias psicanaliticas de Alfred Adier, Otto Rank e Frieda Fromm-Reichman. Misiak & Sexton (1966) também distinguem o desenvolvimento das psicologias influenciadas por essas filosofias na Europa ¢ nos Estados Unidos. Na psicologia norte-americana, chamam a atengdo para o pionei- rismo da psicologia de William James, considerando-o um proto-fenome- nélogo, dado que sua conceitualizago do fluxo de consciéncia ¢ da ime- diatidade da experiéncia antecipam em décadas alguns dos temas que aportam com a chegada dos fildsofos europeus. O interesse por compreen~ sdes existenciais de homem esti presente nos Estados Unidos desde a década de 1940, através dos estudos de Paul Tillich (que foi professor € amigo de Rollo May). 20 nome muda para Association for Humanistic Psychology em 1969. Psicologia Fenomenolégica Existencal 81 Chamando-a de ‘psicoterapia existencial’, Misiak e Sexton (1966) indicam seu nascimento em 1954, quando da publicagdo do livro Existen- ce and Therapy: An Introduction to Phenomenological Psychology and Existential Analysis, de Ulrich Sonnemann, psic6logo nascido na Europa, radicado nos Estados Unidos. O psicélogo norteamericano James Bugen- tal também é apresentado como impulsionador deste movimento. Outro nome fortemente associado ao desenvolvimento desta perspectiva teérica € Kirk Schneider. O nome atribuido a esta abordagem situa-a na fronteira; ‘¢ humanista e existencial. O método empregado por ela é, segundo Misiak # Sexton (1966), o fenomenolgico. Misiak © Sexton distinguem a psicologia fenomenoligica da Psicologia existencial. Afirmam que todos os existencialistas “aceitaram (0 método fenomenolégico como método bisico e valido. Neste sentido, pode-se dizer que os existencialistas stio fenomenologistas, mas nfo 0 ‘contririo” (1966, p. 433). Por isso utilizam as expressdes “\psicologia exis- tencial” e “psicologia fenomenologica-existencial” (phenomenological existential, p. 443) como sindnimos, diferenciando-a da psicologia feno- menolégica. Eles até defendem certa confusto: Hi muita sobreposicto conceitual e metodolégica e comunhio de ob- Jetivos entre as abordagens existencial e fenomenolégica. A mistura das filosofias fenomenolégica e existencial pode ser tio completa em alguns casos que distingSo e classificacdo em relagdo as das categorias nfo podem ser feitas. Como estas duas abordagens esto tio combina- das, s4o frequentemente designadas como abordagem fenomenolégi- ca-existencial (phenomenological-existential approach) que é uma eX- pressio predileta em alguns circulos.(Misiak & Sexton, 1966, p. 443) Os principais filésofos existencialistas so Kierkegaard e Nietzsche, no século XIX, e Heidegger, Sartre, Jaspers e Gabriel-Marcel to século XX. Os historiadores Misiak e Sexton (1966) afirmam clara- ‘mente que sobre o Existencialismo 6 se pode afirmar com precisdo que ‘somporta autores diversos, com pensamentos distintos, reunidos sob 0 nome de existencialistas pelos autores que os seguiram. Acrescento que ‘wabam fundamentando psicologias diferentes entre si, algumas até em ‘sontradigzio com 0 movimento filoséfico existencialista. Em sintese, o terreno das psicologias fenomenolégicas, existen- jolais, fenomenologico-existenciais, fenomenolégicas existenciais, huma- Fnistas © humanistas-existenciais € pantanoso. Nao ha sendas claras, so- ‘mente rastros. Isso aparece a partir da diversidade de propostas, assim

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