You are on page 1of 25
Aredia, 18 USOS E ABUSOS DA MESTICAGEM. E DA RACA NO BRASIL: uma historia das teorias raciais em finais do século XIX." Lilia K. Moritz Schwarcz** Introdugao Finais de século sempre foram bons para pensar. De fato, nesses momen- tos, utopias e prognosticos falam do futuro, se debrugam sobre o porvir, como se realidade e representagao caminhassem lado a lado, tornando dificil discernir onde termina a historia e em que lugar comeca o mito. Talvez a maior utopia dos dias de hoje seja a idéia de globalizagao, do mundo feitoum s6, Filhos da era da comunicagao eletronica, passamosa supor que frente a uma emisséo poderosa existiria apenas uma nica recepcdo passiva, No entanto, ao lado da globalizacio tem explodido 0 “fenomeno das diferengas”, a afirmacao da etnicidade e mesmo a sua face mais maldita: 0 racismo — a propria condenagao das diferengas existentes enire os homens, E como se cansados ou céticos diante da igualdade e dos projetos de cidadania legados pelas revolugdes francesa e russa, se destacasse a afirmacao de uma identidade que recupera uma determinada origem e sobretudo um passado, nesse caso racial.’ * Esse texto fob uriginalmente elaborade para ser apresentarlo em sesso realizada ima reunia ds Aserringdo Brasileira de Antrapologia em Salvador (abril de 1996), intitulaa “Panorama da questio étaicae racial a0 Brasit”, Em fungo dessa especificidade v ensaio corresponde, sobretuda, a win balango breve subre o tema, um apanhado sobre as pincipais teorias e seus autores. * Departarnento de Antropologia, Universilade cle So Paulo, * A referéncia ¢ a0s recentes casos ce afitnagao de diferemgus raciais ¢ religiosas. Vide nesse sentido as imensas manifestacOes negras, em Washington (lideradas por Farahlcan), ow movimentos fundamentalisias que 16m estourado em varias partes do Oriente Médio ¢ que culminaram cum © recente assassinato do primeira ministre israclense (em novembre de 1984). Vejase, também, a publicact do livre de Richard J. Herrnstein e Charles Murray, The Bat! Curse. Intelligence and class srtucture in american life, New York, The Free Press, 194, que spenas altera 0 termo raga por etnia, mas ‘manténva mesma postura de imputar& biologia uma discriminagie que ¢ politica © social: 7 E, portanto, no minimo oportuno repensar a especificidade do racismo existente no Brasil. Nao basta, porém, apenas anunciar ou delatar, é preciso um esforco de compreensdo das particularidades desse “racismo cordial”, dessa modalidade mais especifica de relacionamento racial conhecida, na vportuna expressv de Florestan Fernandes, como um preconceito retroativo: “um preconceito de ter preconceito™. Esse artigo trata, portanto, nao apenas da descoberta da diferenca entre nds, mas, da formalizagio dessas diferencas, em finais do século XIX, quando a caracteristica miscigenada de nossa populacao foi vista como um “espetiiculo”, como um laboratorio ao mesmo tempo curioso € degradante das ra¢as. Seria, no entanto, leviano comegar este debate em meados do século XIX. A percepeao das diferencas entre os homens nos leva mais longe, sobretudo ao momento de descoberta do Novo Mundo, quando o imaginario europeu se volta do Oriente para o Ocidente, para essa nova terra—a América—com sua natureza grandiosa e suas gentes desnudas € com as vergonhas a mostra, Um breve passeio A descoberta de que os homens cram profundamente diferentes entre si sempre levou a criagdo de uma cartografia de termos e reagies, Os romanos chamavam de "barbaro” a todos aqueles que nao fossem eles préprios. Ou seja, os intimeros grupos que invadiam, naquele contexto, 0 fragil continente europeu e sobre os quais mal e mal se sabiam nomes ou procedéncias', O Ocidente cristio designou de pagiio ao mundo todo que fugia a seu universo, como se fosse possivel dividir os homens a partir de uu mesmo a obra de Robert Wright, O animal moral, Porque somo como somes: @ nova ciéncia da psicologia evolucionista, Rio de Janeiro, Campus, 1996, que busca explicar ‘comportamentos culturais a partir de determinagdes de ordem natural. * Referéncia a expressio de Florestan Fernancles, O negro no musdo das brances, Sbo Pano, Difel, 1972. » Claude LéviStruuss em Raga ¢ histiria, Sto Paulo, Martins Fontes, 1975, p. 62, ‘cumenta como “birbarv ¢ aquele que acredta na barbirie”, numa clara aluso A intolerdncia los povos diante do desconhecide. Tambem em “JeanJacques Rousseau, fundador das ciéncias do homem” in Antropologia estrutural dois (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976, p42), 0 mesmo autor cita Rousseau em sua célebre passagem: “Toda a terra esti coberta de nacbes, mas sé Ihes conhecemos os nomes ¢ nos atrevemos a julgar 0 género umano™ 78 um tinico critério religioso, Da mesma maneira, a orgulhosa ciéncia, determinista e positiva de finais do século, classificou como “primitivos” 0s povos que nao eram ocidentais, sobretudo os estranhos povos da America. Talver essa nossa historia das diferengas comece mesmo com a descoberta do Nove Mundo, quando ocorre um deslocamento do paraiso terrestre da Asia e da Africa para a América‘, Em uma época em que era bem melhor ouvir do que ver, « curiosidade renascentista voltava-se para esse local da grande flora e da fauna exotica, mas acima de tudo para essus novas gentes, to estranhas em seus costumes e civilizagao. Com relagao a natureza, a tendéncia geral apontava para uma certa edenizagio®, marcada pela fertilidade do solo, do equilibrio do clima e da forca da vegetacdo. Por meio da natureza revivia-se a imagem do paraiso terrestre ha tanto tempo perdido. No tocante a humanidade, porém, as divergéncias eram maiores que as unanimnidades. Afinal, 0 canibalismo, a poligamia e a nudez desses homens escandalizavam as elites pensantes européias, que tinham diividas sobre a humanidade desses indigenas.” E Todorov * quem destaca como oetnocentrismo presente nesse enconiro de culturas era patente de parte a parte, Afinal, estava em questio a esséncia clesse encontro: enquanto os ‘europeus levavam em suas cargas alguns indigenas para apresenti-los as cortes européias, conjuntamente com outros animais locais, 08 “primitivos” afogavam europeus nos lagos, na tentativa de entender se tratava de homens ou deuses. Esse impasse toma uma forma mais delineada a partir do famoso ‘embate que op6s o religioso Bariolomé de Las Casas, ao jurista Juan Gines de Septiveda, que partia de uma duvida primordial: “seriam essas novas gentes homens ou bestas", Nese caso, enquanto Las Casas defendia a « Sengio Biuarque de Holtsnda, Visdo do paraico, Sao Paulo, Nacional, 1985. * Laura de Mello Souza, O diabo ea terra de Santa Cruz, Sto Paulo, Compania das Letras, 1986. “Sobre o tema vide Karen Lisbua, A moca Adléntida ow o gabinete naturalista dos doutores Spix ¢ Martius, Sto Paulo, tese de mestrado, Universidade de Sto Paulo, 1995, ‘Apesar da bula papal de 1537, que determinava que “os homens s20 iguais e amados por Deus da mest manera", o debate estava longe de se encontrar esgotado, Vide, nesse sentido Lewis Hanke, Bartolomé de les Casas, Mexico, La Habana, 1949 © mesmo Bartolome de las Casas, Brevésima relacdo da destruicde das Indias, Porto Alegre, L&PM, 1984, *“Tavetan Todorov, A comquista da América: @ questéo do otro, Sio Paulo, Martins. Fontes, 1988. 79 inferioridade dos indigenas, porém assegurava sua inquebrantavel huma- nidade; Sepalveda reconhecia encontrar nesses “primitives” uma outra humanidade. Um bom termémetro dessa inquietagio é, sem diivida, 0 texto de Montaigne “Os canibais™. Nesse pequeno ensaio, . famoso filosofo francés real “Tupinambas faziam a guerra, em uma clara referéncia critica as guerras de religido que ocorriam na mesma época na Europa. Com efeito, para o autor era menos barbaro comer o inimigo que se reconhecia, do que prati- car atos de selvageria diante de un opositor que mal se delineava. No entanto, essas conclusdes nao pareciamn ser suficientes frente ao espanto que esses homens despertavam. Tanto é que apés longo arrazoado erao proprio Montaigne quem desabafava: "Tudo isso ¢ em verdade interes- ante, mas, que diabo, essa gente niio usa calgas!” Em passos larygos e desajeitados c’egamos ao século XVIII, quando a questao da diferenca ou da desigualdade entre os homens é entao reto- mada. Deum lado, temos a postura mais reconhecida que apontava para 6 voluntarismo iluminista e para a idéia de perfectbilidade humana, sem divida um dos maiores legados da Revoluga0 Francesa. Com efeito, foi Rousseau que, em seu Discurso sobre a origem e fundamento da desiguat- dade entre homens (1775), langou as bases para se pensar na idéia da humanidade feita uma s6 e para. afirmagao do modelo do “bom selvagem” como elemento fundamental para entender a civilizagdo decadente. Nessa versio humanista, areflexio sobre a diversidade se torna central quando, ‘no século XVIII a partir dos legados politicos da Revolugdo Francesa e dos ensinamentos da ihsstragio, estabelecerr-se as bases filesdficas para se pen- sara humanidade enquanto totalidade. Ao mesmo tempo, Alexander von Humboldt, com suas viagens restituia ndo sé o “sentimento de natureza” € sua visto positiva da flora americana, como apunha-se as teses mais, detratoras que negavam aos indigenas "a capacidade de civilizacao”. Na verdade, nesse mesmo contexto tomam forga as correntes pess- mistas, que anunciam uma visdo negativa sobre os homens da América. Em 1749 chegam a0 piblico os trés primeiros volumes da Histoire Naturelle, do conde de Buffon que lancavaa tese sobre a “debilidade” ou “imaturidade” do continente americano. Partindo da observacao do pequeno porte dos animais existentes na América — jé que nio se » Montane “Os canibais”, in Os pensadores tSto Paulo, Abril Culuura), 1971), ™ Para uma visto mais aprofurdada do tema vide Mariela Carneiro da Cunha © Fduarda Viveiro de castro “Vinganga « terrpurslidade sare os Tupinambsis” in Journal de ba suciete dex americanistes, wt 14,1985, pp, 19L-208, 80 encontravam rinocerontes, camelos, dromedarios ou girafas —, € do aspecto imberbe dos nativos, o naturalista concluia ter encontrado um continente infantil, retardado em seu desenvolvimento natural. Assim a designaga0 Novo Mundo passava a referir-se mais formagao tehirica da América, do que a0 momento da colonizagio" Mas Buffon nao estava $6. No ano de 1768 o abade Corneille de Pauw editava, em Berlim, Recherches philosophiques sur les américains, ow Mémoires intéressants pour servir a Unistoire de Vespéce humaine, onde retomava as idéias de Buffon, porém radicalizando-as. Esse autor intro-

You might also like