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ROLAND BARTHES O OBVIO EO OBTUSO ENSAIOS CRITICOS III Traducao de Lea Novars, EDITORA Nova FRONTEIRA LEITURAS: O GESTO CY TWOMBLY ou NON MULTA SED MULTUM. para Yvon, para Renaud e para William Quem é Cy Twombly (que, aqui, chamaremos TW)? O que faz? ‘Como dar um nome ao que faz? Palavras surgem espontaneamente (“desenho”, “grafismo’ il"). E, aqui, nos encontramos diante de um problema de linguagem: essas palavras (0 que é bastante estranho), nfo soam falso nem bem: poi porum lado, a obra de TW coincide plenamente com sua aparénci © € necessério atrever-se a afirmar que é uma obra banal; mas, outro lado — e aqui reside o enigma —, esta aparéncia néo cide com essa linguagem, que deveria despertar se simplicidade e inocéncia naqueles q 0s grafismos de TW? Si ‘aguilo; mas, trata-se antes de algo de mi em uma palavra, ambigua porque literal e metaférica, € déplacée. Percorrer a obra de TW com os olhos e com os libios é, ‘um permanente negar aquilo que parece ser. E uma obra que ndo exige que se contradiga as palavras da cultura (a espontaneidade do homem é sua cultura), simplesmente que se as desloque, que se as destaque, que se Ihes dé outro enfoque. TW forga, niio a que 6, talvez, mais subversive — a traspassar 0 0; enfim, obriga-nos a um trabalho de linguagem (endo € exatamente esse trabalho — nosso trabalho — que dé seu valor a.uma obra?). 143, ESCRITURA Aobrade TW—outros éodisseram—eescritura, temumacerta relacdo com acaligrafia, Néo é,noentanto, uma relagdo de imitacao, tampouco de inspiragao; uma tela de TW € apenas 0 que se poderia chamar 0 campo alusivo da escritura (a alusdo, figura de retérica, consiste em dizer uma coisa com a intengao de fazer com que 0 receptor compreenda outra coisa). TW faz referéncia & escritura (Como alude também, freqientemente, 2 cultura, através das palavras: Virgil, Sesostris), ¢, depois, passa a outra coisa, vai para outro lugar. Para onde? Precisamente para longe da caligrafia, isto 6, da escritura formada, desenhada, apoiada, modelada, do que se chamava, no séeulo XVIII, mao de artista (la belle main). ‘TW diz A sua maneira que a esséncia da escritura nfo é nem ‘uma formanem um uso, mas apenas um gesto, o gesto que aproduz, deixando-acorrer:umrabisco, quase umamancha, umanegligéncia. Tentaremos raciocinar por comparagao. Qual é a esséncia de uma calga (se hd alguma)? Nao é, seguramente, esse objeto afetado ¢ retilineo que vemos pendurado nos cabides, nas grandes lojas de departamentos; é mais bem essa forma de tecido, que a mio de amontoa no chao, ao desp preguigoso, indiferente. A esséncia de um relagdo com o que dele resta: nio obrigat resta depois de muito usado, mas o que € jogado porque nao se quer mais usar. Assim, também, so as escrituras de TW. Sao restos de uma preguica, conseqlientemente, de extrema elegancia; como se, da escritura, ato erdtico desgastante, restasse o cansago amo- roso: essa roupa caida, atirada a um canto da folha. wee A letra, feita por TW — o oposto de uma letrina —, é uma letra tragada sem capricho. No entanto, nfo é infantil, pois a crianca capricha, faz um esforgo, morde a ponta da lingua; trabalha com afinco para dominar 0 c6digo dos adultos. TW, 20 contrério, dele se afasta, sua mao arrasta-se, € sem energia, parece entrar em levitagao; dir-se-ia que a palavra foi escrita com a ponta dos dedos, no por asco ou tédio, mas por uma espécie de fantasia aberta & 144 lembranga de uma cultura morta, cujo vestigio é consti algumas palavras. Chateaubriand: “Nas ihas da Noruega desenterrando algumas urnas gravadas com caracteres Acscritura de TW é ainda mais va: € decifravel, nao interpret nem por isso deixa de ter a fungdo de traduzir esse “vag impediu TW, no exército, de ser um bom decifrador de cédigos militares (J was a little too vague for that). Ora, 0 vago, parado- xalmente, exclui qualquer idéia deenigma; 0 vagondocombinacom ‘amore; 0 vago esté vivo. Da escritura, TW retém 0 gesto, no o produto. Mesmo que seja possivel consumir esteticamente o resultado de seu trabalho (0 que se chama a obra, a tela), mesmo que as producdes de TW fagam parte (e nao podem furtar-se) de uma Hist6ria e de uma Teoria da Arte, o que € mostrado por TW é um gesto. O que ver a ser um gesto? Algo como 0 complemento de um ato, 0 ato & 145 transitivo, objetivaapenas suscitarum objeto, umresultado; jéogesto a soma indeterminada e inesgotivel das razBes, das puls6es, das preguigas que envolvem 0 ato em uma atmosfera (no sentido as- tronémico do termo). Fagamos a distingao entre a mensagem, que quer produzir uma informacao, 0 signo, que quer produzir uma in- teleogao,¢ 0 gesto, que produz todo restante (o“suplement querer obrigatoriamente produziralguma coisa. O artista ( ‘mos ainda essa palavra um pouco kitsch) 6, por estatuto, um opera- dor de gestos; quer e, ao mesmo tempo, ndo quer produzirum efeito; 05 efeitos que produz nao sao obrigatoriamente intencionais; so efeitos inversos, derramados, que Ihe escaparam, que voltam aelee provocam, entiio, modificagdes, desvios, leveza do trago. No gesto a i ingdo entre a causa e oefeito, amotivagioe o ‘a expressio ea persuasao, O gesto do como gesto — nao rompe a cadeia m © budista chama o karma (nao masaconfunde, aretomaaténio| nue) de nossa ‘0)chamam: um stor’: porumacircunstancia isOria, aberrante, bizarra, osujeito desperta para umanega- (que jé nao é uma negacao). Considero os “grafis- mos” de TW pequenos satoris: partindo da escritura (campo causal, talvez: escrevemos, dizem, para comunicar), so como estilhacos , quenem chegam a er letras interpretadas, que vém anularo ser ativo da escritura, a malha de suas motivacdes, mesmo se esté- ticas: a escritura j nao habita nenhum espago, étotalmer io € neste limite extremo que comega Verdadeiramente a xdo esse “paranada” dohomem, suaperversio, seuesforco? ‘TW foi comparado a Mallarmé. Mas, o que motivou essa apro- ximacio, ou seja, uma espécie de estetismo superior que os uniria, ni em TW nem em Mallarmé, Criticar a linguagem, como fez Mallarmé, implica uma intengdo séria e perigosa — diferente do objetivo da estética, Mallarmé quis desconstruir a frase, vefculo secular (para a Franga) da ideologia, Lentamente, arrastando-se, se assim podemos dizer, TW desconstréi a escritura. Desconstruit 146 no quer absolutamente dizer: tomar irreconhecivel; nos textos de Mallarmé a lingua francesa € reconhecida, funciona — em certos trechos, é verdade. Também nos grafismos de TW a es: reconhecida; chega a apresentar-se como escritura. A: formadas, no entanto, nd fazem parte de nenhum cédigo grafico, assim como os grandes sintagmas de Mallarmé jé nao fazem parte de nenhum eddigo retérico — nem do eédigo da destruigéo. ‘Nao hé nada escrito em uma determinada tela de TW, no en- tanto essa superficie parece ser 0 receptaculo do escrito. Assim como a escritura chinesa nasceu, dizem, das ranhuras de uma carapaga demasiadamente aquecida de tartaruga, também o que ha de escritura na obra de TW nasce da prépria super! Nenhuma superficie é virgem: tudo jénos chega dspero, descont desigual, marcado por algum acidente: o gré0 do papel, as manchas, atrama, oentrelagado de tragos, os diagramas, as palavras, Ao cabo desta enumeragiio, a escritura perde sua violencia; o que se impoe no é tal ou tal escritura, nem mesmo o ser da escritura, e simaidéia de uma textura gr em outras circuns CULTURA Ao longo da obra de TW, os germes da escritura vio da maior escassez até a multi prurido grafico, ura. Quando a -se até as margens, leva a Imente presente na obra de uma palavra acrescentada iga, € atua como uma ci- taco: de um tempo antigo, de estudos desusados, calmos, pre- _guigosos, discretamente decadentes: colegas ingleses, versos lati- 147 nos, carteiras, escritos a lépis, Assim é a cultura para TW: um bem- estar, uma lembranga, uma ironia, uma postura, um gesto dandy. “GAUCHE” isse que TW parece desenhado, tragado com a mio a tudo o que se destoca sem chama gauche, € fez. desse gauche — nocao ética, julgamento, condenagao — um termo fisico, de pura denotacdo, que substitui abusivamente a velha palavra sna tudo que esté a esquerda do corpo: nos que, 20 produzir uma escritura que parece gauche (canhota), TW desarruma a ética do corpo: ética das mais arcaicas, pois que assimila a “anomalia” a uma deficiéncia, ea deficiéncia a um erro. fato de serem seus gr: , suas composigdes como que “gauches”,coloca TW na lista dos proscritos, dos marginais—onde empirismo, a verossimilhanga, tudo o que serve para controlar, coordenar, imitar, e, como arte exclusiva da visio, toda nossa pin- tura passada foi submetida a uma certamaneira, TW liberaa pintura da visdo; pois o gauche (canhoto) desfaz olaco existente entre amaoe oolhio: desenhanoescuro(como fazia TW, no exército). TW, contrariamente a tantos pintores atuais, mostra o gesto. Nao nos pede para ver, pensar, saborear o produto, sim para rever, identificar, ¢, se assim podemos dizer, “gozat” 0 movimento que resulta do gesto. Ora, desde que a humanidade pratica a escrita 148 manual, excegdo feita a impressio, 0 trajeto da mao — e no a per- cepeio visual de sua obra—€ 0 ato fundamental pelo qual as letras sto definidas, estudadas, classificadas: esse ato dirigido é o que se chama, em paleografia, o ductus:a mio conduzotrago (decima para baixo, da esquerda para. direita, girando, apoiando, com o niimero e a diregdo das pinceladas, cria.a idade do diciondrio paraumaescritura sem alfabeto. (O ductus impera na obra de TW: nao suas regras, mas seus jogos, suas fantasias, suas indagagdes, suas preguicas. Em suma, é uma escrita de que apenas restaria ainclinagao, acursividade;no grafismo antigo, cursivonasceudanecessidade (econémica) de escrever mais rapidamente: erguer a pena custava caro. Na obra de TW, 60 exato ‘omo chuva mitida, de apaga-se por falta do que fazer, come tempo, a vibragéo do tempo. quisesse tomar vi Muitas composigdes lembram, e isso jé foi dito, os scrawis das criangas. A crianga € o infans, aquele que ainda nao fal crianga que guia a mao de reGtipo (“o que isso parece s (gréfica) da crianca nunca pe ‘trumento e a fantasia, TW forma-se em cor-lépi signo perto de Proust do que de Mallarmé). 49 A gaucherie (faltade jeito) raramente ¢ leve; na maioria das vezes, gauchir € apoiar; a verdadeira inabilidade insiste, obstina-se, quer ser amada (assim como a crianga quer mostrar 0 que faz, exibe, radiante, seu trabalho & sua mie). TW freqientemente inverte essa ‘Saucherie astuta a que jé aludi: 0 trago nao € apoiado, ao contrario, esfuma-se, nao dissimulando a marca s mao tragou algo que s sobre as movimentos, porém, pa- limpsesto perverso: trés textos (se acrescentamos essa espécie de assinatura, de legenda ou de citagio: Sesostri uum tendendo a apagar o outro, mas com 0 com que possamos ler esse apagar: Como sempre, é necessério que testemunhe sem desespero seu inelutével desapareciment trelagar-se (comoesses aencadeados, resultado de um tinicoe mesmo gesto damio, repetido, traduzido), aomostrarseu nascimento (oque foi, outrora, 0 sentido do esboco), as formas (pelo menos as de TW) io cantam as maravilhas da criago, nem as momasesterilidades parar a exallagdo da vida do nguagem pode seraarte, mas aa que resiste toda neurose humana, € produzir um tinico afeto: nem Eros, nem Tanato, mas Vida-Morte, com um inico gesto, um tinico pensamento, A arte de TW aproxima-semais dessautopia, paramim, pelo menos, do que a arte violenta ou a arte fria; essa arte de TW, impossivel de se classificar, porque une, com um trago inimitével, ainscrigo ¢ 0 apagar, a infincia ea cultura, a deriva e a invengao, SUPORTE? ‘TW parece ser um “anticolorista”. Mas, o que é a cor? Um prazer. Este prazer existe em TW. Para compreendé-lo, é ne- cessdrio lembrar-se de que a cor é também uma idéia (uma idéia sensual): para que haja cor (no sentido de prazer), nfo € necessério que a cor seja submetida a modos enfiticos de existéncia; no 6 150 necessério que seja intensa, violenta, rica, ou mesmo delicada, re- finada, rara, ou ainda imével, pastosa,fluida etc.; enfim, no € ne- cesséirio que haja afirmagao, instalacdo da cor. Basta que aparega, que esteja presente, que se inscreva como um trago vago no canto dos olhos (metéfora que, em As Mil e Uma Noites, designa a ex- celéncia de uma narragao), basta que instaure a ruptura de alguma coisa: que passe diante dos olhos, como uma apariga €como uma palpebra que se fecha, um pis. Esta cor escassa faz-nos ler, nao um efeito (menos ainda uma semelhanga), mas 0 prazer de um gesto: € ver brotar da ponta dos dedos, dos olhos, algo que € ao mesmo tempo esperado (sei que o lapis com que trabalho é azul) e inesperado (no s6 nao sei que tom de azul vai produzir, mas, ainda que o soubesse, ficaria surpreso, pois ‘acor, & semelhanga do acontecimento, renova-se sem cessat: é pre~ cisamente 0 gesto que faz.a cor, como faz, também, o prazer), Allém disso, como podemos imaginar, a cor jd esté no papel de TW, pois que este jd esté maculado, alterado, tomado por uma Tuminosidade que nao se pode icar. Apenas papel do escritor é branco, esse papel imaculado nao é 0 menor ia em branco, por vezes, provoca panico: orttinio do escritor, sua diferenga (em relaco ao pintor, e sobretudo ao pintor de escritura como TW), € que o grafite Ihe € proibido: TW é, em suma, um escritor que a0 grafite, de pleno direito ¢ abertamente, Como sabemos, o que faz 0 grafite ndo é, na verdade, nem a inscrigao xem sua mensagem, é a parede, 0 fundo, a mesa; é porque o fundo Jd tem existéncia total, enquanto objeto que ja viveu, que a escri- tura, sobre esse fundo, toma-se suplemenio enigmitico: 0 que perturba a ordem é o que esté demais, em demasia, fora de seu lugar, ou ainda: é porque o fundo ndo é préprio,* € impréprio ao * Em francés propre quer dizer: proprio, limpo. (N, do.) 151 pensamento (ao contrétio da pagina branca do fil6sofo), teiramente proprio a tudo o que resta (a arte, a preguica, a pulsdo, a sensualidade, a ironia, o gosto: tudo o que pode ser percebido peto intelecto como catistrofes estéticas). ‘Como em uma operacao cindrgica extremamente delicada, tudo acontece (na obra de TW) nesse momento infinitesimal em que cera do lapis toca o grao do papel. A cera, substincia macia, adere ‘a pequenas asperezas do campo grafico, e 0 trago leve de TW € como que feito pelo rastro desse voo leve de abelhas. Singular aderéncia, que contradiz a pr6pria idéia de aderéncia: é como uma caricia cujo valor estaria apenas na lembranca que deixou; mas, esse passado do trago pode ser igualmente definido como seu futu- ipis, dé ponta fina ou grossa (ndo se sabe o que vai produ- vai tocar o papel: tecnicamente, a obra de TW parece conju- ‘gar-se no passado e no futuro, nunca verdadeiramente no presente; dir-se-ia que ha, apenas, a lembranga ow 0 anincio do trago: sobre ‘papel —e devido ao papel —o tempo esté em perpétua incerteza. nada, salvo uma espécie de inteligibilidade. Vamos, agora, descer tragadaamio,o lade dos signos, ia — retém nosso olhar (¢, jé, nosso desejo): 0 tragado nervoso das letras, 0 entrelacado das hastes, todos esses acidentes 0 funcionamento do cédigo grafico e que, con- if constituem suplementos. Afas im desenho cléssico no oferece & signo constitufdo; jé nfo passa nenhuma mensagem funcior entdo, investir meu desejonodesempenho da analogia,na perfeicao 152 da feitura, na sedugao do estilo, enfim, no estado final do produto: é realmente um objeto que é oferecido & minha contemplagio. Nessa cadeia, que vai do esquema ao desenho, e a0 longo da qual o sentido poucoa poucose evapora, para dar lugaraum “lucro” cada vez mais TW ocupa o termo extremo: signos, por vezes, mas, em- palidecidos, gauches (como jé dissemos), como se fosse indiferente a TW que os decifrissemos, porém sobretudo, se assim podemos dizer, 0 tiltimo i fo da pintura, seu chao: 0 papel (“TW confessa ter mais o sentido do papel do que da pintura”), Produz-se, no en- tanto, uma estranha inversio: o desenho pode reaparecer, absolvido de toda fungao técnica, expressiva ou estética, porque o sentido foi ‘esgotado, porque o papel tornou-se o que somos obrigados achamar objeto do desejo; em certas composigdes de TW, o desenho do ar- quiteto, do ebanista, ou do medidor volta, como ‘massemos origem da cadeia, purificada, doravante liberada dasra- z6es que, hd séculos, pareciam justificar areproducio gréficade um objeto reconhecivel. CORPO trago — todo trago inscrito na folha — desmente 0 corpo importante, 0 corpo de carne, 0 corpo de humores; 0 trago no nos leva 8 pele nem &s mucosas; 0 que diz o trago € 0 corpo que 3: que faz. c6cegas); pelo traco, por leve ou incerto que seja, remete sempre a uma forga, a uma diregdo; é um energon, um trabalho, que oferece a leitura 0 que ficou de sua pulsfo, de seu desgaste, O trabalho é uma agio visivel. O trago de TW que fardo nao serd de vocés nem dele; seré nada). Ora, 0 que é, na verdade, ini- mitvel € 0 corpo; nenhum discurso, verbal ou plastico — excego feita ao discurso rude da ciéncia anatémica reduzir um corpo a um outro corpo. A obra de TW oferece & leitura a seguinte 154 fatalidade: meu corpo nunca seré o teu. Desta fatalidade —em que se resume uma certa infelicidade humana — s6 uma possibilidade de escape: a sedugio: que meu corpo seduza, transporte ou per- turbe outro corpo, Emnnossasociedade, omenor trago grafico, desde que vindodesse desse corpo certo, vale milhies. O que éconsumido uma sociedade de consumo) € um corpo, uma ‘0 &: que tampouco pode ser dividida), Em outras palavras, 6 0 corpo do artista que est4 preso & sua obra: uma {roca em que nio se pode deixar de reconhecer 0 contrato de prosti- tuigdo, Serd este contrato caracterfstico da sociedade capi Poder-se-A dizer que esse corpo define especificamente 0s usos comerciais de nossos meios artisticos (freqilentemente chocantes 3)? Na China Popular vi obras de pintores rurais cujo rrede qualquer troca; ora, corria,entdo, sa troca de lugares: o pintor mais aplaudido havia pro- duzido um desenho corretoe banal (retratode um funcionéio lendo): notrago gréfico, nenhum corpo, nenhuma paixio,nenhumapreguiga, nada a nao ser a intengio de uma operagio analogica (fazer “pare cido”, expressivo); em contrapartida, havia na exposigdo um sem- rimero de outras obras, de estilo dito naif, nas quais, a despeito do tema realista, o corpo delirante do artista amador in |. Dizendo de outra ira: 0 corpo vai sempre mais além da troca em que est en- volvido: nenhum comércio, nenhuma virtude politica podem esgo- taro corpo: hi sempre um ponto extremo em que o corpo entrega-se por nada, Esta manha, prética fecunda — ou, pelo menos, agradavel. folheio lentamente um lbum em que esto reproduzidas obras de TW, e, muitas vezes, interrompo a contemplagio para tentar, rapidamente, fazer, eu mesmo, alguns rabiscos; nio imito dire. 155 tamente TW (de que serviria?), imito o tracing que deduzo, sendio inconscientemente, pelo menos pensativamente, de minha leitura; nao copio 0 produto, mas a produgdo, Tento encontrar 0 mesmo asso da mao. ois que (pelo menos para meu corpo),assim¢a obrade TW: uma producao, delicadamente prisioneira, encantada nesse produto estético a que chamamos tela, desenho, cuja colecdo (4lbum,expo- sigdo) €apenas uma antologia de vestigios. Essa obra obrigao leitor de TW (digo: leitor, embora nada haja a decifrar) a uma eritica filoséfica do tempo: deve contemplar retrospectivamente um mo- vvimento, oantigo devenir da miio; mas, partir dese momento, revo- luo salutar, o produto (todo produto?) parece como que um engo- do: toda arte, enquanto armazenada, consignada, publicada, € de- nunciada como sendo imagindria: o real, a que nos leva, sem ces- sar, a obra de TW, é a produgao: a cada trago, TW faz explodir 0 Museu, Hé uma forma do tragado que poderfamos chamar sublime, porque desprovida de qualquer rabisco, de qualquer lesio: ins- frumento que traca (pincel, lépis), que desce sobre a folha, nela aterrissa — ou alunissa: ha simplesmente um pousar:& rareficagio quase oriental da superficie um pouco manchada (que ¢ 0 objeto), responde a extenuagio do movimento que nada capta, apenas deposita. Se a distingao entre produto e producdo, na qual, a meu ver, repousa toda a obra de TW, pode parecer um pouco sofisticada, pensemos no esclarecimento decisivo que certas oposicdes ter- minol6gicas trouxeram as atividades psiquicas, & primeira vista, confusas: o psicanalista inglés D.W. Winnicott mostrou 0 quanto era falso reduzir o jogo da crianga a uma pura atividade liidica, 156 através da oposigao entreo game (jogoestritamente regulamentado) 0 play (jogo que se desenvolve livremente). TW, é evidente, est do lado do play, nfo do game. Mas isto nao € tudo; em um segundo tempode seu raciocinio, Winnicott passa doplay, ainda muitorigido, 0 playing: o real da crianga —e do artista — 0 processo de ma- nipulagdo, nao o objeto produzido (Winnicott chega a substituir sistematicamente 0 conceito pelas formas verbais que Ihe correspondem: fantasying, dreaming, living, holding etc.). Tudoisto aplica-se muito bem a TW: sua obra ndo depende de um conceito (trace), mas de uma atividade (tracing), dizendo melhor: de um campo (a folha), enquanto af se desenrola uma atividade. Para Winnicott, 0 jogo € assimilado pelo espaco que ocupa; para TW, 0 “desenho” desaparece e cede lugar ao espaco que habita, mobiliza, trabalha, sulca— ow dilui. MORALIDADE O artista nfo tem uma moral, mas uma moralidade, Hé, em sua obra, algumas perguntas: 0 que representa os outros para mim? Como devo desejd-los? Como satisfazer seus desejos? Como viver entre eles? Ao enunciar sempre uma “visio sutil do mundo” (as- sim diz. Tao), 0 artista compae o que € invocado (ou recusado) por sua cultura, € o que clama seu préprio corpo: tudo aquilo que é evitado, que é evocado, que érepetido, ou ainda: proibido/desejado: eis 0 paradigma que, como duas pernas, faz com que o artista caminhe enquanto produ. wee (Como produzir um trago que nao seja tolo? Nao basta ondula- Jo um pouco para tomé-lo vivo: & necessério — jé 0 dissemos — ‘gauchir o trago: ha sempre um pouco de gaucherie na inteligéncia, Observes essas duas linhas paralelas tragadas por TW: acabam por tnir-se, como se nao tivessem podido “agiientar” indefinida- mente a separacdo obstinada que matematicamente as define. O que parece intervir no traco de TW e conduzi-lo ao limite dessa misteriosa disgrafia que faz sua arte, € uma certa preguica: & pre- 157 cisamente o que permite 0 “desenhio”, mas ndo a“pintura” (toda cor abandonada, desprezada, ¢ violenta), nem a escritura (toda palavra nasce inteira, voluntéria, armada pela cultura). TW é, no entanto, tética: permite-the £208 gréficos, sem se prestar ao conformismo das destruigées: todos os sentidos da palavra, rato, O trabalho de TW, coisa rara, nio tem nenhuma agres: (como jé foi dito por alguém, é o que o diferencia de Paul Klee), Creio conhecer a razo desse efeito tio contrario a toda arte em ue 0 corpo esté engajado: TW parece proceder & manei pintores chineses, que devem lograr o tra ° lidade de corrigit-se, devido a fragi- lidade do papel, da seda: é pintar alla prima. Também TW parece tracar seus grafismos alla prima; mas, enquanto o gesto chines traz perigo, 0 perigo de “pér a perder” a figura (por tragado de TW ¢ absolutamente seguro: é sem ivo, sem modelo, sem instancia; ésem felos,e, porconseguinte, no ha mestre? Daf se con- 158 que sio respeitaveis...pois queamais bizarrade todas, bem analisada, leva sempre a um princi Enquanto prinefpio, a delicadeza no é nem mor: € uma pulsao (por que a pulso seria, de direito, violenta, grosseira?), uma certa exigéncia do préprio corpo. 24 short pieces: hi, aqui, algo de Webern ¢ do haicai japonés, Trata-se, nos trés casos, de uma arte paradoxal, que seria provo- cante (se nfo fosse delicada), porque a concisao frustra a profun- didade, De mar lo 0 que é breve parece resumido. A escassez gera a densidade, e a densidade gera o enigma. Encon- tramos na obra de TW os dois desvii para ser mais exato, um ténue ct ir da folha, mas esse fundo 6, Se invertemos a relagao habitual dizerqueotraco, ahachura, forma, ‘oacontecimento grafico, é o que permi folhaexista, ser, diz Tao, oferece possibilidades, e é pel .") Oespagotratado jandoémais enumeravel, sem deixar, no entanto, de ser plural: niio € de acordo com esta oposigao quase insustentével, pois que exclui simultaneamente o niimero ¢ a unidade, a dispersio ¢ 0 centro, que se deve interpretara dedicat6ria de Weber para Alban Berg: “Non multa, sed multum"? wee Hé pinturas nervosas, possessivas, dogméticas; impdem o produto, emprestam-Ihe a tirania de um conceito ou da violencia de uma cobiga. A arte de TW — e nisto estd sua moralidade— bem ide hist6rica—ndo quer captar nada; la entre o desejo— que, sutilmente, anima € adelicadeza, que a libera; se fosse necessério referiressa obraaalgo, esse algo teria que virde muito longe, de forado dominio

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