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Apeuar Bot TEORIA DA ORGANIZACAO POLITICA - I EXPRESSAO POPULAR Aprmar Boco (orG.) TEORIA DA ORGANIZACAO POLITICA Bok Agostinho Neto, Florestan Fernandes CC taco TERM rie ae OL Ho Chi-minh, Marighella, Alvaro Cunhal, Quando Marx e Engels escreveram 0 Manifesto do Partido Comunista, er 848, firmado sobre as contradicoes que o capitalismo produzia nos paises industrializados, © Brasil e 0s paises latin americanos, com economias essencialmente agricolas, lutavam pela independéncia e pela implantacao da repiiblica. As primeiras ideias socialistas foram disseminadas na ‘América Latina no final do século 29, No Brasil, duas correntes marcaram as primeiras lutas do movimento operario nascente. Uma, social- democrata, inspirada na Segunda Internacional. Outra, anarquista. A principal forma de luta eram as greves; unides operérias € coopefetivas, as formas organizativas. A partir da década de 1920, 0 ““eurocentrismo” hegemonizou 2 orientagao politico- partidéria. A estrutura agréria do continente americano foi classificada como feudal, a burguesia local considerada progressista, o campesinato definido como hostil ao socialismo... 0 século 20 foi marcado por mobilizagdes populares, lutas pela libertago nacional e revolucSes. O movimento socialista conheceu seu apogeu e, também, sua maior crise. Entretanto, ‘© marxismo, como ciéncia , Tevigorou seu Ademar Bogo (org) TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I Escritos de Maritegui, Gramsci, Prestes, Che, Ho Chi-minh, Marighella, Alvaro Cunhal, Agostinho Neto, Florestan Fernandes Dealt EDITORA EXERESSAO POPULAR Sio Paulo = 2010 Copyright © 2006, by Euitora Expressio Popular Revisio: Geraldo Martins de Azevedo Filho, Miguel Cavalcanti Yoshida « Ricardo Nascimento Barreros Projeto grifico e capa: ZAP Design Diagramagio: Mariana Andrade Ilustragio da capa: Ludwig Meidner, dtalhe do quadro Revolugso Impressio e acabamento: Cromasee Duos intemacirait de Catalogacio-na-Publicagio (CIP) [731s Teoria da organizago poli 1 / Ademar Boso (rg) -2.08--St0 | Paulo : Expressio Popular, 2010 alsp. Escrtos do = Manito, ramso, Prete, Che, Ho Chi-minh, ‘Maighalla, Alvaro Curhal, Agostino Neto, Flerestan Famandes. Indexado em GeoDedos - itp frw geodads.nom br ISBN OTS.85-7703.018 5 | Politic. 2. Bsrites politicos. 1 Bogo, Ademar, I. Tite cpp nied_320 ‘Todos 0s direitos reservados. ‘Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada (ou reproduzida sem a autorizacio da editora, EEigio revista e atualizada conforme a nova regra ortogrifica 2 edigdo: maio de 2010 EDITORA EXPRESSAO POPULAR Rua Abotigio, 197 ~ Bela Vista CEP 01319-010 - Sio Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3105-9500 ‘vendas@expressaopopular.com.br ‘vrwrw.expressaopopular.com.br Agradecimentos Enaide Landanza Espfrito Santo Heloisa Fernandes J. Heleno Rotta ‘Neuri Rossetto Ricardo Gebrim INTRODUCAO. OLEGADO DE JOSE CARLOS MARIATEGUL PONTO DE VISTA ANTLDPERALST oer Jot Cae Marie © LEGADO DE ANTONIO GRAMSCI.... (© parnipo rotinico... Antonio Grams (© parribo coMUNISTA Antonis Grama ‘© LEGADO DE LUIZ CARLOS PRESTES. ‘Manifesto De 5 ne juin ba Auanica NACIONAL LiDgsTADORA Laie Co Press (Casra.n0s comunesras Lele Caro: Pas ‘O LEGADO DE ERNESTO CHE GUEVARA, (© PARTIDO MARSASTA-LENINISTA mate Ohe Gesers ‘Sosn® A CONSTRUGKO DO PARTIDO Ennte Che Genera © LEGADO DE HO CHI-MINH O partino pa CLASSE OPERARIA Ho Chis CCanaCTEnisTICAS IVTERNAS DO PARTIDO DOS TRABALHADORES DO VIETNA Ho Chemin ANOVA MORALIDADE. Ho Chi-min 105 119 IBY ws MAT 159 168 so 183 ‘OLEGADO DE CARLOS MARIGHELLA.. ANOVA GERAGAO B & LIDERANGA MAROASTA Cals Marga A.crISE BrRASILEIRA Cols Marigheta QO. LEGADO DE ALVARO CUNHAL von. partido, a classe e as massas. Aare Cantal O LEGADO DE ANTONIO AGOSTINHO NETO. Quen £0 INIMIGO? Qual £0 NossO OBETIVO?. Avan Agen Neo © LEGADO DE FLORESTAN FERNANDES. O QUE REVOLUGAC?... ore Ferandes PT: Os Ditemas Da oncaniZacho . loreae Femaniee 2a mn 219 231 315 32 339 349 389 INTRODUCGAO. As ideias socialistas tardaram a chegar e a se desenvolver na América Latina € no Brasil. © baixo nfvel de industializacio €.a projecio de poucos intelectuais no século 19, como se deu na Europa, esto entre as raz6es que dificultaram o raiar desse pensamento. Na Europa, em 1848, enquanto Marx e Engels escreviam 0 Manifesto comunista, firmado sobre as contradigées que 0 capita- lismo produzia nos paises industrializados, no Brasil e nos paises latino-americanos as economias eram essencialmente agricolas € na maior parte fancionavam com a exploragao do trabalho escravo. As lutas desenvolvidas no continente latino-americano eram pela independéncia ¢ a implantagio da reptiblica. Entre 1811 e 1828, Paraguai, Argentina, Venezuela, Chile, Equador, Peru, México, Brasil, Bolivia, Uruguai e todos os pafses da América Central conquistaram a independéncia ¢ iniciaram a construcio “auténoma” de suas nagdes. TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA “O marxismo foi inicialmente introduzido e disseminado na América Latina por imigrantes alemies, italianos e espa~ nhéis por volta do final do século 19. Surgiram os primeiros partidos operarios, os primeiros pensadores se valeram das ideias marxistas e surgit uma corrente, inspirada pela Segunda Internacional! sua ala moderada era representada por Juan B. Justo (1865-1928) ¢ o seu Partido Socialista Argentino (fisndado em 1895); e a ala revolucionéria, por Luis Emilio Recabarren (1876-1924) ¢ 0 seu Partido dos Trabalhadores Socialistas do Chile (fandado em 1912)" como nos informa Michael Liwy. Léwy destaca, ainda, como importante a contribuigio do joven cubano Julio Antonio Mella (1903-1929) como precursor das ideias socialistas e como quem desenvolveu a tética, repetida por Fidel Castro algumas décadas depois, de tentar repatriar 08 exilados cubanos no México. Mella foi assassinado ao desem- barcar, em 10 de janeiro de 1929, aos 26 anos de idade. Juan B. Justo foi o primeiro a traduzir o livro O capital, de Marx, para 0 espanhol. A traducio do Manifesto comunista, no Brasil, sé foi conclufda por Octivio Brandio, comunista alagoano e farmacéutico de profissio, anos depois, em 25 de julho de 1948. Merece destaque José Carlos Maritegui (1894-1930), per- sonagem marcante na luta pelo socialismo latino-americano. Inicialmente execrado pela intelectualidade comunista, por suas ideias originais, apés ter vivido por quase 3 anos na Itdlia, influenciado por Gramsci, Maridtegui buscou na organizacio ver BOGO, Mdemar. Teriado oranizaopoltica I. Editora Expresso Popular, Sio Paulo, 2006, pp. 17-2 LOWY, Michacl (org). O marasmo ne América Latina. Una antoopa de 1909 cs dias ‘tus, Edivora Fundagio Perseu Abrazno, 2 edicio, Sto Paul, 2003, p, 14 ® KONDER, Leandro Pistia dasieissoialisas no Bal Edivora Expressio Popular, ‘S50 Paulo, 2008, p21 ADEMAR DOGO (ORG. aberta dos trabalhadores ¢ dos indigenas peruanos a incluso dos aspectos culturais como elemento fundamental da luta politica. Com a Revolugio Russa de 1917, e a criacio, por Lenin, da Terceira Internacional Comunista, surgiram, a partir da década de 1920, os partidos comunistas, profundamente influenciados pelo fenémeno conhecido como “eurocen- trismo”. “Foi o eurocentrismo, mais do que qualquer outra tendéncia, que devastou o marxismo latino-americano. Com esse termo, queremos nos referir a uma teoria que se limita a transplantar mecanicamente para a América Latina os mo- delos de desenvolvimento socioeconémico que explicam a evolucio hist6rica da Europa ao longo do século 19... Usando esse método, a estrutura agréria do continente foi classificada como feudal, a burguesia local considerada progressista, ou mesmo revolucionéria, o campesinato definido como hostil a0 socialismo coletivista ete. (..)~ Esse ditigismo no campo das ideias asfixiou (em parte) as energias do marxismo latino-americano por virias décadas — praticamente por todo o perfodo em que a URSS foi governada por Stalin de 1924 a 1953, que usou o poder ea organizacio da ‘Terceira Internacional como instrumento para “domesticar” os partidos comunistas do mundo todo. Com a vinda de imigrantes europeus para o Brasil, as posi- ges ideol6gicas foram ganhando forma. “Apareceram, entio, dois polos distintos: um, constitufdo pela social-democracia, que estava organizada na Segunda Internacional, inspirada nas posigdes de Marx, Engels, Kautsky, Lassalle, Bebel etc; 0 outro, composto pelo socialismo libertério, baseava-se no legado dos socialistas ut6picos, mas se apoiava nas concepgées de Mikhail LOWY, Michael Op. at, pp. 10-1, TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I Bakunin, de Piotr Kropotkin ¢ de Errico Malatesta.” O se- gundo grupo, de natureza ideol6gica anarquista, influenciou profundamente 0 movimento operirio do inicio do século 20 pela sua aguerrida combatividade. Os anarquistas (eram contra a organizagao de um partido € desconfiavam inclusive da estrutura sindical) e os social-de- mocratas (sem uma organizagio partidéria definida) investiam nas Unies Operarias, cooperativas ¢ associagdes de auxilio miituo. As formas de luta eram as greves, coordenadas pela Central Operiria Brasileira (COB), e os congressos operarios (@ primeiro em 1906 e 0 segundo em 1913), quando debatiam as linhas politicas. © aumento das greves, a partir de 1917, ¢ a influéncia da Revolugio Russa recolocaram 0 debate sobre a criagio de um partido politico de natureza comunista. Mesmo com a oposi- Gio dos anarquistas, “Em margo de 1922, havia 73 militantes convertidos ao leninismo em todo o Brasil dispostos a fundar © novo partido. A maioria provinha do anarquismo, Publica- ram uma revista intitulada Movimento comunista e elegeram 9 delegados, que se reuniram no Rio de Janeiro, nos dias 25 e 26, ¢ em Niterdi, no dia 27 de marco daquele ano” e fundaram 0 Partido Comunista do Brasil (PCB). Dois anos apés afundagio, © partido filiou-se 4 Terceira Internacional. O fato a considerar é que o PCB tinha, em 1927, cerca de 800 filiados. Era um partido de quadros, mas de pouca capacidade de mobilizagio, Para o partido “sair do isolamento”, procuraram Luiz Carlos Prestes, que somente se filiaria ao partido em 1934, pouco antes do nascimento da Alianga Nacional Libertadora 5 KONDER, Leandro. Op at, p. 34 © Hem, pp. 46-47 ADEMAR BOGO (ORG.) (AND), organizagio de massas, utilizada como instrumento para umificar as forcas, fundada em margo de 1935 e fechada em julho do mesmo ano, por Getilio Vargas. O seu fechamento dispersou as forcas e deixou o levante insurrecional, com base nos militares, em novembro,isolado. Dai em diante, Luiz. Carlos Prestes passou aserareferéncia do PCB até 1980, quando se desligou do partido. ‘A década de 1930 foi toda ela dedicada 3 preparacio da Segunda Guerra Mundial. O estalinismo influenciou as politicas de aliangas que os partidos comunistas deveriam fazer em cada pais. Isso representou um grande retrocesso. No caso brasileiro, o PCB, seguindo a orientagio de Mos- cou, ordenava o apoio a Gettilio Vargas, para que declarasse guerra 2 Alemanha e seus aliados. Isso significava que, embora houvesse iniciativas na elaboracio teérica, os pés permaneciam ligados & realidade latino-americana, mas a cabeca reproduzia as ideias europeias. Em 1959, surgiu o fenémeno da Revolucéo Cubana’ liderada por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara passou a influenciar © pensamento revolucionério ¢ introduziu o método da lata guerrilheira, que, em sua visio, substituiria a organizacio bu- rocritica dos partidos. “Um novo periodo revolucionério para © marxismo latino-americano, portanto, teve inicio apés 1960 — um perfodo que recuperou algumas das ideias vigorosas do ‘comunismo original’ da década de 1920. Nao houve nenhuma continuidade politica e ideolégica direta entre os dois perfodos, ‘mas os castristas redimiram Maritegui e resgataram Mella ea revolucio de 1932, em El Salvador, do esquecimento hist6rico”” Ao mesmo tempo, havia uma articulagio politica intensa das lutas de independéncia da Africa com as da América Latina. O LOWY, Michael. Op. at, p45, TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA 1 proprio Che Guevara, em missio de solidariedade, comandando 100 cubanos, esteve no Congo em 1965, para ajudar a organizar as forcas de resisténcia aos Estados Unidos no pais, Para Che, ‘quanto mais pafses se levantassem contra o imperialismo, mais ficil seria combaté-lo e derroté-lo. Che conseguiu influenciar as foreas politicas de varios paises e se propés a liderar o proceso de enfrentamento com 0 imperialismo em qualquer parte do mundo, contribuindo no Congo ¢ instituindo pessoalmente a uta guerritheira na Boltvia. Em Cuba, organizou-se, em julho de 1967, 0 congresso da Organizagao Latino-Americana de Solidariedade (Olas), que teve a participacio ativa de Carlos Marighella. O lema do Congreso — “um, dois, trés, mil Vietnas” — era uma homena- gem a luta revoluciondria em curso pela libertacio nacional ¢ contra o imperialismo estadunidense, com titicas de guerrilha lideradas por Ho Chi-minh, por quem Marighella e 0 préprio Che Guevara nutriam grande admiracio. Nessa época, Marighella, antigo militante do PCB, agora {id desligado do partido, iniciou os preparativos para a orga- nizagio da guerrilha urbana. Para isso, aprofundou varios aspectos da teoria revolucionaria e construiu 0 instrumento politico-militar conhecido como Acio Libertadora Nacional (ALN), numa tentativa de resgatar a organizagio desfeita em 1935 (ANL). Elaborou, em junho de 1969, o Minimanual do guerrilheiro © constituiu o seu exército revolucionério para combater a ditadura militar. Com a morte de Marighella, em 4 de novembro de 1969, a sua organizagio ¢ os demais grupos guerrilheiros foram duramente combatidos e final- mente derrotados. O iltimo foco a resistir 8 ditadura militar foi a guerrilha do Araguaia, em 1974, organizada pelo Partido ‘Comunista do Brasil (PCdoB). ADEMAR BOGO (ORG.) Nesse mesmo ano, © mundo assistiu a algo inusitado na Europa. Com o Partido Comunista Portugués (PCP) a frente, “surpreendido” com as condigdes favorsveis para a revolucio, em 25 de abril de 1974, tendo o general Vasco Goncalves (comu~ nista) 3 frente, numa ampla alianga com as forcas da burguesia nacional e parte do Exército portugués, apés derrotar uma tentativa de golpe, foi deflagrado 0 que ficou conhecido como a “Revolugao dos Cravos". As primeiras medidas do governo provis6rio instalado foram a estatizagio das indtistrias e dos bancos € 0 apoio as ocupagdes de terra. Apesar das tentativas de resisténcia, e como consequéncia do excesso de tolerncia para com as forgas da direita, atltima iniciativa de perspectiva revoluciondria do século 20 na Europa durou até 1985, com a eleigéo de Cavaco Silva para Primeiro Ministro. Em 1989, o Parlamento, com uma composicéo majo- ritariamente de direita, passou a elaborar leis acabando com as conquistas da revolucio—revertendo a estatizacio e destruindo por completo a reforma agraria, com a devolugio das terras 20s antigos donos. © Partido Comunista Portugués, com tradigio de grandes liderangas de elevada cultura e elaboragio tedrica, permanece organizado, mas as condigSes nunca mais voltaram a ser favo~ riveis. Citamos, como homenagem pelo grau de compromisso e bravura, o general Vasco Gongalves e Alvaro Cunhal, ambos falecidos em junho de 2005. O primeiro com 85 e segundo com 91 anos de idade. Alvaro Cunhal, embora fiel as ideias soviéticas, foi um dos grandes claboradores da estratégia politica eda teoria da organizacio partidaria. Contemplamos nesta obia uum texto seu, relacionado com o partido, a classe ¢ as massas. A ‘Revolugio dos Cravos” repercutiu de imediato nas co- lnias portuguesas na Africa. A partir de 1970, com a morte de TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA IL Salazar, intensificam-se as insurreigdes nas diversas col6nias, como em Guiné-Bissau — para onde foi Paulo Freire apés ser exilado pela ditadura militar brasileira -, Cabo Verde, Mocam- bique, Angola ¢ outras que foram ajudadas ou reconhecidas como nagGes independentes a partir de 1974, ‘Como referéncia de luta e de coeréncia com as ideias revo- Jucionarias, incluimas aqui um texto de Agostinho Neto, que estudou Medicina em Portugal e militou como estudante no Partido Comunista Portugués, tendo sido o grande Ifder da Juta pela independéncia angolana. No Brasil, o vazio deixado pela interrupgao da luta armada, em 1974, foi preenchido, no final da década, pela-ascensio da Ita sindical através das greves de massas. Posteriormente, esse actimulo de forgas levou 3 criago do Partido dos Trabalhado- res (PT). O PT, apesar de ter atraido, desde o inicio, muitos intelectuais, ndo conseguiu se constituir como um partido revoluciondrio de natureza marxista. Aos poucos, foi se des- viando da rota da transformagio revoluciondria ¢ apegou-se as reformas possiveis, utilizando a tética eleitoral como tinica saida para obter vit6rias. ‘Mesmo militando nesse limitado partido, encontramos, entre ‘outras, uma voz dissonante das demais, Florestan Fernandes, de ideias marxistas, foi uma das poucas cabegas que continuow a cla~ boragio te6rica no caminho da busca da revolugio e do socialismo. Chegamos a0 inicio do século 21 com grandes dilemas, que temos de enfrentar. Mas também ternos experiéncias diversas para nos espelhar e nos orgulhamos delas. Este volume, Teoria da organizagéo politica II, retine autores que, sem se desvincular ou desviar da tradicio historica classi- ca, parecem, 3 primeira vista, “desarmonizados” da o¥todoxia marxista, Mas isso nio € real. Bles apenas tomaram 0 marxismo ADEMAR BOGO (ORG.) ‘como cincia da hist6ria ¢ deram a cle o vigor do contetido ¢ dos métodos de transformacio das priprias realidades. De uma for- ‘ma ou de outra, acrescentaram elementos que, do ponto de vista “dogmitico” eestreito dos vethos partidos comunistas (com quem muitos deles romperam), foram questionados. O que fizeram foi extrair da realidade diferenciada os elementos que reanimaram a lta de classes e deram vida ao marxismo, emposirado nos balcdes burocriticos das priticas cansadas dos partidos, atualizaram as polémicas e apontaram 0 rumo dos proprios passos. Essa juncio entre as diversas experiéncias feitas quase que a0 mesmo tempo, a partir da segunda década do século 20, na Europa, Asia, Africa e América Latina, sao ideias e praticas que se misturaram c, talvez, pela primeira vez na hist6ria da humanida- de, tenham estado tio irmanadas na elaboracio das titicas e no combate ao mesmo inimigo imperialista. Essas ideias e priticas colocadas aqui influenciaram, de uma forma ou de outra, pelo ‘menos a metade da populagio do mundo dessa época.® Todos esses personagens tiveram como ponto de partida uma vida dura desde a infincia e muito cedo aprenderam 0 que craa miséria ¢ 0 sofrimento, Enfrentaram a prisio, a clandesti~ nidade e 0 exflio. Acreditaram na organizacio, na revolugio ¢ no socialismo. Viveram em tempos muito préximos, a mesma conjuntura internacional, mas foram suficientemente sébios para adequarem o pensamento a cada realidade conereta, como a dizer a uma 6 voz: as revolugdes nfo se transportam, preci sam ser edificadas como as construgdes que, para cada terreno, precisam de um projeto proprio. Que tenhamos a grandeza de observi-los de perto para continuarmos com passos firmes em direcio 3 revolugdo ¢ a0 socialismo. Fagamos nés mesmos a organizagio, a revolugio € 9 socialismo do século 21. OLEGADO DE JOSE CARLOS MARIATEGUI José Carlos Maritegui, nasceu em Moquegua, no interior do Peru, em 14 de junho de 1894. A me, Maria Am(lia, india; © pai, Francisco Javier Maritegui, espanhol, funciondrio pébli- co no Tribunal de Contas do Estado, Obrigado a fazer muitas viagens, acostumou-se a ficar longe da familia, até que, ao set tansferido de lugar, abandonou-a por completo, Maria Amélia foi obrigada a se mudar com os trés filhos, Guilhermina, Julio César e José Carlos, para Lima, a capital do pats, Em 1902, quando Mariitegui brincava na escola, softeu tum ferimento no joelho ¢ ficou convalescente por quatro anos, © que lhe rendeu uma deficiéncia fisica para 0 resto da vida. Devido as dificuldades financeiras¢ fisicas, abandonou a escola ¢ iniciou a sua formagio por conta propria. Em 1909, ingressou como funciondrio em um jornal diétio chamado La Prensa e passou a se interessar pelo jornalismo; dois anos depois, escreveu seu primeiro artigo, em que uso © pseudénimo de Juan Croniqueur. Logo em seguida, mesmo TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I mantendo sua coluna com temas liter4rios ¢ artfsticos, ficou responsavel pelas noticias policiais ea publicacio dos resultados das loterias. Nos anos seguintes, passou a colaborar com varios jornais revistas, até que, em 1919, cleito Leguia como presidente do Peru, Maritegui, que inicialmente apoiou 0 governo, assumin- do sua defesa, aos poucos.se desencantou e passou a criticé-lo nas colunas do jornal La Razén, fundado por ele. ‘O jornal {01 fechado pelo governo em agosto de 1919 ¢ Ma- riétegui enviado 3 Icdlia pelo proprio governo para ser agente de propaganda no estrangeiro. ‘A viagem 2 Itdlia, onde ficou até 1923, causou profundas mudangas na vida de Maridtegui. Ali tomou contato com as ideias marxistas e mais diretamente com o pensamento de An- tonio Gramsci, Em 1921, participou do congresso do Partido Socialista Italiano. Durante o perfodo em que esteve na Itdlia, casou-se com ‘Ana Chiappe e, antes de retornar, assistiu ao nascimento de seu primeiro filho. Aproveitou a viagem para conhecer varios paises da Europa, indo até a Bélgica, de onde embarcou em margo de 1923 para o Peru, dedicando-se a organizar o partido, dentro da concepgio italiana, que previa a organizagio das lutas e a criagio de conselhos de fabricas. Colocou-se duas tarefas fundamentais: articular o mun- do da cultura ¢ intervir no mundo do trabalho. E, para isso, passou a colaborar com a revista Variedades e a participar de debates ¢ conferéncias na universidade. Assumiu a direcio da revista Claridad em colaboragio com professores ¢ alunos da ‘Universidade Popular. Continuou colaborando com diversos jornais um ano depois langou o livro La escena contemporinea, uma coletinea ADEMAR BOGO (ORG. de artigos, e fundow a revista Amauta — foi através dela que conseguit estabelecer os futuros combates ideolégicos. Em setembro de 1928, através da revista Amauta, Maridtegui declarou a importancia de os trabalhadores peruanos terem 0 seu partido politico —o Partido Socialista do Peru ~ 0 que veioa ocorrer em 8 de outubro. Maristegui foi eleito secretario-geral, Em 1929, Maridtegui publicou a sua principal obra ¢ ‘nica traduzida no Brasil: Sete ensaios de interpretagio da ralidade peruana, Nesse mesmo ano se constituiram a Confederagio dos ‘Trabalhadores ¢ o Partido Comunista. Sua satide tornava-se cada vez mais precdria, Em margo de 1930, foi internado as pressas. Em 16 de abril, antes de completar 36 anos de idade, veio a falecer, deixando espose e quatro filhos, _juntamente com uma infinidade de contribuigSes te6ricas para as novas geraces. As ideias de José Carlos Mariétegui . Sobre a importancia politica de Maritegui, damos vou a Florestan Fernandes no preficio do livro Sete ensais de interpre ‘agéo da realidade peruana: “Antes da edicao deste livro, em 1928, Maridtegui publicara La escena contemporinea (1925). Ap6s sua morte, foram publicados Defensa det marxismo (1934); El alma y otras estaciones del hombre de hoy (1950); La novela y la vida (1955). Gragas ao desvelo de seus filhos, sua vasta produgio dispersa foi agrupada em virios volumes e editada sob a forma de li- vror El artista y la Gpoca, signos y obras; Historia de la crisis mundial (conferéncias); Peruanicemos el Peru; Temas de educacin; Cartas de ltd; Figuras y aspectos de la vida mundial (3 tomos); Ideologia xy politica e Temas de nuestra América, Isso sem contar com a pro dugio poética e literaria anterior, de sua ‘idade da pedra’. Para quem morreu tio cedo e $6 iniciow a atividade criadora madura TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA aos 28 anos, atendo-se, além do mais, a padroes de exigéncia intelectual estritos, trata-se de uma faganha Gnica”! Mariategui foi um assiduo defensor da identidade ¢ da cul- tura latino-americanas como elementos fundamentais da uta e da vida revolucionérias. Para ele, 0 indio deveria ser considerado “membro da patria” e nao um ser de segunda categoria Para esta coletanea, separamos 0 texto “Ponto de vista anti- imperilista”,? em que retrata bem seu sentimento contra as burguesias locais, que serviam de apoio & exploracio capitalista mundial. Inicia o texto perguntando: “Até que ponto a situagio das repiblicas latino-americanas pode ser assimilada {sic] dos pafses semicoloniais?”. Ao perguntar, afirma a ideia de que as reptiblicas nao haviam reduzido e nem reduziriam o grau de dominagio colonial, mesmo que a burguesia nacional, em cada pais, tivesse chegado ao poder. E que essa burguesia nunca seria revolucionéria; a0 contrério, seria cada vez mais submissa e colaboradora das forcas externas. Asua polémica se deu com os “apristas”, militantes da Apra (Alianga Popular Revoluciondria da América), surgida em 1926. Foi justamente sobre a relacio entre a burguesia local, os lati- fiandigrios ¢ o imperialismo que, na América Latina, nao seria possivel construira alianga feita na China, onde Mao Tse-tung aliou-se temporariamente ao Koumintang, partido nacionalista liderado por Chiang Kai-shek, em 1924. O fator que Mariate- gui destacou como inconciliavel foi a cultura. Na China havia uma cultura “unitéria” ~ naquele momento foi possivel uma T MARTATEGUT, José Carlos. Sate eso de interpreta de resiade pean. Eatora Expressio Popular, So Paulo, 2008, 2 LOWY, Michael (ng). O mars ne América Latina. Une aniblogia cde 1909 as das atudis, Elita Fundagio Persen Abram, Sio Paulo, 2008, ADEMAR BOGO (ORG.) ‘unidade politica na Iuta contra 0 Japio — enquanto que aqui na “Indo-Ameérica” as circunstancias nio eram as mesmas. “Porque aqui a aristocracia no se sente solidéria com 0 povo por nio ter nem hist6ria e nem uma cultura comum,” Deixou claro que © aristocrata e o burgués peruano desprezava 0 “nacional ¢ 0 popular”. Isso também se dava com a pequena burguesia, que repetia 0 que as elites fiziam, pois nio via contradicio entre estas ¢ © imperialismo. Chamou a atengio que, mesmo na China, a burguesia nfo era confiével, pois esta nao tinha um sentimento revolucionério. Para ele nao se podia transformar o “anti-imperialismo num programa politico” nem num movimento de massas, pois mesmo que a burguesia ¢ a pequena burguesia viessem a ser aliadas, nao se eliminariam os antagonismos de classe nem as diferengas de interesses. Uma vez no poder, essas forcas ja- mais fariam uma politica anti-imperialista. Os investimentos externos, a exploracio das riquezas naturais etc, cram: para ele, nada mais do que “uma embriagués nacionalista temporiria”. Por isso, a revolucéo socialista nao encontraria nessas forgas um aliado, mas um “encarnicado inimigo”. Para Maridtegui, as quiest6es da politica imperialista eram diferentes nos paises sul-americanos ¢ nos pafses centro-amie~ ricanos, pois nestes havia uma intervencio militar vergonhosa. Também era diferente, entre uns ¢ outros, a constituigio das classes trabalhadoras. Nos paises sul-americanos, a questio classistaestava mais desenvolvida, razio por que empenhou-se na organizacio da Central Geral dos Trabalhadores do Peru, em 1929. Mariétegui shantinha a mesma interpretagio sobre a clas- se latifiundisria, Mesmo que esta fosse desapropriada de suas terras, o capital financeiro sairia fortalecido, sentir-se-i mais TEORIA DA ORGANIZACAO POLITICA seguro, pois o poder passava para outra classe mais dinfmica que a velha burguesia latifundiéria. No caso do Peru, mesmo que 0 governo Legufa— Mariétegui, de infcio, foi defensor desse governo—nio mexesse nas grandes propriedades, segundo ele, as forcas do capital fariam isso e entrariam em confronto com os grandes proprietérios da monocultura, controladores da terra, da 4gua e da forca de trabalho. Para Maritegui, a pequena burguesia, embora “sensivel a0s mitos nacionalistas”, no fando, ela sempre procuraria os melhores salérios oferecidos pelas empresas imperialistas. Entio afirma que: “(..) somos anti-imperialistas porque somos marxistas, porque somos revoluciondrios, porque con- trapomos ao capitalismo 0 socialismo como sistema antagénico, chamado a sucedé-lo, porque na luta contra os imperialismos estrangeiros cumprimos nossos deveres de solidariedade com as massas revolucionérias da Europa”. E importante reconhecer a atualidade desse texto, tendo em vista a chegada da pequena burguesia, travestida de classe operria, a0 governo em nosso pais nas eleicGes presidenciais de 2002, passando a colaborar com o capital financeiro ¢ ar- gumentando que “precisaria arrumar a casa” para depois agir contra os grandes interesses capitalistas. Enquanto isso, entrega as riquezas naturais, paga altas taxas de juros, aprova leis que dio seguranca e garantias as empresas e ao capital externo se dedica a produzir com prioridade o que é de interesse do mercado externo em detrimento do emprego ¢ do bem-estar do nosso povo. & preciso voltar a Maridtegui e perceber que a vez dos tra- balhadores ainda nao chegou. E, para que chegue, precisamos ser marxistas, revoluciondrios e solidarios. PONTO DE VISTA ANTI-IMPERIALISTA* José Carlos Maristegui Este texto pertence 2 um documento redigido por Maridtegui ¢ apresentado pela delegacio peruana na I Conferéncia Comunista Latino-Americana (Buenos Aires, junho de 1925), Ele tenta delimitara questio-chave da relagio dialética entre alata de classes ea luta contra © imperialismo, e esboa uma anilise penetrante e inslita da relages ‘contradigdes entre a metrépole norte-americana, a burguesia locale 0s latifundisrios. F um dos textos palticas mais conhecidos de Mari tegui, ¢ tem sido objeto de milkiplas reedigées realizadas por grupos revolucionérios larino-americanos depois da Revolugéo Cubana, 1° — Até que ponto a situagio das reptiblicas latino-ameri~ canas pode ser assimilada [sie] & dos paises semicoloniais? Sem davida, a condigéo econémica destas repiiblicas é semicolonial, -Extracdo de LOWY, Michael (org). © marsismo na América Latina: Una antolgia de 1909 aos das ata, Editora Fundacio Perseus Abram, Sio Paul, 1999, p. 114-116, ‘Tradurio de Claudia Schilling TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I ¢, A medida que crescer seu capitalismo e, consequentemente, a penetracio imperialista, este cardter de sua economia tende a se acentuar. Mas as burguesias nacionais, que veer na coope- racio com o imperialismo a melhor fonte de lucro, sentem-se suficientemente donas do poder politico para nao se preoct- parem seriamente com a soberania nacional. Estas burguesias na América do Sul, que ainda nfo conhecem ~ com excegio do Panam ~a ocupagao militar yankee, nfo esto predispostas, de forma alguma a admitir a necessidade de lutar pela segunda independéncia, como supunha ingentamente a propaganda aprista, O Estado, ou melhor, a classe dominante, nao sente falta de um grau mais amplo e certo de autonomia nacional. A revolucio da independéncia est demasiado préxima, relativa- mente, seus mitos e simbolos demasiado vivos, na consciéncia da burguesia c da pequena burguesia. A ilusio da soberania nacional conserva-se em seus principais efeitos. Pretender que nesta camada social surja um sentimento de nacionalismo revoluciondio, parecido com o que, em condigées diferentes, representa um fator da luta anti-imperialista nos paises semi- coloniais avassalados pelo imperialismo nas tiltimas décadas na Asia, seria um erro grave. Em nossa discussio com os dirigentes do aprismo, reprovan- do sua tendéncia a propor um Kuomintang’ América Latina, a fim de evitar a imitacio curopeia ¢ situar a a¢io revolucionéria em uma apreciagio exata de nossa prépria realidade, ststents- vamos hé mais de um ano a seguinte tese: Acolaboragio com a burguesa, asim como muitos elementos feudais nna luta anti-imperialista chinesa, explica-se por motives de raga, de Civilizagio nacional que nio existem entre nés. © chinés nobre ou bburgués sente-se profundamente chinés. Ao desprezo do bratica por sua ‘cultura estratificada e decrépita, esponde com o desprezo ¢ o o#gulho ADEMAR BOGO (ORG.) desuatadiho milenar. © anti-impernismo na China pode, portant, basear-se no sentiment eno ftornacinalista. Na Indo-Amética, a circunstinias no si as mesmas. A astocracia ea burguesa nacional io se sentem solidatizadas com o povo pelo lago de uma histria € de uma cultura comins, No Pera, o aistocratae o burgués brancos Gesprezam o popular, © nacional. Senenm-se,acima de do, brancos, © pequeno-burgués mesic iit est exemplo. A burguesia de Lima confiaterniza com 0 captilistas yanks, mesmo com seus meros fancionsres, no Country Club, no Tennis mas rus. © yonkecasa-se sem inconveniente de raga nem de telipifo com a senorita nav, e esta no senteeserépulo de nacionalidae nem de cuitara em prefer o casumenta com tm indviduo da raga invasora. A moca de classe miédia também néo tem este eserpl. A hucchafite que conguista un ynkzeempregao de Grace ou da Foundation sene com satsigfo sa condigi social melhor. fatornacionalisa, por estas razbesobjetvas aque tis voctscomprecnem, no decisvo nem fundamental na uta anticimperialsta em nosso meio. Sé em paises como a Argettna, onde existe uma burguesia numcrosa rca, orgulhosa do gra de riqueza «poder er sta pita, onde a personalidade nacional tem por estas raz6escontornos maislaroseniiks que nests paesatrasedos,0anti- irmperiatsm pode (aver) penetra fcilmente nos lementosburgueses mas por matives de expansio crescent capitalists, no por rabies de justiga sociale dour socials, como & nosso caso. A traigio da burguesia chinesa e a faléncia do Kuomintang. ainda nao eram conhecidas em toda a sua magnitude. Um conhecimento capitalista,e no por motivos de justica social e doutrindria, demonstrou quio pouco se podia confiar, mesmo em paises como a China, no sentimento nacionalista revoli- cionério da burguesia Enquanto a politica imperialista conseguir manéger os sen- timentos e formalidades da soberania nacional destes Estados, 2 enquanto nio for obrigada a recorrer 3 intervengio armada e 4 ocupacio militar, contard com a colaboragio das burguesias. Embora enfeudados & economia imperialista, estes paises, ou suas burguesias, considerar-se-Ao tio donos de seus destinos como a Roménia, a Bulgéria, a Polénia ¢ demais pafses “de- pendentes” da Europa. Este fator da psicologia politica nio deve ser descuidado na estimativa precisa das possibilidades da ago anti-imperialista na América Latina, Seu adiamento, seu esquecimento, tem sido uma das caracteristicas da teorizagio aprista. 2° — A divergéncia fundamental entre os elementos que aceitaram em principio o Apra no Peru ~ como um plano de frente Gnica, nunca como partido e nem mesmo como orga- nizagio efetiva — ¢ os que, fora do Peru, definiram-no depois como um Kuomintang latino-americano, consiste em que os primeiros permaneceram fiéis 1 concep¢io econémico-social revoluciondria do anti-imperialismo, enquanto os segundos explicam assim sua posigio: “Somos de esquerda (ou socialistas) porque somos anti-imperialistas”. Assim, o anti-imperialismo €elevado a categoria de um programa, de uma atitude politica, de um movimento que basta. si mesmo e que conduz esponta~ neamente, ndo sabemos em virtude de que processo, 20 socia- lismo, 3 revolugio social. Este conceito leva a uma desorbitada superestimagio do movimento anti-imperialista, a0 exagero do mito da luta pela “segunda independéncia”, a0 romantismo de que jé estamos vivendo as jornadas de uma nova emancipacio. Dai a tendéncia a substituir as ligas anti-imperialistas por um organismo politico. Do Apra, concebido inicialmente como frente tinica, como alianga popular, como bloco das classes oprimidas, passa-se para 0 Apra definido como 0 Kuomintag Iatino-americano. ADEMAR BOGO (ORG) Para nés, o anti-imperialismo nao constitui nem pode cons- tituir, sozinho, um programa politico, um movimento de massas apto para a conquista do poder. O anti-imperialismo, admitindo que ele pudesse mobilizar a burguesia e a pequena burguesia. nacionalistas, ao lado das massas operdrias e camponesas (jé negamos terminantemente esta possibilidade), nao anula oanta- gonismo entre as classes, nem suprime sua diferenca de interesses. Nem a burguesia, nem a pequena burguesia no poder po- dem realizar uma politica anti-imperialista. Temos a experiéncia do México, onde a pequena burguesia acabou pactuando com 0 imperialismo yankee. Um governo “nacionalista” pode usar, em. suas relagdes com os Estados Unidos, uma linguagem diferente que o governo de Legufa no Peru. Este governo ¢ francamente, desaforadamente, pan-americanista, monrofsta; mas qualquer outro governo burgués faria praticamente © mesmo que ele em matéria de empréstimos e concessdes. Os investimentos do capital estrangeiro no Peru crescem em estreita e diréta relagio com o desenvolvimento econémico do pais, com a exploracio de suas riquezas naturais, com a populagio de seu territério, com o aumento das vias de comunicacio. O que pode contrapor a mais demagégica pequena burguesia & penetracio capitalis- ta? Nada, exceto uma embriaguez nacionalista temporaria. © assalto ao poder pelo anti-imperialismo, como movimento demagégico populista, se fosse possfvel, nunca representaria a conquista do poder pelas massas proletérias, pelo socialismo. Arevolucio socialista encontraria seu mais encarnigado e peri- g0so inimigo — perigoso por sua confusio, sua demagogia —na pequena burguesia assentada no poder, conquistado mediante suas vozes de ordem [palavras de ordem]. Sem prescindir da utilizagio de nenhum elemento de agi- taco anti-imperialista, nem de nenhum meio de mobilizagao TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA dos setores sociais que eventualmente podem auxiliar esta luta, nossa missiio € explicar e demonstrar 3s massas que s6.a revolts- cio socialista contrapora um obsticulo definitive e verdadeiro ao avanco do imperialism. 3° —Estes fatos diferenciam a situagio dos pafses sul-america- nos da situagao dos paises centro-americanos, onde o imperialis- ‘mo yankee, recorrendo 3 intervengio armada sem qualquer pudor, provoca uma reacio patriética que pode fazer facilmente com que ‘uma parte da burguesia e da pequena burguesia abracerm o anti- imperialismo. A propaganda aprista, conduzida pessoalmente por Haya de la Torre, nfo parece ter obtido melhores resultados em nenhuma outra parte da América, Suas pregagées confusas messianicas, que, embora pretendam se situar no plano da huta ‘econdmica, na verdade apelam particularmente aos fatores raciais esentimentais, retinem as condigdes necessétias para impressio- nar a pequena burguesia intelectual. A formacio de partidos de classe e poderosas organizagdes sindicais, com clara consciéncia classista, nesses pafses nfo parece destinada ao mesmo desen- volvimento imediato que na América do Sul. Em nossos pafses, 0 fator classista € mais decisivo, est mais desenvolvido. Nao ha ‘motivo para recorrer a vagas formulas populistas, por tras das quais nio podem deixar de prosperar tendéncias reaciondtias. Atualmente, o aprismo, como propaganda, esta circunscrito ‘América Central; na América do Sul, devido ao desvio populista, caudilhista, pequeno-burgués, como o definiao Kuomintang la- tino-americano, est em fase de extingo. A resolugio do préximo Congresso Anti-imperialista de Paris, cujo voto tem de decidir a unificacio dos organismos anti-imperialistas ¢ estabelecer a distingéo entre as plataformas e agitagdes anti-imperialistas e as tarefas que competem aos partidos de classe e as organizagoes sindicais, colocaré um ponto final na questo, 2» ADEMAR DOGO (ORG.} 4°—Em nossos paises, os interesses do capitalismo imperia- lista coincidem necesséria e fatalmente com os interesses feu- dais e semifeudais da classe dos latifundiarios? A luta contra 0 feudalismo identifica-se forcosa e completamente com a luta anti-imperialista? Certamente, 0 capitalismo imperialista utiliza o poder da classe feudal, que a considera a classe politicamente dominante. Mas seus interesses estratégicos nio sio os mes- mos. A pequena burguesia, sem excetuar a mais demag6gica, se atenuar na pritica seus impulsos mais nacionalistas, poder chegar mesma estreita alianca com o capitalismo imperialista, O capital financeiro sentir-se~4 mais seguro se o poder estiver em mios de uma classe social mais numerosa que, satisfa- zendo certas reivindicages mais prementes e atrapalhando a oriemtagio classista das massas, estari em melhores condigées de defender os interesses do capitalism, de ser seu custédio ¢ servo, que a velha e odiada classe feudal. A criagio da pequena propriedade, a desapropriacio dos latifiindios, o fim dos privi- légios feudais nao sio contrarios aos interesses do imperialismo, de modo imediato. Ao contrario, na medida em que os tiltimos resquicios de feudalismo travam o desenvolvimento de uma ‘economia capitalista, esse movimento de extincio do feudalis- mo coincide com as exigéncias do crescimento capitalista, pro~ movido pelos investimentos e pelos técnicos do imperialismo; que desaparecam os grandes latifiindios, que em seu lugar se constitua uma economia agréria baseada naquilo que a dema- sgogia burguesa chama “democratizacio” da propriedade do solo, que as velhas aristocracias sejam deslocadas por uma burguesia € uma pequena burguesia mais poderosa e influente ~ ¢, por isso mesmo, mais apta para garantir a paz social -, nada disso esté contra os interesses do imperialismo. No Peru, o regime de Legufa, embora timido na pratica diante dos interesses dos a TEORIA DA ORGANIZACAO POLITICA IL latifundisrios e caciques, que em grande parte o apoiam, nio tem qualquer inconveniente em recorrer 4 demagogia, em reclamar contra 0 feudalismo e seus privilégios, em bradar contra as antigas oligarquias, em promover uma distribuicio do solo que transformard cada pedo agricola em um pequeno proprictério, Justamente desta demagogia o regime de Leguia extrai suas maiores forgas. © leguifsmo nao se atreve a tocar na grande propriedade. Mas o movimento natural do desen- volvimento capitalista— obras de irrigagio, exploracio de novas minas etc. ~ vai contra os interesses ¢ privilégios feudais. Os latifundidrios, com o crescimento das éreas cultivaveis, com 0 surgimento de novos focos de trabalho, perdem sua principal forca: a disposigio absoluta e incondicional da mao de obra. Em Lambayeque, onde atualmente sto efetuadas obras de irri- gaco, a atividade capitalista da comissdo técnica que as dirige, presidida por um perito dos Estados Unidos, o engenheiro Sutton, entrou rapidamente em conflito com as conveniéncias dos grandes proprictérios feudais. Estes grandes latifundiarios sao, principalmente, produtores de agticar. A ameaca de perder © monopélio da terra e da agua, ¢ com ele 0 meio de dispor livremente da populagio de trabalhadores, enlouquece essas pessoas, levando-as a uma atitude que o governo, ainda que vinculado a muitos de seus elementos, qualifica de subversiva ou antigovernista. Sutton tem as caracterfsticas do empresario capitalista norte-americano. Sua mentalidade ¢ seu trabalho chocam o espirito feudal dos latifundidrios. Por exemplo, Sutton estabeleceu um sistema de distribuigio das 4guas, baseado no princfpio de que seu dominio pertence ao Estado; os atifundia- rios achavam que o direito sobre as 4guas estava ligado ao sett direito sobre a terra. Segundo sua tese, as Sguas lhes pertenciam; eram e sio propriedade absoluta de seus terrenos. ADEMAR BOGO (ORG.) 5° — Ea pequena burguesia, cujo papel na luta contra 0 imperialismo € tao superestimado, necessatiamente se opde penetracio imperialista, como tanto se diz? Sem dévida, a pe- quena burguesia é a classe social mais sensivel ao prestigio dos mitos nacionalistas. Mas o fato econdmico que acompanha a questio € o seguinte: em pafses de pauperismo espanhol, onde a pequena burguesia, pelo seus enraizados preconceitos, resiste a proletarizacao; onde a mesma, pela miséria dos salirios, néo tem forga econdmica para transformé-la, pelo menos em parte, cm classe operéria; onde imperam o empreguismo, o recurso ao pequeno cargo do Estado, a caga ao salério e ao posto “decente”; © estabelecimento de grandes empresas que, embora explorem enormemente seus empregados nacionais, sempre represenitam para essa classe um trabalho mais bem remunerado, € recebido e considerado de forma favorével pelas pessoas da classe média. A-empresa yankee representa melhor saldrio, possibilidade de promogio, emancipagéo do empreguismo do Estado} no qual nao hé futuro, exceto para os especuladores. Esse fato atua decisivamente na consciéncia do pequeno-burgués, que busca ou possui um posto de trabalho. Nesses paises de pauperismo espanhol, repetimos, a situagio das classes médias no é a ‘mesma constatada nos paises em que estas classes passaram por uum perfodo de livre concorréncia, de crescimento capitalista propfcio 3 iniciativa e ao sucesso individuais, a opressio dos grandes monopélios. Em suma, somos anti-imperialistas porque somos mar xistas, porque somos revoluciondrios, porque contrapomos 20 capitalismo 0 socialismo como sistema antagénico, chamado a sucedé-lo, porque na luta contra os imperialismos estrangeiros cumprimos nossos deveres de solidariedade com as massas revolucionsrias da Europa. O LEGADO DE ANTONIO GRAMSCI Antonio Gramsci, Nino para a familia, nasceu em 22 de Janeiro de 1891, na ilha da Sardenha, uma regio muito pobre da Itilia. Filho de Francesco e Giuseppina, era o quarto filho de 7 irmios. Aos dois anos de idade, Antonio contraiu tuberculose 6s- sea; aos quatro, caiu dos bragos de uma baba. A soma dessas adversidades o impediu de crescer normalmente ¢ The rendeu um deslocamento na coluna que 0 tornou corcunda. “De satide fraca, aos quatro anos, Nino sofreu hemorragia ¢ convulsdes por trés dias, © que levon seus pais a providenciarem a veste mortuéria ¢ um pequeno caixao para o filho desenganado”! Devido & acentuacio da corcunda, por orientaco médica, todos ‘0s dias, os pais, na tentativa de reverter o problema, penduravam © menino no teto da sala. ¥ MAESTRI, Mario & CANDREVA, Luigi. Antonio Grams. Vida eobm dem ce- ‘nuns revolciondria. Expressio Poplar, SS0 Paulo, 2001, p. 1. TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA Ih Desde crianga, conheceu 0 que era perseguicio politica e policial: vin seu pai, gerente de um cartério, ser acusado de roubo, ficando preso por quase 6 anos. Antonio abandonou a escola para trabalhar como carregador de pastas em uma re- partigio pablica, numa jornada didria de trabalho que chegava 2 10 horas, contribuindo com as financas familiares. Com 14 anos, a famflia mudou-se para a cidade de Santa Lussurgi, onde foi recebida por uma famflia de camponeses pobres. Ali ingressou no gindsio. Destacava-se em Histéria e nas redacbes, Nesse perfodo, passou a ter contato com as ideias socia- listas, através do irmo mais velho, Gennaro, que prestava 0 servigo militar em Turim e recebia 0 jornal Avantil, do Partido Soefalista Italiano. Ein 1911, ingressou na Universidade em Turim no curso de Letras, Durante o tempo em que permaneceu ali, estudou Filosofia, principalmente Hegel. Em 1915, por dificuldades econémicas, abandonou a uni- versidade, passando a cuidar da elaboragio do jornal socialista O Grito do Povo; colaborou com 0 Avantil, editado em Turim, e dedicou-se 4 edigio da revista A Cidade Futura, Sua grande preocupacio era desenvolver a cultura e a moral socialista entre 0s operarios. Para levar adiante sua ideia, organizou um espaco de discussio permanente, conhecido como “Clube da Vida Moral”, onde se debatiam temas voltados para a filosofia ea cultura. Para cle, era impossivel chegar ao socialismo sem desenvolver entre a classe operiria uma nova moral ‘A Revolugio Russa de 1917 influenciou profisndamente a formacio ideol6gica ¢ a militancia politica de Gramsci. Os ope- rérios italianos, motivados pela vit6ria bolchevique; desencadea- ram greves e revoltas na cidade de Turim. A repressio policial % HII ii i te ee eLetter LIL Ltt ttt ADEMAR ROGO (ORG.) assassinou cerca de 50 opersios e prendeu quase toda a diregio do Partido Socialista Italiano. Gramsci foi preso pela primeira vez. As discordancias dentro do Partido Socialista levaram Gramsci e um grupo de companheiros, em 21 de janeiro de 1921, a safrem do PSI ¢ a constitufrem 0 Partido Comunista Italiano (PCI), quando assumiu o cargo de secretirio-geral. Para cle, era necessério elaborar uma estratégia adaptada a realidade italiana, em que a classe operaria avangasse rumo 3 tomada do poder, como fizeram os operarios na Riissia. Entendia que a estrutura de base formada pelos sovietes, na Riissia, se repro- duziam nas comissées de fibrica na Itilia, que, por sua vez, deveriam deixar de ser aparelhos burocraticos dos sindicatos ¢ se tornar conselhos de fibrica, nos quais pudessem participar todos os trabalhadores sindicalizados ou nio. Em maio de 1922, vigjou para Moscou como representante do PCI junto ao Comité Executivo da Internacional Comu- nista criada por Lenin. Em Moscou, teve que set internado. por alguns meses em uma clinica para doengas nervosas, onde conheceu Julia Schucht, que se tornou sua esposa, Em 28de outubro do mesmo ano, os fascistas italianos,lidera- dos por Mussolini, marcharam sobre Roma e tomaram o governo, dando inicio a uma dura perseguigo aos comunistas. Uma ordem de prisio {01 expedida contra Gramsci, que no se intimidou, Em novembro de 1923, deixou a esposa em Moscon, (nunca mais tor nou a vé-Ia) e foi para Viena, para ficar préximo da Itilia e manter ‘ovinculo entre o PCI e os demais partidos comunistas da Europa. ‘Mussolini convocou eleigdes para o dia 6 de abril de 1924 ¢ Gramsci, mesmo fora do pais, candidatou-se a deputado pelo distrito de Veneto ¢ foi eleito. ‘Usando a imunidade parlamentar, retornou a Itélia, mas, isso de pouco the vale, Dois anos depois, em 8 de novembro TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I de 1926, foi preso com os demais deputados comunistas e, logo em seguida, levado para cumprir 20 anos de prisio na ilha de Ustica, no Norte da Sicflia. Nos relatos de seu julgamento, conta-se que 0 juiz, a0 declarar a sentenga, pronunciou a se- guinte frase: “Temos que impedir este cérebro de funcionar durante 20 anos”. Embora miltiplas campanhas pela sua libertagio tivessem sido organizadas no mundo todo, somente em 25 de outubro de 1936 foi promulgado o decreto que Ihe concedeu a liber- dade condicional, que durou até abril de 1937. Em 25 de abril, quando se preparava para voltar para a Sardenha, sofreu um derrame cerebral e, em consequéncia disso, veio ao falecer dois dias depois, com 46 anos de idade. O funeral de Gramsci foi realizado no dia 28 de abril, na cidade de Roma, com um pequeno cortejo, com Tania e Carlo, dois familiares apenas, fortemente vigiados pela policia fascista. Os escritos de Gramsci Gramsci, desde jover, foi um assicuo estudioso das obras de ‘Hegel, Marx, Lenin e intelectuais revolucionérios do marxismo. Gostava de escrever suas ideias ¢ divulgs-las entre os opersios. ‘A sua obra mais extensa € conhecida como Cadernos do cdrcere? escritos no periodo em que esteve na prisio. Os cader- nos eram escondidos na prisio e cuidadosamente camuflados quando ocorriam as revistas ¢ as transferéncias. “Antes da transferéncia, enquanto Gramsci entretinha a atengio do car- cerciro, um patricio sardo, Gustavo Trombetti, seu camarada > Os Gademos do eiveeForam organisados ¢tradusidos por Catlos Nelson Conti- tnho, Marco Aurélio Nogueira e Luz S. Henriques e publicados pela Civilizacio Brasileira, Rio de Janeiro, em 6 volumes, em 2002. x ADEMAR BOGO (ORG.) enfermeiro, enfiara na bagagem os 21 cadernos de anotagoes do prisioneiro”? A contribuigio te6rica de Gramsci é enorme para o pen- samento revolucionario mundial, principalmente no que diz respeito 3 organizagio politica partidaria da classe trabalhadora. Deixa isso muito claro quando escreve Maguiavel, a poltica ¢0 Exiado moderno, no qual afirma que “o moderno principe, © mito-principe, néo pode ser uma pessoa real, um individuo concreto; s6 pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qual jd tenha se iniciado a coneretizagio de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na acio. Este organismo ja € determinado pelo desenvolvimento hist6rico, é o partido politico (..)°4 Gramsci estudou muitos temas, como a hegemonia, o poder na sociedade civil, o papel do Estado, a fungio dos intelectuais na sociedade, a cultura, o folclore etc. Para esta coletanea de textos, selecionamos dois textos que se referem 4 organizagio politica dos trabalhadores ~ “O partido politico” e “O partido comunista” ~no intuito de demonstrar como, para Gramsci, era complexa, mas importante, a tarefa da formulagéo da teoria da organizacio e a pratica organizativa naquele perfodo histérico em que a Itilia era governada por Mussolini. Foi numa vivéncia dura e de perseguicio constante pelas forgas de repressio politica que Gramsci chegou 3 conclusio de que a superestrutura da sociedade é que mantém as relacées de classes, em que a dominagio € garantida pelos mecanismos de hegemonia do Estado e da sociedade civil. Para superar 5” MABSTRI, Mivio & CANDREVA, Luigi. Op. i, p. 186, + GRAMSCI, Antonio. Maguiawl apliie ¢« Edado modemo. Civilizagio Brasil, Rio de Janeiro, "ed, 1991, p. 6 TRORIA DA ORGANIZACAO POLITICA essas relagbes e combater a hegemonia dominante, era preciso construir uma contra-hegemonia, reunindo os trabalhadores € 0s intelectuais socialistas, tendo como perspectiva o desen- volvimento de uma nova cultura, Gramsci inicia o texto “O partido politico”, com a pergunta: “Quando € que um partido se torna ‘necessario’ historicamen- te?” E, em seguida, responde: “Quando as condicées para o seu ‘triunfo’, para sua inelutvel transformacio em Estado, estio a0 ‘menos em vias de formagio ¢ permitem prever normalmente os seus desenvolvimentos ulkeriores (..)” Na luta revolucionéria contra o regime autoritario ¢ o Estado opressor, é natural que haja perseguicio e tentativas de destruigdo da organizacao dos trabalhadores. Foi nesse sentido que Gramsci desenvolveu a teoria com trés elementos que, para ele, garantiriam a existéncia dessa organizacao: a) um elemento difiuso de homens comuns, médios, com disciplina e fidelidade (..);b) 0 elemento de coesio de forcas através de um plano nacional que torna potente um conjunto de forgas (.);¢) 0 elemento articulador do primeiro com o segundo elemento que 05 ligue, fisica ¢ intelectualmente. Esses tr@s espacos diferenciados de militancia possibilitam co envolvimento permanente de todas as pessoas que compoem a organizagao. Nesse sentido, combateu a ideia de que s6 a “diregdo basta” para impulsionar a revolugio. O texto “O partido comunista’, escrito em outubro de 1920, trés meses antes da constituigio do Partido Comunista, inicia pela critica aos que usavam as comunidades primitivas e o cristianismo para julgar 0 movimento operstio. Gramsci concorda que o cristianismo representou uma revolucio, pois criou um sistema de relagbes morais, juridicas, filos6ficas e artisticas, mas no se podia tomar isso como re- ADEMAR DOGO (ORG.) feréncia para qualquer revolugio. Isso porque todo fenémeno histérico deve ser estudado pelas suas caracteristicas particula- res. Sendo que a revolucéo acontece com o “tumulto das vastas ‘massas”, é imposstvel prever as modificagées na ordem “moral € do sentimento”; somente a solidariedade como vontade se podia vislumbrar naquele momento. Esse sentimento de vontade poderia resistir por algum tempo, porque naquele estagio o inimigo estava entranhado no proprio proletariado; o sindicato, embora conduzisse as lutas, nao tinha capacidade de perceber as questées futuras. Afirma, entio, o papel do partido na revolucio: “O movi- mento proletério, na sua fase atual, tende a realizar uma revo- lugio na organizagio das coisas materiais e das forcas fisicas; os seus rasgos caracterfsticos no podem ser os sentimentos © as paixdes difundidos na massa ¢ que sustém a vontade da massa; 0s rasgos caracterfsticos da revolugao proletéria apenas podem ser encontrados no partido da classe operdrid, no Par- tido Comunista, que existe e se desenvolve como organizagio disciplinada da vontade de fundar um Estado, da vontade de dar uma sistematizagio proletdria a0 conglomerado das forcas fisicas existentes e de langar as bases da liberdade popular”. Comenta a superioridade de um militante comunista sobre um “cristio das catacumbas”: “(..) os lutadores opersrios da classe operaria sio maiores que os lutadores de Deus. As forcas morais (que sustém as suas vontades so tanto maiores quanto mais defi- nido € 0 fim proposto 4 vontade”. O Partido Comunista cumpria ‘papel da comunidade antiga, em que as pessoas se reconheciam € sentiam que eram iguais uns aos outros, constituindo uma vanguarda que segue & frente arrastando as grandes massas. Apés estabelecer a natureza do Partido Comunista, compa- rada com a dos demais partidos, afirmou a natureza de classe TBORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA dos mesmos: “Os partidos politicos so reflexo das classes sociais”, Mas entendia que 0 capitalismo aos poucos deixava de ter partidos ¢ passava a atuar através de associagdes patronais ‘ou pelos grandes jornais difrios ¢, cada vez mais, esse poder, assegurado pela hierarquia militar, através de golpes, saquearia 4 mio armada os paises vizinhos. Diante das dificuldades internas do Partido Socialista, Gramsci aponta para a responsabilidade dos comunistas: “O dever dos comunistas nesta descida geral das consciéncias, da f, da vontade, neste envenenamento de baixezas, de vilezas ¢ derrotismos, € o de unit-se fortemente em grupos, de se sus- tentar, de estar atentos as palavras de ordem que serio langadas”. Esgotadas todas as forcas, o proletariado é chamado a assumir a responsabilidade hist6rica de ser classe dirigente. Propunha que os comunistas deveriam ir até as dltimas consequéncias. Osescritos de Gramsci sio de extrema atualidade. Eles nos ajudam a perceber aspectos que, nos demais textos cléssicos, nao foram desenvolvidos ¢ nos ajudam a ver, por outros anguilos, a realidade politica e social, bem como o caminho para analisé-Ia, interpreté-la e transformé-la © PARTIDO POLITICO* Antonio Gramsci Quando é que um partido se torna “necessério” histori camente? Quando as condigdes para o seu “triunfo”, para sua inelutivel transformagio em Estado, estdo ao menos ém via de formagio permitem prever normalmente os seus desenvolvi- mentos ulteriores. Mas quando se pode dizer, em tais condigoes, que um partido nao pode ser destruido por meios normais? Para responder a esta questio, é necessério desenvolver um racioci- nio: para que um partido exista é necesséria a convergéncia de trés elementos fundamentais (isto é, trés grupos de elementos): 1. Um elemento difiaso de homens comuns, médios, cuja participagio é dada pela disciplina e pela fidelidade € nao pelo espfrito criativo e altamente organizativo. Sem este grupo 0 partido nio existiria, é verdade, mas é também verdade que 0 partido mio existiria “somente” com eles. Eles constituem uma Texto extraido de Gramsci ~ poder, police e pari, Emir Sader (org), Sto Paulo, -Expressio Popular, 2006, pp. 15-18. * TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I forga na medida em que houver quem os centralize, organize, discipline. Na auséncia dessa forca de coesio, eles se anulariam ¢ se dispersariam em uma poeira impotente, Nao é questo de negar que cada um desses elementos possa transformar-se em uma das forcas coesivas, mas estamos falando precisamente do momento em que eles nao 0 sio € nao estio em condigées de sé-lo ou, se 0 forem, o serio somente em um circulo restrito, politicamente ineficiente e sem consequéncia; 2. O elemento principal de coesio que centraliza no plano nacional, que torna eficiente ¢ potente um conjunto de forcas que, sozinhas, valem zero ou pouco mais. Este elemento é do- tado de forca altamente coesiva, centralizadora ¢ disciplinadora ¢ até ~ talvez por isso mesmo ~ “inventiva” (se entendermos a inventividade em uma certa direcio, segundo as linhas de forga, perspectivas ¢ mesmo certas premissas). E verdade que sozinho cle também nio formaria um partido, mas teria mais condigées de formé-lo que o primeiro elemento considerado. Fala-se de capities sem exército, mas na verdade & mais ficil formar um exército do que formar capitaes. Tanto isso é ver- dade que mesmo um exército jé formado pode ser destruido se Ihe faltam os capities, enquanto a existéncia de um grupo de capites harménico, coeso entre si, com objetivos comuns pode rapidamente formar um exército, mesmo onde nio existe nada; 3, Um elemento médio, que articule o primeiro com o se~ gundo, que os coloque em contato no s6 “fisico”, mas moral ¢ intelectual, Na realidade, para cada partido existem “proporgdes definidas” entre esses trés elementos ¢ maximo de eficiéncia 6 atingido quando tais “proporgdes definidas” se realizam. Depois destas consideragoes, podemos dizer que um partido nio pode ser destrufdo por meios normais quando 0 segundo elemento ~ cujo nascimento é ligado 3 existéncia de condigdes | | ADEMAR BOGO (ORG.) materiais objetivas ~ existe necessariamente (c, se esse segundo elemento nio existir, todo raciocinio € vazio), mesmo em um es tado disperso e errante. Entio os outros dois nao podem deixar de se formar, isto é, 0 primeiro elemento que necessariamente cria 0 terceiro como sua continuagio e meio de expressio. E preciso, para que isso acontega, que se forme a conviccéo férrea de que uma determinada solugio dos problemas € neces- saria, Sem esta conviecio, o segundo elemento, cuja destruigéo € mais facil por seu pequeno néimero, nio se formars. Mas € necessério que este segundo elemento, se for destrufdo, tenha deixado como heranga um fermento que permita que cle se refaga. E onde este fermento podera subsistir ¢ se format me- Ihor do que no primeiro ¢ no terceiro elementos, que sio da mesma natureza que 0 segundo? A atividade que o segundo elemento vai dedicar 4 constituicéo desse fermento é, entio, fisndamental: 0 critério de julgamento deste segundo elemento deve ser procurado primeiro naquilo que ele realmente faz e, depois, naquilo que prepara para enfrentar a hipétese de sua propria destruigao. E dificil dizer qual destas duas atividades € mais importante, pois na luta deve-se sempre prever a derrota ea preparagio dos préprios sucessores € tio importante quanto aquilo que se faz para obter a vit6ria, 6 O PARTIDO COMUNISTA* Antonio Gramsci I. Depois de Sorel, a referéncia as comunidades primitivas cristis para julgar movimento proletério moderno converteu- se num lugar comum. E necessario dizer imediataniente que Sorel nao é responsivel de modo algumn pela vulgaridade e pela baixeza espiritual dos seus admiradores italianos, da mesma maneira que Karl Marx nfo € responsivel pelas absurdas pre~ tensdes ideoldgicas dos “marxistas”. No campo da investigagio histérica, Sorel € um “inventor”, no pode ser imitado ¢ nao poe a0 servico dos seus aspirantes a discipulos um método que possa ser sempre, € por qualquer pessoa, aplicado mecanicamente ‘com resultados de descobrimentos inteligentes. Para Sorel, como para a doutrina marxista, 0 cristianismo representa uma revolucio na plenitude do seu desenvolvimento, quer dizer, uma revolugio que chegou até as suas consequén- + Texto extra de Concepto do pari poe. Iniciatvas Edtorais, Lisboa, Por cugal, fd pp. 29-40, Tradugio de Maria Nati Dantas. TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA T cias extremas, até a criagio de um sistema novo ¢ original de relagdes morais, juridicas, filos6ficas e artisticas; tomar estes resultados como esquemas ideolégicos de qualquer revolucéo 6, precisamente, a vulgar e pouco inteligente traigio & intuicéo hist6rica de Sorel, a qual pode, apenas, dar origem a uma série de investigacées hist6ricas sobre os germes de uma civilizagio proletéria, se é verdade (como é verdade para Sorel) que 2 revolucio proletéria est imanente no seio da sociedade indus- trial moderna e se é verdade que dela, também, resultaré uma regra de vida original e um sistema de relagSes absolutamente novas, caracteristicas da classe revolucionaria. Que significado pode ter entio a afirmagio de que, ao contririo dos primeiros cristios, os operirios nao sio castos, nfo sio sdbrios, nao sio originais no seu modo de vida? A parte a generalizagao nao cientifica pela qual os operirios metalirgicos de Turim séo ‘um bando de selvagens, que todos os dias comem frango as- sado, que cada noite se embriagam em prostibulos, que néo amam a sua familia, que procuram no cinema ¢ na imitacio dos costumes burgueses a satisfagio de ideais de beleza e de vida moral ~ a parte esta generalizacio pueril e nao cientifica, a afirmagio nao pode converter-se num pressuposto de jufzo hist6rico: isso equivaleria na ordem da inteligéncia histérica a esta outra: j4 que os cristdos modernos comem frangos, andam com mulheres, se embriagam, so perjuros, sio adilteros ete. ctc., logo, por consequéncia, é uma lenda que tenham existido ascetas, os mértires, os santos, Todo o fenémeno hist6rico deve ser estudado pelas suas caracterfsticas particulares no quadro da atualidade real, como desenvolvimento da liberdade que se manifesta em finalidade, em instituigdes, em formas que nao podem ser absolutamente confundidas, comparadas (a menos que metaforicamente) com a finalidade, as instituigbes, as for- a | ADEMAR BOGO (ORG.) mas de fendmenos hist6ricos passados. Toda a revolucio, seja ela como a crista ou como a comunista, se dé e s6 pode dar-se com um tumulto das mais profiundas e vastas mnassas populares, fo pode senao romper e destruir todo o sistema existente de organizacio social; quem pode imaginar e prever as conse quéncias imediatas que provocaré, no campo da destruicio ¢ da criacao historica, a apari¢fo de imensas multidées, que hoje no tem vontade nem poder? Tais massas, j4 que nao tém querido, nem podido alguma vez, pretenderio ver materializado em cada ato pitblico ou pri vado avontade ¢ 0 poder conquistado; achario misteriosamente hostil tudo que existe e quererio destrui-lo desde os alicerces; ‘mas precisamente por esta intensidade de revolucio, por este seu cardter de imprevisibilidade e de liberdade sem limites, quem pode arriscar uma sé hipétese definitiva sobre os sentimentos, sobre as paixes, sobre as iniciativas, sobre as virrudeg que se forjardo em semelhante forno incandescente? Quem poder’ predizer que modificagées sofrerd o que hoje existe, o que hoje nds vemos, fora da nossa vontade e da nossa forca de carter? Cada dia de uma vida intensa como essa no seré uma revolu- 20? Cada modificagio nas consciéncias individuais, enquanto que obtida simultaneamente pela totalidade da massa popular, nio terd resultados criativos inimagindveis? Partindo das constatagées atuais, nada pode ser previsto na ordem da vida moral e dos sentimentos. $6 um sentimento, que se-tornou hoje constante e que pode caracterizar a classe operria, € possivel verificar: 6 o da solidariedade. Mas a in- tensidade ¢ forca deste sentimento apenas podem ser avaliadas como sustentéculo da vontade de resistir ¢ de se sacrificar por um perfodo de tempo que até a escassa capacidade popular de previsio histérica consegue fixar com uma certa aproximacio; PO rr TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA tal sentimento nao pode ser avaliado nem portanto tomado como sustentéculo da vontade hist6rica para o perfodo da cria- Gio revolucionéria e da fundacio da sociedade nova, enquanto for impossivel fixar qualquer limite temporal 3 resistencia ¢ a0 sactificio, jé que 0 inimigo por combater e por vencer nao estar por mais tempo fora do proletariado, mio ser4 uma poténcia fisica externa, limitada ¢ controlavel, mas sim ser o préprio proletariado, na sua ignordncia, na sua lentido, na sua massiva impenetrabilidade as intuigSes répidas, quando a dialética da Ita de classes se tiver interiorizado e em cada consciéncia eem cada ato 0 homem novo deveré combater o burgués emboscado. Portanto, 0 sindicato operério, organismo que realiza ¢ disci plina, a solidariedade proletéria, nao pode ser base € motivo de previsdes para o futuro da civilizagdo; néo contém elementos de desenvolvimento para a liberdade; esté destinado a softer ‘modificagSes radicais como consequéncia do desenvolvimento geral: € determinado, nio determinante. © movimento proletério, na sua fase atual, tende a realizar uma revolugio na organizagio das coisas materiais ¢ das forcas fisicas; os seus rasgos caracteristicos nao podem ser os sentimen- tos ¢ as paixdes difundidos na massa e que sustém a vontade da ‘massa; 0s rasgos caracteristicos da revolugio proletéria apenas podem ser encontrados no partido da classe operiria, no Partido Comunista, que existe ¢ se desenvolve enquanto € organizacio disciplinada da vontade de fundar um Estado, da vontade de dar uma sistematizagio proletéria a0 conglomerado das forgas fisicas existentes e de lancar as bases da liberdade popular. (© Partido Comunista 6, no perfodo atual, a tinica instituigo que pode seriamente comparar-se as comunidades religiosas do cristianismo primitivo; dentro dos limites em que o partido existe jf, & escala internacional, pode tentar-se uma comparagéo ADEMAR BOGO (ORG.) cestabelecer-se uma série de jufzos entre os militantes da cidade de DEUS ¢ os militantes da cidade do HOMEM; 0 comunista nao é, certamente, inferior ao cristo das catacumbas: ao con- trdrio. O fim ineffivel que 0 cristianismo propunha aos seus seguidores é, pelo seu sugestivo mistério, uma justificacio plena do herofsmno, da sede de martirio, da santidade; nao é necessério que entrem em jogo as grandes forcas humanas do caréter ¢ da vontade para suscitar o espirito de sacrificio de quem acredita no prémio do céu e na felicidade eterna. O operario comunista, que por semanas, por meses, por anos, desinteressadamente, depois de oito horas de trabalho na fabrica, trabalha outras oito horas para o partido, para o sindicato, para a cooperativa, é, do ponto de vista da hist6ria do homem, superior ao escravo € a0 artesio que desafiava qualquer perigo para se transportar 4 reuniio clandestina da oragio, Do mesmo modo, Rosa Lu- xemburgo ¢ Karl Liebknecht sio maiores que os maioges santos de cristo." Precisamente porque a finalidade da sua militincia € concreta, humana, limitada, da classe operdria sio maiores do que os lutadores de deus: as forcas morais que sustém as suas vontades sio tanto maiores quanto mais definido o fim proposto a vontade, Que forca de expansio podero adquirir os sentimentos do operdrio que, dobrado sobre a mAquina, repete ito horas por dia 0 gesto profissional, mondtono como o desfiar de um circulo fechado de um rosdrio de oragdes, quando ele seja dominador, quando ele seja a medida dos valores sociais? Nao é um milagre o proprio fato de o operdrio conseguir, ape- sar de tudo, pensar, apesar de estar reduzindo a trabalhar sem saber nem 0 como nem o porque da sua atividade prética? Este ‘Rosa Luxemburgoe Kar Licbkneche foram asassinadosnancite de 15 para sm assssnadosnanoited Wpara16de janeiro de 1919 pees trops que os eandritam ao crcere eles plicaram ale da Fuge st PEORIA DA ORGANIZACAO POLITICA U milagre do opersrio que cotidianamente conquistaa sua propria autonomia espiritual ¢ a sua propria liberdade de construir na esfera das ideias, lurando contra o cansago, contra o aborreci- mento, contra a monotonia do gesto que tende a mecanizar e, portanto, a matar a linha interior, este milagre organiza-se no Partido Comunista, na vontade de luta e criagio revolucionéria, que se expressa no Partido Comunista. (© operdrio da fabrica tem tarefas verdadeiramente execu- tivas. Nao segue 0 processo geral do trabalho ¢ da producio; nfo € um ponto que se move para criar uma linha; é um al- finete confinado num lugar determinado e a linha resulta do alinhar-se dos alfinetes que uma vontade estranha disp6s para 60s seus fins, © operério tende a levar este seu modo de ser a todos os ambientes da sua vida; adapta-se facilmente em todas as partes ao papel de executor material, de massa guiada por uma vontade estranha 4 sua; & preguicoso, intelectualmente no sabe ¢ ndo quer prever mais além do imediato, portanto falta-Ihe todo o critério para a eleicdo dos seus chefes ¢ deixa-se iludir facilmente por promessas; quer acreditar que pode obter tudo sem um grande esforgo e sem ter que pensar demasiado. © Partido Comunista é o instrumento ¢ a forma historica do processo de libertagio interior por meio do qual o operirio passa de executor a iniciador; de massa que é converte-se em chefe © guia; de braco converte-se em cérebro € vontade; na formacéo do Partido Comunista é possfvel localizar 0 germe da liberdade que terd 0 seu desenvolvimento ¢ a sua expanséo plena depois de o Estado operirio ter organizado as condigées materiais necessérias. O escravo ou arteséo do mundo cléssico “conhecia-se a si mesmo”, realizava a sua libertagio fazendo parte de uma comunidade crista, onde concretamente sentia que era igual, que era irmio, visto que era filho do mesmo pais 0 ADEMAR DOGO (ORG.) ‘mesmo realiza o operatio fazendo parte do Partido Comunista, onde colabora a “descobrir ea inventar” modos de vida originais, onde colabora “voluntariamente” na atividade do mundo, onde penssa, prevé, tem uma responsabilidade, onde € organizador além de organizado, onde sente que constitui uma vanguarda que corre adiante arrastando consigo toda a massa popular, © Partido Comunista, ainda como uma mera organizacio, revelou-se como a forma particular da revolucio proletiria, Nenhuma revolugio do passado conheceu os partidos, eles nasceram depois da revolucio burguesa ¢ decompuseram-se no terreno da democracia parlamentar. Também neste campo se verificou a ideia marxista de que 0 capitalismo desencadeia forcas que depois nao consegne dominar. Os partidos democ ticos serviam para indicar e assinalar homens politicos de valor ¢ fazé-los triunfar na concorréncia politica; hoje os homens de governo sio impostos pelos bancos, pelos grandes diarios, pelas associagdes industriais; os partidos decompuseram-se numa multiplicidade de seitas pessoais. © Partido Comunista, surgindo das cinzas dos partidos socialistas, repele a sua ori- gem democritica e parlamentar e revela as suas caracteristicas essenciais que so originais na histéria; a Revolucio Russa é uma revolucio realizada pelos homens organizados no Partido Comunista, que no partido se formaram numa personalidade nova, que adquiriram sentimentos novos, que realizaram uma vida moral que tende a transformar a consciéncia universal ea finalidade de todos os homens. IL. Os partidos politicos sio o reflexo e a nomenclatura das classes sociais. Surge, desenvolvem-se, decompéem-se, renovam-se, em Fungio de que as diversas classes das camadas sociais em luta sofrem deslocagdes de dimens6es hist6rica real, ‘veem modificadas radicalmente as suas condigées de existéncia TRORIA DA ORGANIZACAO POLIT ede desenvolvimento, adguirem uma maior e mais clara cons- ciéncia de si e dos seus interesses vitais. No perfodo histérico tual e como consequéncia da guerra imperialista que modificon profundamente a estrutura do aparelho nacional ¢ internacio- nal de produgio e de troca, converteu-se numa caracterfstica a rapidez com que se desenvolve o processo de dissociagio dos partidos politicos tradicionais, nascidos no terreno da demo- cracia parlamentar ¢ do aparecimento de novas organizagSes politicas, este proceso geral obedece a uma logica interna e implacavel, originada pelo desmoronamento das velhas classes e das velhas camadas ¢ pelas vertiginosas passagens de uma condicio para outra de camadas inteiras de populagio em todo © territério do Estado, ¢ frequentemente em todo 0 territ6rio de dominio capitalista ‘Mesmo até as classes sociais historicamente mais preguico- sase lentas para se diferenciarem, como classe dos camponescs, nao escapam & enérgica a¢io dos reagentes que dissolvem 0 corpo social; a0 contrério, parece que estas classes quanto mais pregutigosas e lentas tém sido no passado tanto mais querem, hoje, rapidamente 3s consequéncias dialéticas extremas da lata de classes, 8 guerra civil e ao controle das relagdes econémicas. Em dois anos temos visto surgir na Italia, como do nada, um potente partido da classe camponesa, o Partido Popular, que ao nascer pretendia representar os interesses econdmicos ¢ as aspiragdes politicas de todas as camadas sociais do campo, desde © bario latifundisrio ao médio proprietirio da terra, desde 0 pequeno proprictario ao arrendatario, desde o intermedidrio a0 camponés pobre. Temos visto o Partido Popular conquistar quasc cem lugares no Parlamento com uma avalanche de listas em que tinham predomfnio absoluto o bario latifundiério, 0 grande proprietério dos bosques, o grande e médio proprieté- ADEMAR BOGO (ORG) rio da terra, e uma minoria exigua de representantes da popu- lagao camponesa. Temos visto iniciarem-se e converterem-se rapidamente em espasmédicas, dentro do Partido Popular, as Iutas internas de tendéncia, reflexo da diferenciacio que existia na primitiva massa cleitoral; as grandes massas de pequenos proprietarios e de camponeses pobres no quiseram continuar sendo a massa passiva manobravel para a obtencio dos interesses dos grandes e médios proprietdrios; sob a sua enérgica pressio, 0 Partido Popular dividiu-se numa ala direita, num centroe numa esquerda, e temos visto, portanto, que, sob a pressio dos campo- neses pobres, a extrema-esquerda popular assumia gestos revo- Iucionérios ¢ entrava em concorréncia com o Partido Socialista, convertido ele também no representante de vastfssimas massas camponesas; assistimos j a decomposigio do Partido Popular, cuja fragio parlamentar e cujo comité central nao representam os interesses nem a consciéncia de si adquirida pelas massas eleitorais ce pelas forcas organizadas nos sindicatos brancos, représentados ‘em troca pelos extremistas, que nao querem perder 0 controle delas ¢ nao podem engané-las numa acio legal no Parlamento € sio obrigados, portanto, a recorrer & Iuta violenta e a proteger novas instituigées politicas de governo. O mesmo processo de ripida organizagio ¢ de rapidissima dissociagio verificou-se na outra corrente politica que quer representar os interesses dos camponeses, a associagao dos ex-combatentes; € 0 reflexo da formidavel crise interna que assola os campos italianos e se ma- nifesta nas gigantescas greves da Itilia do Norte e do centro, na invasio e na reparticio dos latifiindios da Puglia, nos assaltos aos castelos feudais e na aparicio nas cidades da Sicilia de centenas de milhares de camponeses armades. Este profundo movimento das classes camponesas abala, desde os seus alicerces, a estrutura do Estado parlamentar TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA I democritico. O capitalismo, como forca politica, est’ reduzido as associagées sindicais dos proprietérios de fibricas; jé nfo tem um partido politico onde imponha a sua ideologia até dentro das camadas pequeno-burguesas da cidade ¢ do cam- Po, € que permita, por isso, 0 substituir de um Estado legal apoiado sobre amplas bases. O capitalismo vé-se reduzido a ter uma representacio politica somente nos grandes didrios (400 mil exemplares de tiragem, milhares de leitores) ¢ no senado, imune como instituigao as agdes e reagdes das gran- des massas populares, mas sem autoridade nem prestigio no pais; por isso, a forca politica do capitalismo tende cada vez mais a identificarse com as altas hierarquias militares, com a guarda real, com os miiltiplos aventureiros que pululam depois do armisticio e que aspiram, cada um contra os de- mais, a converter-ser no Kornilov e no Bonaparte italiano, ¢ por isso a forca politica do capitalismo nao se pode expressar senio através de um golpe de Estado militar e no intuito de impor uma férrea ditadura nacionalista que impulsione as embrutecidas massas italianas a restaurar a economia com 0 saque & mao armada dos paises vizinhos. Exausta € cansada da burguesia como classe dirigente, esgotando-se o capitalismo como modo de produgio e de troca, nao existindo na classe camponesa uma orga politica homoggnea capaz de criar um Estado, a classe operéia est inevitavelmente chamada pela hist6ria a assumir a respon- sabilidade de classe dirigente. $6 0 proletariado € capaz de criar um Estado forte e temido, porque tem um programa de reconstrugio econdmica, 0 comunismo, que encontra as suas premissas necessérias e as condigoes na fase de desen- volvimento obtida pelo capitalismo com a guerra imperialista de 1914/1918: s6 0 proletariado pode, criando um novo érgio ADEMAR BOGO (ORG.) de direito paiblico, o sistema dos sovietes, dar uma forma di- namica a fluida ¢ incandescente massa social e restaurar uma ordem no tumulto geral das forcas produtivas. E natural ¢ historicamente justificado que, precisamente num perfodo como este, se coloque 0 problema da formacio do Partido Comunista, expressio da vanguarda proletéria que tem cons- ciéncia exata da sua missio hist6rica, que estabeleceré as novas linhas de conduta, que seré o iniciador e 0 protagonista do novo ¢ original perfodo histérico. Até o partido politico tradicional da classe operdria italiana, 0 Partido Socialista, nao escapou 20 processo de decomposi¢go de todas as formas associativas, proceso que é caracteristico do pe~ riodo que atravessamos. Ter acreditado que podia salvar da sua dissolugio interna a velha formacio do partido foi 0 colossal erro histérico dos homens que tém controlado 0 governo da nossa organizagio desde o rebentar da guerra mundial até hoje, Na verdade, 0 Partido Socialista Italiano, pelas virias contfadigoes, elas origens histéricas das varias correntes que o constituiram, pelo pacto de alianga, técito ou explicito, com a Confederagio Geral do Trabalho (pacto que, nos congressos, nos conselhos € em todas as reunides deliberativas serve para dar um poder € uma influéncia injustificada aos funciondrios sindicais), pela autonomia ilimitada concedida aos grupo parlamentar (que d4 também aos deputados um poder e uma influéncia similar 4 dos fancionétios sindicais e igualmente injustificavel, nos congres- 80s, nos conselhos ¢ nas deliberagdes da mais alta importéncia), por tudo isto, o Partido Socialista Italiano nfo se diferencia por nada do Labour Party (Partido Trabalhista) ingles e & ré- voluciondrio apenas nas afirmag6es gerais do seu programa. E um conglomerado de partidos; move-se e nfo pode deixar de se mover tardia e lentamente; est continuamente exposto a 2 TEORIA DA ORGANIZACAO POLITICA t converter-se num pafs de ficil conquista para os aventureiros, carreiristas, ambiciasos sem seriedade nem capacidade politica; devido a sua heterogeneidade e aos inumeraveis lastros nas suas engrenagens, esgotados ¢ sabotados pelos intriguistas, nunca esté em grau de assumir o peso e a responsabilidade das iniciativas ¢ das ages revolucionérias que os acontecimentos, incansiveis, Ihes impdem incessantemente. Isto explica a his- t6ria paradoxal e “educa” o partido da classe operiria, e no 0 partido que guia ¢ educa as massas. © Partido Socialista diz-se porta-vor das doutrinas marxis- tas; portanto, 0 partido deveria ter nestas doutrinas uma biissola para se orientar na meada dos acontecimentos, deveria possuir essa capacidade de previsio hist6rica que caracteriza os segui- dores inteligentes da dialética marxista, deveria ter um plano geral de aco, bascado nesta previsio historica ¢ estar em grau de lancar palavras de ordem claras e precisas & classe operdria em luta; em troca, 0 Partido Socialista, porta-voz do marxismo na Itélia, esti, como 0 Partido Popular, como o partido das classes mais atrasadas da populagio italiana, exposto a todas as pressées das massas ¢ move-se e diferencia-se quando as mas sas ja se deslocaram e diferenciaram. Na verdade, este Partido Socialista, que se proclama guia ¢ mestre das massas, nao é outra coisa que um pobre tabelido que registra as operacées realizadas espontaneamente pelas massas; este pobre Partido Socialista que se proclama chefe da classe opersria, no é outra coisa senio o lastro do exército proletario, Se este estranho proceder do Partido Socialista, se esta desavergonhada condigio do partido politico da classe ope- réria ndo tem provocado até agora uma catistrofe, deve-se a que entre a classe operdria, nas segdes urbanas do partido, nos sindicatos, nas fabricas, nas aldeias, existem grupos enérgicos i | b , i ' i i | E e L ADEMAR BOGO (ORG.) de comunistas conscientes do seu papel hist6rico, enérgico preparados na gio, capazes de guiare de educar as massas locais do proletariado; deve-se a que existe potencialmente, no scio do Partido Socialista, um Partido Commnista, ao qual apenas faz falta uma organizacio explicita, centralizagio e uma disciplina propria para se desenvolver rapidamente, conquistar ¢ renovar © destacamento do partido da classe operétia, dar uma nova diregio 4 Confederagio Geral do Trabalho ¢ a0 movimento cooperative. © problema imediato deste perfodo, que segue a luta dos operérios metaltirgicos e precede o congresso em que o partido deve assumir uma atitude sria e precisa frente a Internacional Comunista, é precisamente o de organizar ¢ centralizar estas forcas comunistas jé existentes e atuantes. O Partido Socialista decompée-se e caminha para a sua destruicZo, dia a dia e com tama rapide falminante, num brevisimo espaco de tempo as tendéncias tém tomado uma configuracio; postos perante a responsabilidade da acao histérica e os compromissos adquiri- dos com a adesio 4 Internacional Comunista, os homens ¢ os grupos separar-se-do ¢ deslocar-se-A0; 0 equivoco cemtrista e oportunista ganhou uma parte da diregio do partido, semeou a perturbacio ¢ a confusio nas secdes. O dever dos comunistas nesta descida geral das consciéncias, da fé, da vontade, neste envenenamento das baixezas, de vilezas ¢ de derrotismos, é © de unir-se fortemente em grupos, de se sustentar, de estar atentos as palavras de ordem que serio langadas, Os comunis- tas sinceros ¢ desinteressados, sobre a base das teses aprovadas pelo II Congresso da Terceira Internacional, sobre a base da disciplina leal a suprema autoridade do movimento operdrio mundial, devem desenvolver o trabalho necessirio para que, no mais curto espaco de tempo, se constitua a fracio comunista do at TEORIA DA ORGANIZAGAO POLITICA Partido Socialista Italiano, que para bom nome do proletariado italiano deve converter-se no Congresso de Florenga, de nome ¢ de fato, em Partido Comunista Italiano, segio da Terceira Internacional; para que a dita fragdo comunista se constitua como aparelho diretivo ¢ orginico e fortemente centralizado, com articulagbes préprias e disciplinadas em todos os ambientes onde trabalha, se reine e Tuta a classe operiria, com um con {junto de servigos ¢ de instrumentos para o controle, para aacio, para propaganda que ponham em condigio de funcionar e de se desenvolver desde agora como um teal e verdadeiro partido. Os comunistas, que, na luta metalirgica, tém salvo, com a sta energia e 0 seu espirito de iniciativa, a classe operdria de ‘um desastre, devem chegar até as ditimas consequéncias da sua atitude ¢ da sua agio: salvar o destacamento primordial (reconstruindo-o) do partido da classe operaria, dar ao pro- letariado italiano um Partido Comunista que seja capaz de organizar 0 Estado operirio e as condigdes para o advento da sociedade comunista. (Parte I,, 4 de setembro; Parte II, 9 de outubro de 1920, L’ Ontine Nuove) O LEGADO DE LUIZ CARLOS PRESTES Luiz Carlos Prestes nascen em Porto Alegre, em 3 de marco de 1898, filho de Ant6nio Pereira Prestes e de Leocétlia Feli- zardo Prestes. A mie era professora priméria ¢ praticamente alfabetizou os cinco filhos. Ela faleceu no México em 1943, Com 11 anos de idade, Prestes mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou no Colégio Militar, formando-se em Engenharia em 1919, Em 1922, devido a um grande descontentamento, nos quar tis e na sociedade, com o governo do entio presidente Arthur Bernardes, os “tenentes” iniciaram, em 5 de julho, uma série de revoltas. Prestes, apesar de ter estado nas reunides preparatérias, no péde participar ativamente dos levantes por se encontrar hospitalizado. Em setembro daquele mesmo ano, apés ter apresentado melhoras no estado de satide, Prestes foi enviado pelo Exército para Santo Angelo para servir no 1° Batalhio Ferrovidrio, onde a

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