You are on page 1of 6
Contributos para a reconfiguracaio da educacio inter/ multicultural Este capitulo pretende conduzir para a andlise politica as consequéncias dos argumen- tos desenvolvidos nos capitulos anteriores. Assim, apresenta quatro modelos que preten- dem dar conta do modo como as sociedades ocidentais conceptualizaram, numa perspec- tiva simultaneamente diacrénica e sincrénica, a sua relagao com as diferencas — internas e externas — e procura identificar, por tras das intengdes explicitas das politicas e das pré- ticas da relacao com as diferencas, o «lugar» epistemoldgico e sociolégico que marca esas politicas e essas praticas. Na segunda parte do capitulo, procura-se relacionar estes mode- los, assumidos como modelos heuristicos, com o campo mais espectfico da educagao inter/ multicultural. MODELOS DE CONCEPTUALIZACAO E DE LEGITIMACAO DA RELACAO COM AS DIFERENCAS Como se vit no capitulo anterior, a cultura ocidental viveu secularmente ~ com raros interregnos criticos ~ numa espécie de autocontemplaczo da sua prOpria superioridade tica e politica. Esta superioridade foi justificada das mais diversas formas, desde a narra- tiva religiosa que afirmava a superioridade do nosso Deus sobre todos os outros, até a, eventualmente mais sofisticada, narrativa filoséfica que justificava 0 modelo ocidental como sendo a realizago na historia do proprio espirito universal, como em Hegel. A ten- éncia foi sempre para postular a nossa forma de pensar e de conhecer como sendo a mais universal (e, por isso, a mais verdadeira) e @ nossa forma de organizacao social e politica como sendo a mais «desenvolvida» e, logo, a mais legitima como cénone. As outras epis- temologias e organizaces sociais — as diferencas — eram julgadas a partir desta posico. Na verdade, a seguranga do Ocidente em si préprio tem vindo a ser posta em causa num, ‘movimento em que nos olhamos no espelho da nossa prépria face civilizacional. Um dos “ entre «Nés», A inspracio cristae humanista no chega para esconder a arrogancia étca eepistemol6gica daquele ‘que diz que tolera, ‘Modelo da generosidade: Fundado na mé conscitneia do Ocidente enguanto para- digma social. 0 mundo confortavel que construfmos para se ae ce es 1s, entre muros,faz-nos sentir culpadas pela vida deso- assumida como uma construsio Tada dos «outros». A culpa, pela autocritica que Ihe subjaz, proprio Ocidente torna-se em programa politico: culdar do «outro». O pro- ‘lema do «outro» € 0 nosso problema, dado que historics- ‘mente este foi continuamente menorizado. Supde-se que a sua emancipagéo € a nossa emancipagio. Sao os «sem voo» que tém que falar, mesmo que néo queiram. ‘Modelo relacional: Reeusa da boa eda mi concn prisons do og é i soma zero»: quem é que foio mais oprimido e quem Game e parte da grande cultura ocidental. Este modelo relaciona(va)-se com a educagao inter/ multicultural através da sua rejeicdo, isto é, ele constitui, por exce- lencia, no dominio da educacao, a abordagem monocultural (Stoer e Cortesio, 1999). 0 modelo da tolerdncia relectiu-se, e ainda se reflecte, também de uma forma clara, na ‘struturacio da educagao nas sociedades europeias, dando origem ao que temos denomi- ‘aio o multiculturalismo educacional «benigno» (Stoer, 2000b). Este modelo, com base Tnogio de um handicap sobretudo cultural das criangas e dos jovens das minorias étni- ‘2s e das classes trabalhadoras (diferentemente da educacao compensatéria que tem base tim handicap social e que se enquadra no modelo etnocéntrico), contempla a compensa Ho Cultural e pedagdgica dessas criangas e jovens através da acco de uma educagao inter Anulticultural promovida pela escola e pelos professores. Ser tolerante 6, neste sentido, Teonhecer a diferenca sem a querer conhecer, ou, por outras palavras, querer «resolver scltstio da diferenga através de uma preocupago com «estils de vida», relegando para “éundo lugar as «oportunidades na vida». O modelo da generosidade é aquele que porventura levou mais longe, até hoje, a rela- win diferenca. Trata-se,efectivamente, de uma proposta para a construcgo de uma en inter/ multicultural «critica», que combate a reducio das diferengas a sua com- “nte folclorica e que se opde, sobretudo, & educagio inter/ multicultural «benigna», edu _-£A Diferenca Somos Nés» Neste sentido, promove-se o desenvolvimento de dispositivos de diferenciagéo pedagégica capazes de servir o fim de incluir o mais plenamente possivel aqueles ¢ aduelas que a acgéo da escola tinha precisamente contribufdo para excluir. Aqui em ver da «tesolugéo» da ques- tio da diferenga através de técnicas educativas imbuidas de racionalidade instrumental, assume-se a necessidade de construir pontes entre culturas conceptualizadas como «incom- pletas». 0 outro tem que ser conhecido através da educagao e nao simplesmente reconhecido e, mais, 0 conhecimento do outro funciona como um autoconhecimento emancipatéric ‘© modelo relacional, fundado na assungo de que «a diferenga somos nés», parece conter potencialidades extremamente ricas para 0 repensar da educacéo inter/ multicul- tural. Para comecar, toma como ponto de partida a proposta de pensar a diferenca na sua incomensurabilidade, isto é, ao assumirmos que a diferenga também somos nés (transfor- ‘mando assim o «nds» num «eles»), € a nossa propria alteridade que se expde na relacio, ‘Assim, é a prépria alteridade que assume agéncia, que se torna pré-activa. No que diz res- peito & educagao inter/ multicultural, sto pode implicar estar simultaneamente na ponte e ras margeens. Por outras palavras, a educagao inter/ multicultural realiza-se sendo, por um Jado, o lugar do encontro/ confronto de diferencas e da sua negociacao e, por outro, o lugar ele proprio agenciado pela diferenca, isto é, € a propria educagio escolar que é colocada nos guides dos actores sociais e culturais e nao o contrério. A nossa diferenca exprime-se através da educagio inter/ multicultural ndo como aquela que traz consigo a luz, a matriz, a generosidade, mas como aquela que traz a sua prOpria alteridade. As margens do nosso lado, da nossa diferenca, podem traduzir-se num projecto de gestio da diferenca, mas rnunca na sua dominagao. £ com base nesta relativizacao do nosso «Nés» que a educacio inter/ multicultural se poderd eventualmente reconfigurar, situando-se no fio da navalha. Os curricula, os dispo- sitivos e os processos de ensino-aprendizagem devem repercutir essa perspectiva segundo ‘a qual se assume, relacionalmente, a incomensurdvel diferenca dos outros e da nossa pr6- pria, ao mesmo tempo que nao se deve evitar sogobrar nos bragos do voluntarismo e da ingenuidade, por exemplo em relagao as caracterfsticas extremamente selectivas dos novos mercados de trabalho. 0 fio da navalha surge como uma metéfora interessante dado que € 0 caréecter conflitual, agonistico, que é sublinhado. As polticas curriculares, parece-nos, ganhariam em assumir-se como terreno de dissenso, de confronto cultural, e menos como a iiltimo de identidades (mesmo a identidade nacional) que disfargam sob o manto im consenso sern contetido a perda da sua legitimidade social, A RECONFIGURACAO DA EDUCAGAO INTERCULTURAL Nu fash recente que foi elaborado para proporcionar um «catélogo analitico de materiais de formacao para a diversidade», L. Cortesao ef al. (2000) apresentam quatro perspectivas susceptiveis de ser identificadas a Be multicultural (ver Figura 2). no campo da formacao em educagao inter! sconfiguragio da educacio inter/ multicultural ns yara a reconfiguragio da educa inter/ mutiu const ‘Figura 2: Quatro perspectivas face & Formagao em Educ = area tinct nb oe esas gee 1 fons gros minoritros na sociedad dominant.) aa propane alee tr que as eras os valores da sociedad dominante so vlos,inascutwens sng se Sonnet Asim send ogres notrs i eranence ee ac tans sents so inde mass entero everest craps firma por un vt rocetlano ae nem weston seeds ovals e normas(..) nm prcepconao sofimento qu dare ae eae ds go cas ralzscullurals so bastante diferente. = 4" S€™e da sua arhitrinimposigio a elo Inter/ multicultural Jo maticaturlsme Benigno, ou condescndente¢ 0 qu, com mals equa * asd angio em relate com o soto diferent, Tata se de uma pony eae tse outro» soa deforma benevolent, comiderand, atlases aoe ee fide rem ase. As aitudes de tolernla face elena etn ma ba ae i Una tle rssvs qe, de fora shoo, asia um unos dr oes team cuts normas, outros valores, embora ess ndo sem esque ums osata ie eae Aominante fi escolhendo para si Is ela 5, 0 Multiculturalism Crtico: decorre de uma posi teérica que, como o seu nome india, salicera na tera crc, Neste quad estimula-se, sidera como obviamente accitaveis.(..) Quando se eonsderam questbes de formagse multoclioeg] rum quaro tedrico com estas caraterstcas, as relacies entre grupos diferentes em poranme fone analsdas, numa constante preocupagéo de desocultgio. Procura-e Mentifcarsignifindos, ror ‘izes mens explicitos, da relagdo entre grupos com estatutos diferentes e que usufruem também de situagbes diferentes de poder de deci, informa as propos- . A Acgio Anti-Racista: diz respeito a propostas de formagio que pretendem ser desencadeadoras de ati tudes activ de Iuta contra a discriminagio e a exclusdo em todas as suas formas, Este tipo de pres. «expagio (que pressupde o exercicio de uma perspectiva critica) pretendeestimularo formando asssus miratitudes explicitas de intervengo no problema de discriminagio e/ ou exclusio com que se depara no seu quotidiano, te Creo, La, , 2000 2526) E interessante confrontar estas quatro perspectivas, que parecer representar bem 0 ‘tado-da-arte no que diz respeito a teorizagdo da educacio inter/ multicultural, com os Suatro modelos de conceputalizacao/ legitimacao da diferenca acima referidos. Neste sen- tid, podemos constatar 0 seguinte: La matriz fundadora da escola para todos, publica, estatal, moderna, republicana, Monocultural, € o modelo etnocéntrico que se traduz na perspectiva assimilacio- nista; 2.omodelo da tolerancia traduz-se na perspectiva do multiculturalismo benigno que ‘xprime a légica estruturadora maxima da escola moderna face ao outro, perante as diterencas; Lo modelo de generosidade 6 traduzido na perspectiva do multiculturalismo eritico, {Me surge como a resposta contra-hegeménica da modernidade ao incumprimento ‘Suas prOprias promessas. Por isso, nao deixa de ser enquadrado pela epistemolo- gia moderna e a sua tendéncia para pensar a diferenca, néo a partir do seu préprio discurso, mas através do discurso — sobretudo «emancipatorio» ~ sobre ela; 4.0 modelo relacional, pelo contrério, nao se traduz na perspectiva da acgio anti- -racista que néo é mais do que «o exercicio de uma perspectiva critica». Neste sen- tido, esta perspectiva constitui o pélo oposto da estruturagdo da escola pelo modelo etnocéntrico! perspectiva assimilacionista, isto é, 0 oposto da escola da reproducao. Esta escola ¢ a escola da emancipagio que se torna possivel devido & agéncia do sujeito «iluminado» (através da pedagogia critica). A narrativa libertadora desta perspectiva jé se revelava fortemente presente no multiculturalismo critico, atin- indo, na acco anti-racista, a sua concretizagao. De facto, o modelo relacional enfatiza que o duplo multiculturalism critico/ acgao anti-racista ndo consegue renovar o inter/ multiculturalism, repondo o jogo de relagdes com a diferenga cultural no jogo mais amplo dos processos sociais e, mais do que alargar pela autocritica os quadros culturais epistemolégicos que estruturam e pensam essas relacées, estabelece como sujeito do discurso (cientfico, ético, politico e estético) as pré- prias diferencas. Na verdade, sao as rebelides das diferencas que esto aqui em causa, dife- rencas que se rebeleram contra 0 jugo cultural, politico e epistemolégico da modernidade ocidental. 0 modelo relacional baseia-se numa forma de agéncia bastante mais modesta do que a agéncia da perspectiva do multiculturalismo critico. Em vez de ser «emancipatéria», € reflexiva e, em vez de propor o dominio da mudanga, propde uma matriz tripla para lidar com a mudanca (ver Capitulo 1). Neste modelo, os ideias emancipatérias surge como heterogéneas e, por vezes, mesmo conflituantes entre si (por exemplo, ser mulher e assu- mir 0s diteitos de cidadania e ser simultaneamente muculmana tradicionalista emigrada rnuma sociedade como a francesa). CONCLUSAO. A reconfigurasio da educacio intr/ multicultural implica desafiar a estratégia epste- moligica que se fixa em torno do sueito que pensa adiferenga e néo na propria diferenca, € em que as suas estratégias de accdo parecem centrarse no valor tictico que a «com: Breensio» daalteridade possui para a consecugao de projectos em que ela € wintegradan de alguma forma ainda enquanto objecto de «preocupagio» e nfo como agente da prépria acgdo social, Como jf se dss, pensar as diferengas,ndo a partir do discurso ~ sobretudo se scientifico» ~ sobre elas, mas a partir delas, equer uma aitude epistemoldgica¢ pol S ae que eventualmente é possfvel encontrar no que temos denominado @ modelo relacional.

You might also like