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eee ll O SUBLUNAR E AS CIENCIAS HUMANAS Mas, por que no seria possivel elevar a historia ao nivel de uma ciéncia, quando os fatos que compdem a historia e nossa vida esto sujeitos a ciénciaea suas leis? Porque ha leis em hist6ria (um corpo que cai, na narrativa de um historiador, gy conformarse, evidentemente, 4 lei de Galileu), mas no leis da historia; o desenrolar da quarta cruzada nao é determinado por uma lei, E muito menos oa historia do que se passa no meu escritbrio: a luz solar torna-se cada vez mais obliqua, o calor que se irradia do aquecedor tende a estabilizar-se de tal modo que soma das derivadas parciais da segunda ordem seja igual a zero € o filamento da lampada torna-se incandescente; o que j4 implica um namero elevado de leis fisicas e astronémicas, que s4o, contudo, ainda muito pouco numerosas para Tecompor este simples acontecimento: uma tarde de inverno cai, eu ligo o aquecimento central e acendo a lampada de mesa. leis ¢ os acontecimentos histéricos \cidem; a maneira pela qual a experiéncia récorta 63 objetos ‘nao corresponde 4 maneira pela qual a ciencia Tecorta os objetos abstratos. Disso resulta que, mesmo que a ciéncia estivesse iffteiramente concluida, ndo seria manejavel e que praticamente nao se poderia, com ela, recompor a historia. Resulta também que, ainda que a ciéncia estivesse completa, seus objetos no seriam os nossos e continuarlamos aater-nos ao real, a escrever a historia como a escrevemos hoje. E isso nao se deveria a nenhum gosto pelo calor humano; vimos que a historia nao se dedica a singularidade € aos valores, que ela busca compreender, que ela desdenha a anedota: 0 vivido nao seria mais do que uma anedota para a historia se fosse conversivel em ciéncia, mas, praticamente nao 0 é, ele conserva sua densidade. Quanto a isso, a situacao da historia nao lhe é particular: a ciéncia nao explica mais anatureza do que explicaa historia; nao explica melhor um acidente de carro ouumachuvaem Antibes, num 1 domingo de fevereiro, do que a quarta cruzada,A— ci@ncia, fisica qu human: 1s aspectos, talhados sob medida para suas @ deis, que ela abstrai dos acontecimentos naturais ou histori tno teria menos razdes do que um historiador para queixar-se dela. Os recortes iniciais 118 Paul Marie Veyne da ciéncia € do vivido sdo tao diferentes que a junc4o se faz muito mal. Os limites de nossa faculdade de conhecer so tio estreitos, as condicdes de seu exercicio tao constrangidas, que os dois recortes excluem-se mutuamente e que no se pode ter ciéncia do sublunar a nao ser renunciando ao sublunar, abrindo mio do arco-iris em favor dos quanta ¢ da poesia de Baudelaire em favor de uma teoria da lingua- gem poética como hierarquia de constrangimentos com optimum de convexidade; os dois recortes s6 se encontrardo na infinidade dos tempos, quando a quimica substituira o cozinheiro na predic4o do sabor de um prato. Para que a historia pudesse ser elevada ao nivel de uma ciéncia, seria preciso que a ciéncia fosse a mesma coisa que o mundo real, e, ainda mais, cientifica e sob uma vers4o de uma certa maneira modernizada, que nao fosse ruptura com 0 imediato € que bastasse arranhar um pouco o real para encontrar a lei subjacente. Vamos, entdo, mostrar em que a histéria ndo € uma ciéncia: mas, como uma ciéncia do homem existe de verdade, veremos que relacdes a historia pode manter com ela; para isso precisaremos, inicialmente, tomar partido quanto ao estado atual das ciéncias humanas. Fatos cientificos e fatos vividos Se 0 recorte cientifico € o recorte sublunar nao coincide, € ue aciéncia nao_consiste Gin descrever & Ge GUNE- Was Ci WESCEBHT molar voultas que, diferentemente dos objetos sublinarés; Fancionem com todo o rigor,paraalém do Asal.clabucceo formal Ela nao estiliza o nosso mundo, mas constréi modelos, da sua formula, a do oxigénio carbénico ou a da utilidade marginal, e toma como objeto os proprios modelos cuja construgao descreve®S, £ um discurso rigoroso ao qual os fatos obedecem formalmente, nos limites de sua abstracdo: coincide, particularmente bern, com a realidade nos casos dos corpos celestes, planetas ou foguetes, de tal modo que, a partir desse caso privilegiado, arriscamo-nos a esquecer um pouco que uma teoria cientifica permanece, quase sempre, tedrica, que ela explica a realidade mais do que permite manejé-la e que a técnica ultrapassa amplamente a ciéncia que, por sua vez, a deixa para tras, em outros aspectos. A oposicao do sublunar e do formal, da descrigdo e da formalizacio continua sendo o critério para uma ciéncia auténtica; ela nao € um programa de Pesquisa: nao se programa a descoberta; mas permite saber de que lado se pode esperar que sopre o espfrito e de que lado est4o os impasses, sobretudo os impasses de vanguarda. Ora, os fatos que obedecem a um modelo ndo serao nunca os que interessam 0 historiador, e ai esta a dificuldade da questdo. A hist6ria que se escreve e, antes de tudo, a que se vive, é feita de nacdes, de cruzadas, de classes sociais, de Islae de Mediterraneo: sio todas nogdes da experiencia, suficientes para a acio € o sofrimento, mas ndo sAo idéias da raz4o. Contrariamente, as que uma ciéncia do homem pode ordenar em modelos rigorosos sio heterogéneas a essa experiéncia: estratégia do minimax, risco e incerteza, equilibrio da concorréncia, optimum de Como se Escreve a Historia 119 Pareto, transitividade das escolhas. Pois, se o mundo, tal que nossos othos o véem, tivesse o rigor das equacoes, essa visdo seria a propria ciéncia; e, como os homens n&o deixardo jamais de ver o mundo com os olhos com que o véem, as disciplinas historico-filologicas, que se atém, deliberadamente, ao vivido, conservarao, sempre, sua raz4o de ser. Desse modo, aimpossibilidade de uma historia cientifica nao resulta do ser do homo historicus, mas das condigées estritas do conhecer: se a fisica se pretendesse simples estilizagio da totalidade do sensivel, como no tempo em que ela especulava sobre o Quente, o Seco e o Fogo, tudo 0 que se diz da falta de objetividade da historia _poder-se-ia dizer dos objetos fisicos. O pessimismo ontolégico reduz-se, entio, a um simples pessimismo gnoseoldgico: do fato de que a historia dos historiadores no pode ser uma ciéncia, nao se segue que uma ciéncia da realidade historica seja impossivel®®, mas vemos qual € 0 seu preco: 0 que temos o habito de considerar como um fato explodiria em uma mirlade de abstracées diferentes. Assim, a idéia de explicar cientificamente a revolugao de 1917 ou a obra de Balzac aparece como t4o pouco cientfica ¢ absurda quanto a idéia de explicar cientificamente o departamento do Loir-et-Cher. Nao porque os fatos humanos sejam totalidades (quanto a isso, os fatos fisicos também 0 so), mas porque a ciéncia sé conhece seus proprios fatos. Situagdo atual das ciéncias humanas SQ sublunat-e.o cientifico, 0 vivide ¢ 0 formal, s6 se-opdem po conhecer. O contraste que Aristoteles via entre as duas regides do ser, a que esta acima do dreulo da Lua e a que esta abaixo dela, transportou-se para o conhecer quando nasceu a ciéncia modernae quando Galileu mostrou que o sublunar tinha suas leis ‘ocultas, enquanto a Lua o Sol eram corpos semelhantes a Terra, que tinham suas imperfeicdes “materiais”, manchas e montanhas. Disso resulta, antes de mais nada, que uma ciéncia do homem € poss{vel ¢ que as obje¢des que, por vezes, Ihe sAo ainda feitas (““o homem é espontaneidade imprevis{vel”) so as mesmas que eram feitas a Galileu quando se lhe objetava que a natureza era a Mie, forca inesgotavel de crianca espontinea que ndo se deixa, assim, reduzir a ntimeros. Resulta, igualmente, desse fato, que uma ciéncia do homem sé merece, verda- deiramente, o nome de ciéncia quando nao é uma parafrase das qualidades do vivido, quando faz suas proprias abstragdes com um rigor.que lhe permita exprimir-se numa linguagem algébrica precisa. Enfim, disso resulta, ambém, que o sublunar continua a subsistir como um segundo modo de conhecimento, o das disciplinas historico-filologicas; é da esséncia da ci@ncia nao ser o imediato, enquanto descrever o imediato é proprio das ciéncias historico-filologicas. Entre o teal e o formal nao ha nada; as ciéncias humanas ainda ndo formalizadas s4o uma retorica, uma t6pica extraida da descricdo da realidade. Quando a sociedade nao se limita, comportadamente, a ser a histéria da civilizagdo contemporanea, quando se pretende geral ¢ teoriza sobre os papéis, as atitudes, o controle social,

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