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ICA DA RA ENTREVISTA 10-48 ISBN B5-7110-482-4 wu i jorge Zahar Editor 63 eee Esta obra, que esclarece a posicao que sustenta a intervencao do psicanalista na primeira entrevista com seu anali- sandlo, é uma grande contribuigao & br bliografia psicanalitica, pois a escassez de trabalhos sobre o assunto € marcan- te. Além disso, 0s trabalhos anteriores no ousaram ir tio longe na abordagem. dla questio. Por um lado, essa intervengao apdiase na “teoria implicita” desse clinico, in- Muenciada por suas escolhas tedricas; por outro, em sua dimensio inconscien- te ¢ subjetiva, Foram necessirios mui- tosunos de pesquisa para que Eva-Marie Golder pudesse construira hipstese de que uma estrutura rigososa e idéntica, | constituida de cinco tempos, organiza toda primeira entrevista. Fssa estrutu ra faz com que a transferéncia se no- | dulea palavra no “momento sensivel”, | conceito que aponta 0 momento pre- ciso em que muda o tom do discurso do paciente. Aautora ressalta que toda primeira en- trevista em psicanalise comporta um momento de surpresa, pois tudo é or ganizado em funcio do contexto pre- sente, cujos fandamentos inconscien- tes siio sugeridos pelo relato apresen- tado. As histérias de dois sujeitos se acham frente a frente nesse tempo pri- vilegiado, que contém elementos sufici- entes para tornar infrutifero qualquer prognéstico. CLINICA DA PRIMEIRA ENTREVISTA j . Houde Sues jo Plofol /\, Transmissio da Psicanslise \V. ciretor: Marco Antonio Coutinho Jorge Eva-Marie Golder CLINICA DA PRIMEIRA ENTREVISTA Tradugao: Procério ABREU Revisio técnica: MARIA CLARA QUEIROZ CORREA Psicanalista owiora em Teoria Picanalitca, UFRE Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro itu original: ‘Au seul de Vinconscient: ‘Le premier entetien “Tradugo autorizada da primeira edigfo francesa ‘pblicada em 1996 por Payot & Rivages, 4 Pats, Pranga, na colegio Rivages/Psychanalyse, dligids por Juan-David Nasio Copyright © 1996, Editions Payot & Rivages Copyright © 2000 da stig brasieic: Peg Zaha Ear Lala fi México 3) sobreloja 20031-144 Rio de Jairo, Rd teh: 21) 240-0226 fas (21) 262-5123 tin jo@raharcom st: ww-zaiar.com ‘Todos o dcitos reservados. {A reprodiono-autorizadn desta publicagto, no todo ‘ou em parte, consti violagHo do copyright (Lei 5.988) ‘ciP-Brasl Catlogayio.na-fome Sinflata Nacional dos Etores de 1iveos, RU ‘Golder, Bva-Marie ‘ase7e Clinica da primeira enttevista / Eva Marie Golders teadugto, Prosi Abreu: revisio téenica, Maria Clara Gueiroz Cotréa,— Rio de- Janeiro: Jorge Zahar Fd, 2000 (Fransmissio da psicanlise) “Trodgio de: Au seuil de Mineonscient ; le premier Tnclui bibliggafia ISBN 85-7110-482-4 1, Entrevistas (Psiquiatia). 2. Psicanlise. 3. Reto ‘gio medico-paciene. |. Titulo, I. Sere ep 616.8917 00.0698 Du 158.9642 SUMARIO INTRODUCAO, 9 I. AS TEORIAS DA COMUNICACAO OLHAR-ESCUTAR, 15 1. As PESQUISAS EM ETOLOGIA, 17 2. Os SISTEMICOS, 27 3. Carl ROGERS, 31 4, Sandor FERENCZI, 33 5. Julia Kristeva, 35 6. Thea BAURIEDL, 37 7. OS INTERACIONISTAS, 39 8. A PSICANALISE: FREUD ~ LACAN ~ Dotto, 43 IL ABORDAGEM CLintcA, 49 1. O “DESDOBRAMENTO PADRAO” ~ O “DESLIZEPADRAO”, $1 instantanco da apreensdo, 55 ‘As elaboracGes imaginétias, 55 A localizagio mitua, 56 A transferéneia, ST A acusagao de recepsdo da paciente, 59 As respostas, 59 2. A ENTREVISTA COM VARIAS PESSOAS F OS AVATARES DO MOMENTO SENSIVEL EM GRUPO, 62 A entrevista com a crianga, 63 DEMANDA E FALA DA CRIANGA, 63 Especificidade da localizagao métua: a escansio do discurso da mae pela crianga, 68 A incidéncia das elaboragdes imaginérias, 70 © momento sensfvel, 71 A defasagem do enlagamento da transferéncia crianga-mae, 72 DEMANDA E TOMADA DE CONTATO SEM FALA PELA CRIANGA, 73 A localizagao das redundincias como guia, 78 © momento sensfvel, 78 A acusagao de recepgio, 79 Os efeitos da transferéncia, 79 0 trabalho com um casal, 81 O instantineo da apreensio, 85 A estruturagao da entrevista e sua incidéncia sobre o trabalho, 85 Em posigdo de escriba: © momento sensivel, 86 A uransferéncia, 87 3. AS ELABORAGOES IMAGINARIAS COMO GUIA, 89 instantaneo da apreensio, 91 As claboragées imaginérias, 92 A localizagio mitua, 92 (O momento sensivel, 93 O enlace da transferéncia, 94 4, A EMERGENCIA DA IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO E SUA ESPECIFICIDADE NO TRABALHO COM A CRIANGA, 95 ‘A localizagio miitua: a escansao pela produgao, 97 (momento sensivel, 98 A transferéncia, 99 45, O TRABALHO COM UM LACTENTE F & QUESTAO DO POSICIONAMENTO DO ANALISTA, 107 O instantaneo da apreensao, 106 Observar a dfade, 106 (© momento sensivel, 109 Da oportunidade da transferéncia negativa, 109 ‘A tempestade, no a posteriori, 109 ‘A patticulatidade da consulta com o lactente, 110 IL, DE UM CAMPO TERAPRUTICO AO OUTRO, 113 1, KESTEMBERG E DECOBERT OU A MESTRIA DA ‘TRANSFERENCIA, 117 2, A TEORIA SISTEMICA OU O BXERCICIO ABERTO DO PODER, 119 3, HERBERT ARGELANDER OU AS ARMADILHAS DO ENLACE DA ‘TRANSFERENCIA ANTES DA HORA, 123 4, WINNICOTT OU A INTEGRAGAO DA PARTICIPAGAO DO ‘TERAPEUTA NA RERLEXAO, 127 5. LAURENCE BATAILLE OU DESEJO DO ANALISTA E DESEIO DE SER ANALISTA, 132 IV. ELABORAGAO DO CoNncEITO DE “MOMENTO SENSiVEL”, 137 PRIMEIRO TEMPO: 0 INSTANTANEO DA APREENSAO, 141 ‘SEGUNDO TEMPO: AS ELABORAGOES IMAGINARIAS, 151 TERCEIRO TEMPO: A LOCALIZACAO MUTUA, 159 ey 4. Quateto TEMPO: MOMENTO SENSIVEL, 169 5. QUINTO TEMPO: A ACUSACKO DE RECECRO, © BSTABELECIMENTO DA TRANSFERENCIA, 176 CONCLUSAO, 185 Notas, 189 BIBLIOGRAFIA, 200 INTRODUGAO A primeira entrevista ganha relevo na prética cotidiana de todas as profissées concementes as relagdes humanas. Poderiamos, portanto, esperar que existisse uma profusio de manuais para apresentar © analisar a fenomenologia e a técnica desta situagao até certo ponto corrente e banal, Na Franga, entretanto, uma Gnica obra, phiblicada hf 30 anos, dscute a questfo do primeira enconto, Trata-s do fivro de Maud Mannoni, Le premier rendez-vous che2 le psychanalyste,! ‘uma apresentagao sutil, mas muito sucinta das questdes essenciais, relativas a essa situagao. Esse livro ficou sendo uma referencia, porém a tentativa de abordar essa problemética jamais foi renovada {de maneira mais profunda, Um livro de Catherine Mathelin? retrata 1 situagdo 30 anos mais tarde. Suas observagdes mostram repetidas, vezes 0 que chamo de “o momento sensivel”, no qual a relagao transferencial se enlaga com a crianga, ¢ retornam &s dificuldades espeefficas do trabalho com uma familia. Entretanto, as pesquisas sobre a estrutura do primeiro encontro, o enlace da transfeténci ainda estavam por se fazer. No exterior, a colheita tampouco é mais rica e, na maior parte das vezes, relativamente decepcionante, res- tringindo-se a receitas técnicas ¢ savoir-faire que nao deixam muito cespago para o paciente enquanto sujcito.” Algumas publicagdes mais restritas, safdas de coléquios, trazem outras Iuzes, mas sempre sur preendentemente limitadas * Devia haver uma razao para este fendmeno. A primeira ¢ cert ‘mente a mais importante reside na prépria dificuldade deste exerc cio. Com efeito, quando pedimos aos profissionais em geral, psic logos, médicos, advogados, reeducadores ¢ outros ainda, para con- tarem o que fazem durante uma primeira entrevista, notamos, na ‘maior parte do tempo, um certo constrangimento. Se por um lado relativamente simples contar como efetuamos uma anamnese, por aC, 10 Clinica spree enrevina outro € nitidamente mais espinhoso explicar como agimos na cunstaneia e enquanto profissionais nesta troca. A dimensao subje~ tiva, nas mais diversas formas da sedugdo e da telagéo de forgas, € tio pregnante que fica claro que o profissional esté fortemente implicado como pessoa. Em geral, nao falamos muito deste aspecto do trabalho, até mesmo desaconselhamos a andlise destes fendme- hos, a fim de no inibir a “espontaneidade” do profissional.* Os Gnicos que a isso se adaptam com certa habilidade sio 0s psicana- listas, afirmando em geral que a transferéncia leva virias sessbes para instaurar-se e que, por conseguinte, a primeira entrevista é parte integrante de uma série de consultas, sendo assim conveniente “ dei- xar vir" as coisas. sta afirmagiio nao resiste muito a uma anélise tigorosa, que mostra, a0 contrério, que a transferéncia se di desde o primeiro olhar, mesmo necessitando de um certo tempo para desdobrar-se na fala. Afesté a dificuldade, Balint ja o dizia, quando frisava que numa consulta 0 médico prescreve a si mesmo, por menos que procure se vender, De fato, com demasiada freqiiéncia, a anamnese serve de ‘escudo contra 0 doente.? presente livro & 0 resultado final de uma longa pesquisa. Ele tenta delimitar a dificuldade particular de toda primeira entrevist Iangando luz sobre © papel determinant do profissional, Anos de trabalho foram necessfrios para articular, a partir de uma pratica de analista, uma hipdtese que s6 0 ndimero significativo de primeiras consultas podia autorizar-me a emilir; uma estrutura rigorosa & idéntica organiza toda primeira entrevista e a transferéncia se enlaga na fala num momento preciso que chamo de “o momento sensivel No inicio de minha pesquisa, a intuicio deixava supor que havia uma lei interma, mas era necessdrio formular os conccitos para sair da intuigdo, Um elemento preciso permitia delimitar mais de perto estruturagao da primeira consulta: com cfeito, s6-depois um traba- Iho de reflexdo revelava, com regularidade, a interago de um certo tipo de intervengSes por parte do terapeuta com uma mudunga no tom do discurso do paciente. Inicio ¢ fim do trabalho pareciam estar tem estreita relagdo, A surpresa de um e de oulto articula-se numa cestrutura que, de fato, nada deixa ao acaso. A dinfmica decorrente 6 fungao da posigao do profissional nesta troca privilegiada, Entre 0 excesso de estrutura dos manuais técnicos e a auséncia total de estrutura do “deixar vir”, outra possibilidade surgiu da observagaio cada vex mais precisa deste momento-chave em que se ‘opera uma mudanga no tom do discurso do paciente. O “momento Ieoducde AL sensfvel”, enquanto conceito, refere-se a fragilidade deste ponto de péscula do trabalho, onde se separam em definitive todas as préticas de enirevista pela utilizagio dos fendmenos que surgem entio. {nteresse por uma pesquisa mais ampla, no timitada & psicandlise, como seri apresentada na primeira parte deste livro, reside na com- paraco entre olhar e escuta, ambos implicados nui primeiro en- Contra, mas favorecidos, mais ou menos, conforme a perspectiva de tuns e outros. Esta pesquisa demonstra, além disso, a identidade de estrutura de toda e qualquer primeira entrevista c evidencia 0 impac- to da resposta do profissional, erapeuta ou nao, sobre a dinamica do tvabalho em curso. O termo “sensivel” pode, & claro, ser entendido de maneira restrita como um simples empréstimo feilo a etologia e levantar, em consequneia, problemas epistemologicos. Uma refle- xo aprofundada sobre as semelhangas e dessemethangas da identi- ficagio no animal eno homem mostra, entretanto, o interesse pela Ianutengio de uma nogao que, por sua ambigiidade, permite reve- lar os elementos determinantes da relag20 terapéutica. Com eleito, toda primeira entrevista obedece a uma estrutura e a uma dinimica precisas que levam ao enlacamento transferencial e af ocorrem certos fenémenos que vio organizar-se no tempo em fungiio da ideatificago. Chamo este tempo de "“o momento sensivel” A primeira entrevista esté estruturada em cinco tempos: 0 tempo de um “instantaneo” da apreensfo, rapido e ef€mero; 0 tempo das, claboragdes imagindtias; o tempo da localizagiio mitua; 0 “momen- to sensivel” como comego do enlace da transferéncia, eo tempo da acusugao de recepgao, a transferéncia, E-cvidente que estes tempos nem sempre aparecem da mancira tio clara quanto poderiam dar a entender os exemplos clinicos apresentados na segunda parte. Todo profissional sabe por experién- cia que isto depende de um niimero significativo de fatores. Mas a auséncia de sua localizagao ndo significa que haja auséncia de estrutura, Ela atesta, ao contrario, uma particularidade da escuta do profissional A presente obra esté organizada de modo @ evidenciar a per peotiva a partir da qual, numa primeira entrevista, ocorre a interven- 0 do clinico. Esta se apoia, por um Indo, em sua “teoria implcita” influenciada por suas escolhas tedricas e, por outro, em sua dimen silo inconsciente, subjetiva. Numa primeira parte, as diferentes teo- rias da comunicagao que detam lugar a praticas terapéuticas muito variadas, até mesmo opostas entre si, sero estudadas segundo sua 12 Clinic de primeira entrevista andlise da linguagem e da relagdo a dois. Este primeiro tempo delimita os lendmenos de mane geval "A perspectiva a partir da qual disculirei a questio da participa- ao subjetiva do elinico € a da psicandlise, em referéncia a Freud ¢ $ Lacan, Eladistingue-seradicalmente dos pontos de vista emprricos fu técnicos sem referencia a uma andlise pessoal. Com efeito,assu- mnit posigBes enquanto cinico no campo anaitico implica testar @ teorta nie apenas através de sua prdpria prtica, mas i-a antes de tudo experimentado num trajeto a longo prazo. Somente esta expe- tiéncia através de uma psicandlise pessoal pode instruit-nos quanto 2 jogo do saber na transferéncia ‘Neste ponto, em sua relago com o inconsciente a transferén- cia, a psicandlise separtse das oulras prticas terapeaticas, E af também que € colocada a questio cnicial do posicionamento do tlinico no-analista, Com efeito, dele dependem fundamentalmente aamaneira como vai sr tratada a questio da relaglo com 0 outro bem como a compreensio de sua problematia. A expresso alem’ para Comproender", verstehen, € interessante a este respeto esublinha aigo de importante quanto & questéo do posicionamento do profis- sional: gragas ao prctixo ver, versteien pode ser wilizado no sentido de "colocar-se no lugar ceito” ou ent fo no sentido de coloearse no lugar do outro”. Confortne 0 lugar que da nogao de“ incons- Gente", clinica estar do lado do trabalho “na transferéncia” ou entdo do lado do trabalho “sobre a transfexéncia”, conceitos que serio diseutidos mais detalhadamente na stim pare ‘A quesiao das terapias nao analtcas€ delicada, Emboratenba- sos elinicos rigorosos que se referem a um campo teérico cujas nitivulagdes estudaram, 0 fato€ que existe um ntimero consideravel de terapeuias que tém como dnica referéncia uma longa pritca, a intuiggo-e 0 bom senso. Nesse caso, a questo do limite entre sie 0 tutto: no cerne das diferente teorizages, desaparecefreqtentemen- te em funeionamentos de conluio. Se & possivel conceber que a relagio de ajuda e conselho ndo tequer forgosamente uma anise pessoal, jd a auséncia de teoria de referencia ¢ mais problematica, na medida om que abre_a porta para o arbitrio. Nao existe prética sem teoria prévia. © "momento sensivel” no é umn epifendmeno da primeira consulta, Embora fagaz em sua emergencia, ele € entctanto capital para o enlace da transferéncjaerequer ser sistentado por uma teoria, Figorosa que deve Tuncionar como quadro de referencia. Além disso, por desivar macigamente do Tuncionamento imaginério, comporta Introdedn AS todos 0s riscos disso decortentes. O conluio, 0 dominio, a emogto fevam a passagens a0 ato que poderiam ser evitadas se aceitissemos por principio de trabalho outra coisa que no intuigao. Neste ponto, parece-me indispensdvel sublinhar que a localiza- gao do “momento sensivel” nada tem a ver com o que buscam Guaisquer praticas pretensamente" ripidas e eficazes”. Com efeito finda que este fenGmeno seja imediato, o desdobramento da trans- feréneia, em seguida 0 trabalho terapéutico ou analftico exigem um tempo que ao se deixa comprimir sem consequéneis negativas. ‘Uma primeira parte delimita as perspectivas essenciais do tra- balho clinico seus mébeis: 0 olhar ¢ @ escuta. Em seeuida, numa segunda parte, exemplos clinicos evideneiam alguns aspectos-chave de uma primeira entrevista. A escolha dos Gasos apresentados levanta necessariamente a espinhosa questio do segredo profissional. Para respeité-Io, troque os elementos biogré- Ficos das pessoas de tal forma que qualquer reconhecimento seré meramente fortuito, O que resta da situagio de origem é da esfera da ilustragao de uma estrutura e uma dindmica, tal como estiveram subjacentes a cada um desses exemplos, mas qualquer elemento descritivo 6 da esfera da fiegto, a fim de proteger os pacientes que contribuftam de modo decisivo para a claboragio deste trabalho. Gostaria aqui de agradecer a todos eles pela confianga que em mim depositaram num momento diffe de suas vidas e pela paciéncia que tiveram com sua analista. Veremos, com efeito, na parte clinica, que eles relornam incansavelmente @ pontos obscuros que sua analista pio foi capaz.de identificar de imediaio, alé 0 momento em que estes pudessem ser trabalhados na relaglo transferencial, Sua paciéncia e sa obstinago em serem ouvides sfo a chave da dinfimica de uma primeira entrevista, de inicio, ¢ de um tratamento, em seguida ‘Uma lerceira parte & dedicada a alguns exemplos elfnicos de diferentes escolas, Ela mostra a um s6 tempo as divergéncius ligadas 3 abordagem tcdrica de cada autor e 0 impacto decisivo do posicio~ amento ineonsciente do terapeuta ‘A diltima parte & uma elaboragao do coneeito de “momento sensivel” , como ponto de articulagio central de toda primeira entre- vista. Ela revcla a relagio com o saber ¢ a verdade que constituem © fandamento de qualquer teoria do conhecimento. A ilusio pode faver erer que pelo conhecimento, um conhecimento maior, pode- tfamos ser mestres do que ainda nos escapa. Ora, se hi. um saber a0 qual podemos ter acesso, este saber € 0 de um limite. Nao um limite dlo conhecimento, mas aquele que nos € imposto pela linguagem. OOOO OOOO ee MM Cinew du prime enrevina ‘Toda primeira entrevista comporta um momento de surpresa, em que algo de inesperado emerge na troca. Nada, com efeito, se assemelha ao funcionamento instintual ritualizado do animal. Tudo € organizado em fungo do contcxto atual, cujo relato revela ime~ diatamente os fundamentos inconscientes: a hist6ria de dois sujeitos tencontra-se neste tempo privilegiado e comporta elementos incalcu- léveis suficientes para tornarem aleat6ria qualquer previsao. A sur- presa cria uma hifneia 4 qual cada um reage de acordo com sua propria estrutura. O que o terapeuta diz.¢ faz neste momento preciso fala primeito dele mesmo, e os campos de referéncia de onde so extrados os termos que entao organizam seu discurso revelam as rmolas propulsoras inconscientes que utiliza a0 eaftem as méscaras do dominio, Renunciar a preencher os intersticios do discurso do paciente supe que terapeuta tenha aceitado que o fim de uma anilise nao seja “a integragao” a uma norma, mas adivisto extrema, aquela que ests ligada a nossa condigho de seres falantes. J. AS TEORIAS DA COMUNICACAO OLHAR-ESCUTAR ‘Toda prética da enteevista supde uma teoria implicita da comunica- ‘¢do que fornece a perspectiva a partir da qual se efetua o trabalho. Duas atitudes fundamentais determinam-se em fung%o da importéin- cin conferida go olhar e A escuta. Cada uma destas perspectivas tem suas aberturas e seus impasses. Se @ observagdo da fenomenologia ‘comportamental pode dar lugar a praticas reeducativas ¢ manipula- doras lamentiveis, o logocentrismo de outras escolas pode delibeta- damente ignorar que o comportamento é uma linguagem do mesmo modo que o discurse falado e conheccu desvios verbosos que tam- pouco deixaram de ser estigmatizados.' Entre estes dois extremos, certos clinicos buscaram criar ligagdes que deram lugar « novas priticas muito interessantes. Num primeiro tempo, discutirei as teorias da comunicagao mais conhecidas para localizar scus principais pontos de apoio, partindo da ctologia que fornece importantes indicagdes sobre a interagio entre abservacio manipulagao. Depois, serao discutidas as escolus que integram a um s6 tempo 0 comportamentalismo ¢ a descoberta, freudiana para chegar as duas principais referéneias de minha pr6- pria metodologin: Jacques Lacan e Frangoise Dolto. Veremos que é ‘na nogio de transferéncia que as diferentes escolas separam-se de ‘modo mais radical, ¢, dessa forma, quanto & posigdo c & implicagiio do clinico. 1s AS PESQUISAS EM ETOLOGIA A ctologia levanta de mancira privilegiada a questo da observago edo comportamento. Ela mostra as aberturas permitidas pela aten- ‘gio dispensada & semiologia do encontro, bem como os impasses da edugio de uma terapia & dimensio corporal e comportamental Longe de ser insignificante, ela forncce referéncias para uma leitura do "momento sensivel” eo enlace da transferéncia. ‘No animal, © comportamento é determinado pelo instinto. No homem, hé certamente vestfgios da lembranga filogenctiea, mas, para além dela, aparece neste momento especifico do encontto um. “resto” que 0 torna singular. Cada paciente & diferente do outro. Cada um assume, a seu modo, a angistia deste tempo inaugural do trabalho terapéutico. Evidentemente, & possivel desprezar isto & considerar que a importancia deve ser atribuida & observagaoe auma reeducaedo, em fungdo de certos critérios. As terapias comportamen- tais, por exemplo a teoria sistémica, nascem dat. Ontras consideram que 0 olhar deve ceder a ver & escuta, que a troca que se inicia comporta elementos ligados a interagio do clinico com o paciente, ceapaves de ajudar a construir uma relagao de trabalho. Veremos que € neste ponto que se separam as duas principais correntes da etolo- gia: a corrente evolucionista e a corrente da etologia humana. Ao examinarmos a perspectiva etol6gica, compreendemos me- thor por que a emogAo assume tanta importancia em certas teorias A surpresa, a angistia, emogées mais ou menos importantes, so elementos determinantes para qualquer trabalho terapéutico. Ora, 0 homem nfo mais dispOe de protegdes instintuais contra @ angiistia. A emogao obriga-o a fazer coisas que 6 distinguem imediatamente de seu “congénere” semelhante. Neste ponto, as diferentes escolas separami-se radicalmente, pelo uso que fazem dos conceitos de emo~ ” E.On 18 Clinica a primeivaentrevis ‘loc afeto, determinando a posigao do clinieo no trabalho terapétu- tico. ‘A etwlogia & por exceléneia, o dominio da observacio. A psi- cologia da primeira metade do século XX e, mais particularmente, a ddas criangas pequenas, tal como a encontramos em Spitz © Bowlby, fnascem da mesma perspectiva. Ao partir da observagio do animal, « propria etologia acabou por ligar-se, por sua vez, & observayio do hhomem, com maior ou menor eficécia, aliés. Da comparagao entre (6s duis sobressai nitidamente que algo subsiste, para além das con- ences que regem a relagso segundo o cédigo cultural de que cada tum dos interlocutores depende. isto que nos interessa com relagio & primeira entrevista ‘Num primeiro encontro, o cardter de novidade, o lado desconhe- cido da situacdo tém influéncia sobre os dois interlocutores, para aléin dos rituals dominando cada tipo de troca; séo eles que ststen- tam os protagonistas diante da angustia normalmente suscitada por momeulos como este, Sabemos todos, por té-los vivenciado watias circunstancias, que sua fungao de péra-angristia € muito rela~ tiva, Bstao longe de ter aeficécia do ritual animal. A vantagem desse fendmeno é juslamente deixar aparecer, por tras da tcla de um comportamento regulado pelas convengses, este resto que vem Como uma interferéncia num desdobramento que nos é entretanto familiar. Bein cedo a etologia interessou-se pela comparagio entre © homem ¢ 0 animal, buscando ao mesmo tempo cvitar a antropomor- firagdo. Uma primeira corrente baseia-se exclusivamente no olhar, enguanto a segunda, cujo representante mais conhecido é Boris Cryrulnik, integra a dimensio da fala. As conseqiiéncias heurfsticas relacionadas com 0 homem sio diametralmente opostas, como ve- vemos, 'A primeira corrente permanece impregnada pelo pensamento do século XIX, considerands que existe heranga animal, transmitida filogeneticamente ao homem. Aos antigos funcionamentos se supet- poriam de certo modo novos comportamentos, mais complexos. O Tepresentante mais conhiocido dessa corrente é Lorenz. Sua perspec- tiva pode ser chamada de “evolucionista”. Segundo ele, todos 08 comportamentos observados no animal encontram-se ce uma mane ra ou de outra no homem € podem ser localizados em “leitura direta” , Um comportamento substitul outro, como que por superpo- sigdo, Um paralelo entre o animal e o homem é portanto possivel. A nudanga é de ordem quantilativa e ocorreu progressivamente em Ar peuguicas om erologia 19 fungio da importancia assumida pela linguagem na vida do homem, Sua ese € razofvel, desse ponto de vista, mas chega a uma conclusio reveladora de uma posigao ideol6gica, recuperdvel por uma filosofia do hiomem. Lorenz, com efeito, jamais retormou a seus lamentiveis textos escritos sob o Terceiro Reich, relativos & domesticagto. Segundo ele, instintos novos, mais elaborados decerto, mas tanto mais perigosos, superpdem-se aos fundamentos instintuais, primordiais. S6 nos imperativos eateg6ricos encontrarao eles limi ino. O Insinta€ dominado através de uma aprendionger “ten. ticamente pavloviana e, além disso, de um certo grau de impregna- glo ireversvel Raciotnios como exe pert a cetas auto res, como Bischof, afirmar que a identificagao no homem funciona exatamente como no animal.’ As terapias comportamentais, cada ‘yer mais em voga atualmente, nele encontram um teérico zeloso.* Se ui condicionamento basta, por que nao pensar em reprogramar © homem? Isto dé origem a técnicas muito apreciadas no final da década de 90, como a Programagio neurolingiiistica chamada PNI Os termos “ processos de condicionamento autenticamente pavlovia- no”, “impregnagao irreversivel”, séo diretamente oriundos da eto- logia animal e esto associados a formulagdes morais e filosoficas. [Nao hi heterogeneidade, mas simplesmente limitagao do que pode- Fa imompereaso nto toméssemos culdado impasse dessa argumentagao reside em sua propria hipdtes« Hk ed boctda naw ana coweede Oana eae homem e 0 animal, e leva 2 dedugdo de que s6 0 dominio pode canalizar 0 que hé nas eamadas profundas do homem. Ora, embora se possa dizer que ha tanto em um como no outro érgios sensoriais, ‘que Ihes permitem localizar-se em seu ambiente, é impossivel afir- ‘mar que seja idéntica a interpretagao dada por ambos a suas percep- ‘gOes sensoriais. Para o animal, esta interpretagao 6 da esfera do significado ligado a um signo e determinada de antemao pela inscri- ‘io do instinto no genoma. O significado dado pelo homem a uma mensagem nao € fixado, mas procede da articulagao significante ligada & pulsio & fala. As conseqiiéncias de tal raciocinio sio de varias ordens. No passado, a mais grave foi evidentemente a apropriagao dos trabalhos, de Lorenz. pelo nacional-socialismo. Porém, de mancira mais geral, ese tipo de abordagem do inato e do instintivo alimenta 6 disewiso racista Nilo se poe em diivida a existéncia do inato no homem, mas sempre que uma analogia retoma uma formulagao de moda a tornar 20 Clinica da primeira enrevisia possivel a assimilagao entre instinto e pulsdo, surge o perigo de um deslizamento. Bntsetanto, ndo ha diivida de que essa perspectiva teve influéncia consideravel sobre campos de pesquisa como a medicina, i psicanilise, a psicologia ou a pedagogia. Assim, a anélise da sociabilidade que eticontramos em Zazz0 tem as mestnas ressondin- cias, na medida em que afirma que a sociabilidade faz. parte do biol6gico, do mesmo modo que a fome, a scde, a pulsio sexual Zaxzo fala de “necessidade biolégica de outrem”, que podemos admitir ser inata.> Outros, ainda, falam de “instinto” relacionado com a filiagio.® Tal andlise limita a expresso do bebé & dimensio biol6gica, sem deixar entrever que a linguagem esté em acho desde ‘A mesma perspectiva é encontrada em Reik. Em Le psychologue surpris, cle atribui ao espanto lugar preponderante, mas seu racio. nio logo fecha 0 espaco que acaba de entreabrir. Reik observa, assim, ‘quantas vezes 0 psicdlogo pode ser surpreendido por uma expresso que mobiliza sua escuta como um indicador do inconsciente do paciente. Até af, € possivel segui-lo, mas, de repente, na conclusio tirada, ele imputa 6 que ouviu a hereditatiedade animal.” Veremos mais adiante que, neste ponto preciso, o que esté em questio € a transferéncia do (erapeuta. Reik nfo é o nico a querer mudar de assunto nesse momento, Essas redugdes so tanto mais espantosas nna medida em que, 20 longo do livro, faz um trabalho notdvel sobre a questao do jogo de palavras, um trabalho sobre o significante que recebeu dex anos mais tarde o fundamento que conhecemos. A hipdtese € justa, mas a dedugio faz, com que se extravie, Ele afirma cxistir uma “espécie de compreensio telepitica” nos animais, um efeito de transmissao de um estimulo devido a um “psiquismo supra-individual” . Ousa afirmar que o proprio Freud teria falado de uma “transferéncia psicolégica direta desse tipo” no homem, A idéia € sedutora, mas a simples superposigao homem-animal chega a afitmag6es rapidas que atribuem & transferéneia 0 papel de apelar para as mais antigas fontes instintivas.* ‘A surpresa seria, ento, em si mesma produzida por um fend meno assimilavel & comunicagdo entre os animais. O recalque diria respeilo apenas a contetidos & espera de se tornarem conscientes. Por conseguinte, o trabalho de anélise consistiria em ctiar as condigdes dessa “telepatia” a que se refere — da transferéacia, por que nio? —a fim de permitir ao terapeuta comunicar ao paciente os conteddos que adivinhou daquela maneira. Se opusermos 0 brilhante trabalho sobre 0 jogo de palavras a esse brusco retorno a uma hermenéutica As pesguisasemetologin 21 redutora, nfo podemos deixar de pensar que Reik esté de certa tnaneira numa encruzilhada. Ele permanece aquém de uma aborda- gem da transferéncia jé praticada por Freud, visto que esta ditima emetia a outta coisa que a uma simples tradugao de um contedido fem outro.’ Apesar do interesse de seu trabalho, as conclusies de Reik alicergam as teorias — aparentadas com 0 discurso médico — que preconizam 0 dominio pelo saber. Reik mostra também de que maneira é possivel fazer-se uma leitura inteiramente evolucionista de Froud, se fizermos a suposigao de que a regressio implica... 0 relomo ao rudimentar, ao instintual.!° ‘A mesma confusao reaparece em Bowlby, que retoma 0 “Esbo- 0”, traduzindo Trieb por “instinto” , o que the permite afirmar que a relroagao de que fala Freud nesse texto é, sem tirar nem por. 0 “feed-back” dos cibernéticos. A pulsdo é reduzida a seu substrato biolégico.! A perspectiva que escolhe faz. com que assimile 0 hhomem ao animal, ¢ até mesmo tente a antropomorfizagao do animal para “obter] boas predigdes do comportamento” ? Esta visio an- {ropomérfica na etologia animal, obtida por reversio, embaralha as pistas e faz crer em uma tinica forma de expressao para o animal © © homem.'? Compreendemos, assim, por que nos anos 50 Lacan recusou-se a falar de “ linguagem” toda vez que o animal estava em. 4questio. A questo da semelhanga pode fazer com que se passe 20 largo do essencial. Tomar como ponto de partida uma hipotética comunidade de instinto conduz a uma confusio dos registtos de interpretagao. Signo e significante seriam iguais. Como todos os seres vivos, somos dotados de érgios dos sentidos que nos informam sobre nosso ambiente. A grande diferenca nao esté em um desenvol- vimento mais ou menos importante destes iltimos, mas na interpre Lago que damos is mensagens que nos transmitem. E necessério um outro olhar sobre a sensorialidade. A utilizagdo de um mesmo termo para designar dois fendmenos andlogos permite entretanto comparagdes interessantes. Reik subli- nha: “Nao dizemos ‘ele nfo me cheira bem’, como se tOssemos animais dotados de faro? [...] Nao dizemos ‘farejar’ tal ou tal motivo por tris do comportamento de x?" Nao se pode negar que existem semelhangas impressionantes entre um encontro de dois mamiferos superiores ¢ dois humanos que nao se conhecem. © que muda é 0 canal pelo qual uns € outros ppassam para se comunicar. No homem, a fala est necessariamente implicada, Homem e animal tom rituais de aproximagao, mas apenas ‘animal dispoe de uma inserigao do funcionamento ritual no geno 22 Cinicw da primeira entrevista ma, nao o homem. © ritual humane depende da cultura transmitida pela educagiio, Varia de acordo com as regides, as classes sociais € faté mesmo as familias. Além disso, embora submetido a um codigo familiar espectfico, cada membro comporta-se de modo difetente de acordo com os momentos e em funcao do interlocutor. Os limites do ‘previsivel sao rapidamente atingidos, © que vem a seguir depende da interpretagéo dada ao desenrolar da troca. Um fator essencial intervém nesse momento: a emogao. A conseqiéneia no plano da psicoterapia € evidente. Se houver lugar para a fala, este “resto” que fparece para além do comportamento regrado vai tornar-se essen~ cial, j& que remetc & especificidade de um sujeito, 20 invés de referir-se a uma “tara” — no sentido etimoldgico do termo — a ser reduzida, Boris Cyruinik apostou ser possfvel articular em conjunto as descobertas da etologia ¢ da psicandlise. Daf ser criticado por ainda utilizar 0 termo “etologia”. Com efeito, se colocarmos lado @ lado seus trabalhos e os de Bowlby ou de Hermann, constataremos que testes diltimos, embora reivindiquem a denominagio de psicanalis- tas”, sio muito mais comportamentalistas que os de Cyralnik. Que- relas de escolas que passam ao largo do essencial. Mas 0 fato é que, ‘em sua abordagem, 0 olhar continua sendo predominante e justifica 1 gravagao em video das sessdes. Se podemos permanecer criticos quanto a essa sua opgao “naturalista”, devemos por outro lado cconstatar que, a0 inverso, © Togocentrismo de certos psicanalistas faz ‘com que deixem de lado toda essa parte de linguagem do corpo que é no cntanto, de importineia capital no primeiro encontro. O meio- termo é dificil de ser encontrado. Cyrulnik desenvolve de maneira muito sutil as earacter ticas dos dois registros da linguagem animal e humana. Ele constata que, para 0 homem, desde o primeiro dia, os mecanismos de reforgo ou de inibigao estdo ativos, de modo que, de imediato, a erianga é mmateada pela relagao com os que @ ceream, igualzinho a0 animal. Os dois usam a “linguagem” para se comunicar, mas essas lingua- gens s20 de natureza totalmente diferente. $6 a fala dé dimensio hist6rica, ao passo que a linguagem animal é meramente contextual, ‘A “jungio linguageira” nomeia o ausente, evoca tanto 0 passado ‘quanto 0 futuro, a0 passo que a linguagem dos animais esté subme- tida apenas 2s emogoes proximas. ‘As observagées de criangas bem pequenas mostram-nos a mul- tiplicidade das interagbes entre a mae ¢ © bebé, e nos tornam sensf- veis as divergéncias de interpretacio a que dao Iugar, conforme 0 Asyesniisencniia 3 sentido que cada mac dé ao grito de seu bebé. Cyrulnik observa que ‘animal, a quem fazemos ouvir um grito de alligao de um bebé, reage imedialamente por um reflexo de busca ¢ de chamada dirigido para a fonte sonora." $6 0 homem & capaz. de enganar-se na inter- pretagdo de um apelo, até mesmo de ignoré-lo; ao inverso, pode dele Iembrat-se ainda anos mais tarde. Um cao jamais poder evocar com deleite ou horror um encontro, tampouco tegozijar-se com os reen- ccontros por que anseia, Isso, entretanto, nfo quer dizer que o animal seja desprovido de sensibilidade, muito pelo contrario. © animal esté no imagindrio © no real, mas nunca no simbélico. Em seus textos, Cyrulnik retoma a teorizagio de Frangoise Dolto a respeito da comogao como ponto de articulagao entre 0 corpo 4 fala, O que diz do rastro deve ser retomado quanto & questo que nos preocupa. Na medida em que, numa primeira entrevista, os fendmenos contextuais assumem lugar prepondeiante, a falta de reflexo inalo manifesta-se no homem por emogao. A comocio apa- rece ali onde ha falta e induz reagdes que revelardo os rastros da historia que marcaram 0 sujeito. Corpo, fala e historia serio articu- lados, dessa maneira, em um conjunto novo ¢ especffico aquele encontro, ‘A primeira entrevista mobiliza de modo bem particular o con- junto dos sentidos, a visio em primeiro, j& que se trata de explorar ‘0 mais rapido poss{vel o ainbiente onde a entrevista vai se desenro~ lar, Em uma “apreensdo” imediata da pessoa do interloculor, todos (03 sentidos participam da elaboragao da primeira impressio. Quan- tas vezes falam-me da roupa, da voz, até mesmo do cheiro do clinico durante a primeira entrevista, de tudo aquilo que marca profunda- mente a primeira imagem, a primeira sintese feita pelo paciente ¢ que ja determina o trabalho que ser possivel com 0 terapeuta em questdo. A primeira reagio diante dessa situagao nao difere muito fem intensidade daquilo que pode sentir um animal. O que muda 0 {que o paciente faz, com isso. Habituado a trocas ritualizadas, ele pode procurar trangllilizar-se usando fOrmulas de cortesia. Vai em seguida utilizar palavras destinadas a informar 0 interlocutor daquilo que o eva & consulta, de modo a estabelecer um primeiro contato. Quanto mais modesto for o meio sociocultural, mais dificil sera em geral a loca que se segue, O manejo da fala é um excelente meio de protecio, e quanto menos dominada for a expressio verbal, mais Iocalizaveis sero os fendmenos de comportamento. Foram as situa Ses bloqueadas no plano verbal que mais me ensinaram sobre a importancia da ligagdo entre © homem e 0 contexto imediato. 24 Chinicn da primeira entrevista [A ontogenia da linguagem informa-nos sobre os pontos de jungio entre a semidtiea animal e a semidtica humana. No animal, toda expressfo esté ligada ao contexto e ao funcionamento biolégi- ‘co. Ela Ihe permite localizar-se em seu ambiente e comunicar a outro finimal as mensagens necessérias a sua prOpria sobrevivéncia, Esta Tinguagem é exclusivamente uma linguagem de sinais, 20 passo que no homem trate-se, de imediato, de uma comunicagl0 que engloba 6 sinal e sua interpretagio, em fungio da relagdo entre o homem, seu interlocutor e sa histéria, No animal, a gestualidade esta inserita no fgenoma e responde a um contexto preciso. Na crianga pequena, a jpestualidade rudimentar vai ser progressivamente substituida pela fala, de tal modo que o gesto muds radicalmente de Forma ov torma-se secundétio.'® Além disso, e af encontramos 0 impacto dos trabalhos de Dolto sobre Cyrulnik, essa interagio é determinada pelo vies da emogio. A observagio da criana surda mostra a importa desta emogao pela hipergestualidade de desespero, quando ela no se sente compreendida, ‘A gestualidade funciona primeiro como sinal antes de organi- zat-se om fala. Bla estd de certo modo “a espera de simbolizagio” HE uma interagiio entre uma mensagem © um interlocutor. Se, no animal, a resposta a um sinal dado é invariavelmente a mesma, no homem, ela é mais ou menos imprevisivel, mudando de acordo com ‘historia de cada um ¢ em [angio do contexto emocional no mo- mento mesmo em que o sinal € emitido. Comportamento e fala interpenetram-se num conjunto polifani- co tinico para cada pacientc. Numa primeira consulta, o mais im- pressionante € justamente a combinago da atragao (“estou com Yontade de procurar alguém pera Ihe falar de meus problemas” )com a vontade de fugir ¢ 0 medo do desconhecido. Os dois movimentos diametralmente opostos exprimem-se em todos os pacientes de ma- neira mais ou menos “lisfvel”. Uma hesitagio na atitude, uma voz pouco firme ou, ao contrario, jovial demais para a situagio, um olhar esquivo, um contetide do relato supondo subentendidos, a mie que toca constantemente 0 rosto, que cobre a boca ou coga os cabelos, 0 os sinais de um embarago mais ou menos importante. Devemos lecalizé-los ¢ levé-los em considerayio de tal modo que o medo se alenue gradualmente na troca, Gragus 2 ritualizagao, © contato tor- ha-se suportavel. Mas ela apenas ndo basta, © homem precisa assi- milareada situagao a outra, conhecida. Freqientementc, um paciente dlesavisado compara uma entrevista com o psic6logo ou o psicana- lista com uma consulta médica, até mesmo com uma ida ao dentist Aspesquisas em etologia 28 prova elogiiente de suas angistias. Longe de ser de esséncia “infe- Fior” ,alé mesmo insignificante, o compsomisso sensorial participa plenamente da polifonia desse momento. Fala e expresso corporal completam-se mutuamente, confirmam-se ou desmentem-se,'” mas cequivalem & linguagem no sentido pleno do termo. © inconsciente € estruturado como uma linguagem e exprime-se tanto no € pelo corpo quanto pelo discurso Falado. ‘Cada modo de expresso sofre @ dupla influéncia da pertenga a uma cultura e do impacto da hist6ria inconsciente, Nilo fazemos como cies ou gatos, no farejamos o traseiro de nosso interlocutor, ‘mas buscamos saber, por outros meios, com quem estamos lidando. Para isto, dispomos a um s6 tempo da linguagem e de todos nossos sentidos. E evidente que, numa primeira entrevista, o lado sensorial contribui de maneira especial, ainda que nossos sentidos tenham pouco a pouco se embotado, & medida que evolufimos. E claro que, ainda af, os impasses existem. A subestima da linguagem corporal deu origem a um logocentrismo prejudicial, talvez,aliés, por causa da atrofia de nossos sentidos, O exemplo mais impressionante € com certeza 0 destino dado durante muito tempo a lingua de sinais, Sacks, neurologista nova-iorquino, descreve © percurso de obsticulos que esta teve que atravessar antes de ser reconhecida como lingua plena, Sabemos que ainda hoje existem pessoas que impedem criangas surdas de assinar 0 nome, achando gue isto nao permite que evoluam do ponto de vista intelectual, simplesmente porque s6 as palavras pronunciadas teriam valor de fala. A riqueza de possibilidades de expresso corporal néo-verbal 6 freqllentemente ignorada ¢ nutre-se da idéia de uma deficiéncia © de uma infetioridade relacionadas com a auséncia de linguagem falada. O inglés, ali, utiliza a mesma palavra para “mudo” e para “bobo, estipido'”: dumb.'* Sacks pensa que esse preconceito, que reserva aos surdos um lugar de sub-homens, remonta aos tempos biblicos. A vor.c 0 ouvido eram considerados 05 inicos e exclusivos canais através dos quais @ homem e Deus podiam entrar em conta: to.!? Basta lembrar 0 encontro de Moisés com Deus, no episédio da sarga ardente, ou as primeiras palavras do Evangelho segundo So Joiio: “No comego era o Verbo.” A superestima da fala em relagio ’ lingua de sinais era tio maciga que os prOprios surdos-mudos resistiram durante muito tempo antes de aceitarem os trabalhos de Stokoe sobre o valor lingifstico da Tingua de sinais.2° ‘A importincia conferida A linguagem falada e a superposigao de dois sistemas de referéncia, como fazem os evolucionistas, compor- 26 Clin ds primeira ntrevisis tam intrinsecamente © risco de uma desqualificagao de certos fun- cionamentos mais ligados ao corpo que & linguagem falada. B apenas pela aceitagao de que as duas formas de expressio esto submetidus fo significante, © so portanto iguais em valor expressivo, que feseaparemos 0 risco assimilacionista. A visio do homem que per nea essas pesquisas esté nos antipodos da etologia evolucionista, No cere desses trabalhos, hi o questionamento, ao passo que, do outro lado, hd o saber. Uma consequéncia fundamental evidencia-se, dessa mancira, a um s6 tempo para a observagao de uma situagio de ‘encontro ¢ para tima clinica que busca considerar a sensorialidade e 0$ efeitos sobre o imagindrio. Se um saber & espera de confirmagéo deixa pouco lugar para a surpresa, a abertura a singularidade de wna expresso preserva uum espago onde a wansferéncia pode, verdadei: ramente, desenvolver-se e ser trabalhada. Corpo e fala associados na expresso de um sujeito na relacio com tum outro tornam-se assim esse campo privilegiado da pesquisa sobre a transferéncia, Os exem- ples clinicos que se seguem trarao uma nova luz para esses fenéme- ros da primeira consulta e mostrario a que ponto, através da emogio {que nele se manifesta, o corpo desempenha um papel central no “momento sensivel”. Nas diferentes teorias que discutitemos, serdo cruciais os fend- ‘menos ligados ao olhar e & escuta, do mesmo mode que as questies do lugar que cada teoria d& a emosio, Estes fendmenos determinam © enfoque sob o qual cada clinico organiza seu trabalho. Do ponto de vista da pratica terapéutica, a tcoria mais prdxima da ctologia é f erapia familiar ow sistémica. Ela ilustra a um s6 tempo sua ‘metodologia ¢ seus impasses. O capitulo seguinte The sera portanto dedicado. -2 Os SISTEMICOS A observagio, a descrigao de um modelo comportamental si os, meios diagnésticos da pratica sistémica, O modelo de referencia é a cibernética, fetramenta sonhada pelos adeplos da psicologia com- portamentalista, Para os eibernéticos, a nolo de informagko 6 cen- tral. No vocabulério sistémico sfo freqlientes termos como “auto- rmatismo" , “tratamento da informagao”, “controle”,“mecanismo", tantos termos a sublinhar a importancia da mestria, Insistindo em uma interpretagéo superficial das pesquisas freudianas, esta teoria critica o fato de elas $6 cuidarem dos conflitos intrapsiquicos ¢ de negligenciatem a interdependéncia entre o individuo e seu meio." (© modelo dos sistémicos fundamenta-se no principio da bipo- laridade entre um emissor e um receptor, assim como na transmissio circular da informagéo sob forma de eédigo a ser decitrado. O primado do significado, embora estes pesquisadores insistam no conceito de “metacomunicag20”, desvis esta teoria para o lado do campo imaginério, observavel com as ferramentas proptias aos psi- célogos. Particularmente apreciada em terapia familiar, esta teoria sedu pelo principio algo simplista segundo © qual uma boa meta- comunicacéo permite resolver os problemas relacionais. O trabalho do terapeuta consiste numa observagio da estrutura familiar © de ‘suas interagSes © leva A manipulagéo do conjunto relacional em Fungo dos objetivos terapéuticos a serem atingidos, ‘Com as nogGes de emissor e receptor, a teoria sistémica discate a comunicago sob seu aspecto especular, embora também afirme que existem dois tegistros de linguagem. Ela estipula que, numa toca, transmitimes a um s6 tempo uma mensagem e uma opiniao, expressas de modo concomitante no contetido e na maneira de transmitir a mensagem, Por intermédio desta dima, fazemos saber a0 outro 0 que dele pensamos ¢ 0 que pensamos do que ele pensa de a 2 Clinic da primeira entrevista nds, devolvendo-Ihe em espelho sua propria opinidio. A f6rmula exata € a seguinte: “E assim que le vejo”, “E assim que te vejo me ver" e"E assim que vejo como me vés te ver." Este jogo pode continuar indefinidamente, com uma ressalva: 0 registro “analégico”, isto é, a mensagem referente a relagao, torna- se inapreensivel de um ponto de vista intelectual apés algunas idas-e-voltas. Alm disso, nesta reduplicagao, a mensagem nao volta sob forma invertida, como ressalta a teoria lacaniana, mas na verda- de sob sua forma especular do “eu te vejo”.”" A diferenga funda- ‘mental entre a tcoria sistémica e a psicandlise esté nesta abordagem divergente quanto @ fungo do interlocutor. A idéia ditetriz.é a de tum cédigo traduzivel gragas a uma boa hermenéutica. Outra heranga de Freud retoma, pois, mesmo entre seus detratores. Na pritica familiar destes, tudo esté centrado nesta retradugao de um conteédo analdgico nom contetido digital, enquanto comunicagio sobre a comunicagao, partindo do postulado de que um casal ou uma familia silcaracterizam-se por sua faculdade de metacomunicar. Na verdade, 1s nogoes de “anal6gico” “digital” assemelham-se muito a0 que Freud desereveu como processos primérios e processos secundatios. Por esse vigs, por mais afastada que pareea estar da psicanélise, © a contragosto, é claro, esta teoria é, de toda evidéncia, um de seus rebentos. Os sistémicos constatam que uma relagio patolégica leva a ‘querclas incessantes quanto ao sentido atribuido pelos interlocutores ao discurso do outro, €0 passo que, numa relagdo s4, é natural que _possamos nao entender tudo ¢ retomar os termos do que foi dito para discuti-los novamente. De modo implicito, isto supe, no entanto, que haja escuta plena e perfeita coincidéncia entre um significante € um significado, fantasia que engendra técnicas psicoterdpicas pe~ rigosas pelo poder que dio ao terapeuta demiurgo. A sugestio abandonada por Freud volta com forca nesta pritica. Se considerar- ‘mos a comunicagio humana 2 Inz da ciemética, a nogzo de input no 6 mais, de fato, chocante. Se ¢ possfvel reduzir uma comunica- {G40 a significados e se estamos convencidos de que se trata de trazer as familias em disfungio para normas que conhecemos, é entao inteiramente licito “injetar”, como em uma quimioterapia, 0 que € necessétio para curar. Ora, afirmar que uma observagao exprime algo de objetivo referente ao observado € pura ficgao: este € 0 lugar da ignorancia, Estamos diante de um fenOmeno que reconhecemos como a expresso do funcionamento do estigio anal. Primado do dominio, Os sistomicos 29 manipulagfo, redugio do outro ao poder do mais forte. O lugar do sujeito encontra-se limitado ao extremo na submissio total: “o zero da demanda do Outro”, segundo Lacan, encontrando sua repre sentacHo “no que vai embora no penico” . Nada espantoso que, nesse ‘campo, a gravagao em video possa tomar 0 lugar do cadiver, do resto de um sujeito ignorado em sua singularidade: essa gravacao nifo serve apenas para “compreender melhor” 0 que acontecen na sesso, mas também como meio de, “melhorar a milo”, coisa que Rougeul chama de gindstica mental. Estes procedimentos revelam © deslizamento para 0 fechamenio e a adaptagto. Ali onde Freud falava em “liberar” dos entraves do recalque patolégico, seus su- cessores, inclusive os da América, ouviram “liberar dos entraves que impedem um sujeito de adaptar-se corretamente” . Esse deslize fez com que nos perdéssemos em conjecturas quanto & norma ¢ ao eu forte e, por essa razdo, autorizao terapeuta, analista ou ndo, a intervir de maneira muito diretiva na vida do paciente. Na medida em que © bem para o outro” pode ser definido, todas as manipulagdes, por mais perversas que sejam, encontram sua justificativa. Nesse campo, a escola de Mildo, em tomo a Mara Sclvini-Pa- lazzoli, parece ter conseguido o impossfvel, j& que pode dispensar a presenga da famflia para claborar o programa de “reeducagao” . Bla considera que uma terapia familiar deve ser preparada minuciosa- mente com base num dossié estabelecido desde o primeito telefone- ‘ma, ap6s 0 qual se faz uma ficha detathada. As informagdes recolhi das dio lugar a hipbteses de funcionamento desse sistema familiar © a um programa de intervengio determinado antes mesmo do pri- meiro encontro. Sem esta hipétese, o terapeuta nfo pode trabalhar, Um terapeuta com uma hipétese €, segundo Selvini-Palazzoli, “como um trem que anda sobre trilhos. A rigor, pouco importa se a hipétese & verdadeira ou falsa, j4 que, de qualquer forma, da infor- magées que permitirao ao terapeuta elaborar outras" 2? Trem sobre trilhos ou rolo compressor, os limites so determinados pela rigidez 4o sistema, Terapeuta ¢ supervisor estao estreitamente ligados. O primeiro sabe o que deve fazer, © o segundo intervém para trazer 0 primeira a ordem, caso esteja se desviando do programa previsto, € ‘para comunicar-Ihe suas observagdes sobre a famnflia, Em contrapar- lida, 0 interesse é pequeno quanto ao que sente o terapeuta no que diz respeito a situagdo. Priticas que chegam a encarar a possibitidade de trabalhar sem a presenga do paciente ilustram pelo absurdo a negagio da singula- ridade de um sujeito. Nada espantoso que tal teoria tenha tido um Chiat as primeiraenirevis sucesso estrondoso em diferentes instituigdes médias e juridicas em {quase todoo mundo. Ela autoriza crer que & possfveltratar o paciente ou 0 indiciado exatamente como faz a medicina com o doente, Os espelhos transparentes substituem © microscépio e transformam as, salas de terapia em verdadeiros laboraldrios. A teoria é sedutora e, ‘© que nio atrapalha em nada, aprende-se com facilidade. Uma psicandlise € nitidamente mais longa e mais desconfortavel. Um ‘Milton Erickson soube provavelmente manejar essa ferramenta com fo respeito que convém; outros, ao contrario, dela se apossaram com mais brutalidade, Negar a existéncia do inconsciente evita questio- nar 0 lugar do terapeuta ¢ de seu desejo, um empreendimento ch de riseos Nos antipodos de tal pritica estdo todas as técnicas terapéuticas que nfo rejeitam a idéia de uma implicagao do terapeuta no tratMho tem sesso, mas que, pelo contratio, fazem dela o pivo central Encontramos nessas técnicas profissionais de todos os horizontes, analistas ou no, O que tém em comum sto algunas dificuldades com 0 limite entre 0 (erapeuta ¢ o paciente, como nos mostram os exemplos a seguir. Carl ROGERS ‘A teotia de Rogers, igual & dos sistémicos, parte do prinefpio de que Freud est ultrapassado e de que corregées slo imprescindiveis. As formulag6es deste autor sobre a ndo-diretividade, em seguida ‘entrevista centrada no cliente e, sobretudo, sua definicao da empatia assemelham-se em muitos pontos a uma obsteteicia espiritual. Nada ‘de novo, portanto, Conhecemos essa ferramnenta da obstetricia espi ritual desde a [dade Média. O alivio que deve resultar da expressao ‘dos sentimentos negativos lembra os efeitos que esperamos da con- fissio, Coloca-se, entao, a questo do lugar do clinico-confessor. O historiacior Jean Delumeau, em seu livro sobre a pratica da confissa0, insiste na dificuldade particular do reconhecimento de culpa durante 1 confissio auricular. Unilateral, ela cria um fosso entre um juiz © um culpado, deixando 0 dltimo na angistia. Se a falta grave reconhecida diante de alguém préximo, continuamos seguros de sua afeicio: conhecendo suas fraquezas, imaginamo-lo bem menos ater- rorizante como juiz.do que um desconhecido. A transferéncia coloca © paviente diante dos mesmos tormentos. Francisco Xavier foi o primeiro confessor a entender este fendmeno ¢ a preconizar a parti- Jha das confidéncias, pelo menos nos casos extremos,”® Encontrare- mos uso muito semelhante em Ferenczi. Para Rogers, a empatia constitui o cimento da relagao. Assim, aconselha sem cerim6nia os psicotcrapeutas a nio esconderem seu apego ao cliente préximo ao fim do tratamento.”” Se, para o cliente fem questo, em alguns momentos a relagio pode ser vital, € certo {que © resultado positivo, “‘o crescimento ¢ o desenvolvimento do individuo”, como diz Rogers, trouxe satisfagdes ao terapeuta. Nada espantoso, portanto, que, para 0s dois, o fim provoque sentimentos de perda do ponto de vista imaginério. Ha nessa abordagem toda ‘uma visto do homem e da idéia que este faz. da telagio de ajuda 32 Clea da primeira enterits como ferramenta pata valorizar 0 que ha de positive no individu As idéias de integragito maior, de maturidade, de independéncia so Pata este autor conccitos-chave.™ Nelas reconhecemos sem esforgo a influéncia de Hartmann e da psicologia do ego. A marca essencial vem dos movimentos oriundos dos trabalhos de Roethlisberger e Dickson (1943), dedicados a entrevista nao-diretiva de pesquisa!" & visanco melhorar “0 moral” da equipe de produgao. Esta orientagao geral da pesquisa de Rogers é importante, ji que pela primeira vez o critérie de cficiéneia, tal como € veiculado desde a emergéncia da corrente taylorista nos Estados Unidos, faz sua aparigao no campo da relagao de ajuda. Sob essa tica, juntam-se a ele todas as outras lerapias comportamentais, que querem ir rapido e com eficigncia, ‘Sabemos o que acontece com o sintoma que desaparece ripido e que reaparece sob forma diferente em outro lugar. 4- Saéndor FERENCZI Com Ferenczi, a pritica é totalmente recolocada em questao, Ho- ‘mem atormentado, em busca constante, “enfant terrible da psicané- lise”, ele reconstr6i continuamente seu método de trabalho. Na abundancia das reflexées, as que datam dos anos 1931 ¢ 1932, conhecidas pelo nome de "anélise mitua”, mostram a dificuldade particular da questdo dos limites entre analisando e analista, Preo- eupado em superar as resistencias de certos pacientes, Ferenczi nfo aceita consicerar 0 fracasso do tratamento psicanalitica destes como incontorndvel. Mais do que isso, considera que a resistencia vem do amalista Esta hipOtese verdadeira leva entretanto a uma dedugo que se afigura e1rOnea mas rica de ligées. Ferenczi preconiza com efeito ‘uma partlha de confidéncias, como jé vimos em Rogers. Ele consi- dera que, compariilhando-se os sentimentos na sesso, & posstvel superar os obstculos inerentes & andlise inacabada do terapeuta © a sels pontos cegos. A relagio com o paciente torna-se uma unidade ‘ng qual médico © analisando completam-se nas idSias & nos senti- montos.”? Imaginamos com facilidade as derrapagens que podem rosultar de tal confusao. Ble proprio deve render-se 4 evidéncia de que este sistema de partilha total em seus limites, que é apenas um quebra-galho.* Continua entretanto a afirmar com energia que @ contratransferéneia nogativa ests ligada ao inanalisado do analista, quanto a0 qual nio podemos certamente dizcr que esteja totalmente errado. A contribuigio de Ferenczi € essencial, Com rarae dolo- rosa honestidade, ele retoma incansavelmente seu trabalho sobre © que © analisado, como o chama, levanta da problemstica inconscien- te do analista, Ainda que houvesse um impasse em tal raciocinio, 0 questionamento implicit permanece atual. Veremos mais adiante BM Chinen a prrmeita emrevista que a localizagao da emogio as associagdes a que isso conduz podem efetivamente dar lugar a uma pratica da andlise, ‘A andlise miuua é assim uma téenica que leva em consideragio a um 36 tempo o limite entre dois individuos e a interpenctragio de suas emogdes, mas tratd-la, como sugere Ferenczi, € partir da hipo- tese de que seria possfvel diferenciar os dois interlecutores e de que uma “boa” andlise daria a César o que é de César. Tal constatagio apéia-se na idéia de que, ao menos virlualmente, haveria uma escuta absoluia, A teorizagao lacaniana nos mostraré 0 sentido dessa fan- asia Dois outros autores interessaram-se particularmente pela pro- blemitica da interdependéncia identificatéria entre analisando e ana- lista: Julia Kristeva e Thea Bauriedl. Julia KRISTEVA CO trabalho de Kristeva ilustra uma abordagem que aliaa “empatia”, Jembrando a de Rogers, & questao do inconsciente. Sua teorizacao bre 0 espago transferencial que sua interpretago da contratranste- réneia fecha novamente, pela confusio imaginétia entre analista e paciente, Em um texto sobre o real da identificaglo, Kristeva sublinka que certo tipo de pacientes, que chama de borderline ou psivossométi- os, apelam de maneira bem maciga A empatia, & Kinfidhlung do analista, Sabemos que Freud chama de Einfililung, empatia, a com. preensio que temos daquilo que no outro achamos estranho.”® Kri {eva propoc uma interpretagao deste fendmeno a partir da identifi- cago primaria de que fala Freud, a identifieagao refinada com o pai da pré-historia. ‘Uma passagem cheia de énfase conduz-nos através das emogdes que uma paciente faz-Ihe viver. Afirmando que 0 afcto sentido pelo fnalista 6 o da paciente, cla se autoriza a traduzi-lo em palavras: “EE preciso dar um mergulho na linguagem dos signos, e dar um nome ‘nosso afeto em comum.”80 erro légico que comete & 0 de tratat 4 fala como cédigo, aribuindo um contetido na realidade vivenciada 4. um signo (0 afeto sentido sendo traduzido por uma palavra), a0 invés de referi-Io a outros signos. Kristeva retoma a terminologia kKlciniana ao falar de identificagdes cruzadas e vai mais Jonge ainda 0 dar como imagem a “transcorporagao”: “ uma ‘transcorpora- gfo'. No momento frutuoso do tratamento meu corpo é, sintomati- camente, 0 corpo de meu paciente: fonte de meu cansago, de minha juventude também, de meu renascimento. Todavia, a interpretrago em mim, a verbalizagio, portanto, que nossa relagao nele enriquece, substitu’ o sintoma de que se queixa. Tirando isto —eé fundamental — posicionama-nos sob a mesma insignia idemificat6ria, ransfe- M6 Chinen da primeira enuresis réncia © contratransferéncia.”*” Esta observacdo sublinha a um s6 tempo 0 interesse c 0 limite da contribuigao de Kristeva e lembra, como assinalou nos mesmos termos, as querelas que dilaceraram — em vio — a otistandade durante séculos. O imagindrio torna-se invasor pela néo-distingo dos corpos. A formulagio do dom de juventude e de renascimento que Ihe faz a analisanda em questao esclarece mais esse proceso. No entanto, a tentativa de localizar a identificagao imagindria, de tipo histérica, do analista com seu pa- cionte, é interessante, O analista, para Kristeva, € um parceiro ima- ‘ginado capaz de dissolver aquilo que da mie permanece aprisionado no paciente.* A identificagao € 0 meio utilizado. $6 que, enquanto significante da identificagao histérica, 0 termo “transcorporagao” mostra que, desta vez, a empatia apagou os limites entre o analista co analisando, “6 Thea BAURIEDL ‘Ao contrario de Julia Kristeva, Thea Bauriedl sente a fusio identi ficatéria como um perigo. A reflexao sobre a identificagao imagind- ria entre 0 analista e o paciente é um meio de desenredar os fend: menos de resisténcia que aquela acarreta. Opondo-se com firmeza a qualquer tentativa de mestria por parte do analista e critieando severamente todas as formas recentes de terapia familiar, Bauricdl prope um modelo de comprecnsio da relagio numa leitura que chama de “dialética”,, estabelecendo um paralelo entre as emogoes, dos dois interlocutores. Apenas a aceitagao pelo analista de seus proprios sentimentos, no aqui ¢ agora, pode dar-Ihe percepgio exata da situagio.” Toda mestria é sinal de angtstia de contaminagio.” © Ginico principio condutor € a “individuagao” (die Individuation) — barbarismo tanto em alemfo quanto em franeés — gragas & localizagio pelo analista das angtistias, desejos € impulsos que the ‘vm durante a entrevista, Tal trabalho tem por alvo a autonomizacao progressiva do paciente através do aumento dos “limites de contato” ‘ea diminuigdo dos “limites de defesa“? inerentes a relagao neur6- tica através da fala. Sem sair do modelo da psicologia do ego, Bauried! distancia-se do uso abusivo de uma hermenéutica redutora dos signiticados. Aqui, ainda, dois individuos sio distintos um do outro ou, entio, ‘caso se confundam em uma identificagio por clivagem e contami nagao, € por inabilidade do clinico. A questéo do limite coloca sempre os mesmos problemas epis- temolégicos, enquanto 0 modelo suibjacente permanecer o da trans- feréncia objectal, dirigindo-se ao analista enquanto pessoa. Aqui, a iéia de um possivel corte entre 05 dois individuos pelo insight do analista faz de novo referencia a essa escuta absoluta como virtua lidade da anélise. Ela soma-se & miragem de uma possivel “autono- ” 3B Chien do princi entrevisns mizagio” do anaisando, Q barbarism insight & om si mesmo clogtient, jd que, ctimologicamente, remete ao reistto do esedpice, submetido, como sabemos, ao regis do imagindrio, Pouco a pou, 0, a tcoria psicanaltica de patida,centrada na escuta,deslizaassin em diregao 20 registro do olhar, da observagao, de si ou do outro, de acordo com a perspectiva tedrica escolhida. O capitulo seguinte traga-the os contornos -7- OS INTERACIONISTAS 6s interacionistas, como estipata sua denominagio, abordam a ques- {fo da relagao transferencial sob a dtica da observagao da interagio. Uma fronteira nitida e paradoxal separa aqui os nao-analistas dos analistas. Com eteito, os primeiros buseam precisar a interagio entre Os que tralam € 0s que sfo (ratados, ao passo que os segundos observam a interagio entre pacientes, sem se implicarem na relagio transferencial. Uns, ndo-analistas, ampliam a definic@o lingiifstica da pragmatica ao discutirem a questio do ‘“analisador corporal”, fim de compreender 0 que as palavras nao dizem. Outros, analistas, como Lebovici, Cramer, Debray — no fim das contas certamente ‘mais proximos da observagio etolégica definida por Cyrulnik do que da pragmitica — s40 considerados “interacionistas” , porque assu- mem decididamente uma posi¢ao de “observadores” da relagaio antes de iniciarem o trabalho interptetativo, Suas teorizagaes dizer respeito essencialmente & interagao miie-crianga. Cosnier resume metodologia dos interacionistas nao-analistas pelo termo “abordagem naturalista”, subentendendo que se trata de observagao e descrigao, espantoso ressurgimento dos trabalhos de Linné. A comunicacio interindividual torna-se enquanto tal objeto de gravacio ¢ de anilise, como estipulam os cibeméticas. Como s80 variados os canais por onde passa a informagao, nenhum deles deve ser desprezado. Nesta (eorizagao, encontramos pela primeira vez. a nogio de “ pragmatica” 7? que, do ponto de vista da lingtifstica, € a formulagao ‘mais proxima das questdes da transferéncia, Sao os intetacionistas ‘ngo-analistas que a utilizam em referéncia a Austin,” para esclarecer as fungdes da fala. O interesse das diferentes teorizagbes da pragmética reside na tultrapassagem dos limites do locutor ¢ na integragao a um s6 tempo 40 Ciica te primera erent € do interlocutor. Desse modo, observagées apaixonantes podem ser feitas no campo da lingua, como instrumento que, através da simples palavra ¢ seu significado, assim como sua posicio em relagio as outras palavras, tenta influeneiar o interlocutor, obriga-o a fazer algo, implica uma intengio."* te campo de pesquisa, vasto demais para ser aqui discutido cm detalhes, nos torna sensiveis & fungdo de cada palavra c de cada anticulago numa entrevista, Bucontramos diatiamente esse fenome- no em exprossées familiares do género: “ Voe8 vai me dizer que..., € onunciam aquilo que esperam que digamos, a nio ser que, de ‘maneira subentendica, procurem fazer com que protestemos 0 con- Uvério. Uma teitura atenta de Austin, autor de um trabalho sobre os alos da linguagem, mostra 6 que o tetmo alemao Titigketswort, 0 verbo (literaimente “o vocabulo da atividade"), vem dizendo desde sempre: 0 verbo “Taz” on “fez fazer” € 0 ponto de jungio que articula uma demanda feita por um sujeito a outro sujeito, implican- do-o de tal modo na relagio que ele se sinta chamado a preencher a falta formulada implicitemente na enunciagio, Por essa razilo, este {ermo “ pragmitica’ junta-se A questio do comportamento submeti- do ao significante, um fazer” que nao se orienta de acoido com um significado, mas um “‘fuzes” que busca, como ditia Dolto, “o que no outro nos dé o ser”, Estamos assim no ceene da pragimiética da transferéncia, Nilo se po em divida que estes fendmenos da pragmitica sejam particularmente localizdveis numa primeira entrevista, j& que tudo a € direcionado para o estabelecimento de uma ligagdio. Por conse- guinte, torna-se essencial extraftem-se os mecanismos que levam & articulagéo dos dois discursos num tnico produto transferencial, come uma criagio singular entre um analista e seu paciente. no meio hospitalar que os fendmenos de interagao aparecem de modo particularmente evidente, quando docnte esta reduzido a adivinhar a partir das mimicas dos profissionais o que as palavras dostes Ihe escondem, Sabemos todos que isso funciona perfeitamen- te bem e quo 0 olhar inquicto do médico nfo escapa a nenhum doente ‘no momento cm que Ihe afirma, com a indiferenga exigida por essa situagéo de fingimento, que © pequeno earogo aqui ow ali € 6 um quisto banal... para 0 qual se indica, entretanio, uma quimioterapia © que os que tratam querem com demasiada Ireqiéncia ignorar é © fato de que a mimica sempre trai os contetidos que desejarfamos cuidadosamente velar. Aqui, aatitude médica separa radicalmente © doente de sua doenga, considerada propriedade do corpo médico, (Os iteracimieue ak (6s interacionistas nao-analistas afirmam que existe outra possi- pilidade de se abordar a relagio de tratamento, levando-se em conta pire fendmeno do “analisador corporal”. Sua abordagem respeita 0 Monte como pessoa ¢ integra a “leitura™ dos fendmenos corporsis goo expressdo privilegiada da interagio entre 03 que trutam os que sio tratados, con veres vistvel (analog Haveria, mediante uma ecoizagio corporal, As ver postural, convergéncia das mimicas, das entonagdes vocais, dos ris05, fos chotos, etc.) mas freqientemente também apenas subliminat, uma facilitagio & participago dos afetos de outrem, o que explicaria os fEaomet otecdos plo nome de “ermpatin e“ideniiago in trojetiva” “6 ‘A questio da empatia, assim apresentada por Cosnier, permite aqui sublinhar o impacto da comunicago sobre 0 corpo dos interlocuto- res. Esta leitura da relacao pela emogao sentida no corpo constituirs ‘um dos pontos-chave da demonstragdo do “momento sensivel”, éembora os fundamentos te6ricos sejam diferentes. A voz, enquanto conjungdo entre falae som, entre razondincia” eressonaincia, 60 lugar privilegiado da expresso do desejo, Disto tratam Castaréde © Vas- se,” enguanto analistas, e Grosjean,"* enquanto parteira, Estas for- ‘mulagdes apéiam-se dentre outtos trabalhos nos de Ivan Fonagy a respeito do isomorfismo entre 0 contetido emocional ¢ a expresssio vocal.” Este autor fala do ar fonatério como parte do corpo, enquan- to sede da libido nascfsica.®° Ai reconhecemos naturalmente 0 que Lacan chama de objeto “a” da voz e 0 que Dolto disse a respoito da laringe como lugar do desejo por exceléncia. Grosjean constata uma tens cnet vor «0 avango do pao, a flr a msg de acompanhamento da parturiente durante 0 trabalho. © trabalho de Grosjean traz um esclarecimento importante ‘quanto ao lugar da empatia na teoria interacionista, A maneira como cladiscute a questfo revela o eslorgo constante em marcar um limite centre o abservador ¢ 0 observado, cmbora constate a dificuldade para ‘© profissional em nao deixar-se invadir pelo fendmeno. Grosjean diz. claramente que a identificagdo é de duas ordens para a parieira: de tum lado, depende de empréstimos feitos @ seus mestres e, de,outr0, a expresso da idemtificagdo da parteira com a patturiente.*! Esse *Neologismo exiado w partir da palavra razto. (NT) $2 Clinica a primeira entreviaa limite pode ficar poueo aitido e impedit parteia de manter sey papel de comando no desenrolar das operagdes 22 ‘A empatia 6 abordada sob dois angulos diferentes: por um lado, aquele fendmeno de identficagio que pode opor resistencia ny trabalho técnico e, por outro, € 0 que sustenta de maneica sinerOnicy, © acompanhamento do nascimento, por seu efeito mimética sobre ¢ mie, Daf vein a expressio “empatia de agio” > Outras partciras observam este mesmo fendimeno a respeito do olhar. Algumas, particularmente senstveis, s20 capazes de adivinhat, no olher da parturiente, em quantos centfmetros de dilatagao encontra-se 6 colo do titero Os interacionistas analistas trabalham com as riangas pequenas © a mée. Em Debray e Crammer, descobrimos a emergéncia de uma clinica com bebés, que utiliza a obscrvagio minuciosa do compor. tamento destes, na sessi0, como expressao do recalead materno, A diferenga entre esta pritica e a de Dolto reside na uiilizagto da transferéncin e na atengdo dispensada ao bebé: com efeito, os ps nalistas desta linha alam principalmente com a mie © utilizar a observagio do bebé mais para dar consethos de tipo educative (Debray) ou para interpretar a interagao filho-mie exclusivamente para esta tiltima (Cramer); Dolto, ao eontedrio, interpreta uma situagio primeiramente para 0 beb em fungao da historia familiar em que esté envolvido e, em seguida, para a mae. Para Dolto,o bobé Ede imedisto considerado sujeito e interlocutor por inteira. A ques. '8o da (ransferéncia 6 apenas rogada pelos analistas interacionistas em proveito de uma observagao decerto minuciosa, mas, ein suma, mais naturalista que anaitien vagio paradoxal, portanto, esta dos interacionistas, ja que aqueles que nao praticam a psicanélise parecem bem mais interes. sados na telagao transferencial que os psicanalistas dessa escola -8 A PSICANALISE: FREUD — LACAN ~ DOLTO Se a art Se at se igo de Jacques Lacan € a mais radical. Ele sempre mani- frequ@ncia o trabalho na consulta, principalmente no nareel ‘ impressdes ¢ sentimentos™ no analista, tratando os Semen do discurgo antes em sua dimensio estrutural que emocional e ine nantc durante uma primeira consulta que néo podemos negligencia- “As conseqiiéncias de tal posicionamento sto radicais. Blas obri- 8 4 Clint da primeira entreviss questionar a estruturagio do sujeito pela linguagem. Se Freud, em suas duas t6pieas, elaborou as duas abordagens estruturais do cons, ente/ineonsciente e do Ego/ld/Superego, Lacan, com a ajuda dos matemas, articula a questao do sujeito ei sua relagio com a fala 6 out. O limite em questao ¢ 0 imposto pela linguagem que nos obriga a passar pelo discurso imaginério, sompre enganador, para nos dit, girmos ao outto, Ora, se uma troca é possfvel, porque a fala enquanto tal rege @ comunicagao, para além de cada interlocutor especifico, Lacan introduz. a nogao de “Grande Outro”, como lugar de apelo e rescrvat6tio dos significantes. Este luzar do Grande Outro é inapreensivel, Nao existe fala plena, apenas um semidi vet, uma verdade que escapa ao proprio sujeito. Esta é a lei do recalque que nos reduz, a nos contentarmos com scus rebentos. Aqui, a teoria lacaniana separa-se radicalmente da dos autores Cilados anteriormente para os quais a fantasia de “fala plena” per. manece subjacent A Ginica coisa que nos & acessivel é 0 eu e seu par especular37 © pequeno outro, com todas as tenses conflituais implicadas pela relagto dual. E Gbvio que o conflito aparente sempre faz erer que o limite a ser colocado situa-se entre os interlocutores, uma eonviegao ta qual se apdia a maioria das psicoterapias. Ora, estes conflitos esti ligados 8 propria fungdo da fala. A melhor “retradugaa traria apenas uma nova ignorincia. O préprio sujeito € dividido, ele ¢ divisio. Por essa razio, o trabalho da andlise nfo é um trabalho sobre significados, mas um balizamento das armadilhas preparadas pelo pedido feito no outro. ‘A demanda implica um objeto. A teoria lacaniana nos ensina uc este no passa de um engodo incapaz de satisfazer 0 desejo, ja ue, fundamentalmente, ele € a propria causa deste desejo. A con- seqiiéncia de tal afirmagio & determinante para uma andlise da transferéncia. Uma demanda de ajuda, soja ela qual for, visa sempre 4 ste objeto: saber a mais, apoio, conselho, receita, O paciente nunca vom de graga, Ele supe que sabemos algo daquilo que nos pede. Ora, nés sabemos que nfo é nada disso. Bsta defasagem produz ‘que Lacan chaina de 0 “ sujeito-suposto-saber”, do qual o analista seria depositario, Fendmeno paradoxal par exceléncia, necessério & instalagdo da tansferéncia, ele afirma como o elemento maior da tesisténcia, E mais rapidamente assim o é, se 0 elinico eré efctiva- mente deter um saber sobre seu paciente. E um dos problemas da A Psicanice: brew ~ Lucan ~ Dotty 48 1 i observag:io, nem levar o paciente a ter acesso a uma norinacuja ‘a .staria em seu poder, mas suportar esta produgao do signifi- ae ele © seu paciente, Este referente temnério permite que se sao dos fendmenos. A miragem do “Um" , de uma apreensio gl a : ee Dolto ontibuit de mancira decisiva para minha cxel 46 Clini dapried enter da transferéncia. Dolto afirma que esta tiltima mergutha suas raizes na hist6ria pré-verbal, nas relagées estabelecidas pela eriangu com seu primeiro outro tutelar, A imagem inconsciente do corpo é “te presentagio para’, trabalho de elaboragéo de um sujeito quanto a sua relagdo com 0 outro. Sem “acusagio de recepggo", sem Beja- ‘ung, como divia Freud, um “assentimento", a linguagem niio pode se estabelecer. A teferéncia ao outro tulclar é primordial. Do ponto dc vista da transferéncia, o fenémeno & 0 mesmo, Toda fala é suporte twansferencial, mas como essa dindmica do desejo orientado para 0 uito, no qual a crianca procura a complementagto para sua falta original, precede a fala articulada, toda transferéncia comporta ne- cessariamente essa dimensio corporal. Dolio delimita de maneira bbem minueciosa a questo da emotividade como intermedidria entre © corpo € a linguagem, Ela fala de uma dimenséo infraverbal, pré-simbélica, para caracterizar a crianga que ainda nao fala, embora ji esteja no simb6lico. Esta dimensio 6 patticularmente sensivel em todo primeiro encontro e tem efeitos determinantes no estabeleci mento da transferéncia. Ela nos mergulha de novo na questio do nar- cisismo primordia, i que 0 que vei fmeionar€ 0 engodo do ‘onde estirisso-pelo-qual-terei-o-ser?"® F. no outro que teside a resposta atnosso questionamento; igualzinho como para a bebe, a sobrevivén- cia depende do outro tutelar © que a abordagem estrutural no permite compreender, os trabalhos de Frangoise Dolto tormam sensivel. Se, ao término de uma andlise, existe este momento depressivo, introduzindo o trabalho de Iwo, € que em seu encontro com a Hilflosigkeit, o desamparo origi- nal, © homem vé-se diante do abandono e da impoténcia experimen tados antes do advento da linguagem, Dolwo afitma que a imagem inconsciente do corpo € a representagao do que 6 experimentado.t Por essa razio, a emotividade assume uma importancia considerivel 1a questao da transferéncia, como testemunha do pié-eu”, alivo no corpo desde antes de a crianga falar. Bsta, enquanto tal, j4 est4 na esfera do simbélico, Esta teorizaga0 de Dolto leva-nos a abordar de mancira um pouco distinta os fendmenos emocionais ligados ao enconiro, Todo primeiro encontro comporta em sium nimero importante de ele- ‘mentos que podem inguictar. A parte ocupada pela emoggo numa primeira consulta é, pois, considersvel. A surpresa da novidade apela igualmente para mecanismos que dizem respeito mais & emogdo que 8 fala, tanto dlo lado do paciente quanto do lado do clinic. Logo, a anticulagao feita por Dolto entre corpo, emotividade e fala permit A Pricenises Freud ~ Lacan - Dolty 4 reconsiderar 0 que a elologia pode nos trazer. Essa observagiio do Comportamento, da maneira como nos & apresentado 0 problema, Gé-nos uma leitura do imaginério que, longe de ser um obstéculo a0 trabalho, ilustta 0 modo como nosso interlocutor entra em relago transferencial conosco. Compreender 0 “onde-esté-isso-pelo-qual- terei-0-ser?”" como um duplo apelo & complementagao e acusagio de recepsio, a Bejahung, como resisténcia e portanto como abertura, hnos intima de imediato a eriar um espago tal que os dois registros possam aricularse juntos. O discurso intermesidrio citado por La- can em * Variantes do tratamento-padrao” € esse Tugar que, por iniermédio do significante da transferéncia, ordena os dois discur- S05, imagindrio e simbélico."" A questio do lugar da emogao © do comportamento numa primeira entrevista leva-nos a discutir os fe- nbmenos ligados ao encontro sob um enfoque um pouco diferente © reablita 0 imaginério como re(erGncia primeira cessencial da trans- feréncia, © fato de essa fase implicar funcionamentos através dos quais o homem liga-se ao mundo animal certamente no Facilita em hada a teorizagio, mas esclarece de mancira singular « dimensio simb6lica em pritica ; Os cxemplos clinicos, que serio apresentados na parte seguinte, evidenciam esta questo do nascimento do lago ¢ a incidéncia da emogio no nuscimento da wansferéncia. A nogio de “momento sensivel" como revelador dos fendmenos do primeiro enlace trans~ ferencial sera ilustrada por uma série de entrevistas. Eas revelam 0 {que chamo de “o resto”, esta emergéncia da singularidade de um sujeito em relagdo com outro sueito, pura além do que é previsivel ‘JI. ABORDAGEM CLINICA Este capitulo do livro apresenta entrevistas que ilustram questoos precisas acerca do “momento sensfvel”. A escolha das entrevistas evita deliberadamente os pedidos de anédlise para mostrar que cada siluuagao pOc em jogo outras varidveis, acentua outros fendmenos, ‘enquanto a estrutura permanece a mesma. A prética analitica deve ‘permanceer aberta a qualquer indagacao, se nao quiser dar raziio a ccertos detratores seus e tornar-se Grea reservada a uma elite intelec- tual. Cabe a0 analista 0 esforgo de balizar a emergéncia da transfe~ réncia mesmo quando sabe que 0 trabalho certamente se limitaré apenas a algumas sesstes. ‘Os exemplos a seguir sublinham também os riscos e limites das “terapias breves” . Com efeito, nem a melhor localizagio do “mo- mento sensivel” nos dispensarii da paciéncia ¢ do tempo exigidos por qualquer terapia e qualquer andlise. Desde o instante em que deixamos as trlhas da andlise “orto- doxa’, todas as variantes da consulta terapeutica devem ser encara- das, Em minha pritica no interior, nao é assim tao aro lidar com consullas coletivas. Encontramos neste caso tipico nao 36 famflias que trazem uma crianga para consultar, mas também casais, adultos acompanhando wm amigo, um parente, A medida que fazia minhas experiéncias, fui perdendo parte da rigidez ortodoxa que adquirira

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