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PAUL JOHNSON Prélogo Por que eu escrevi uma historia dos judeus? Ha quatro motivos. O primeiro é pura curiosidade. Quando trabalhava em minha Historia do Cristianismo, tomei consciéncia, pela primeira vez em minha vida, da grandeza da divida que o cristianismo tem para com o judaismo. Nao era, como me haviam ensinado a supor, que o Novo Testamento substituisse 0 Velho; 0 caso era antes que o cristianismo deu uma nova interpretacdo a uma forma antiga de monoteismo, tornando-se gradualmente uma religiao diferente mas transportando consigo muito da teologia moral e dogmatica, da liturgia, das instituigdes e dos conceitos fundamentais de seu antepassado. Determinei-me, portanto, desde que sobre- viesse oportunidade, a escrever a respeito do povo que dera origem a minha fé, explorar sua historia até 0 seu nascedouro e de volta ao dia de hoje, e formar uma opiniao pessoal a respeito de seu papel e de sua significagao. O mundo tendia a ver nos judeus uma raca que se havia governado na Antiguidade, registrando seus tragos na Biblia; depois, passara por muitos séculos a viver subterraneamente; s6 havia emergido para ser massacrada pelos nazistas; ¢, por fim, criara um estado, controverso e sitiado. Queria ligar tudo isso, encontrar e estudar as partes que faltavam, reuni-las num todo, achar-lhes um sentido. Meu segundo motivo foi o entusiasmo que me despertou a pura durac&o da historia judaica. A partir do tempo de Abraao até o presente, essa historia compreende a melhor parte de quatro milénios. Isto é mais do que trés quartos de toda a historia da humanidade civilizada. Sou um historiador que acredita em longas continuidades ¢ se delicia em retracé-las. Os judeus criaram uma identidade separada e especifica antes de qualquer outro povo que ainda sobrevive. Mantiveram-na, entre tremendas adversidades, até o presente. De onde proveio essa resisténcia extraordinéria? Qual era a fora particular da idéia devoradora que tornou diferentes os judeus e os manteve homogéneos? Sera que © seu poder continuado reside na sua essencial imutabilidade, ou em sua 14 HISTORIA DOS JUDEUS capacidade para adaptar-se, ou em ambas as coisas? So esses temas vigorosos com que se atracar. Meu terceiro motivo consistiu em que a historia judaica compreende nao apenas grandes periodos de tempo, mas amplas areas. Os judeus penetraram em muitas sociedades e em todas elas deixaram a sua marca. Escrever uma historia dos judeus é quase como escrever uma historia do mundo, mas a partir de um ponto particular de visao. E a hist6ria do mundo vista por uma vitima inteligente e culta. Assim o esforco de aprender a historia tal como ela pareceu aos judeus produz intuicdes luminosas. Dietrich Bonhoeffer observou isso em 1942, “discernir os grandes acontecimentos da historia do mundo a partir de baixo, da perspectiva dos que estao excluidos, dos que estao sob suspeita, em resumo, daqueles que softem”, Disse ele que achou isso uma experiencia de um “valor incomparavel”. O historiador encontra mérito semelhante ao contar a historia dos judeus: isso acrescenta 4 historia a dimensdo nova e reveladora de quem esta por baixo. Por fim, o livro proporcionou-me a oportunidade de reconsiderar objetiva- mente, 4 luz de um estudo que abarca 4.000 anos, o mais intratavel de todos os problemas humanos: para que estamos na terra? E a historia apenas uma série de acontecimentos cuja soma nao tem significado? Nao ha diferenca moral, fundamental entre a historia da raca humana, e a historia, digamos, das formi- gas? Ou sera que ha um plano providencial do qual n6s somos, embora humildes, os agentes? Nenhum povo insistiu mais firmemente do que os judeus em que a historia tem um propésito e a humanidade um destino. Num estagio muito precoce de sua existencia coletiva, acreditavam que haviam apreendido um plano divino para a raca humana, no qual sua propria sociedade seria 0 piloto. Elaboraram seu papel com imensos detalhes. A ele se apegaram com persisténcia herdica diante de um sofrimento selvagem. Muitos deles ainda acreditam no papel. Outros transformaram-no em esforcos prometeicos para elevar nossa condicdo por meios puramente humanos. A visio judaica tornou-se © prototipo de muitos grandes projetos similares para a humanidade, tanto divinos como obra do homem. Os judeus, portanto, estao bem no centro da tentativa perene de conferir a vida humana a dignidade de um proposito. Sera que a historia deles proprios sugere que tais tentativas s40 dignas de serem feitas? Ou revela sua essencial futilidade? O relato que segue, resultado de minha propria investigacdo, auxiliara, espero, seus leitores a responder por eles pré- prios a essas perguntas. PARTE UM. Israelitas Os judeus so 0 povo mais tenaz da historia. Ai est4 o Hebron para prové-lo Encontra-se vinte milhas ao sul de Jerusalém, a 3.000 pés de altura nas colinas judéias. Ali, na Caverna de Macpela, estao os Tamulos dos Patriarcas. Segundo velha tradicao, um sepulcro, ele proprio de grande antiguidade, contém os restos mortais de Abraao, fundador da religiao judaica e antepassado da raca judaica. Par a par com o seu tamulo, esté o de sua mulher, Sara. No interior do recinto, estdo os tamulos gémeos de seu filho Isaac e de sua mulher Rebeca. Passando o quintal interno, esté um outro par de tamulos, do neto de Abraao, Jaco, € de sua mulher, Lia. Imediatamente fora do prédio esta o timulo do filho deles, José. Foi ali que a historia de 4.000 anos dos judeus, na medida em que pode ser situada em tempo e espaco, comegou. O Hebron possui uma beleza grande e veneravel. Proporciona a paz e a tranqiiilidade que se encontra, com freqiiéncia, nos velhos santuarios. Mas suas pedras sao testemunhas mudas de luta constante e quatro milénios de disputas politicas e religiosas. Foi, sucessivamente, um santudrio hebreu, uma sinagoga, uma mesquita, uma igreja dos‘cruzados, e depois novamente uma sinagoga. Herodes, 0 Grande cercou-o com uma muralha majestosa, que ainda esta la de pé, erguendo-se a quase quarenta pés de altura, composta por pedras cortadas macicas, algumas delas com 23 pés de comprimento. Saladin adornou o santua- rio com um pilpito. O Hebron reflete a historia, wagica e longa, dos judeus, ea sua capacidade sem rivais de sobreviver a seus infortinios. Ali, Davi foi ungido rei, primeiro de Juda (Il Samuel 112,1-4) e depois de todo Israel (II Samuel 15, 1-3). Quando Jerusalém caiu, dali foram expulsos os judeus e nela se estabeleceu a Iduméia. Foi conquistada pela Grécia, depois por Roma, convertida, saqueada pelos zelotas, queimada pelos romanos, ocupada sucessivamente pelos arabes, pelos francos e pelos mamelucos. A partir de 1266, proibiu-se aos judeus entrar na caverna para orar. Permitiu-se-lhes apenas subirem sete degraus pelo lado da parede oriental. No quarto degrau, inseriram suas petigdes a Deus num buraco 16 HISTORIA DOS JUDEUS de seis pés e seis polegadas que atravessou a pedra. Usaram-se varetas para empurrar os pedacos de papel até cafrem na caverna.? Mesmo assim, os reque- rentes estavam em perigo. Em 1518, houve um terrivel massacre otomano dos judeus de Hebron. Mas uma comunidade de eruditos devotos ali se restabeleceu. Manteve uma existéncia tenue, composta, em tempos diferentes, de talmudistas ortodoxos, de estudantes da cabala mistica, e mesmo de ascetas judeus, que se fustigavam cruelmente até que o sangue Ihes manchava as pedras santas. Ali estavam judeus para acolher, sucessivamente, 0 falso Messias, Shabtai Tzevi, na década de 1660, os primeiros peregrinos cristéos modernos no século dezoito, colonos judeus seculares cem anos depois, e os conquistadores britanicos em 1918. A comunidade judaica, nunca muito numerosa, foi atacada ferozmente pelos arabes em 1929. Voltaram a atacé-la em 1936 e virtualmente a varreram. Quando soldados israelitas penetraram no Hebron, durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, nenhum judeu ali vivera ha uma geracdo. Restabeleceu-se uma modesta comunidade em 1970. A despeito de muito medo e inseguranca, floresceu. Assim, quando hoje em dia o historiador visita o Hebron, ele se pergunta: onde est4o todos aqueles povos que j4 ocuparam o lugar? Onde estao os cananitas? Onde os edomitas? Onde.os antigos helenos, ¢ os romanos, os bizantinos, os francos, os mamelucos e os-otomanos? Desvaneceram-se com 0 tempo, irrevogavelmente. Mas os judeus permaneceram no Hebron. O Hebron é, assim, um exemplo da contumacia judaica por cerca de 4.000 anos. Também ilustra a curiosa ambivaléncia judaica quanto & posse e a ocupacao da terra. Nenhuma raca manteve por um periodo tao longo um apego tao emocional a um pedaco particular da superficie da terra. Mas nenhuma mostrou um instinto tao forte e persistente para migrar, uma tal coragem e pericia em retirar e replantar suas raizes. E um fato curioso que, por mais do que trés quartos de sua existéncia como uma raga, uma maioria de judeus sempre viveu fora da terra que dizem ser deles. O mesmo fazem hoje em dia. Hebron € 0 sitio de sua primeira aquisicao registrada de terra. O Capitulo 23 do Livro de Génesis descreve como Abrado, depois de morta sua mulher Sara, decidiu comprar a Caverna de Macpela e as terras que a cercavam, como um sitio para enterré-la e a ele proprio, em ltima instancia. Essa passagem figura entre as mais importantes da Biblia, porque incorpora uma das mais antigas e tenazmente sustentadas tradicées, evidentemente muito cara ¢ critica para eles. E talvez a primeira passagem na Biblia que registra um acontecimento real, testemunhado e descrito mediante uma longa cadeia de recitacao oral e que, assim, preserva detalhes auténticos. A negociacdo e a cerimdnia da compra sao descritas demoradamente. Abrado era o que se poderia agora chamar de um estrangeiro, embora um antigo residente em Hebron. Para possuir terra nao ISRAELITAS 7 yinculada no lugar, ele necessitava néo apenas do poder de comprar mas do consentimento pblico da comunidade. A terra era de propriedade de um dignitario chamado Efrom, o hitita, um semita ocidental ¢ habiru de origem hitita.? Abrado teve primeiro de angariar a conc6rdia formal de comunidade, ‘os filhos de Het’, ‘o povo daquela terra’, para fazer a transacao; € entdo para barganhar com Efron 0 preco, 400 siclos (isto é, pecas) de prata, depois para que a prata, ‘moeda corrente com o mercador’, fosse pesada e entregue diante dos ancidos comunitarios. Isso era um acontecimento memoravel numa pequena comunidade, que envolvia nao apenas transferéncia de propriedade mas mudanca de status; as reveréncias ritualisticas, as dissimulacées e cortesias falsas, a dureza e o regateio sao todas brilhantemente comunicadas pela narrativa da Biblia. Mas 0 que mais impressiona o leitor, o que fica no espirito, s4o as palavras pungentes com que Abraao inicia 0 negocio: “Sou estrangeiro ¢ residente entre vos”; depois, conclut- do 0 negocio, a énfase repetida de que o “direito do campo e da caverns que nele estava” foi confirmado a Abrago pelo povo daquela terra (Genesis 20,30). Nesse primeiro verdadeiro episodio da historia judaica, as ambigtiidades e as angistias da raca sao impressionantemente apresentadas. Quem era este Abrado, e de onde provinha? O Livro de Genesis e passagens biblicas correlatas sao a tmnica prova de que existiu e estes foram compilados de forma escrita talvez mil anos depois da época em que se supde que viveu. O valor da Biblia como registro historico foi assunto de intensa discussao por mais de 200 anos. Até o ano de 1800, a opiniao que predominava tanto entre eruditos quanto entre leigos era fundamentalista: isto é, as narrativas da Biblia eram inspiradas por Deus, e verdadeiras no total e no detalhe, embora muitos eruditos, judeus como cristaéos, houvessem mantido por séculos que, em particular, os primeiros livros da Biblia continkam muitas passagens que deviam ser com- preendidas como simbolds ou metaforas antes do que como fatos liberais. A partir das primeiras décadas do século dezenove, uma nova abordagem ‘critica’ crescentemente profissional, obra principalmente de eruditos alemdes, descar- tow o Velho Testamento como registro historico e classificou grandes partes dele de mito religioso. Os primeiros cinco livros da Biblia, ou Pentateuco, foram entao apresentados como lenda transmitida oralmente, de varias tribos hebraicas, que alcancou a forma escrita somente depois do Exilio, na segunda metade do primeiro milénio aC. Segundo se dizia, essas lendas eram» cuidadosamente editadas, combinadas e adaptadas para proporcionar justificagao historica e sancao divina as crencas, praticas e rituais religiosos dos dirigentes israelitas da época pos-exilio. Os individuos descritos nos primeiros livros ndo eram pessoas reais, mas herdis miticos ou figuras compostas que indicavam tribos inteiras.* 18 HISTORIA DOS JUDEUS Assim, nao apenas Abraao e os outros patriarcas, mas Moisés e Aardo, Josué e Sansao dissolveram-se em mito e tornaram-se nao mais substanciais do que Hercules e Perseu, Priamo e Agamenom, Ulisses e Enéias. Sob a influéncia de Hegel e de seus eruditos seguidores, a revelagdo judaica e crista, tal como apresentada na Biblia, foi reinterpretada como um desenvolvimento sociologi- camente determinista de supersticao tribal primitiva a eclesiologia urbana sofisticada. O papel singular e divinamente ordenado dos judeus foi colocado nos bastidores, a realizacéo do monoteismo mosaico foi progressivamente corroida, e a reescritura da historia do Velho Testamento estava permeada por uma qualidade sutil de antijudaismo, manchada mesmo por anti-semitismo. A obra coletiva dos eruditos alemaes em. estudos biblicos tornou-se a ortodoxia académica, atingindo um alto grau de complexidade e de poder de persuasdo nos ensinamentos de Julius Wellhausen (1844-1918), cujo notavel livro Prolo- gomena to the History of Ancient Israel, foi primeito publicado em 1878.> Por meio século Wellhausen e a sua escola dominaram a abordagem do estudo biblico, e algumas de suas idéias influenciam, mesmo hoje em dia, a interpretacdo que os historiadores dao a Biblia. Alguns proeminentes eruditos do século vinte, como M. Noth e A. Alt, retiveram essa abordagem essencialmente cética, descartando as tradicdes anteriores 4 conquista como miticas, e argumentando que os israelitas ndo se tornaram um povo no solo de Canaa antes do século doze a.C.; a propria conquista foi também em grande parte um mito, sendo principalmente um proceso de infiltracao pacifica.° Outros sugeriram que as origens de Israel residiam no recuo de uma comunidade de zelotas religiosos diante de uma sociedade cananita que eles tinham na conta de corrupta.’ Essas e outras teorias necessariamente descartavam toda historia biblica antes do Livro dos Juizes como inteira ou principalmente ficgdo, e o proprio Livro dos Juizes como uma mistura de ficeao com fatos. Dizia-se que a historia israelita nao adquiria uma base substancial de verdade antes da idade de Saul e Davi, quando o texto biblico comeca a refletir a realidade de historias e registros da corte. Infelizmente, raros so os historiadores objetivos como desejam parecer. A historia biblica, que tanto para os cristdos e judeus como para os ateus, implica crengas ou preconceitos que atingem a propria raiz de nosso ser, € uma area onde a objetividade ¢ singularmente dificil, se nao imposstvel. Alem disso, as especialidades eruditas envolvem suas proprias déformations profesionelles. Du- rante 0 século dezenove e durante grande parte deste século, a historia biblica era controlada pelds eruditos em texto, cujo instinto e formacao consistiam e consistem em atomizar as narrativas biblicas, identificar as fontes e os motivos daqueles que as reuniram, selecionar os poucos fragmentos auténticos nessa base, e entdo reconstruir os acontecimentos 4 luz da historia comparativa. Com © desenvolvimento da moderna arqueologia cientifica, no entanto, exerceu-se ISRAELITAS 19 uma forca contrabalangadora, pois a inclinacdo dos arquedlogos reside em usar ‘os textos antigos como guias e em buscar confirmacdo nos restos fisicos. Na Grécia e na Asia Menor, a descoberta e a escavacdo de Tréia, de Cnossos e de outros sitios minoanos em Creta, e das cidades micenianas do Peloponeso, juntamente com a descoberta na terra e decifrac4o de antigos relatos de corte encontrados em alguma delas, reabilitaram os contos homéricos como narrativas historicas e possibilitaram aos historiadores perceber elementos cada vez maio- res de realidade por baixo do verniz legendario. Assim, na Palestina e na Siria, a investigacdo de antigos sitios, e a recuperacdo e traduc¢do de um vasto numero de registros legais e administrativos, tenderam fortemente a restaurar 0 valor dos primeiros livros biblicos como natrativas historicas. O trabalho de W. F. Albright e Kathleen Kenyon, em particular, nos proporcionaram confianca na existéncia real de lugares e acontecimentos descritos nos primeiros livros do Velho Testamento.* £ de importancia igual o fato de que a descoberta de arquivos contemporaneos do terceiro e segundo milénios antes de Cristo langou uma nova luz sobre passagens da Biblia até entao obscuras. Ha cinqiienta anos, presumia-se que qualquer passagem antiga da Biblia era mitica ou simbodlica, agora deslocou- se 0 onus da prova: os eruditos tendem cada vez mais a presumir que 0 texto contém pelo menos um gérmen da verdade e a considerar sua obrigacdo cultivé-lo, Isso nao tornou, de qualquer forma, mais facil a interpretacdo historica da Biblia. Tanto a abordagem fundamental quanto a critica tinham simplicidades confortadoras. Encaramos agora nossos textos biblicos como guias muito com- plexos e ambiguos para a verdade; mas nem por isso menos guias. Os judeus sdo assim 0 tnico povo no mundo, hoje em dia, que possui um registro hist6rico, por mais que seja obscuro, em lugares que lhes permite retracar suas origens até tempos muito remotos. Os judeus que fizeram da Biblia alguma coisa que se aproxima de sua forma atual pensaram evidente- mente que sua raca, embora fundada por Abrado, podia retracar antepassados mesmo mais longe e chamaram 0 progenitor, em ultima instancia, de Adao. Na nossa atual condicao de conhecimento, devemos presumir que os primei- ros capitulos do Livro de Genesis sao esquematicos e simbélicos mais do que descricées factuais. Os capitulos de 1 a5, com a sua identificacao de conceitos tais como conhecimento, mal, vergonhas, citime e crime sao mais explicagées do que episodios reais, embora entranhadas neles figurem memorias resi- duais. F dificil, por exemplo, acreditar que a historia de Caim e de Abel seja completa ficcao; a resposta de Caim, “Sou eu acaso o tutor de meu irmao?” tem o timbre da verdade, e a idéia de homem envergonhado e cagado, marcado pela culpa é tao poderosa que nos sugere fato histérico. O que nos impressiona nas descricdes judias da criacgdo e do homem primitivo, em comparacdo com as cosmogonias pagas, é a falta de interesse pela mecanica 20 HISTORIA DOS JUDEUS de como o mundo e suas criaturas passaram a existir, interesse esse que levou os narradores egipcios e mesopotamicos a contor¢ées tao estranhas. Os j judeus presumem simplesmenteapré-existéncia de um Deus onipotente, que age mas nunca € descrito ou caracterizado, e tem assim a forca e a invisibilidade da propria natureza: € significativo que o primeiro capitulo de Genesis, diferente- mente de qualquer cosmogonia da Antiguidade, se enquadre perfeitamente bem, em esséncia, nas modernas explicacées cientificas da origem do universo, nao sendo a menor delas a teoria do ‘Big Bang’. ‘Nao que o Deus judeu seja de qualquer maneira identificado a natureza: pelo contrario, Embora nunca visualizado, Deus € apresentado nos termos mais enfaticos como uma pessoa. O Livro do Deuterondmio, por exemplo, esforca-se para estabelecer uma distin¢do entre os povos pagaos desprezados, que adoram a natureza e deuses da natureza, e os judeus que adoram Deus, a pessoa, advertindo-os, “Guarda-te nao levantes os olhos para os céus, e, vendo o sol, a lua easestrelas, a saber, todo o exército dos céus, nao sejas induzido a inclinar-te perante eles”? Além disso, tal Deus pessoal, desde 0 comeco, faz distingoes absolutamente claras, que suas criaturas devem observar, o que implica que, na versio judaica do homem primitivo, estejam presentes e sejam imperativas desde o mesmo inicio, categorias morais. Isso também a diferencia fortemente de todos os relatos pagdos. As secées pré-historicas da Biblica constituem assim uma espécie de fundamento moral, sobre 0 qual repousa 0 conjunto da estrutura factual. Os judeus sao apresentados, mesmo em seus antecedentes mais primi- tivos, como criaturas capazes de perceber diferencas absolutas entre 0 certo e 0 errado. A idéia de um universo moral superposto ao fisico determina o tratamento do primeiro episédio verdadeiramente historico na Biblia, a descricao do Diltvio em Génesis®. Nao pode haver agora qualquer duvida de que alguma espécie de enorme inundacdo ocorreu na Mesopotamia. A primeira corroboracio do relato biblico sucedeu em 1872, quando George Smith descobriu uma versio do Dilavio em tabuinhas cuneiformes encontradas no Palacio de Assurbanipal.’° Isso era, de fato, uma versdo assiria tardia, interpolada’no fim de um poema épico muito anterior, conhecido como Gilgamesh, que tata de um antigo governante sumério de Uruk, no quarto milénio a.C. Antes dos assirios, tanto 0s babilonios como os distantes sumérios guardavam lembrancas de uma grande inundagdo. Na década de 1920, Sir Leonard Woolley encontrou e escavou Ur, uma cidade suméria importante do quarto e terceiro milénio a. C., que é mencionada na Biblia bem no fim de sua secdo pré-historica."' Enquanto investigava os niveis arqueologicos mais antigos em Ur, Woolley fez esforcos prolongados para desenterrar evidéncia fisica de uma inundagao dramatica. Encontrou um depésito aluvial de 8 pés, a que ele atribuiu a data de entre 4000 ISRAELITAS 21 a 3500 a.C. Em Shurupaq, ele deparou com outro impressionante depésito aluvial. E com um de dezoito polegadas num estrato semelhante em Kish. Mas as datas desses ea de Ur nao se enquadravam umas com as outras.? Investigando 08 varios sitios que haviam sido explorados na altura do infcio da década de 1960, Sir Max Mallowan concluiu que houvera, de fato, uma gigantesca inunda- ca0.1? Entao, em 1965, 0 Museu britanico fez uma outra descoberta em seus depositos: duas tabuinhas, que se referem ao Diltvio, escritas na cidade babilé- nia de Sippar, no reino do Rei Amisaduca, 1646-1626 a.C. Aimportancia dessa tltima descoberta consiste em que nos permite focalizar a propria figura de Noé, pois relata como o deus, tendo criado a humanidade, se arrependeu e decidiu afogé-la com uma inundacao; mas Enk, o deus da 4gua, revelou o plano catastr6fico a um certo sacerdote-rei chamado Ziusudra, que construiu um barco e assim sobreviveu.'* Ziusudra foi sem davida uma pessoa real, rei da cidade babilénica meridional de Shurupaq por volta de 2900 a.C., motivo pelo qual figura nas colunas mais antigas da lista de reis sumerianos. No proprio sitio de Shurupaq ha prova de uma imensa inundacao, embora a data que se Ihe atribui ndo corresponda a data da inundacao de Woolley em Ur.!5 A figura salvadora de Ziusudra, apresentada na Biblia como Noé, proporciona assim a primeira confirmacao independente da existéncia real de uma persona- gem biblica. HA, no entanto, uma diferenga fundamental entre a apresentacao biblica do Diltvio e 0 épico babilonico-sumeriano. Noé, diferentemente de Ziusudra, é uma figura moral, firmemente enraizada no esquema de valores que o Livro de Génesis identifica desde o inicio. Além disso, enquanto a historia do Gilgamesh telata episodios isolados, a que falta um contexto moral ¢ historico unificador, na versio judaica cada acontecimento envolve problemas morais e, tomados coletivamente, os episddios testemunham um projeto da Providéncia. E a diferenca entre literatura secular e religiosa e entre escrever simples folclore e historia consciente, determinista. Alem disso, Noé nao é apenas o primeiro homem real na historia judaica: sua historia prenuncia elementos importantes na religiao judaica. Ha a obsessao do Deus judeu com detalhe, na construcdo e carregamento da arca. Ha a idéia do tinico homem justo. Ainda mais importante do que isso, hé a énfase judaica na suprema importancia da vida humana, por causa do relacionamento imagi- nativo do homem com Deus, que ¢ manifesto no verso 6 de Génesis 9. “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramara o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem.” Pode-se considerar este o principio central da crenca judaica, € € significativo que ocorra em conjun¢ao com o Dilavio, 0 primeiro acontecimento hist6rico para o qual existe confirmagao nao-biblica. a2 HISTORIA DOS JUDEUS As passagens que tratam do Dilavio contém também a primeira men¢ao de um Pacto e a mais antiga referéncia a terra de Canad.° Mas esses temas repetem-se muito mais enfaticamente quando progredimos através das listas de reis pos-diluvianos a atingimos os patriarcas. Podemos agora regresser a nosso problema sobre a proveniéncia e a identidade de Abraao. O que a Biblia diz, nos capitulos 11-25 do Livro de Genesis, ¢ que Abrdo, originariamente Abrao, descendente em illtima instancia de Noé, migrou de Ur dos caldeus, primeiro para Haram, e depois para varios lugares em Canad, viajando até o Egito em tempos de fome mas regressando a Canaa e terminando seus dias em Hebron, onde fez a sua primeira compra de terras. A substancia desse relato biblico € historia. A referencia aos caldeus € anacronista, j4 que os caldeus nao penetraram na Mesopotamia meridional antes de por volta do fim do segundo milénio a.C., e atribui-se 4 vida de Abraao uma data muito anterior, mais proxima do comeco do milénio. Os caldeus foram inseridos para identificar Ur aos leitores da Biblia no primeiro milénio a.C.1’ Mas nao ha qualquer motivo que nos leve a duvidar que Abrado veio de Ur, como 0 declara a Biblia, ¢ isso j4 nos diz muito sobre ele, gragas ao trabalho de Woolley e de seus sucessores. Para comecar, ela 0 associa com uma cidade e nao com o deserto. Hegelianos como Wellhausen e sua escola, com a sua idéia do progresso determinista do primitivo para o sofisticado, do deserto para a cidade, divisou nos hebreus pastores, originalmente da espécie mais simples. Mas a Ur que Woolley escavou possuia um nivel cultural comparativamente alto. Ele ali encontrou, no tamulo de “Meskanlamdug, heréi da boa terra”, um elmo soberbo feito na forma de uma peruca, de ouro solido, com os cachos em relevo, ¢ um estandarte religioso para procissées religiosas, ornado com conchas ¢ lapis-la- zuli, Encontrou também uma zigurat gigantesca, com o templo erguido em plataformas miltiplas que, ¢ sensato conjeturar, inspirou a historia da Torre de Babel. Isso foi obra de Ur-Namu da terceira dinastia (2060 - 1950 a.C.) um grande legislador e construtor, que se fez retratar numa estela, da qual possuimos um fragmento, um trabalhador carregando uma picareta, uma colher de pedreiro & instrumento de medi¢ao. E provavel que Abrado tenha deixado Ur depois da época desse rei, e assim transportou consigo para Canad contos da zigurat até o céu e também a muito anterior historia do Dilavio. Por que motivo fez ele essa viagem? Conhecer as datas em que viveram os patriarcas nao é um trabalho tao impossivel quanto de primeiro se presumia. No Livro de Genesis, as datas antediluvianas sio, ¢ claro, mais ideais do que reais, mas nado se deve desprezar as genealogias, ndo mais do que as outras listas de primeiros reis da Antiguidade. As listas de faraos proporcionadas por fontes tais como Maneto, um sacerdote egipcio que viveu nos tempos helenisticos, por volta de 250 a.C., nos habilitam a datar a historia ISRAELITAS 23 egipcia com uma razoavel confianca t4o remotamente quanto a primeira dinastia, 3000 a.C. Berossus, um sacerdote babilonico cuja vida corresponde em tragos grossos 4 de Maneto, em datas, nos fornece uma lista similar de reis para a Mesopotamia, € a arqueologia desenterrou outras. Se examinarmos a lista de nomes antediluvianos e pés-diluvianos no Livro de Génesis, encontramos dois grupos com dez nomes em cada um, embora as datas variem entre o quase original texto hebreu massorético, a Septuaginta grega, ¢ o Pentateuco samarita- no. Esses grupamentos sao similares a relatos literarios nao biblicos e as ‘longas’ datagoes biblicas relacionam-se com a vidas de reis sumerianos antes da inun- dacdo, em Shurupaq, A mais antiga lista de reis so menciona oito reis antedilu- vianos, mas Berossus tem dez nomes, enquadrando-se no modelo de Génesis. O elo entre as duas fontes é talvez Abraao, que trouxe a tradicdo consigo. F dificil arraigar as listas mesopotamicas de reis, como as egipcias, num tempo absoluto, mas 0 consenso como este agora em atribuir a Sargon e ao Velho Periodo Acadiano uma data que fique entre 2360-2180 a.C., ao legislador Ur- Namu e a terceira dinastia de Ur uma data no fim do segundo milénio ou no come¢o do primeiro, e a Hamurabi, que foi inquestionavelmente um estadista e um codificador de leis, 0 preciso periodo regalengo de 1728-1686 aC. A evidéncia sugere que as narrativas de patriarcas do Génesis pertencem ao periodo entre Ur-Namu e Hamurébi, sendo os limites externos 2100-1550 a.C., isto é, a ldade Média de Bronze. Eles certamente nao podem ser mais tardios, na Idade Tardia de Bronze, porque isso os relegaria 4 data do Império Egipcio do Novo Reino, e as secdes patriarcais naéo mencionam uma presenca egipcia em Canaa. Albright bateu-se com o problema de atribuir datas a Abrado, durante a maior parte de sua vida profissional, levando-o para tras e para a frente entre o século vinte a.C. eo século dezessete, concluindo finalmente que ele nao podia ter vivido antes do vinte ou depois do dezenove. Essa datacdo parece sensata.'® Acapacidade de atribuir datas aos patriarcas nos permite relacioné-los tanto com registros arqueol6gicos quanto com os varios arquivos literarios que agora emergiram da Siria da Idade de Bronze e da Mesopotamia da mesma época. Esses ultimos s4o importantes porque eles nos capacitam nao apenas a confirmar mas a explicar episdios nas historias patriarcais. As descobertas arqueologicas incluem a investigacao por Kathleen Kenyon de ttimulos a beira da estrada fora de Jericé que se assemelham aos enterros em sepultura em caverna, descritos no Livro de Genesis 23 ¢ 35, 19-20, ea investigacdo arqueolégica por Nelson Glueck do Neguev, que revelou muitas colonias da Idade Média de Bronze do tipo patriarcal.!? Glueck notou que muitas dessas colonias foram destruidas algum tempo depois de 1900 a.C., 0 que confirma as indicacées de destruicao que encontramos no Livro de Génesis 14. 24 HISTORIA DOS JUDEUS As descobertas literarias sio muito consideraveis e sugestivas. Em 1933, A. Parrot escavou a antiga cidade de Mari (a moderna Tell Harari) no Eufrates a 17 milhas ao norte da fronteira entre a Siria € 0 Iraque, e descobriu um arquivo de 20.0000 itens.” A isso se seguiu a transcricdo de um arquivo semelhante de tabuinhas de argila na antiga Nuzi, perto de Kirkuk, a cidade dos horreus — os horitas da Biblia — que fazia parte do reino de Mitanni#! Um terceiro arquivo de 14.000 tabuinhas foi descoberto em Ebla (a moderna Tell Mardikh) no norte da Siria.2 Esses arquivos cobrem um largo perlodo de tempo, sendo o de Ebla um tanto anteriores ao tempo dos patriarcas, e os de Nuzi, dos séculos dezesseis e quinze a.C., um tanto posteriores, enquanto as tabuinhas de Mari, do fim do século dezenove ao meio do século dezoito a.C., coincidem estreitamente com a datagdo mais provavel. Juntos eles nos ajudam a criar uma representacado da sociedade patriarcal que ilumina o texto da Biblia. Uma das mais poderosas objecdes a idéia de Wellhausen e de outros, de que os primeitos livros da Biblia foram compilados e editados para servir as crencas religiosas de uma idade muito posterior, sempre foi que muitos episédios nesses livros nao fazem tal coisa. Fles incorporam costumes que eram evidentemente estranhos e inexpli- caveis aos editores posteriores do primeiro milénio a.C. que, em sua reveréncia pelo texto e pelas tradicées a eles transmitidas, limitaram-se a copiélos, sem qualquer tentativa de racionalizacdo. Algumas passagens permanecem misterio- sas para nos, mas muitas outras sao agora explicaveis a luz das tabuinhas. Assim, tanto as tabuinhas de Ebla quanto as de Mari contém documentos administrativos ¢ legais que se referem a pessoas com nomes do tipo patriarcal tais com Abraao, Jaco, Lia, Labao e Ismael; também ha muitas expressdes sugestivas e palavras tomadas de empréstimo relacionadas com o hebraico.”* Alem disso, esses desconhecidos litigantes do comeco do segundo milénio a.C. enfrentavam exatamente a mesma espécie de dificuldades, oriundas de nao terem filhos, de divorcio, de heranca e de direitos de nascenca, que os seus homénimos biblicos. O projeto desesperado de Abraao de tornar seu herdeiro um de seus retentores, porque lhe falta um filho, e a sua proposta de adotar Eleazer como possivel herdeiro refletem de perto as praticas nuzi. Nuzi também produz paralelos exatos dos negocios de Abraao com sua mulher Sara e seu recurso a serva Haggar, como uma concubina permitida, em conseqiténcia do fracasso de Sara em ter um filho — e, com efeito, dos resultados domésticos infelizes que se seguiram. Os contratos de casamento nuzi tém, na verdade, disposicdes especificas para tais contingéncias. Uma tabuinha nuzi atesta a venda do direito de primogenitura por um irmado mais velho a um irmao mais novo por trés ovelhas, exatamente como Esati transferiu seu direito de primoge- nitura a Jacé por um cozinhado de lentilhas.* Uma tabuinha Nuzi também proporciona um exemplo do poder obrigatério da disposicao oral da proprieda- ISRAELITAS 25 de, na forma de uma béngdo no leito de morte, iluminando assim a cena notavel no Livro de Genesis 27, quando Jacé e sua mae Rebeca conspiram para enganar seu pai Isaac, e conseguir que o nomeie herdeiro na hora de morrer. Talvez de forma ainda mais impressionante do que todo o resto, os arquivos nuzi explicam o intrigante relato da Biblia das relacées de Jaco com Labao, que agora sabemos ter sido um problema comum de adocao. Labao, sem herdeiros, adotou Jacé como seu filho e como seu genro; entao ele teve filhos proprios. Uma tabuinha de Nuzi diz: ‘A tabuinha de adocao de Nashvi, filho de Arsheni, Ele adotou Wullu, filho de Pisheni... Quando Nashvi morrer, Wullu sera o herdeiro. Se Nashvi tiver um filho, ele dividira igualmente com Wullu, mas o filho de Nashvi ficara com os deuses de Nashvi. Ese nao houver filho de Nashvi, entdo Wullu ficard com os deuses de Nashvi. ENashvi deu a sua filha Nuuia como filha a Wullu, E se Wullu tomar outra mulher ele perdera a terra € os prédios de Nashvi."2 As tabuinhas nuzi mostram que os deuses da familia eram como documentos de propriedade, com valor legal simbélico: agora compreendemos que Raquel tenha furtado os deles do lar de Labao para endireitar o que Ihe pareceu uma disposic4o legal injusta. As tabuinhas de Mari dao ainda exemplos do ritual legal de confirmar um pacto matando um animal, exatamente como Abraao confir- mou seu pacto com Deus no Livro de Génesis 15,9-10. Podemos assim comecar a colocar Abrado e seus descendentes no seu verdadeiro contexto histérico. No fim do terceiro milénio a.C., a sociedade internacional civilizada foi desfeita por incursdes vindas do Oriente. Esses invasores causaram grande perturbac4o no Egito; e, na Asia habitada, os arquedlogos revelam uma quebra absoluta de continuidade em cidades como Ugarit, Biblos, Megido, Jericé e a velha Gaza, indicando pilhagem e abandono.”” Esses povos, que se deslocavam da Mesopotamia para o Mediterraneo, falavam linguas semiticas ocidentais, uma das quais é o hebraico. Um grupo particular é referido, em tabuinhas e inscri¢ées mesopotamicas, pelo ideograma SA.GAZ, oucomo Hapiru, Habiru. Fontes da idade egipcia de bronze tardia também falam. de Abiru ou Habiru. Com esse termos, as fontes nao se referiam a beduinos ou habitantes do deserto, que existiam entéo como agora, pois havia um nome diferente para essa categoria. Nao eram tribos regulares, que regularmente migravam com os seus rebanhos segundo os ciclos das estagdes, como ainda 0 fazem em partes da Asia Menor e Pérsia. Sua cultura era superior a da maioria das tibos do deserto. Precisamente porque nao era facil classificé-los, eles intrigaram e aborreceram as conservadoras autoridades egipcias, que sabiam exatamente como tratar némades genuinos. Algumas vezes, serviam como mercenérios. Alguns ocuparam postos como empregados do governo. Trabalha- 26 HISTORIA DOS JUDEUS vam como empregados, ou como funileiros e vendedores ambulantes, Montavam purros e andavam em catavanas, ou eram mercadores. Logravam algumas vezes adquirir uma consideravel fortuna na forma de rebanhos e seguidores: entao podiam tentar estabelecer-se, adquitir terra e formar pequenos reinos. Cada grupo de habiru tinha um xeque ou chefe de guerra, o qual, conforme a ocasidio, podia desencadear um ataque com uns 2.000 seguidores. Quanto tinham uma oportunidade de estabelecer-se e construir, seu lider chamava-se de rei, e eles se prendiam ao grande rei da regiao. Além do Egito, uma autocracia centralizada de antiguidade imemorial mesmo no século dezenove a.C., nenhum rei sozinho era poderoso. Hamurabi, da Babilonia, tinha sempre entre dez ¢ quinze reis a seu servico. Era uma questao delicada para 0 monarea decidir se permitia que reis habirus se estabelecessem em seus dominios € se tornassem (na realidade) feudatarios, ou expulsé-los.* © mesmo dilema confrontava pequenos reis locais, j4 estabelecidos, que tinham feito parte de uma onda de imigrantes anteriores. Abrado era o lider de um desses grupos habirus de imigrantes, um chefe substantivo, com “318 servos treinados, nascidos em sua casa”. No Livro de Genesis 12 nds 0 vemos tratar com uma autoridade maior, Egito; em Génesis 14 ele ¢ seus homens servem como mercenarios ao pequeno rei de Sodoma. Suas relacdes com autoridades estabelecidas, grandes e pequenas, sempre contém um elemento de intranqili- dade e sao marcadas por trapacas, tais como seu repetido artificio de que sua mulher é sua irma: sabemos agora pelas tabuinhas que uma mulher com status de uma irma fazia jus a mais protegao do que uma esposa comum.”* O pasto era limitado: muitas vezes faltava agua. Se um grupo habiru florescia estabelecido, sua propria fortuna tornava-se uma fonte de conflito — um quase estranho prentincio de posteriores problemas judeus na diéspora. O Livro de Genesis 13,6-11 mostra Abrado ¢ seu sobrinho L6 obrigados a separar-se: “E a terra nao podia sustenté-los, para que habitassem juntos, porque eram muitos os seus bens: de sorte que nao podiam habitar um na companhia do outro”. O Livro de Génesis 21,22-23 mostra Abrado em Berseba, envolvido num litigio sobre um. poco d’égua com os homens de Abimelec, o rei local, um litigio resolvido por tum pacto selado com o sacrificio de animais. As relagdes de Abrado com Abimelec, embora algumas vezes tensas, e sempre legalisticas, eram pacificas. Algumas vezes era do interesse dos reis estabelecidos tolerar os habirus, como uma fonte de mercenarios. Mas se os ‘estrangeiros e peregrinos’ tornavam-se muito numerosos e poderosos, 0 rei local tinha de dizer-lhes que se mudassem, ou correr o risco de sucumbir ele proprio. Assim, encontramos Abimelec dizendo a Isaac, o filho de Abrado, “aparta-te de n6s, porque ja és muito mais poderoso do que nos” ISRAELITAS a7 Todo esse material do Livro de Génesis que trata de problemas de imigracao, de pogos d’agua e contratos e direitos de nascimento € fascinante porque coloca tao firmemente os patriarcas em suas circunstancias histéricas, e atesta a autenticidade e a grande antiguidade da Biblia, Mas esta misturado com dois outros tipos de material que constituem o objetivo real das narrativas da Biblia: a representacao de individuos, os ancestrais do povo, num contexto moral e, ainda mais importante, a origem e o desenvolvimento de seu relacionamento coletivo com Deus. A vivacidade e o realismo com que os patriarcas e suas familias sao representados nesses contos antigos s4o talvez o aspecto mais notavel da obra, e nao tém paralelo na literatura da grande Antiguidade. Ha arquétipos de humanidade, como Ismael: “Ele sera, entre os homens, como um jumento selvagem; a sua mo sera contra todos, e a mao de todos contra ele” mas ndo estereétipos: cada carater salta vibrantemente do texto. Ainda mais notavel é a atencao devotadas as mulheres, o papel principal que muitas vezes representam, sua vivacidade e poder emocional. A mulher de Abrado, Sara, é a primeira pessoa na historia de quem se diz que riu. Quando se Ihe diz, ja velha, que tera o muito desejado filho, ela ndo o acredita, mas “riu-se, pois, Sara, no seu intimo, dizendo consigo mesma: depois de velha, e velho também meu Senhor, terei ainda prazer?” (Génesis 18,12); seu riso € meio amargo, triste, ironico, mesmo cético, um prentincio de muito riso judeu através dos tempos. Quando 0 filho Isaac nasceu, no entanto, “disse Sara: Deus me deu motivo de riso; e todo aquele que ouvir isso vai rir-se juntamente comigo” — e seu riso é jubiloso e triunfante, comunicando-nos a sua delicia através da distancia de quatro milénios. Entao ha a historia de como Isaac, um homem amavel e meditativo, que amava profundamente sua mae Sara, arranjou uma mulher para tomar-lhe o lugar — a timida, mas bondosa e amante Rebeca; e esse é 0 primeiro conto da Biblia que nos comove. Ainda desperta mais emocao, embora nao date estritamente do tempo dos patriarcas, 0 Livro de Rute, que descreve a afeicao e a devocao entre duas mulheres doloridas e solitarias, Naomi e sua nora Rute. O que sentem é transmitido com tanta ternura e fidelidade que se acredita, instintivamente, que € obra de uma mulher. E certo que o Cantico de Débora, que constitui o capitulo 5 do Livro dos Juizes, com sua multidao de imagens femineas e sua triunfante afirmacao da forga e coragem femininas deve ser a obra lirica de uma mulher. Contudo, 0 exoma do texto deixa claro que se trata de uma das primeiras secdes da Biblia a serem escritas; parece ter atingido, mais ou menos, sua forma presente nao depois de 1200 a.C. Esses antigos relatos biblicos testemunham o papel criativo representado por mulheres na formagao da sociedade hebraica, a sua forca emocional e intelectual, e a sua grande seriedade. 28 HISTORIA DOS JUDEUS Contudo, a Biblia antiga é acima de tudo uma declaracio de teologia: um relato do relacionamento direto, muitas vezes intimo, entre os lideres do povo € Deus. Nesse ponto, é determinante 0 papel representado por Abraao. A Biblia o apresenta como 0 ancestral imediato do povo hebreu, fundador da na¢ao. Ele também é o exemplo supremo do homer bom e justo. Ele ama a paz (Genesis 13,8-9), embora também pronto a lutar por seus principios, e magnanimo na vitoria (14,22), devotado a sua familia e hospitaleiro com estrangeitos (18,1), preocupado com o bem-estar de seus semelhantes (18,23) € acima de tudo temente a Deus ¢ obediente as ordens divinas (21,12; 26,5). Mas nao € um modelo, Fle € uma personalidade profundamente humana ¢ realista, algumas vezes temeroso, duvidoso, cético mesmo, embora em tltima instancia sempre fiel e décil as instrucdes de Deus. Se Abrado foi o fundador da na¢ao hebraica, sera que foitambém o fundador da religido dos hebreus? Em Genesis ele parece inaugurar 0 especial relaciona- mento com um Deus, que € tinico e onipotente. Nao é clara a questao de decidir se ele pode ser chamado com exatidao o primeiro monoteista, Podemos aban- onar as idéias hegelianas de Wellhausen a respeito dos judeus, simbolizados por Abraao, mudando-se de sua origem primitiva no deserto Abrado era um homem familiar com cidades, com conceitos legais complexos, ¢ idéias religiosas que, para a época, eram sofisticadas, O grande historiador judeu Salo Baron vé nele um proto-monoteista, oriundo de um centro cujo florescente culto da lua estava se tornando um monoteismo rude, cru. Qs nomes de muitos de sua familia, Sara, Milca, Tera, Labao, por exemplo, eram associados com 0 culto da lua. Ha no Livro de Josué uma referencia criptica a ascendencia idolatra de ‘Abraao: “Mesmo Terd, 0 pai de Abraao... serviu outros deuses”.34 O Livro de Isaias, reproduzindo uma antiga tradicao que néo est registrada de outra forma na Biblia, diz que Deus “redimiu Abraao”®> . © movimento dos povos semitas para o Ocidente, ao longo do arco do crescente fértil, ¢ usualmente apresentado como um curso sob a pressio de forcas econdmicas. Mas € importante-com- preender que a compulso de Abraao era religiosa: ele obedecia a um impulso que creditava provir de um grande e todo-poderoso, ubiquo Deus E possivel argumentar que, embora nao se houvesse, no seu espirito, plenamente desenvol- vido 0 conceito monoteista, ele era um homem que o buscava, que deixou a sociedade mesopotamica precisamente porque ele havia atingido um impasse espiritual.** Abrado pode talvez ser ‘epresentado com mais exatidao como um henoteista: um crente num s6 Deus, ligado a um povo particular, que nem por isso deixava de recomhecer 0 apego de outras racas a seus proprios deuses. Esclarecido isso, ele é o fundador da cultura religiosa hebraica, ja que inaugura suas duas caracteristicas salientes: 0 pacto com Deus ea doacao da terra. A idéia do pacto ISRAELITAS 29 é extraordinaria, sem qualquer paralelo no antigo Oriente Proximo. E verdade que 0 pacto de Abrado com Deus, sendo pessoal, nao alcancou a sofisticagao do pacto de Moisés a favor de todo um povo. Mas as coisas essenciais ja est4o nele: uum contrato de obediéncia em troca de um favor especial, que implica pela primeira vez na historia a existéncia de um Deus ético que atua como uma espécie de monarca constitucional benigno preso por seus proprios justos acordo.*7 O relato de Génesis, com o seu didlogo intermitente entre Abrado e Deus, sugere que a compreensio e aceitacdo por Abraao das implicacdes de seu negocio foram graduais, um exemplo da forma pela qual a vontade de Deus ¢ revelada algumas vezes em estdgios progressivos. Finalmente, Abraéo compreendeu a verdade, como esta descrito no capitulo 22 de Genesis, quando Deus o pée a prova, dando-lhe ordem de que sacrifique seu proprio filho, Isaac>* Essa passagem é um marco importante na Biblia, sendo também uma das mais dramaticas e intrigantes em toda a historia da religiao, porque primeiro suscita © problema da teodicéia, do sentido de justiga de Deus. Muitos judeus e cristaos acharam a passagem injusta, porque se manda Abrado fazer alguma coisa nao apenas em si mesma cruel mas contréria ao reptidio de sacrificios humanos que € parte do leito da ética hebraica e de todas as subsequientes formas de devocao judaico-cristas. Grandes filosofos judeus bateram-se para fazer com que a historia se conformasse com a ética judaica. Filo argumentou que ela atestava o desprendimento de Abraao do costume ou de qualquer outra paixao dominante a nao ser o amor por Deus, seu reconhecimento de que devemos dar a Deus aquilo que mais presamos, confiantes em que, sendo Deus justo, nao o perdere- mos. Maiménides concordou que esse era um meio de pér a prova os extremos limites do amor e do temor que Deus justamente exige. Namanides viu nela o primeiro exemplo da compatibilidade entre previsao divina e livre arbitrio humano.® Em 1843, Séren Kierkegaard publicou seu estudo filos6fico desse episodio, Medo e Tremor, no qual ele representa Abraao como um “cavalheiro da fe", que tem de renunciar por amor a Deus nao apenas a seu filho mas seus ideais éticos. A maior parte dos tedlogos morais judeus e cristaos rejeitam essa opinido que implica um conflito inaceitavel entre a vontade de Deus e ideais éticos, embora outros concordariam com que o episodio é uma adverténcia de que a religido nao reflete necessariamente ética naturalista.*! Do ponto de vista de um historiador, a historia faz perfeitamente sentido, porque Abraao, como sabemos por arquivos que Ihe séo contempordneos, proveio de um fundamento legal em que era mandatorio selar um contrato ou pacto com um sacrificio animal. O pacto com Deus era de uma enormidade tao transcendente que exigia alguma coisa a mais: um sacrificio do mais amado, no sentido mais completo; mas, como o objeto do sacrificio era um ser humano, fez-se com que ele abortasse, permanecendo assim valido de medo formal e 30 HISTORIA DOS JUDEUS ritualistico, e ndo real. Isaac foi escolhido como a oferenda nao apenas porque ele eraa posse mais preciosa de Abrado mas porque ele era um dom especial de Deus, de acordo com o pacto, e permanecia de Deus com todo o resto de seus dons ao homem. Isso sublinha todo o propésito de sacrificio, uma lembranga simbolica de que tudo que o homem possui provém de Deus e lhe pode ser dado de volta. Foi por isso que Abraao chamou o lugar de seu ato de suprema obediéncia e sacrificio, abortado, o Monte do Senhor, um prentincio do Sinai e de um maior contrato.”? Da ideia da importancia do acontecimento o fato de que, pela primeira vez, as narrativas da Biblia introduzem a nota de universalismo nas promessas de Deus. Ele nao apenas promete multiplicar a descendéncia de Abrado, mas agora também acres- centa “e nela serao benditas todas as nagées da terra." Estamos chegando a idéia de uma nacao eleita. E importante compreender que o Velho Testamento néo trata primariamente da justica como um conceito abstrato. Ele trata da justica de Deus, que se manifesta pelo ato de eleicao dé Deus. Em Génesis, temos varios exemplos do ‘homem justo’, e mesmo do tnico homem justo, na historia de Noé e do Diltvio, na historia da destruicao de Sodoma, por exemplo. Abrado também é um homem justo, mas nao ha sugestao de que Deus 0 escolheu porque ele era o tinico homem justo, ou em qualquer sentido por causa de seus méritos. A Biblia nao ¢ uma obra de razao, é uma obra de historia, tratando do que sao para nos acontecimentos misteriosos e mesmo inexplicaveis. Trata das importantes escolhas que aprouve a Deus fazer."" E essencial 4 compreensao da historia judaica aprender a importancia que os judeus sempre atributram a ilimitada propriedade da criacao por Deus. Muitas crencas judaicas se destinam a dramatizar este fato central. A idéia de um povo eleito era parte do objetivo de Deus de salientar sua posse de todas as coisas criadas. Os sabios judeus ensinaram: “Cinco posses 0 Santissimo, abencoado seja Ele, tornou especialmente suas. Sao essas: a Tora, 0 céu € a terra, Abrado, Israel e 0 Santo Santuario.”*® Os sabios acreditaram que Deus deu generosamente coisas de sua criagao, mas reteve (por assim dizer) a propriedade de tudo e um relacionamento especial, possessivo com elementos selecionados. Assim, nos encontramos: “O Santissimo, abencoado seja Ele, criou os dias, e reservou para si mesmo 0 Sabado; criow os meses, ¢ reservou para Si mesmo os festivais; Ele criou os anos e reservou para si’ mesmo 0 Sabatico; criou as nagdes e reservou para si mesmo Israel. Criow as terras, ¢ reservou para Si mesmo a Terra de Israel como uma oferenda ritual de todas as outras tefras, porque esta escrito: ‘A terra € do Senhor ¢ tudo 0 que produz.**® A dleicio de Abraao e de seus descendentes para um papel especial na providencia de Deus, e a doacao da terra sao inseparaveis na apresenta¢ao biblica ISRAELITAS 31 da historia. Além disso, ambos os presentes so arrendados, nao sao de proprie- dade livre: os judeus sao eleitos, a terra é deles, por graca e por favor, sempre revogaveis. Abrado € tanto um exemplo real quanto um simbolo perpétuo de uma certa fragilidade e angustia na posse judaica. Ele € um ‘estrangeiro e peregrino’ e assim o permanece mesmo depois da eleicdo de Deus, mesmo depois que laboriosamente comprou a Caverna de Macpela. Essa incerteza de proprie- dade transfere-se a todos os seus descendentes: como a Biblia repetidamente nos relembra. Assim, Deus diz aos israelitas: “Também a terra nao se vendera em perpetuidade, porque a terra é minha; porque vés sois para mim estrangeiros € peregrinos”; ou entéo, o povo confessa: “Pois somos estranhos diante de ti, peregrinos como todos os nossos pais”, e, nos Salmos, o rei Davi diz: “Porque sou forasteiro na tua presenca, peregrino como todos os meus pais o foram.”” Nao obstante, a promessa de terra a Abrado é muito especifica e esta no estrato mais antigo da Biblia: “Eu darei a tua descendéncia esta terra, desde 0 rio do Egito até ao grande rio Eufrates, os cineus, e os cenezeus, e os cadmoneus, € os heteus, e os ferezeus, e também os rafaim, e os amorreus, € os cananeus, € 0s gergeseus, e os jebuseus”“* H4 alguma confusdo a respeito das fronteiras, ja que numa passagem posterior Deus so promete uma parte do dom mais amplo: “Dar-te-ei e a tua descendéncia a terra das tuas peregrinagées, toda a terra de Canaa.”#? Por outro lado, o dom posterior sera “uma posse perpétua”. O que se compreende, aqui e em passagens ulteriores, é que a eleicao de Israel nunca pode ser revogada, embora ela possa ser suspensa por causa de desobediencia humana. Como a promessa do Senhor ¢ irrevogavel, a terra, em tltima instancia, cabera a Israel, mesmo se este a perder por um tempo.* A idéia da Terra Prometida é peculiar a religiao israelita e, para os israelitas e mais tarde para os judeus, ela era o elemento singular mais importante. E significativo que os judeus incorporaram os cinco primeiros livros da Biblia, 0 Pentateuco, ao coracdo de sua Tord ou fé, porque esses livros tratavam da Lei, da promessa de terra e de seu. cumprimento. Os livros posteriores, a despeito de todo o seu brilho e amplitude, nunca adquiriram a mesma significacdo central. Nao sao tanto revelacéo quanto comentario sobre ela, dominados pelo tema da promessa cumprida.*! E a terra o que mais importa. Se Abrado estabeleceu essas bases, foi deixado a seu neto, Jaco, trazer a existéncia um povo distinto, Israel, sendo o seu nome e raca inextricavelmente ligados.®2 Sempre houve o problema de como chamar os ancestrais dos judeus. ‘Hebreus’ ¢ insatisfatorio, embora seja freqiientemente necessério usar a palavra, pois o termo “habiru”, do qual ele presumivelmente decorre, representa mais uma forma de vida do que um grupo racial especifico. Além disso, era pejorativo. ‘Hebrew’ ocorre no Pentateuco, com o significado de “filhos de Israel”, mas s6 quando usado pelos egipcios ou pelos proprios israelitas na presenca de Ai HISTORIA DOS JUDEUS egipcios. A partir do segundo século. a.C., quando a palavra foi assim usada por Ben Sira, aplicou-se ‘hebreu’ a lingua da Biblia, a todas as obras subseqtientes escritas nessa lingua. Como tal, perdeu gradualmente suas conotacoes pejorati- vas, o que fez com que aos proprios judeus ¢ a gentios simpatizantes, a palavra parecesse alguma vezes preferivel a ‘judeu’ como um termo racial. No século dezenove, por exemplo, foi a palavra muito usada pelo movimento de reforma, nos Estados Unidos, o que faz com que tenhamos instituigdes tais como o Hebrew Union College ¢ a Unido das Congregacdes Hebraicas Americanas. Mas os antepassados dos judeus nunca escolheram chamar-se hebreus. Quando se tornaram conscientes de uma identidade nacional, o termo a que recorreram, normativo na Biblia, foi israelitas ou filhos de Israel, ¢ € isso que confere sua principal significagao a Jaco. Contudo, é curioso, e é caracteristico das dificuldades que sempre cercaram aidentidade ea nomenclatura judaicas que a primeira mengao do termo, quando Jacé foi divinamente reapelidado Israel — por assim dizer, o momento em que nasceu a nacdo — ocorre no que talvez seja a passagem mais misteriosa ¢ mais obscura de toda a Biblia, a luta de Jaco por toda uma noite com o anjo. Otermo ‘Israel’ pode significar aquele que combate deuses, aquele que luta por Deus, aquele que Des combate, 0 homem justo de Deus, ou Deus ¢ justo. Nao ha consenso. Nem ninguém ja proporcionou uma explicacao satisfatoria do que 0 incidente significa. F evidente que aqueles que primeiro editaram e transcreve- ram a Biblia também nao o compreenderam. Mas reconheceram que se tratava de um momento importante em sua historia e, longe de adapta-lo para que se sujeitasse 2 sua compreensao religiosa, reproduziram-no palavra por palavra porque era Tora e sagrado. A carreira de Jacé é descrita extensamente em Genesis, e foi, de fato, notavel. Ele era bem diferente de seu av6 Abrado: wm dissimulador, um maquiavélico, um estrategista mais do que um lutador, um politico, um empresdrio, e também um sonhador e um visionario. Jaco prosperou enormemente e se tornou um homem muito mais rico do que Abraao ou seu pai Isaac. Por fim, fez com que o repousassem ao lado dos tamulos de seus antepassados, mas entrementes ele instalou colunas ou ergueu altares numa grande extensao de territorio. E representado como ainda um ‘estrangeiro’ em Canaa, como seu pai.» Com eleito, todos os seus filhos, com excecao do ultimo, Benjamin, parecem ter nascido na Mesopotamia ou na Siria. Mas foi durante sua vida que essas ligagdes com o leste e com o norte cortaram-se finalmente, € seus seguidores comecaram a ter-se na conta de pessoas ligadas de alguma forma permanente a Canaa, 0 que faz com que, se v4o a0 Egito em tempo de fome, a providencia divina os faz voltar, inexoravelmente. Como o lider eponimo nacional, Jacé-Israel foi também o pai das doze tribos que, em teoria, compuseram a nagio. Essas tribos, Rubens, Simedo (Levi), Issacar, ISRAELITAS 33 Zebuldo, Benjamim, Dan, Neftali, Gad, Asber, Efraim e Manassés, descendiam todas de Jacé e de seus filhos, segundo a tradicAo biblica.* Mas na cancao de Débora, que, como notamos, € muito antiga, s6 se relacionaram dez tribos — Efraim, Benjamin, Maquir, Zebuldo, Issacar, Rubens, Gilead, Dan, Asser e Naftali. O contexto € belicoso, e pode ser que Simedo, Levi, Juda e Gad nao tenham sido relacionados por Débora porque nao deviam tomar parte na luta. O ntmero doze pode ser uma convencéo: 0 mesmo nimero é usado para os filhos de Ismael, Nahor, Joktan e Esau.> Grupamentos de doze tribos (algumas vezes seis) eram comuns no Mediterraneo oriental e na Asia Menor na Idade de Bronze Tardia. Os gregos chamavam-nos anfictides, de um termo que significa ‘morar perto’. O fator que unificava podia nao ser uma descendéncia comum mas uma devocgao comum a.um santuério particular. Muitos eruditos no texto nos séculos dezenove e vinte descartaram a idéia de uma descendéncia. comum de Jacé e preferiram ver os grupos tribais de origens distantes e disparatadas organizarem-se como uma anfictionia em volta dos santuarios israelitas que estavam sendo estabele- cidos nessas alturas.%* Mas todos esses grupos semiticos ocidentais que se mudavam para Canad tinham origens comuns e eram inter-telacionados, eles partilhavam memérias, tradic6es e reverenciavam ancestrais. Elaborar as hist6- rias tribais espectficas de todos os grupos mencionados na Biblia seria muito complicado, mesmo se existissem os materiais.” O ponto saliente consiste em que Jacé-Israel associa-se com o tempo em que os israelitas primeiro tomaram consciéncia de sua identidade comum, mas dentro da estrutura de um sistema tribal que jé era antigo e caro a eles. Lacos religiosos ¢ familiares eram igualmente fortes, e inextricaveis na pratica, como o seriam através de toda a historia judaica. No tempo de Jac6, os homens ainda transportavam os seus deuses familiares com eles, mas também ja se tornava possivel pensar em termos de um Deus nacional. Abrado tinha as suas proprias crencas religiosas, mas ele cortesmente prestava tributo, sendo ‘um estrangeiro e um peregrino’, a divindades locais, conhecidas genericamente como ‘El’. Assim, ele pagou tributo a El Elyon em Jerusalém, e reconheceu El Shaddai em Ebron e El Olan em Berseba.** A adogao por Jacé do nome de Israel (ou Isra-el) marca o ponto em que o Deus de Abrado localizou-se no solo de Canaa, identifica-se com a progénie de Jacé, com os israelitas, e logo se tornaré 0 todo-poderoso lahweh, o deus do monoteismo. O dominio de lahweh como o predominante foco da religio israelita — 0 prototipo do ‘Deus’ tinico que todos os judeus, crist4os e mugulmanos adoram hoje em dia — confirmou-se vagarosamente durante a fase seguinte da historia do povo, o movimento para o Egito e a escapada dramatica da servidao egipcia. ‘Anarrativa da Biblia, terminando Genesis com a morte de José, depois retornan- do a historia com as suas desastrosas conseqiténcias no inicio do Livro do Exodo parece sugerir que a nacdo como um todo foi para o Egito. Mas isso é erroneo. 34 HISTORIA DOS JUDEUS £ claro que mesmo no tempo de Jaco muitos dos habirus ou hebreus, que devemos agora chamar da israelitas, comecavam a instalar-se permanentemente em Canada, e mesmo a adquirir territorio mediante forca. No Livro de Génesis 34, lemos que os filhos de Jac6, Simedo e Levi, fizeram com éxito um ataque violento ao rei e a cidade de Salem, ¢ isso sugere a primeira posse israelita de uma cidade de algum tamanho, que pode bem'se ter tornado a mais antiga sede do Deus nacional. Salem ja era uma cidade no século dezenove. a.C., uma vez que é mencionada num documento egipcio que provém do reino de Sesostris Ill (1878-1843 a.C.) e, mais tarde, adquiriu muros ciclopicos. £, na realidade, a primeira cidade da Canaa mencionada na Biblia (Genesis 12,6-7) e ali Abraao conseguiu a promessa divina, Salem esta proxima da moderna Nablus, um nome derivado da nova cidade, ou Neapolis, que Vespasiano construiu em 72 A.D. depois da reconquista da Palestina. Podemos identificar o sitio a partir de referéncia em Josefo, que escreveu por volta de 90 A.D., ¢ de Eusébio, que escreveu antes de 340 A.D., que diz que a antiga Salem localiza-se nos subtrbios de Neapolis perto do poco de Jaco. £ claro que Salem nao foi meramente tomada mas permaneceu nas maos da familia de Jaco, porque, em seu leito de morte, ele a dew a seu filho José: “Dei-te mais que a teus irmaos um declive montanhoso, 0 qual tomei das maos dos amorreus com a minha espada e com o meu arco. va E certo que wm grande ntmero de israelitas permaneceu em Canaa, € ha confirmagao externa de que eram ativos e belicosos. Os documentos egipcios conhecidos como as Cartas de Amarna, a que se pode com exatidao atribuir uma data entre 1389 ¢ 1358 a.C., de um tempo em que os faraés do Novo Reino eram nominalmente soberanos na Palestina, embora seu poder se estivesse desvanes- cendo, tratam de vassalos locais e de seus inimigosna regido. Algumas referem-se aum hebreu chamado Labaia ou Homem Ledo; outras sao feitas por ele. Ele causou grandes dificuldades as autoridades egipcias e seus aliados; como todos os outros habirus, conhecidos do Egito, ele era dificil de controlar, uma causa de aborrecimento. Por fim, encontrou uma morte violenta no reino do faraé Aquenaton. Mas, durante sua vida, controlou um pequeno reino em torno de Salem, e seus filhos herdaram suas posses. Até onde sabemos, de fato, os israelitas hebreus controlaram Salem durante todo o tempo em que seus irmaos estavam no cativeiro egipcio. Nao ha nenhuma referéncia de que foi tomada durante a conquista de Josué, contudo logo que os invasores israelitas chegaram as colinas ao norte de Jerusalém eles encenaram e voltaram a encenar a ceriménia do pacto em Salem, o ugar em que Abrado primeiro o celebrou.®! © que isso implica ¢ que a cidade jé estava, e por muito tempo estivera, nas maos de gente que eles reconheciam como seus correligio- narios e parentes raciais. Salem era assim, num sentido, o santuario original central e capital da Canad israelita. O ponto é importante, ja que a continuada ISRAELITAS as existéncia de uma populacao israelita de tamanho regular na Palestina através de todo o periodo entre a chegada original de Abraao e o regtesso do Egito torna 0 Livro biblico do Exodo, que claramente descreve apenas uma parte da raca, € a conquista narrada no Livro de Josué, muito mais dignos de crédito. Os israelitas no Egito sempre souberam que tinham uma patria para onde regressar, onde parte, da populacdo era sua aliada natural; e essa quinta coluna no interior da terra tornava, por sua vez, a tentativa de conquistar Canad por um bando errante uma aventura menos desesperada. Assim, a residéncia no Egito e o regresso de la, e o vagar pelo deserto que se seguiu envolviam apenas parte da nacdo istaelita. Nao obstante, essa fase foi de importancia crucial na evolugao de sua cultura ética e religiosa. Com efeito; foi 0 episodio central na historia deles, e sempre como tal foi reconhecjdo pelos judeus, porque viram emergir, pela primeira vez, em esplendor transcendente, ocarater do Deus dinico que eles adoravam, de seu poder para livré-los do maior império na terra e de dar-lhes uma terra fértil e propria; e também revelou a multidao suas imperiosas exigéncias que, em troca, esperava que eles satisfizes- sem. Antes de seguir para 0 Egito, os israelitas eram um povo pouco numeroso quase como qualquer outro, embora tivessem uma promessa de grandeza que Ihes era muito cara. Depois que regressaram, eram um povo com um objetivo, um programa e uma mensagem para o mundo. © periodo se abre e se fecha com duas das figuras mais mesméricas na historia dos judeus, José e Moisés, arquétipos de homens cujas forcas ¢ realiza- 6es iluminariam e voltariam a iluminar a historia judaica. Ambos eram filhos mais mocos, parte daquele grupo — Abel, Isaac, Jacé, Davi e Salom4o foram outros exemplos — que parece ser 0 propésito peculiar da Biblia exaltar. A Biblia mostra a maior parte dos lideres nascidos sem lugar ou poder mas a ele alcados por seus proprios esforgos, eles proprios produtos de ato da graca divina.® A Biblia divisa uma virtude especial na falta de poder, apropriada a um povo que raramente possui poder, e muito sofreu com o seu exercicio; e realizagao como © sinal da virtude, especialmente daqueles que tinham sido fracos e estado por baixo. Tanto a José como a Moisés nao assistiam direitos de nascimento, e por pouco sobreviveram a infancia ou juventude vulneraveis; mas ambos possulam as qualidades dadas por Deus, para levélos a grandeza por seus proprios esforcos Mas af termina a semelhanca. José era o grande ministro estadista de un governante estrangeiro, o padrao de muitos judeus nos proximos 3.000 anos. Ele era esperto, rapido, perceptivo, imaginativo; um sonhador, porém mais do que um sonhador, um homem com a habilidade criativa para interpretar fendmenos complexos, para prognosticar e prever, para planejar e administrar. Quieto, aplicado, capaz em todos os negocios econdmicos e financeitos, domi- 36 HISTORIA DOS JUDEUS nador também de muitas formas de conhecimento arcano, ele sabia bem como servir ao poder e exploré-lo a favor de seu povo. Como o fara6 Ihe disse, “ninguém ha tao ajuizado e sabio como tu”. José ocupa um grande espago em Genesis, e claramente fascinou antigos escribas que primeito selecionaram esses muitos contos e depois os costuraram com consideravel arte ¢ simetria. Mas nao ha qualquer dévida quanto a sua historicidade. Com efeito, alguns dos mais romanticos epis6dios em sua vida tém eco na literatura egipcia. A tentativa de sua seducao pela mulher de Putifar, que, furiosa por ser por ele rejeitada recorre a intriga ¢ o faz encarcerar, ocorre numa antiga narrativa egipcia O Conto de Dois Irmaos, que primeiro alcancou forma escrita num manuscrito de papiro datado de 1225 aC. Nao raro, os estrangeiros alcangavam lugares elevados na corte egipcia. No século quatorze a.C., a carreira de José foi igualada por um semita com o nome de Yanhamu, alto comissario egipcio no império sob o farao Aquenaton. Mais tarde, no século treze, 0 mestre-de-cerim6nias na corte do faraé Menepta era um semita chamado Ben Ozen.® A maior parte dos pormenores egipcios na narrativa de José parece auténtica. £ certo que semitas ocidentais entraram em grande nimero no Egito. Comecaram a penetrar no delta do Nilo num momento tao antigo quanto o fim do terceiro milénio a.C. Esses imigrantes em geral vinham pacificamente, algumas vezes, voluntariamente, em busca de comércio e de trabalho; algumas vezes impelidos pela fome — pois 0 Nilo era de longe o mais regular provedor de excedentes de trigo — e algumas vezes como escravos. Ha uma passagem famosa num papiro egipcio, Anastasi VI, em que guardas aduaneiros egipcios notificam 0 palacio de uma tribo que passa em busca de pasto e de agua. O papiro n® 116, em Sao Petersburgo, mostra um faraé generoso doando racdes de trigo e de cerveja a chefes de tribo que se identificam como provenientes de Ascalon, de Hazor e de Megido. Durante certo tempo, com efeito, do século dezoito ao século dezesseis, o Egito teve uma dinastia de governantes estrangei- ros chamados os hicsos. Alguns dos nomes deles parecem semiticos ~ Quian, Yacuber, por exemplo. No primeiro século .D., 0 historiador judeu Josefo, procurando reforcar a historia do Exodo, cita Mento para ligé-la a expulsao final dos hicsos na metade do século dezesseis. Mas os pormenores egipcios na Biblia se enquadrariam melhor com um periodo mais tardio. Com efeito, ha muitas provas convincentes de que o periodo de opressao egipcia, que, por fim, levou os israelitas a revoltarem-se ¢ a escapar, ocorreu nas proximidades do ultimo quarto do segundo milénio a.C., e quase certamente no reino do famoso Ramsés II (1304-1237 a.C.). Diz-se dos egipcios na abertura do . Livro do Exodo: “E puseram sobre eles feitores de obras, para os afligirem com as suas cargas. E os israelitas edificaram ao farao as cidades-celeiro, Pitom e Ramsés.”6 Ramsés II, o maior construtor da décima-nona dinastia de governan- ISRAELITAS 37 tes do Novo Reino — com efeito, o mais prolifico construtor desde os criadores de piramides do Velho Reino — empenhou-se numa enorme quantidade de obras em Pitom, a moderna Teller-Rataba no Wadi Tumulat, e no lugar que ele chamou a partir de seu nome, Ramsés ou Pi Ramesu, a moderna San el-Hagar no brago tanatico do Nilo.®” Esses faraés da décima-nona dinastia provinham dessa parte do delta, para a qual transferiram 0 governo central, perto da terra biblica de Goshen. Foram empregados vastos mimeros de trabalhadores forcados ou escravos. Um papiro do reinado de Ramsés Il, Leiden 348, declara: “Distribuir rages de cereais aos soldados e aos habirus que transportam pedras para grande portao de Ramsés.” Mas nao € provavel que 0 proprio Exodo tenha ocorrido durante o teinado de Ramsés. Parece mais aceitavel que os israelitas fugiram sob o seu sucessor, Mernepta. Uma estela que comemora a vitéria desse fara sobreviveu e foi datada de 1220 a.C. Conta que ele venceu uma batalha além do Sinai, em Cana, e se refere aos derrotados como “Israel”. Ele pode nao ter vencido, porque os faraés muitas vezes apresentavam suas derrotas ou impasses como triunfos, mas é claro que ele teve alguma espécie de embate com 0s israelitas fora de seu territorio, o que deixa patente que ja haviam partido. Essa é a primeira referéncia nao biblica a Israel. Tomada juntamente com outras provas, tais como célculos fundados em I Reis 6,1 ¢ Juizes 11,26, podemos ficar razoavelmente certos de que o Fxodo ocorreu no século XIII a.C. ¢ ja se havia completado por volta de 1225 a.C. As historias das pragas do Egito, e das outras maravilhas e milagres que precederam a fuga israelita dominaram de tal forma a nossa interpretagao do Exodo que algumas vezes perdemos de vista 0 fato puramente fisico da bem- sucedida revolta e escapada de um povo escravo, o primeiro caso de tal natureza registrado na Antiguidade. Tornou-se um lembranca dominante para os israelitas que dele participaram. Para aqueles que ouviram falar dele, ou mais tarde leram a seu respeito, o Exodo gradualmente substituiu a propria criagdo como o acontecimento central, determinante na historia judaica. Alguma coisa aconte- ceu nas fronteiras do Egito que persuadiu as testemunhas oculares de que houve uma intervencdo direta e decisiva de Deus no destino deles. A forma pela qual foi contada e escrita convencen as geracdes subsequentes de que essa singular demonstracao do poderio de Deus a favor dos israelitas era 0 acontecimento mais notavel em toda a historia das nagées. A despeito de intensas investigac6es feitas por muitos anos, realmente nao temos idéia de onde a mao do Senhor salvou Israel do exército do farad.” A frase critica € “no mar de juncos” ou “no mar”. Isso podia significar um dos lagos salgados, ou a parte setentrional do golfo de Suez ou mesmo a crista do golfo de Acaba; outra alternativa é 0 Mar Serboniano (lago Sirbonis) no Sinai setentrional, 6 qual, na realidade, ¢ uma lagoa do Mediterraneo.”! O que nés sabemos € que 38 HISTORIA DOS JUDEUS a fronteira era pesadamente defendida em alguns lugares e policiada em toda a sua extensdo. O episodio que salvou os israelitas da firia do fara6, e que lhes pareceu uma redengao divina, foi tao estupendo que se tornou para eles e sua descendéncia a dinamica de toda a sua existéncia espiritual. Perguntem-se, disse Moisés a eles, desde o dia em que Deus criou o homem, “se ja houve uma coisa tal como esta grande coisa, ou se ouviram falar de coisa semelhante?” Deus jamais “impeliu a que fosse e levasse uma nagao do meio de outra nacdo, por tentacées, por sinais e por maravilhas, e pela guerra, e com a mao poderosa e 0 braco estendido, e por meio de grandes terrores, segundo tudo 0 que o Senhor vosso Deus fez por vés no Egito diante de vossos olhos?” No Exodo, Moisés faz com que 0 proprio Deus assinale a maravilha estupenda de seus atos, e mostre como se relacionam com os seus planos para eles como um povo: “Vos mesmos vistes 0 que eu fiz aos egipcios, de que modo vos trouxe sobre asas de aguia, e vos tomei para mim. Se, portanto, ouvirdes a minha voz e observardes a minha alianca, sereis para mim a porcao escolhida dentre todos os povos; porque toda a terra é minha, Sereis para mim um reino sacerdotal e uma nagao santa." ‘Ao acontecimento arrasador correspondeu o homem extraordinario que se fez o lider da revolta israelita. Moisés é a figura central na historia judaica, o eixo em torno do qual tudo roda. Se Abraao era o antepassado da raca, Moisés foi a forca essencialmente criativa, o modelador do povo; sob ele e através dele, eles se tornaram um povo distinto, com um futuro como uma nacao. Ele era um arquétipo judeu como José, mas bem diferente, e muito mais formidavel. Ele foi um profeta e um Iider; um homem de ages decisivas e presenca elétrica, capaz de grande raiva e de resolugao implacavel; mas também um homem de intensa espiritualidade, amante da comunhio solitaria com ele proprio e com Deus, vendo visdes e epifanias e apocalipses; e, contudo, nao um eremita ou ancoreta mas uma forca espiritual ativa no mundo, detestando a injustica, buscando ferverosamente criar uma utopia, um homem que nao apenas atuava como intermediario entre Deus e 0 homem, mas buscou traduzir 0 mais intenso idealismo na pratica da arte de governar, e conceitos nobres nos pormenores da vida quotidiana. Acima de tudo, ele era um legislador e um juiz, 0 construtor de uma moldura poderosa para encerrar numa estrutura de retidao todos os aspectos do comportamento publico e privado — um totalitario de espirito. Os livros da Biblia que relatam sua obra, especialmente 0 Exodo, o Deute- ronémio ¢ Numeros, apresentam Moisés como um canal gigantesco através do qual a radiacao e a ideologia divina derramaram-se nos coracées € no espirito do povo. Mas também devemos ver Moisés como uma pessoa intensamente original, tornando-se progressivamente, através de experiéncias que eram a um tempo horripilantes e enobrecedoras, uma forca criativa feroz, virando o mundo de cabeca para baixo, tomando conceitog que incontaveis geracées haviam ISRAELITAS 39 acolhido sem pensar e transformando-os em alguma coisa totalmente nova, © que faz com que o mundo se torne um lugar bem diferente, em conseqtiencia, ¢ que ndo possa haver regresso aos velhos métodos de ver as coisas. Ele ilustra 0 fato, que grandes historiadores sempre reconheceram, de que a humanidade nao progride invariavelmente mediante pequenos passos, mas da algumas vezes um grande salto, muitas vezes por causa do impulso dinamico de uma personalidade solitaria e fora do comum. E por isso que a idéia de Wellhausen e de sua escola de que Moisés foi uma ficcao mais tardia e 0 cédigo mosaico uma fabricacao de sacerdotes posteriores ao exilio, na segunda metade do primeiro milenio a.C. — opinido ainda sustentada por alguns historiadores hoje em dia — € ceticismo transportado ao ponto de fanatismo, uma vandalizacao do registro humano. Moisés ultrapassou o poder que tem o espirito humano de inventar, ¢ 0 seu poder salta das paginas da narrativa da Biblia, como ja se impés a um povo dificil e dividido, com freqiténcia pouco mais do que uma multidao amedrontada. Contudo, é importante observar que Moisés, embora uma figura de grandeza fora do comum, ndo era em qualquer sentido uma figura sobre-humana. Escri- tores ¢ sabios judeus, lutando contra a forte tendéncia na Antiguidade de deificar figuras fundadoras, esforcaram-se com freqiiéncia para salientar as fraquezas e faltas humanas de Moisés. Mas nao havia necessidade; esta tudo no relato. Talvez o aspecto mais convincente da apresentacao biblica consista na forma pela qual ela mostra Moisés hesitante e incerto até 0 ponto da covardia, errado, mal orientado, irritavel e, 0 que é ainda mais notavel, amargamente consciente de seus defeitos. E muito raro que um grande homem confesse: “Sou vagaroso para falar, ¢ tenho uma lingua vagarosa.”* A falta de articulagao € quase o tiltimo defeito que um legislador e um estadista admitira. Ainda mais impressionantes so as imagens de Moisés como uma figura isolada, um tanto desesperada ¢ ineficiente, lutando com o peso de tarefas enormes que ele aceitou relutantemen- te mas que, de modo torvo, busca desempenhar. O Livro do Exodo 18 o mostra, julgando conscienciosamente, da madrugada até o creptsculo, pendéncias que The s4o submetidas pelo povo, Seu sogro, Jetro, de visita, pergunta indignado: “Que € isto que fazes com 0 povo? Por que te sentas s6 tu, e todo o povo esta esperando de manha até a tarde” Moisés respondew-lhe: “O povo vem a mim para ouvir a sentenca de Deus. Quando entre eles nasce alguma contenda, vem ter comigo para que eu julgue entre eles, ¢ Ihes mostre os preceitos de Deus ¢ suas leis.” A isso replica Jetro: “Nao fazes bem. Consomes-te com um trabalho vao, a tie a este povo que estA contigo; este trabalho é sobre as tuas forcas, e tu s6 no o poderas aturar”. Assim, ele propoe a criacao de um judiciario regular e instruido, e Moisés, sendo em muitas coisas um homem modesto, com a magnanimidade para pedir e seguir bons conselhos, faz o que o velho propos.” 40 HISTORIA DOS JUDEUS Moisés, tal como ele nos aparece na Biblia, € uma mistura profundamente sedutora de herdi e de humano, que trabalhou com tremendas certezas que escondiam toda espécie de dtividas e algumas vezes pura perplexidade. Por causa de sua posicao, ele tinha de manter uma corajosa aparéncia de onisciéncia, porque tinha de manter unida a horda fissipara, era obrigado a liderar com confianca, mesmo quando inseguro, e a mostrar publicamente uma implacabi- lidade que nao sentia no cora¢ao. Assim, a sua imagem era severa, seu lema: “Que a Lei curve a montanha.’ Ha sem ditvida verdade na antiga tradicao agadica de que Aardo era mais popular de que seu irmao mais importante: quando Aarao morreu, todos choraram, mas quando Moisés morreu s6 os homens choraram.’* Com o que diz a Biblia, os leitores hoje em dia possuem um retrato mais claro do carter inteiro de Moisés do que os homens e as mulheres que na vida real 0 seguiram. Moisés ndo foi apenas o mais influente de todos os judeus da Antiguidade antes de Cristo; mas também foi o tmico a ter um impacto consideravel sobre o mundo antigo. Os gregos o fundiram com seus proprios deuses ¢ herbis, especialmente Hermes e Musaeos; atribuiu-se-lhe 0 crédito de inventar a escrita hebraica, tida na conta do preltidio da escrita fenicia, e assim da grega. Wupo- lemus disse que ele foi o primeiro homem sabio na histéria da humanidade. Artapanos lhe atribuiu o crédito de organizar o sistema egipcio de governo e de inventar toda espécie de maquinaria belicosa e industrial. Aristobulus pensou que tanto Homero quanto Hesiodo buscaram inspiracao em suas obras, ¢ reinou entre muitos antigos escritores uma opinido geral de que a humanidade como um todo, ¢ a civilizagdo grega em particular muito deviam as suas idéias.”* Nao 6 motivo de surpresa o fato de que os escritores judeus da Antiguidade endos- saram essa tradicao de Moisés como um dos principais arquitetos da antiga cultura, Josefo diz que ele inventou a propria palavra ‘lei’, entao desconhecida em grego, e foi o primeiro legislador na historia do mundo.” Filo acusou tanto filosofos quanto legisladores de pilhar ou copiar suas idéias, sendo Herédclito Platao os principais acusados.”* Ainda mais impressionante é a afirmacao do escritor pagao Numenius de Apamea (segundo século A.D.) de que Platéo nao passava de um Moisés que falava grego.”? Os escritores da Antiguidade nao estavam apenas convencidos da existéncia de Moisés: eles 0 consideravam uma das figuras formadoras da historia do mundo. Mas também houve uma tendéncia entre escritores pagdos, a partir da segunda metade do primeiro milénio a.C., de encarar Moisés como uma figura sinistra, 0 criador de uma forma de religiao que era estranha, estreita, exclusiva e anti-social. Manoto (por volta de 250 a.C.) foi o primeiro a lancar a lenda extraordinariamente resistente de que Moisés nao era em absoluto um judeu, mas um egipcio, um sacerdote renegado de Heliopolis, que ordenou aos judeus ISRAELITAS 41 matar todos os animais sagrados egipcios e estabelecer dominio estrangeiro.® A ideia de que um sacerdote egipcio rebelde comandou uma revolta de parias, incluindo leprosos e negros, tornou-se a matriz fundamental do anti-semitismo, 0 libelo de Ur, embelezado e repetido através dos séculos com uma persisténcia extraordinaria. E, por exemplo, reproduzida duas vezes nas cartas de Karl Marx a Engels. Também € curioso que Sigmund Freud, que certamente nao era um anti-semita, fundamentou sua diltima obra, Moisés e 0 Monoteismo, na historia de Maneto de que Moisés era um egipcio e um sacerdote, acrescentando a especu- lacéo comum de que suas idéias religiosas originavam-se no culto solar mono- teista de Aquenaton, e muitas tolices pseudoverdadeiras que ele proprio inventou.®? Qualquer que seja o outro lugar em que Moisés conseguiu suas idéias, seja religiosas ou legais (e as duas coisas eram, é claro, inseparaveis em seu espirito), certamente nao foi no Egito. Com efeito, a obra de Moisés pode ser considerada um repidio total de tudo aquilo que o antigo Egito sustentara. Como no caso da migracao de Abraao de Ur e Haran para Canaa, néo devemos supor que 0 Exodo do Egito foi ditado por motivos puramente econ6micos. Nao era apenas uma fuga da miséria. Ha com efeito indicagées na Biblia de que era possivel agtientar as coisas duras. Ahorda de Moisés freqientemente ansiava pela ‘fartura do Egito’. A vida no Egito, durante do segundo milénio a.C., era mais agradavel (via de regra) do que em qualquer outra parte do antigo Oriente Proximo. Foi certamente politico o motivo para o Exodo. Os israelitas no Egito eram uma grande e incémoda minoria, e crescente, No inicio do Livro do Exodo, 0 faraé diz a seu povo: “Eis que o povo de Israel € numeroso e mais formidavel do que nos. Vinde, oprimamo-lo, com astiicia, para que nao se multiplique”.* O medo que os egipcios tinham do numero de israelitas era o principal motivo de sua opressao, que era especificamente destinada a reduzir seu efetivo. A escravatura faradnica era, de uma forma sinistra, um distante prentncio do programa de trabalho escravo e mesmo de seu Holocausto: ha paralelos perturbadores. Assim, o Exodo foi um ato de separacio e de resisténcia politicas, mas também foi, e acima de tudo, um ato religioso. Pois os israelitas eram distintos, e eram encarados e temidos pelos egipcios como distintos, precisamente porque rejeitavam todo 0 estranho e apinhado pantedo de deuses egipcios, e 0 espirito inteiro da espiritualidade egipcia que, de sua propria forma, era t4o intensae em tudo infiltrada quanto a religiéo que raiava, de Israel. Exatamente como Abraao sentiu que a religidio em Ur chegara a um impasse, assim os israelitas e seu lider Moisés, que via as coisas com mais clareza do que o resto, acharam o mundo da crenca e praticas religiosas egipcias sufocante, insuportavel, odioso e mau. Partir era romper nao apenas coma escravatura fisica, mas com uma prisdo espiritual de ar estagnado: os pulmoes de Israel no Egito ansiavam por um mais forte 42 HISTORIA DOS JUDEUS oxigenio de verdade, e por uma forma de viver, que era mais pura, mais livre € mais responsavel. A civilizacdo egipcia era muito antiga ¢ muito infantil, e a fuga dos israelitas foi uma busca de maturidade. Nesse processo de amadurecimento, os israelitas agiam naturalmente, no longo prazo, no apenas no proprio interesse, mas no interesse de toda a humanidade por vir. A descoberta do monoteismo, endo apenas do monoteismo mas de um Deus tinico ¢ onipotente movido por principios éticos e que buscava metodicamente impé-los aos seres humanos, é uma das grandes viradas da historia, talvez a maior de todas. Pode-se ter uma idéia de quanto foi grande essa virada, considerando-se a cosmovisao egipcia que os israelitas rejeitaram. Os egipcios eram extraordinariamente habeis no uso das maos e tinham um gosto visual impecavel, mas suas idéias intelectuais eram extremamente arcaicas. Achavam dificil ou imposstvel apreender conceitos gerais. Tinham pouco sentido de tempo cumulativo, em oposicdo a tempo repetitivo, e assim nao tinham qualquer compreensdo verdadeira da historia. A idéia de progresso linear era incompreensivel para eles. As distinges conceituais que faziam entre a vida ea motte, entre os mundos humano, animal e vegetal, eram frageis ¢ inseguras. Aquilo em que acreditavam tinha mais em comum com as religides animisticas € ciclicas do Oriente e da Africa do que qualquer coisa que temos o costume de chamar religiao no Ocidente. O céu e a terra eram diferentes em grau, nao em espécie, e 0 céu era governado através de um rei em que o criador era encarnado e de quem o faraé era a manifestacdo terrena. A sociedade tanto no céu como na terra era estavel e estatica o era necessariamente, e qualquer forma de mudan¢a era uma aberracdo e um mal. Era muito caracteristico dessa sociedade estatica 0 fato de que nao possuia qualquer sentido de uma lei impessoal, e, portanto, nao tinha lei codificada, para nao falar em escrita. O fara6 era a fonte e o senhor da lei, e seus juizes — é claro que havia tribunais — aplicavam em seus lugares seus julgamentos arbitrarios. A cosmovisdo nas culturas mesopotamicas do terceiro ¢ segundo milénios a.C. era muito diferente. Era muito mais dinamica, mas também mais confusa. Rejeitavam a idéia de um deus singular como a fonte, em ultima instancia, do poder. Diferentemente dos egipcios, que constantemente acrescentavam novos deuses a seu pantedo se surgiam dificuldades teol6gicas, eles acreditavam que todos 0s principais deuses haviam sido criados. A comunidade desses deuses exercia autoridade final, escolhia o chefe do pantedo (tal como Marduk) e, quando desejavel, tornava humanos imortais. O céu encontrava-se assim numa condigao constante de intranqitilidade, como a sociedade humana. Com efeito, cada um era uma réplica do outro, com a zigurate como elo de ligagdo. Mas o monarca humano ndo era divino — era raro nas sociedades mesopotémicas nessa fase acreditar-se em deuses-reis — nem era absoluto; ele era responsavel ISRAELITAS 43 perante-os deuses.** © monatca nao podia legislar ou distribuir justica arbitra: riamente. Na verdade, o individuo era protegido por uma lei cosmica, que era inalteravel.® Sendo dinamicas e, por conseguinte, proporcionando a idéia do progresso, as idéias que corriam na sociedade da antiga Mesopotamia eram muito preferiveis a mao morta do Egito. Ofereciam esperanca, em contraste com a resignacdo ou fatalismo da normas afro-asiaticas que 0 Egito exemplificava de forma tao impressionante. Enquanto a piramide era o tamulo de um rei-deus morto, o templo zigurate era um elo vivo entre a terra € 0 céu, Por outro lado, essas idéias nao proporcionavam base ética para a vida, e levavam a uma grande incerteza quanto ao que os deuses representavam ou queriam. O prazerea raiva dos deuses era arbitraria e inexplicavel. O homem procurava interminavel e cegamente propicia-los mediante sacrificios. Sob um aspecto importante, essas sociedades mesopotamicas, que se esten- diam para o Ocidente, tornavam-se mais sofisticadas. Estavam desenvolvendo formas de escrita muito mais eficientes do que o hieroglifo egipcio e seus derivados, e elas corretamente encaravam essa invenc4o como uma forma de poder. Elas acreditavam, por conseguinte, que escrever uma lei aumentava sua forcaea tornava numinosa. A partir do fim do terceiro milénio, os sistemas legais, cresceram em densidade e complexidade, e se refletiam nao apenas em massas de documentos legais particulares, mas também em codigos legais escritos, tendo a difusdo da escrita e da lingua acadianas encorajado os governantes a compilar sua leis em sociedades to separadas quanto Elam e Anatélia, entre os horreus ¢ os hititas, em Ugarit e no litoral mediterraneo. ‘A mais antiga verséo do cédigo mosaico, que podemos supor ter sido promulgado por volta de 1250 a.C. foi assim parte de uma tradicao que ja era velha. O primeiro codigo, descoberto entre textos no Museu do Antigo Oriente em Istambul, data de por volta de 2050 a.C., sendo obra de Ur-Namu, “rei de Sumer e de Acad”, a terceira dinastia de Ur. Esse codigo declara, entre outras coisas, que 0 Deus Nanna escolheu UrNamu para governar, e ele se livrou de funcionarios desonestos e estabeleceu pesos e medidas corretas. Abraao deve ter conhecido essa disposigéo. Outro codigo, que talvez também tenha sido do conhecimento de Abrado, data de por volta de 1920 a.C.: duas tabuinhas, que agora se encontram no Museu do Iraque, do antigo reino de Echnuna, escritas em acadiano, relacionam cerca de sessenta regulamentos de propriedades estabelecidas pelo deus Tiskpak, ¢ transmitidas através do rei local. Muito mais abrangentes sao as tabuinhas do comego do século dezenove a.C., que se encontram principalmente na Universidade de Pensilvania e que transmitem 0 cédigo do tei Liptishrar de Idi, escritas (como Ur-Namu) em sumeério; e, mais impressionante do que tudo, 0 cédigo de Hamurabi, encontrado em 1901 em Susa, a leste da Babilonia, escrito em acadiano numa laje de diorito de seis pés 44 HISTORIA DOS JUDEUS de altura, que agora esta no Louvre, e datada de 1728 a 1686 a.C.® Outros, mais tardios, codigos legais incluem um conjunto de tabuinhas de argila meio-assirio, desencavado por arquedlogos alemaes nos anos que antecederam a Primeira Grande Guerra em Qalat-Shergat (a antiga Assur), que provavelmente remontam ao décimo-quinto século a.C., e sao talvez os mais proximos em data do codigo mosaico original.:7 Moisés tinha, portanto, grande quantidade de precedentes, quando coligiu e codificou a lei israelita. Ele fora educado na corte; ele era letrado. Estabelecer alei por escrito, grava-la na pedra era parte do ato de libertacdo de fugir do Egito, onde nao havia lei estatutaria, para a Asia, onde tal lei era entao o costume. Nao obstante, embora o cddigo mosaico fosse, num sentido, parte de uma tradicao do Oriente Proximo, suas divergéncias de todos os outros codigos antigos sao tantas ¢ tao fundamentais que 0 tornam algo de inteiramente novo. Em primeiro lugar, os outros cédigos legais, embora atribuidos a inspiracao de Deus, sao dados e redigidos por reis individuais, tais como Hamurabi ou Ichtar; so, Portanto, revogaveis, mutaveis e essencialmente seculares. Em contraste, na Biblia, somente Deus escreve a lei — através do Pentateuco toda legislacao é dele — enenhum rei israelita sequer tentou, ou Ihe foi permitido formular um codigo de leis. Moisés (e muito mais tarde Ezequiel, transmissor das reformas legais) era um profeta, e nao um rei, e um agente divino, e n4o um soberano legislador. Disso procede que, em seu codigo, nao ha distingdo entre o religioso e o secular — tudo é uma coisa s6 — ou entre lei civil, penal é moral.® Essa indivisibilidade teve importantes conseqiiéncias praticas, Na teoria legal mosaica, todas as infracdes da lei ofendem Deus. Todos os crimes s40 pecados, assim como todos os pecados sao crimes. As ofensas si0 eros absolutos que ultrapassam o poder que tem o homem sozinho de perdoar ou expurgar. Nao ¢ bastante indenizar o mortal que foi vitima; Deus também exige a expiacao, e isso pode implicar punicao drastica. A maior parte dos codigos legais do antigo Oriente Proximo sao orientados para a propriedade, sendo as proprias pessoas formas de propriedade cujo valor pode ser estimado. O codigo mosaico € orientado para Deus. Por exemplo, em outros cdigos, um marido pode perdoar uma esposa adalltera e seu amante. Em contraste, o codigo mosaico insiste em que ambos devem ser executados.® Também, enquanto os outros cédigos incluem o direito realengo de perdoar, mesmo em casos de crime capital, a Biblia nao prevé tal remédio. Com efeito, em casos capitais ela repudia a nocao da ‘lei do homem rico’: um assassino, por rico que seja, ndo pode escapar da execucdo pagando dinheiro, mesmo se a sua vitima é um mero empregado ou escravo e hé muitos outros crimes em que a célera de Deus é tao grande que a compensac¢ao financeira ndo é bastante para paziguar a raiva divina. Quando, no entanto, a inten¢do nao é ferir ou matar ou pecar gravemente, ¢ o crime é a ISRAELITAS 45 conseqiiéncia no intencional de comportamento maldoso, Deus € menos ofendido, e se aplicam as leis da compensacao. O culpado entao ‘pagara o que os juizes determinarem’. Isso se aplicava, estabeleceu 0 codigo mosaico, no caso em que um homem ferisse uma mulher gravida e fosse causa de que ela viesse a abortar, ou quando se seguisse a morte a um acidente culposo, e em todos os casos menores, ‘alho por olho, dente por dente, mao por mao, pé por pe’. Uma passagem muito mal compreendida, que significa simplesmente que se deve pagar estrita compensacdo pela injiiria. Assim, um boi que marrar um homem e ele morrer, sera morto, mas o proprietario no sera punido; mas se o proprietario souber que o boi marra, e ndo o guardou, e um homem morre em conseqiiéncia, o proprietario deve sofrer a pena capital. Essa tiltima disposicao, conhecida como ‘A lei do boi que mara’, atesta a importéncia imensa que 0 cédigo mosaico atribui a vida humana. Ha aqui um paradoxo, como se passa também em todo uso ético da punicao capital. Na teologia mosaica, o homem € feito a imagem de Deus, e assim sua vida nao € apenas valiosa, ela é sagrada. Matar um homem é uma ofensa a Deus tao grave que a punicdo mais dura, a perda de vida, deve seguir-se. O fato horrivel da execucdo sublinha assim a santidade da vida humana. De acordo com a lei mosaica, portanto, muitos homens e mulheres encontraram a morte, quando os cédigos seculares das sociedades circundantes Ihes teriam permitido simples- mente compensar suas vitimas ou as familias de suas vitimas. Mas 0 contrério também € verdade, em conseqiiéncia do mesmo axioma. Enquanto outros codigos previam a penalidade de morte para crimes contra a propriedade, tais como saque durante um incéndio, assalto a uma casa, séria violagao de propriedade a noite, ou roubo de uma mulher, na lei mosaica nenhum crime contra a propriedade € capital. A vida humana é demasiado sagrada quando sé os direitos de propriedade sao violados. Também repudia a punicdo por interposta pessoa: os crimes dos pais ndo devem ser punidos pela execucdo dos filhos ou filhas, ou o crime do marido pela entrega da mulher a prostituicao.” Além disso, nao apenas a vida humana é sagrada, mas a pessoa humana (sendo feita a imagem de Deus) é preciosa. Enquanto, por exemplo, 0 cédigo do periodo assirio médio relaciona uma série feroz de punicées fisicas, incluindo a mutilacdo do rosto, a empalacdo, e 0 acoite, até a morte, o codigo mosaico trata 0 corpo com respeito. A crueldade fisica € reduzida ao minimo. Mesmo a fustigacao era limitada a quarenta golpes, e devia ser executada na presenca do juiz para que os golpes nao ultrapassassem os quarenta, “retiran- do-se teu irmao feiamente lacerado de diante de teus olhos.”? O fato é que o codigo mosaico era muito mais humano do que qualquer outro, porque, orientando-se para Deus, orientava-se automaticamente também para 0 homem. 46 HISTORIA DOS JUDEUS O cerne do cédigo mosaico era o Decdlogo, as declaracées de Deus relatadas por Moisés (Deuteronémio 5,6-18) ¢ intituladas “os dez mandamentos” (Deute- ronémio 4,13). As supostas versdes originais desses mandamentos constam do Exodo 20,2-14. Ha, nos textos, muitos problemas nao resolvidos e obscuridades. Parece provavel que em sua forma original os mandamentos eram simples, concisos, mesmo ¢ so mais tarde foram elaborados. A forma mais antiga, tal como apresentada diretamente por Moisés, foi reconstruida da seguinte maneira, caindo naturalmente em trés grupos, de um a quatro cobrindo as relages entre Deus eo homem, de seis a dez tratando das relagoes entre os homens, e 0 quinto, como uma ponte entre os dois grupos, tratando dos pais e dos filhos. Obtemos assim: “Eu sou Jeova, teu Deus: Nao teras outros deuses, além de mim; nado o faras para ti escultura; nao tomards o nome do Senhor teu Deus em vao; observa o dia do sabado; honra teu pai e tua mae; tu nado mataras; nao cometeras adultério; nao furtaras; nao prestaras falso testemunho; nao cobicaras.”* Algu- mas dessas normas éticas eram comuns a outras civilizagdes antigas do Oriente ha, por exemplo, um documento egipcio conhecido como os ‘Protestos, da Inocéncia’, em que uma alma morta, no juizo final, recita uma lista de ofensas nado cometidas.®5 Mas nao ha nada na Antiguidade remotamente comparavel aos Dez Mandamentos, no que diz respeito a um sumario abrangente do reto comportamento para Deus e 0 homem, oferecido aos coragées de todo um povo, aceito por eles, e gravado neles. © Decalogo foi a base do pacto com Deus, primeiro celebrado por Abraio, renovado por Jacé e agora outra vez renovado, de uma maneira solene e publica por Moisés e todo 0 povo. A pesquisa moderna mostra que 0 pacto mosaico, formulado brevemente em Exodo 19-24 e novamente de maneira mais elaborada no Livro do Deuteronémio, segue o modelo de um antigo tratado do Oriente Proximo, tais como os celebrados pelos hititas. Tem um prolegémeno histérico, estabelecendo o proposito, seguido pela natureza do empreendimento, as teste- munhas divinas, beneficios e maldigoes, 0 texto e 0 deposito das tabuinhas em que estd escrito.% Mas 0 pacto mosaico é singular no fato de ser nao um tratado entre estados, mas uma alianca entre Deus e o povo. Nele, com efeito, a antiga sociedade israelita fundiu seus interesses com os de Deus ¢ O aceitou, em troca de protecdo e prosperidade, como um governante totalitario cujos desejos governa- vam todos os aspectos de suas vidas. Assim, 0 Decalogo é apenas 0 coracao de um sistema elaborado de leis divinas estabelecidas nos livros do Exodo, Deuterondmio e Nameros. Na Antiguidade remota, eruditos judaicos organiza- ram as leis, consistindo em 248 mandamentos positivos e 365 proibicoes.” © material legal mosaico cobre uma imensa variedade de assuntos. Ele todo nao data, de qualquer forma, do tempo de Moisés, para nao falar na forma em que nos chegou. Uma parte dele trata de agricultura estabelecida, por exemplo, ISRAELITAS 47 deve datar do periodo depois da conquista de Canad. Conjetura-se que isso foi simplesmente tomado ao direito cananita, em tltima andlise de origem sumeria, babilonica, assiria e hitita.°® Mas os israelitas ja se estavam tornando um povo muito preocupado com o aspecto legal das coisas, bem capaz de inovacao, ou de transformar as idéias que encontravam em volta deles completamente, a ponto de constituir uma novidade. Pode-se agora descartar avelha teoria de quea massa de material mosaico decorre de tempos posteriores ao exilio. O livro técnico do Levitico, altamente ritualista e que proporciona a base legal para a vida religiosa e civica organizada entre os israelitas, enquadra-se muito bem no que conhece- mos da historia politica dos israelitas nos séculos treze e doze a.C. O mesmo se pode dizer do Deuteronémio, que ¢ uma apresentacao popular para um pablico geral dos escritos sacerdotais no Levitico. © material diz respeito a assuntos como dieta, medicina, ciéncia rudimentar e pratica profissional, e também direito. Uma grande parte dele € original mas 0 todo é coerente com material nao biblico, que trata de topicos semelhantes, que foi composto no Oriente Proximo na Idade de Bronze Tardia, ou ja vinha circulando havia séculos. Mas, embora, de algumas formas, os israelitas do tempo de Moisés fossem tipicos de sua época, certas caracteristicas marcadas emergiam. As leis mosaicas eram muito estritas em assuntos sexuais. Por exemplo, as leis ugariticas, reveladas nas tabuinhas de Ram Shamra, permitiam a fornicacdo, o adultério, a bestialidade eo incesto em certas circunstancias.% Os hititas permitiam algumas formas de bestialidade (embora nao o incesto). Os egipcios encaravam a con- sangiinidade como coisa relativamente sem importancia. Os israelitas, em contraste, proibiram todos as formas irregulares de sexo, e possuiam uma lista de graus proibidos de casamento, incluindo a afinidade e a consangiinidade.! Os israelitas parecem ter colhido algumas leis, em matéria alimentar, dos egipcios, mas havia muitas diferencas. Aos israelitas, como aos egipcios, proi- bia-se comer frutos do mar que ndo tinham espinhas ou escamas. Nao se esperava que os egipcios devotos comessem peixe, de qualquer espécie. Por outro lado, eles podiam comer, ¢ de fato comiam, muitas espécies de aves maritimas proibidas aos israelitas. Mas eles, como os egipcios, podiam comer pombas, pombos, patos ¢ outras aves domésticas, perdizes e codornizes. Parece ter havido alguma espécie de base cientifica grosseira, e nao pura supersti¢do, para a maioria das normas mosaicas. Os animais predatorios e carnivoros eram encarados como arriscados, e proibidos; os animais ‘limpos’ eram, no conjunto, exclusivamente vegetarianos, fissipedes e ruminantes — argali, antilope, cabrito montés, ibex, gamo e gazela. Os porcos eram proibidos porque eram perigosos quando comidos malcozidos, tendo organismos parasiticos. Os israelitas tam- bém nao tocavam em aves de rapina ou abutres. Eles classificavam o camelo 48 HISTORIA DOS JUDEUS como impuro, porque era valioso. O que é mais dificil compreender € por que proibiram lebres e coelhos. As leis israelitas em matéria de higiene seguiam usualmente a pratica egipcia. Ha uma grande proporcao de saber médico no material mosaico, e muito desse também provém do Egito, que possuia uma tradicao médica que remontava, pelo menos, a Imhotep, por volta de 2650 a.C. Quatro dos mais importantes papiros médicos egipcios, mesmo nas cOpias que possuimos, eram mais antigos do que a era mosaica ou lhe eram contemporéneos. O empirismo médico foi muitas vezes incorporado a antigos cédigos legais do segundo milenio a.C., — no codigo de Hamurabi, por exemplo, escrito cerca de 500 anos antes da época de Moisés. Mas a secdo famosa na Biblia que trata de lepra, que estabelece o diagnéstico e os deveres terapéuticos de uma categoria especial de-sacerdotes, é singular. O que é singular, e que j4 possuia uma longa historia em tempos mosaicos, éa énfase israelita na circuncisdo. Essa pratica nao se usava entre cananitas e os filesteus, ou os assirios e babilonios. Os edomitas, os moabitas e os amonitas a usavam, e o mesmo faziam os egipcios. Mas nenhuma dessas sociedades atribuia importancia transcendente ao costume, ¢ tem-se a impressdo de que, em geral, ele estava morrendo no segundo milénio a.C. Isso por si sé atesta a antiguidade do costume israelita, que € primeiro mencionado como praticado por Abraao como parte de seu pacto original. O grande erudito francés Pére de Vaux acreditava que os israelitas primeiro 0 usaram como um rito de iniciagao, antes do casamento.'*! Para aquelas sociedades antigas que o praticavam, esta era a sua funcao, e era efetuado por volta da idade de treze anos. Mas 0 filho de Moisés foi circuncidado ao nascer por sua mae Séfora (Exodo 4,246), e a remogao cerimonial do prepacio no oitavo dia depois do nascimento foi entao consagrada na legislac4o mosaica (Levitico 12,3). Assim os israelitas divorciaram o rito de seu laco com a puberdade masculina e, de acordo com a sua jé marcada tendéncia para tornar historico o costume, tornaram-no um simbolo indelével de um pacto hist6rico e da participacéo como membro do povo eleito.1%? Eles conservaram a tradicdo, que remontava a Abraao, de que se deviam usar antigas pedras agudissimas.’® Reteve-se a lei da circuncisao, muito tempo depois que todas as outras antigas sociedades a haviam abandonado, como um sinal indelével da unidade entre 0 povo e suas crengas. Nao era apenas, como diria Tacito com sarcasmo, para tornar os judeus diferentes. Mas ¢ claro que também o fazia, e era outro elemento acrescentado ao padrao crescente do anti-semitismo." O sabado era a outra grande e antiga instituicdo que diferenciava os israelitas de outros povos, e também era a semente de futura impopularidade. A idéia parece ter decorrido da astronomia da Babilénia, mas a sua razdo de ser nos Livros do Exodo e do Deuteronémio é variamente atribuida 4 comemoracao do repouso de Deus depois da criagao, a libertagdo de Israel da escravidao egipcia ISRAELITAS 49 a necessidade humanitaria de proporcionar aos trabalhadores, especialmente escravos e animais de carga, algum descanso. Mas era um dia santo assim como um dia de repouso, crescentemente associado no espirito do povo com a crenca na nacdo eleita por Deus, o que fez com que, em tltima instancia, Ezequiel apresentasse o sébado como destinado a diferenciar os judeus de outros: “Além disso, prescrevi-lhes os meus sébados, para que fossem um sinal entre mim e eles e para que soubessem que eu sou o Senhor que os santifico.”" Assim, também isso tornou-se um elemento na crenca que alimentavam outros povos de que os judeus olhavam de cima para baixo o resto da humanidade. Os israelitas ja estavam no processo de se tornarem muito singulares e, sob certos aspectos criticos, estavam espiritualmente adiante de sua época. Mas ainda eram um povo primitivo, pelos padrées das sociedades adiantadas, em 1250 a.C. Mesmo em sua espiritualidade conservavam muitos elementos retrogrados, e continuaram a fazé-lo por séculos. Com efeito, sendo a um tempo espiritualmente historicos e legalistas, eles eram inclinados a formalizar velhas supersticdes e a clas se apegarem. Havia, por exemplo, muitos tabus relativos ao sexo, ao sangue € a0 combate.! Era ubiqua e institucionalizada a crenca em magia. Moisés nao apenas falou com Deus, cara a cara, e presidiu estupendos milagres, mas também praticou truques méagicos. Varas e bastdes que viravam serpentes, um lugar comum da magica no Oriente Proximo, também faziam parte da religido israelita, ¢ foram santificadas a partir da época de Moisés e Aarao para diante. Pelo menos dos profetas mais antigos esperava-se que praticassem magica, e muitas vezes revestiram 0 aparato magico. Lemos a respeito de vestes ou mantas carismaticas, usadas por Elias e herdadas por Eliseu. Zedequias fez para si um par de chifres de ferro,!” Sansdo ilustrou a crenca de que o cabelo era uma sede de poder, e isso refletia-se na tonsura ritual.2° Os profetas praticavam estados de éxtase e podem ter recorrido a incensos e anarcéticos para produzir efeitos impressionantes. ® S6 num livro da Biblia est4o incluidos um truque com ima, um truque com 4gua, causar doenca, curéla, um. antidoto para veneno, uma ressurreicdo, fazer surgir o raio, expandir uma jarra de 6leo e alimentar uma multidao.!"° Nem por isso deixaram os israelitas de ser o primeiro povo a fazer com que sua razao examinasse sistematicamente questdes religiosas. A partir dos dias de Moisés, e através da historia deles, 0 racionalismo foi um elemento central na crenga judaica. Num sentido, é 0 elemento central, pois 0 monoteismo 6, ele proprio, uma racionalizacdo. Se existe um poder sobrenatural, nao terreno, como pode ser, por assim dizer, irradiado de florestas e fontes, de rios e rochas? Se os movimentos do sol, da lua e das estrelas podem ser preditos e medidos, e obedecem assim a leis regulares, como podem ser as fontes de uma autoridade nao natural, j4 que também eles sdo claramente parte da natureza? Entao, de onde procede o poder? Exatamente como o homem aprende a dominar a 50 HISTORIA DOS JUDEUS natureza, animal ¢ inanimada, nao deve o poder divino, a fortiori, ser vivo e pessoal? E se Deus vive, como pode seu poder ser arbitraria ¢ desigualmente dividido num pantedo de divindades? A idéia de um deus limitado é uma contradigao. Uma vez aplicado a divindade o processo da razao, a idéia de um 6 Deus, onipotente ¢ pessoal, 9 qual, sendo infinitamente superior a0 homem em poder, e portanto em virtude, ¢ coerentemente guiado em suas acdes por principios éticos sistematicos, segue-se como coisa que vai de si. Olhando para rds, da perspectiva do século vinte, vemos 0 judaismo como a mais conservadora das religiées. Mas em suas origens era a mais revolucionaria. O monoteismo ético comecou o processo mediante o qual a representacao que a Antiguidade fazia do mundo foi destruida. ‘Aceito 0 conceito de um s6 Deus onipotente, os israelitas corretamente deduziram que ele no podia ser, como eram os deuses pagaos, parte do mundo, ou mesmo o todo; ele ndo era uma das forcas que sustentavam o universo, ou mesmo todas elas.. Suas dimensdes eram infinitamente maiores: 0 universo inteiro nao passava de sua criac4o. Os israelitas assim atribuiam um poder e uma distancia muito maiores a Deus do que qualquer outra religido da Antigui- dade. Deus é a causa de todas as coisas, dos terremotos aos desastres politicos e militares. Nao ha outra fonte de poder, sendo os demonios ativados por Deus; a divindade é indivisivel, tinica, singular. E, como Deus nao é apenas maior do que o mundo, mas infinitamente maior, a idéia de representé-lo ¢ absurda."! E claro, portanto, que tentar fazer dele uma imagem ¢ coisa insultante. A proibicao israelita de imagens, embora ndo seja a parte mais antiga de sua religido, € muito velha e emergiu logo depois que se estabeleceu 0 culto do monoteismo. Tornou- se o simbolo ardente dos fundamentalistas puritanos da religido, 0 aspecto que verificaram ser o mais dificil de impor na nac4o como um todo, diferenca mais Obvia, mais visivel entre a religiao israelita e todas as outras, e o dogma que mais feria o resto do mundo, ja que significava que israclitas estritos, ¢ mais tarde judeus, nao podiam reverenciar os deuses das outras nacées. Estava estreitamen- te ligada nao apenas ao exclusivismo israelita mas A agressdo, pois lhes era dito nao apenas que repudiassem imagens, mas que as destruissem: “Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas colunas e cortareis seus postes- Idolos (porque nao adoraras outro deus: pois o nome do Senhor é zelo; sim, Deus zeloso € ele); para que no facas alianga com os moradores da terra: ndo suceda que, em se prostituindo eles comos deuses, e thes sacrificando, alguém te convide, ¢ comas dos seus sacrificios; ¢ tome mulheres das suas filhas para os teus filhos, ¢ suas filhas, prostituindo-se com os seus deuses, facam que também os teus filhos se prostituam com seus deuses.” Essa passagem do Exodo reflete um terrivel medo e fanatismo.!? ISRAELITAS 51 ‘Alem disso, os israclitas erraram ao supor — se supuseram — que o uso de imagens era uma forma de infantilismo religioso. A maior parte das religides da Antiguidade, no Oriente Proximo, nao encarava idolos de madeira ou pedra ou bronze como deuses neles proprios. Elas encaravam a imagem como um meio pratico, mediante o qual, 0 devoto simples, comum pode visualizar a divindade e lograr comunhao espiritual com ela. Isso sempre foi a justificacdo dos catolicos romanos para o uso de imagens, n4o apenas de Deus mas de santos. Ao se afastarem do paganismo, os israelitas tinham claramente raz4o em insistir numa maior intelectualizacdo da divindade, um passo em dire¢ao ao abstrato. Era parte de sua revolucdo religiosa. Mas a intelectualizacao € dificil, e os préprios israelitas nao desprezaram ajudas visuais, embora imagens verbais. A Biblia é fertil em antropomorfismos da divindade. Ha uma outra contradic4o. Como pode o homem ser feito a imagem de Deus, se a imagem de Deus nao ¢ imaginavel, e, portanto, proibida? Contudo, a idéia do homem como concebido a semelhanga de Deus é tao central para a religiao como a proibicao de idolos. De uma maneira, é a fundacdo de sua moralidade, sendo um principio enormemente abrangente."? Como o homem € feito a semelhanca de Deus, ele pertence a Deus; 0 conceito ajuda o homem a compreen- der que ele nao possui propriedade real e permanente mesmo sobre si mesmo, para ndo falar em qualquer outra coisa que ele recebe da generosidade de Deus. Seu corpo esta arrendado; ele ¢ responsavel perante Deus pelo que ele faz a ele e com ele. Mas o principio também significa que o corpo — homem — deve ser tratado com respeito e mesmo dignidade. O homem tem direitos inalienaveis. Com efeito, o cOdigo mosaico € um cédigo nao apenas de obrigacdes e proibi- gGes, mas também, de forma embridnica, de direitos. E mais do que isso: € uma declaracao primitiva de igualdade. Nao apenas 0 homem, como uma categoria, € criado a semelhanca de Deus; todos os homens individuais sao também criados a semelhanca de Deus. Nesse sentido, eles sao todos iguais. Nem € essa igualdade ideal; ela é real num sentido de toda importancia. Todos os israelitas sao iguais diante de Deus, e, portanto, iguais diante de sua Lei. A justica ¢ para todos, independentemente de outras desigual- dades que possam existir. Todas as espécies de privilégios sao implicitas e explicitas ne cédigo mosaico, mas, em coisas essenciais, ele nao estabelece distincdo entre variedades de ficis. Todos, além disso, partilharam a aceitacdo do pacto; foi uma decisao popular, mesmo democratica. Assim, os israelitas estavam criando uma nova espécie de sociedade. Josefo mais tarde usou 0 termo ‘teocracia’. Isso ele definiu como “colocar toda soberania nas méos de Deus.”"!* Os sabios 0 chamariam para “assumir 0 jugo do Reino do Céu.""5 Os israelitas podiam ter magistrados de uma espécie ou de outra, mas a autoridade destes era indireta, j4 que Deus fazia a lei e intervinha constante- 52 HISTORIA DOS JUDEUS mente para garantir que ela fosse cumprida. O fato de que Deus governava significava, na pratica, que a sua lei governava. E ja que todos eram igualmente sujeitos 4 lei, o sistema foi o primeiro a incorporar os duplos méritos do reino da lei e da igualdade diante da lei. Filo chamou isso de “democracia”, que ele representou como “a mais fiel a lei € melhor das constituig6es”. Mas por democracia ele nao entendia o governo por todo o povo; ele a definiu como uma forma de governo que “honra a igualdade e tem a lei ¢ a justica como seus governantes”."!6 Ele poderia ter com mais exatiddo chamado o sistema judeu de “teocracia democratica”, porque era isso que ele era em esséncia."7 Na época de Moisés, portanto, os israclitas estavam fortalecendo e confir- mando uma tendéncia que ja notamos de serem elementos subversivos da ordem existent. Eram um povo servil, que se levantou contra o seu senhor egipcio, a mais antiga ¢ autocratica monarquia no mundo. Fugiram para o deserto, € receberam suas leis numa assembléia popular de massas, nao em alguma cidade estabelecida, fazia muito tempo, mas na encosta nua da montanha, de um lider selvagem que nem sequer se apelidava um rei. Nao sabemos onde era 0 Monte Sinai de Moisés. Pode ter sido um vulcdo ainda em atividade. O atual mosteiro de Sinai sempre foi um sitio cristéo; remonta certamente ao quarto século A.D., e talvez a 200 anos antes. Mas mesmo essa data era 1.450 anos depois que Moisés desceu da montanha. E provavel que, depois que os israelitas se estabeleceram em Canaa, o Sinai mosaico permaneceu um sitio de peregrinacdo por geracées. Mas a tradicdo acabou por se interromper e o sitio saiu da memoria, e € extremamente improvavel que os primeiros cristéos foram para o lugar certo. Nao obstante, esse lugar dramatico, com a sua beleza feroz e terrivel, é poetica- mente apropriado. E o cendrio correto para o ato formativo de um povo revolucionario que nao reconhecia as cidades, o poder e a riqueza da época, € que era capaz de perceber que existe uma ordem moral superior a ordem do mundo. Mais tarde, numa passagem dramatica, o Deutero-lsaias exprimiria a exaltacdo judaica de impotencia na pessoa do Servo Sofredor do Senhor, o qual, no fim, é vitorioso; e ainda mais tarde, um sectério judeu, Sdo Paulo, perguntaria: “Nao tornou Deus tola a sabedoria do mundo?” e, para citar as Escrituras: “Pois esta escrito: destruirei a sabedoria dos sabios e aniquilarei a inteligencia dos entendidos.”!!8 Mas a fonte dessa tradicdo abriu-se no Sinai.'!° Com a sua longa experiéncia de serem estrangeiros ¢ peregrinos, nada tinham de novo para os israelitas seu Exodo do Egito e suas andancas no deserto e regiéo montanhosa do Sinai. Mas esse episdio, que durou talvez meio século, tendeu a confirmar-lhes a singularidade, o antinomianismo, o cardter a parte. E curioso, como assinalou o historiador judeu Salon Baron, que o Deus que eles adoravam, a despeito de sua epifania no Monte Sinai, permanecesse portatil, como nos dias de Abrado: ele morava na Arca, uma espécie de grande e elaborado

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