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CONTRAPONTO \ Fisica at6mica e conhecimento humano NIELS BOHR Fisica at6mica e conhecimento humano ENSAIOS 1932-1957 Tradugao Vera Ribeiro Revisdo técnica Ildeu de Castro Moreira Instituto de Fisica da UFRJ 3° reimpressao CONTRAPONTO Prefacio Esta coletanea de artigos, escritos em ocasides diversas nos ulti- mos 25 anos, constitui uma seqiiéncia a ensaios anteriores, publi- cados pela Cambridge University Press em 1934, num volume in- titulado Atomic Theory and the Description of Nature. O tema dos textos € a lic&o epistemolégica que nos foi dada pelo moderno desenvolvimento da fisica atémica e sua importéncia para a and- lise e a sintese em muitos campos do conhecimento humano. Os artigos da edigdo anterior foram redigidos numa época em que 0 estabelecimento dos métodos matematicos da mecanica quantica havia criado uma base sélida para a abordagem sistematica dos fendmenos atémicos, e em que as condigées para uma descrigdo inambigua das experiéncias, nesse contexto, caracterizavam-se pela nogdo de complementaridade. Nos artigos aqui coligidos, essa abordagem é mais desenvolvida em sua formulagao légica e adquire uma aplicagao mais ampla. Naturalmente, foi inevitavel uma boa dose de repetigdo, mas espera-se que ela possa servir pa- ra um esclarecimento gradativo da argumentagao, especialmente no que diz respeito ao uso de uma terminologia mais concisa. Na elaboracdo dos pontos de vista em questao, as discussdes com colaboradores antigos ¢€ atuais do Instituto de Fisica Teérica da Universidade de Copenhague foram-me de extremo valor. Pela assisténcia no preparo dos artigos deste volume, sou especialmen- te grato a Oskar Klein e Léon Rosenfeld, atualmente nas universi- dades de Estocolmo e Manchester, bem como a Stefan Rozental e Aage Petersen, do Instituto de Copenhague. Gostaria também de estender meus agradecimentos a sra. $. Hellmann por sua ajuda muito eficaz na preparacao dos artigos e desta edigao. NIELS BOHR Copenhague Agosto de 1957 Sumario Introdugao, 1 Luz e vida, 5 Discurso na reunido de abertura do Congresso Internacional sobre Terapia através da Luz, Copenhague, agosto de 1932. Publicado em Nature, 131, 421 (1933). Biologia ¢ fisica atémica, 17 Discurso no Congresso de Fisica ¢ Biologia em meméria de Luigi Galvani, Bolonha, outubro de 1937. Filosofia natural e culturas humanas, 29 Discurso no Congresso Internacional de Ciéncias Antropoldgicas e Etnolé- gicas, Copenhague, proferido numa reunigo no Castelo de Kronborg, Elsi- nore, agosto de 1938, Publicado em Nature, 143, 268 (1939). O debate com Einstein sobre problemas epistemolégicos na fisica atomica, 41 Contribuigéo para Albert Einstein: Philosopher-Scientist, Evanston, Illinois, The Library of Living Philosophers, Inc., v. 7, 1949, p. 199. A unidade do conhecimento, 85 Discurso proferido numa conferéncia em outubro de 1954, no contexto do Bicentendrio da Universidade de Columbia, Nova York. Publicado em The Unity of Knowledge, Nova York, Doubleday & Co., 1955, p. 47. Os atomos e o conhecimento humano, 105 Discurso proferido numa reuniao da Real Academia Dinamarquesa de Cién- cias, Copenhague, outubro de 1955. A ciéncia fisica e 0 problema da vida, 119 Artigo concluido em 1957 ¢ baseado numa Palestra Steno na Sociedade de Medicina da Dinamarca, Copenhague, fevereiro de 1949. Introducao A importancia da ciéncia fisica para o desenvolvimento do pensa- mento filos6fico em geral baseia-se nao apenas em suas contribui- ges para o conhecimento, sempre crescente, da natureza de que nos mesmos fazemos parte, mas também nas oportunidades que cla tem oferecido, vez apés outra, para o exame e aperfeigoamento dos instrumentos conceituais. Em nosso século, 0 estudo da cons- titui¢do atémica da matéria revelou que a abrangéncia das idéias da fisica classica apresentava uma limitacdo insuspeitada ¢ lancou nova luz sobre as demandas de explicacao cientifica incorporadas na filosofia tradicional. Portanto, a revisdo dos fundamentos para a aplicacdo inambigua de nossos conceitos elementares, necessaria A compreensao dos fenémenos atémicos, tem um alcance que ul- trapassa em muito o campo particular da ciéncia fisica. O ponto principal da ligéo que nos foi dada pelo desenvolwi- mento da fisica atémica é, como se sabe, 0 reconhecimento de uma caracteristica de globalidade* nos processos atémicos, reve- lada pela descoberta do quantum de ac4o. Os artigos que se se- * Ao interagir, dois sistemas da mecdnica quintica sio descritos por uma fangao de onda global, que, em geral, nao pode ser expressa como uma combinagao das fungoes de onda de cada sistema. Portanto, os dois siste~ mas terdo suas varidveis fisicas correlacionadas, mesmo quando distancia dos um do outro. Por isso diz-se que os fendmenos quanticos apresentam, 2 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO. guem expdem os aspectos essenciais da situacao na fisica quantica e, a0 mesmo tempo, enfatizam os pontos de semelhanga que ela exibe com a situagdo de outros campos do conhecimento, fora do Ambito da concepg’o mecanica da natureza. Nao lidamos aqui com analogias mais ou menos vagas, porém com uma investiga- cdo sobre as condigdes do uso apropriado de nossos meios de ex- pressdo conceituais. Tais consideraces almejam nao apenas nos familiarizar com a nova situac4o da ciéncia fisica, mas, em virtu- de do cardter comparativamente simples dos problemas atémicos, podem ser titeis para esclarecer as condigdes de uma descrigdo objetiva em campos mais amplos. Embora os sete ensaios aqui compilados estejam, pois, intima- mente interligados, eles se incluem em trés grupos distintos, ori- gindrios dos anos de 1932-1938, 1949 e 1954-1957, respectiva- mente. Os trés primeiros artigos, diretamente relacionados com os da edig&o anterior, discutem problemas bioldgicos e antropo- logicos referentes as caracteristicas de globalidade apresentados pelos organismos vivos e pelas culturas humanas. Evidentemente, nao ha nenhuma tentativa de oferecer uma abordagem exaustiva desses temas, mas apenas de indicar como os problemas se apre- sentam contra o pano de fundo da li¢do geral da fisica atémica. O quarto artigo versa sobre a discussao, entre os fisicos, dos problemas epistemoldgicos levantados pela fisica quantica. O ca- rater desse tema tornou inevitavel uma certa referéncia aos ins- trumentos matematicos, mas a compreensao dos argumentos nao requer nenhum conhecimento especializado. O debate esclareceu novos aspectos do problema observacional, relacionados com o fato de que a interacdo dos objetos atémicos e dos instrumentos de medida é parte integrante dos fendmenos quanticos. Portanto, uma “caracteristica de globalidade” [wholeness], nao podendo ser reduzi- dos & soma de suas partes. Ao longo dos ensaios reunidos neste volume, 0 conceito sera usado de forma reiterada, tornando-se mais claro o seu signi- ficado. (N. do R.) INTRODUGAO 3 os dados obtidos através de diferentes arranjos experimentais nao podem ser compreendidos nos moldes costumeiros, ¢ a necessida- de de levar em conta as condicées em que a experiéncia é obtida impe 0 modo de descrig&o complementar. O tiltimo grupo de artigos esta intimamente relacionado com 0 primeiro, mas espera-se que a terminologia aperfeicoada, utiliza- da para expor a situacio da fisica quantica, tenha tornado mais facilmente acessivel a argumentacao geral. Em sua aplicagdo a problemas de alcance mais amplo, enfatizam-se especialmente os pressupostos para um uso inambiguo dos conceitos no relato das experiéncias. A esséncia da argumentagao é que, para uma descri- cdo objetiva e uma compreensao harmoniosa, é necessario, em quase todos os campos do conhecimento, prestar atengao 4s cir- cunstancias em que os dados sao obtidos. Luz e vida 1932 Como um fisico cujos estudos limitam-se as propriedades dos cor- pos inanimados, no foi sem hesitag&o que aceitei o gentil convite de me dirigir a esta assembléia de cientistas, reunida para pro- mover nossos conhecimentos sobre os efeitos benéficos da luz na cura das doencas. Incapaz que sou de contribuir para esse belo ramo da ciéncia, tio importante para o bem-estar da humanida- de, eu poderia, quando muito, comentar sobre os fendmenos pu- ramente inorganicos da luz, que tém exercido especial atragao so- bre os fisicos de todas as eras, até porque a luz é 0 nosso principal instrumento de observagio. Considerei, no entanto, que talvez fosse interessante, em tal comentario nesta oportunidade, entrar no problema de até que ponto os resultados alcangados no ambi- to mais restrito da fisica podem influenciar nossas opinides sobre a posic&o que os organismos vivos ocupam no edificio geral da ciéncia natural. A despeito do carater sutil dos enigmas da vida, esse problema tem-se apresentado em todas as etapas da ciéncia. A propria esséncia da explicagio cientifica consiste na decompo- sido de fenémenos complexos em fenémenos mais simples. No momento, essa € a limitagao essencial de que padece a descricdo mecanica dos fenédmenos naturais revelados pelo recente desen- volvimento da teoria atémica, que trouxe um noyo interesse pa- ra esse antigo problema. Esse desenvolvimento originou-se exata- mente do estudo mais rigoroso da interagao da luz e dos corpos 6 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO materiais, cujas caracteristicas frustram certas exigéncias até ho- je consideradas indispensdveis numa explicacao fisica. Como me empenharei em mostrar, os esforgos dos fisicos para dominar essa situagao assemelham-se, de certa maneira, atitude perante os aspectos da vida que sempre foi adotada, mais ou menos intuiti- vamente, pelos bidlogos. Contudo, quero frisar desde logo que somente nesse aspecto formal a luz, que talvez seja 0 menos com- plexo de todos os fenémenos fisicos, exibe uma analogia com a vida. Esta tltima mostra uma diversidade que ultrapassa a capaci- dade de compreensao da anilise cientifica. Do ponto de vista fisico, a luz pode ser definida como uma transmissdo de energia entre corpos materiais a distancia. Como se sabe, esses efeitos encontram uma explicagao simples na teoria eletromagnética, que pode ser encarada como uma extenso ra- cional da mecAnica clAssica, extensdo apropriada para suavizar 0 contraste entre a agdo 4 disténcia e a agdo com contato direto. Nessa teoria, a luz é descrita como oscilagGes elétricas e magné- ticas acopladas, que s6 diferem das habituais ondas eletromag- néticas da transmissao de radio pela maior freqiiéncia de vibracdo 0 menor comprimento de onda. Na verdade, a propagagao pra- ticamente retilfnea da luz, na qual se baseia a localizagao dos cor- pos pela visao direta ou através de instrumentos 6pticos adequa- dos, depende inteiramente da pequenez do comprimento de onda, comparada as dimensdes dos corpos em questo e dos instrumen- tos. Ao mesmo tempo, o carater ondulatério da propagagdo da luz constitui nao apenas a base de nossa descric¢4o dos fendmenos da cor — que revelaram, na espectroscopia, informagdes muito importantes sobre a constituigdo dos corpos materiais —, mas é também essencial para a andlise refinada dos fendmenos dpticos. Como um exemplo tipico, basta mencionar as figuras de inter- feréncia que aparecem quando a luz, proveniente de uma fonte, propaga-se até um anteparo através de dois caminhos diferentes. Ai constatamos que os efeitos que seriam produzidos pelos feixes luminosos separados sao reforcados nos pontos do anteparo em LUZ E VIDA 7 que as fases das duas ondas coincidem, isto é, onde as oscilagées elétricas ¢ magnéticas dos dois feixes ttm a mesma diregdo, ao passo que esses efeitos so enfraquecidos, e podem até desapare- cer, nos pontos em que as oscilagdes tém diregdes opostas e onde se diz que as ondas estao fora de fase, uma em relagao a outra. Tais figuras de interferéncia fornecem uma prova tao rigorosa da imagem ondulatéria da propagacao da luz que essa imagem nao pode ser considerada uma hipétese, no sentido usual do termo, devendo, antes, ser encarada como a descric&o adequada dos fe- némenos observados. No entanto, como todos vocés sabem, o problema da natureza da luz esteve sujeito a uma discussao renovada nos ultimos anos, em virtude da descoberta, no mecanismo da transmissao de ener- gia, de um aspecto essencial de atomicidade que é incompreensi- vel do ponto de vista da teoria eletromagnética. De fato, qual- quer transferéncia de energia pela luz pode remontar a processos individuais, em cada um dos quais é trocado um chamado quan- tum de luz, cuja energia é igual ao produto da freqiiéncia das oscilacdes eletromagnéticas pelo quantum universal de acdo, ou constante de Planck. O evidente contraste entre essa atomicidade do efeito da luz e a transferéncia continua de energia na teoria eletromagnética nos propde um dilema anteriormente desconhe- cido na fisica. A despeito de sua obvia insuficiéncia, nao ha como substituir a imagem ondulatéria da propagacao da luz por outra imagem que se apéie em idéias mecanicas comuns. Em especial, convém enfatizar que os quanta de luz nao podem ser considera- dos como particulas a que se possa atribuir uma trajetéria bem definida, no sentido da mecdnica usual. A figura de interferéncia desaparece se, para nos certificar de que a energia da luz se pro- paga por apenas um dos dois caminhos entre a fonte e 0 ante- paro, interrompermos um dos feixes com um corpo nao trans- parente; da mesma forma, em qualquer fenémeno para o qual a constituigao ondulatéria da luz seja essencial, é impossivel preci- sar a trajet6ria dos quanta individuais de luz sem perturbar es- 8 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO. sencialmente 0 fenémeno em proceso de investigacao. Na verda- de, nossa imagem da propagacao espacialmente continua da luz e a atomicidade dos efeitos luminosos s4o aspectos complementa- res, no sentido de descreverem caracterfsticas igualmente impor- tantes dos fendmenos luminosos. Elas nunca podem ser coloca- das em contradicao direta umas com as outras, j4 que sua andlise mais minuciosa, em termos mecdnicos, requer arranjos experi- mentais mutuamente excludentes. Essa mesma situacdo obriga- nos a renunciar a uma explicagdo causal completa dos fendémenos da luz ea nos contentar com leis probabilisticas, baseados no fa- to de que a descrig4o eletromagnética da transferéncia de energia continua valida no sentido estatistico. Isso constitui uma aplica- ¢4o tipica do chamado principio da correspondéncia, que expres- sa o esforco de utilizar ao maximo os conceitos das teorias classi- cas da mec4nica e da eletrodindmica, apesar do contraste entre essas teorias e 0 quantum de acao. Essa situagdo talvez parega muito incOmoda. Mas, como tan- tas vezes acontece na ciéncia quando novas descobertas levam ao reconhecimento de uma limitag4o essencial em conceitos até en- to considerados indispensaveis, somos recompensados por obter uma visaéo mais ampla e uma capacidade maior para estabelecer correlag6es entre fendmenos que, antes disso, talvez parecessem até contraditérios. Com efeito, a limitagdo da mecdnica classica, simbolizada pelo quantum de agao, forneceu uma chave para nos- so entendimento da estabilidade intrinseca dos 4tomos, na qual se baseia essencialmente a descrigdo mecnica dos fendmenos natu- rais. Evidentemente, sempre foi uma caracteristica fundamental da teoria atémica que a indivisibilidade dos atomos nao pode ser compreendida em termos mecanicos, e essa situagdo permaneceu praticamente inalterada, mesmo depois que a indivisibilidade dos Atomos foi substituida pela das particulas elétricas elementares, os elétrons e os protons de que se compdem os Atomos e molécu- las. O ponto a que me refiro nao é 0 problema da estabilidade intrinseca dessas particulas elementares, mas o das estruturas at6- LUZ E VIDA 9 micas formadas por elas. Se atacarmos esse problema com o pon- to de vista da mecAnica ou da teoria eletromagnética, nao encon- traremos base suficiente para explicar as propriedades especificas dos elementos, nem tampouco a existéncia de corpos rigidos, na qual se apdiam, em tiltima instancia, todas as mensuragdes usadas para ordenar os fenémenos no espago e no tempo. Essas dificul- dades agora s&o superadas pelo reconhecimento de que qualquer mudanga bem definida de um dtomo é um processo individual, que consiste numa transigéo completa do Atomo, a partir de um de seus chamados estados estaciondrios para outro. Além disso, desde que exatamente um quantum de luz é trocado em um pro- cesso de transigao pelo qual luz é emitida ou absorvida por um 4tomo, somos capazes, por meio de observacées espectroscépi- cas, de medir diretamente a energia de cada um desses estados estacionarios. A informagao daf deduzida também foi corrobora- da, de modo muito instrutivo, pelo estudo das trocas de energia que ocorrem nas colisdes atémicas ¢ nas reaces quimicas. Nos tiltimos anos, houve um notavel desenvolvimento da fisica atémica segundo as linhas do principio da correspondéncia. Isso nos proporcionou métodos adequados para calcular a energia dos estados estaciondrios dos atomos e as probabilidades dos proces- sos de transig¢éo, tornando nossa descrigo das propriedades at6- micas tio compreensivel quanto a descrigao ordenada da expe- riéncia astrondmica pela mecanica newtoniana. Apesar da maior complexidade dos problemas gerais da fisica atomica, a ligo que nos foi ensinada pela anilise dos efeitos luminosos mais simples foi de suma importancia para esse desenvolvimento. Assim, 0 uso inambiguo do conceito de estados estacionarios mantém com a andlise mecanica dos movimentos intra-atémicos uma relacio de complementaridade semelhante a dos quanta de luz com a teoria eletromagnética da radiacao. Na verdade, qualquer tentativa de investigar 0 curso detalhado de um proceso de transigao implica- ria uma troca de energia incontrolavel entre o 4tomo e os instru- mentos de medida, que perturbaria por completo o préprio equi- 10 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO Iibrio energético que pretendéssemos investigar. A descrigéo me- cAnica do experimento, em termos causais, s6 pode ser consegui- da nos casos em que a acao envolvida é grande em comparagao com 0 quantum, e em que, por conseguinte, é possivel uma subdi- visio do fendmeno. Nao sendo satisfeita essa condigao, a agao dos instrumentos de medida sobre 0 objeto investigado nao pode ser desconsiderada, e acarreta uma exclusao miitua dos varios ti- pos de informacao necessarios a uma completa descrigdo mecani- ca do tipo usual. Essa aparente incompletude da andlise mecanica dos fenémenos atémicos provém, em tiltima instancia, de desco- nhecermos a rea¢ao, inerente a qualquer mensuragao, do objeto aos instrumentos de medida. Assim como 0 conceito geral da re- latividade expressa a dependéncia essencial de qualquer fendme- no em relagdo ao sistema de referéncia usado para sua descricéo no espaco € no tempo, a nogao de complementaridade serve para simbolizar a limitagdo fundamental, encontrada na fisica atémi- ca, da existéncia objetiva de fendmenos independentemente dos meios de sua observagao. Essa revisio dos fundamentos da mecAnica, que se estende & propria idéia de explicacao fisica, é nao apenas essencial para uma apreciacao plena da situagao na teoria atomica, como cria tam- bém um novo cenério para a discussdo dos problemas da vida em sua relagdo com a fisica. Isso nao significa, de modo algum, que encontremos nos fendmenos atémicos caracteristicas que exibam uma semelhanga mais estreita com as propriedades dos organis- mos vivos do que os efeitos fisicos corriqueiros. A primeira vista, ocardter essencialmente estatistico da mecAnica atémica pareceria até mesmo entrar em conflito com a organizacao esplendidamente refinada dos seres vivos. Devemos ter em mente, contudo, que jus- tamente esse modo complementar de descrigéo dé margem a regu- laridades, nos processos atémicos, que s4o estranhas 4 mecanica, mas que sao tao essenciais para nossa explicagio do comporta- mento dos organismos vivos quanto para a explicagdo das pro- priedades especificas da matéria inorgdnica. Assim, na assimila- LUZ E VIDA Ir ¢40 de carbono pelas plantas, da qual também depende tio gran- demente a nutrig&o dos animais, lidamos com um fendmeno para cujo entendimento a individualidade dos processos fotoquimicos éclaramente essencial. Da mesma forma, a estabilidade nao meca- nica das estruturas atémicas é notavelmente exibida nas proprie- dades caracterfsticas de combinagdes quimicas tio imensamente complexas quanto a clorofila ou a hemoglobina, que desempe- nham um papel fundamental no mecanismo de assimilagao das plantas € na respiracao animal. Mesmo assim, as analogias prove- nientes da experiéncia quimica comum, tal como a antiga compa- racao da vida com o fogo, obviamente nao produzem uma expli- cago mais satisfatéria dos organismos vivos do que a semelhanga entre eles e certos aparelhos puramente mecanicos, como os relé- gios. A rigor, as caracteristicas essenciais dos seres vivos devem ser buscadas numa organizacao peculiar, na qual caracteristicas que podem ser analisadas pela mecdnica comum entrelacam-se com caracteristicas tipicamente atomfsticas, num grau que nao encon- tra paralelo na matéria inanimada. Uma ilustracdo instrutiva do grau a que essa organizagao se desenvolve é exibida pela construgdo e fungio do olho, para cuja investigacao a simplicidade dos fendmenos luminosos foi também de extrema utilidade. Nao preciso entrar em detalhes aqui, mas quero apenas lembrar-lhes como a oftalmologia nos revelou as propriedades ideais do olho humano como instrumento éptico. De fato, o limite imposto a formacao da imagem pelos inevitaveis efeitos de interferéncia praticamente coincide com o tamanho das divis6es da retina, que tém uma ligagao nervosa separada com o cérebro. Além disso, como a absor¢ao de um tinico quantum de luz por cada uma dessas divisdes retinianas é suficiente para uma impressio visual, pode-se dizer que a sensibilidade do olho atin- git o limite estipulado pelo carter atémico dos processos lumi- nosos. A eficiéncia do olho nesses dois aspectos é, na verdade, idéntica 4 obtida por um bom telescépio ou microscépio ligado a um amplificador adequado, de modo a tornar observaveis os pro- 12 F{SICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO cessos individuais. E verdade que, com esses instrumentos, é pos- sivel aumentar nossos poderes de observacdo, mas, em virtude dos limites impostos pelas propriedades fundamentais dos fend- menos luminosos, nenhum instrumento imaginavel seria mais efi- ciente para esse fim do que 0 olho. Ora, esse refinamento ideal do olho, reconhecido pelo recente desenvolvimento da fisica, sugere que também outros 6rgaos, quer sirvam para a recepcao de in- formagdes do meio ambiente, quer para a reagdo as impresses sensoriais, possam exibir uma semelhante adaptagao a sua finali- dade, e que, também nesses casos, 0 aspecto de individualidade simbolizado pelo quantum de aco seja de importancia decisiva no contexto de algum mecanismo amplificador. O fato de ter sido possivel tracar esse limite no olho, mas nao, até o momento, em nenhum outro érgio, deve-se apenas & extrema simplicidade dos fendmenos luminosos, a que nos referimos anteriormente. O reconhecimento da importancia essencial das caracteristicas atomisticas no mecanismo dos organismos vivos de modo algum é suficiente, contudo, para uma explicacdo abrangente dos fend- menos biolégicos. A questo que esta em pauta, portanto, é se ainda faltam aspectos fundamentais na andlise dos fendmenos na- turais para que possamos chegar a uma compreensao da vida com base na experiéncia fisica. A despeito do fato de que os miltiplos fendmenos bioldgicos so praticamente inesgotaveis, dificilmente se poderd dar uma resposta a essa pergunta sem um exame do sentido a ser atribuido a explicagio fisica, mais penetrante ainda do que aquele a que a descoberta do quantum de agao ja nos for- cou. Por um lado, as maravilhosas caracteristicas constantemente reveladas nas investigagées fisiolégicas, e que diferem tao mar- cantemente do que se conhece sobre a matéria inorganica, leva- ram os bidlogos a cer que nenhuma compreenso adequada dos aspectos essenciais da vida é possivel em termos puramente fisi- cos. Por outro, dificilmente se poderia dar uma expressao inam- bigua a visio conhecida como vitalismo, que parte do pressupos- to de que uma forga vital peculiar, desconhecida dos fisicos, rege LUZ E VIDA 13 toda a vida organica. Na verdade, penso que todos concordamos com Newton em que o fundamento tltimo da ciéncia é a expecta- tiva de que a natureza exiba efeitos idénticos em condigdes idénti- cas. Portanto, se pudermos avancar tanto na andlise dos mecanis- mos dos organismos vivos quanto na dos fenémenos atémicos, nado deveremos esperar descobrir nenhuma caracteristica alheia a matéria inorganica. Nesse dilema, convém ter em mente, entre- tanto, que as condicdes da pesquisa biolégica e as da pesquisa fisica nao sao diretamente comparaveis, j4 que a necessidade de manter vivo 0 objeto de investigag4o impée a primeira uma restri- Gao que nao tem equivalente na segunda. Matarfamos um animal, se tentassemos levar a investigacdo de seus 6rgdos ao ponto de sermos capazes de dizer qual o papel desempenhado em suas fun- g6es vitais por 4tomos isolados. Em todos os experimentos com. organismos vivos, tem que persistir uma dose de incerteza no que tange as condicées fisicas a que eles so submetidos, sugerindo-se assim a idéia de que esse minimo de liberdade que temos de con- ceder ao organismo ser4 exatamente o bastante para lhe permitir, por assim dizer, ocultar de nés os seus segredos mais intimos. Por esse dngulo, a propria existéncia da vida deve ser considerada, na biologia, um fato elementar, assim como, na fisica atémica, a existéncia do quantum de acdo tem que ser tomada como um da- do fundamental, que nao pode ser derivado da mecanica usual. Na verdade, a impossibilidade essencial de compreender a estabi- lidade atémica em termos mecanicos mostra uma estreita analo- gia com a impossibilidade de dar uma explicagao fisica ou quimi- ca as fungGes peculiares que caracterizam a vida. Ao formular essa analogia, entretanto, convém lembrarmos que os problemas apresentam aspectos essencialmente diferentes na fisica atémica e na biologia. Enquanto, no primeiro campo, es- tamos primordialmente interessados no comportamento da maté- ria em suas formas mais simples, a complexidade dos sistemas ma- teriais pelos quais a biologia se interessa é de carater fundamental, j4 que até os organismos mais primit vos contém grande ntimero 14 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO de 4tomos. FE verdade que 0 vasto campo de aplicagdo da mecani- ca usual, que inclui nossa explicacao dos instrumentos de medida usados na fisica atémica, assenta-se justamente na possibilidade de desconsiderarmos, em larga escala, a complementaridade da des- crigdo vinculada ao quantum de acdo, nos casos em que lidamos com corpos que contenham um grande namero de atomos. Mas, apesar da importancia essencial dos aspectos atomisticos, é tipico da pesquisa biolégica nunca podermos controlar as condigées ex- ternas a que qualquer atomo isolado é submetido, na mesma medi- da em que é possivel fazé-lo nos experimentos fundamentais da fisica atémica. De fato, nem sequer podemos dizer quais Atomos especificos realmente pertencem a um organismo vivo, ja que toda fangao vital é acompanhada por uma troca de material, mediante a qual os 4tomos so constantemente absorvidos e expelidos da organizacdo que compée o ser vivo. A rigor, essa troca de matéria estende-se a todas as partes do organismo vivo, num grau que im- pede uma distincao nitida, em escala atémica, entre os aspectos de seu mecanismo que podem ser inequivocamente explicados pela mecdnica usual e aqueles para os quais a consideragdo do quan- tum de acio é decisiva. Essa diferenga fundamental entre a pes- quisa fisica e a biolégica implica que nao se pode tragar, para a aplicabilidade das idéias fisicas aos problemas da vida, nenhum limite bem definido que corresponda a distingao entre o campo da descrigdo mecAnica causal ¢ os fendmenos quanticos propriamente ditos da fisica atdmica. Essa aparente limitagdo da analogia em questo enrafza-se nas proprias definicées das palavras vida e me- canica, que séo, em ultima instancia, uma questo de convenién- cia. Por um lado, a questo de uma limitacio da fisica na biologia perderia qualquer sentido se, em vez de fazer uma distingao entre organismos vivos ¢ corpos inanimados, estendéssemos a idéia de vida a todos os fendmenos naturais. Por outro lado, se, de acordo com a linguagem comum, reservassemos a palavra mecanica para a descrico causal inambigua dos fendmenos naturais, uma ex- pressdo como mecanica do dtomo perderia o sentido. Nao irei LUZ E VIDA 15 adiante nesses aspectos puramente terminoldgicos, mas acrescento apenas que a esséncia da analogia em exame € a evidente excluséo entre aspectos tipicos da vida, como a autopreserva¢ao € a autoge- ragao de individuos, de um lado, ¢ a subdivisdo necessaria a qual- quer andlise fisica, de outro. Gragas a esse aspecto essencial da complementaridade, 0 conceito de finalismo, que é desconhecido da andlise mecanica, encontra um certo campo de aplicago na biologia. Na verdade, nesse sentido, a argumentagao teleolégica pode ser encarada como um traco legitimo da descrigao fisiolégi- ca, que leva na devida consideragao as caracteristicas da vida, de um modo analogo ao reconhecimento do quantum de acdo no principio da correspondéncia da fisica atomica. Ao discutir a aplicabilidade de idéias puramente fisicas aos organismos vivos, tratamos a vida, é claro, como qualquer outro fenémeno do mundo material. Nem é preciso enfatizar, entretan- to, que essa atitude, que é caracteristica da pesquisa bioldgica, nao implica nenhuma desconsideracao do aspecto psicolégico da vida. Ao contrario, o reconhecimento da limitagio dos conceitos mecanicos na fisica atémica pareceria adequado para conciliar os pontos de vista aparentemente contrastantes da fisiologia e da psicologia. De fato, a necessidade de considerar, na fisica atémi- ca, a interacgao dos instrumentos de medida e do objeto investiga- do exibe uma estreita analogia com as dificuldades peculiares a andlise psicolégica, provenientes do fato de que o contetido men- tal é invariavelmente alterado quando se concentra a atencaio em qualquer de seus aspectos particulares, Sairfamos muito de nosso assunto se nos estendéssemos nessa analogia, que oferece um esclarecimento essencial sobre o paralelismo psicofisico. Entre- tanto, cu gostaria de enfatizar que as consideragées do tipo aqui mencionado sao inteiramente opostas a qualquer tentativa de buscar novas possibilidades de influéncia espiritual sobre 0 com- portamento da matéria na descrigdo estatistica dos fendmenos atémicos. Por exemplo, é impossivel, do nosso ponto de vista, associar um significado inambiguo a opinido, as vezes expressa, 16 FfsICA ATOMICA FE CONHECIMENTO HUMANO de que a probabilidade de ocorréncia de certos processos atémi- cos no corpo estaria sob a influéncia direta da vontade. De fato, segundo a interpretacao generalizada do paralelismo psicofisico, a liberdade da vontade deve ser considerada como um aspecto da vida consciente que corresponde a fungdes do organismo que nao apenas escapam a uma descrigéo mecanica causal, mas resis- tem até mesmo a uma anilise fisica levada ao ponto exigido para uma aplicagao inambigua das leis estatisticas da mecanica até- mica. Sem entrar em especulagdes metafisicas, talvez eu possa acrescentar que uma anilise do préprio conceito de explicagéo comegaria e terminaria, naturalmente, por uma rentincia a expli- car nossa propria atividade consciente. Para concluir, nem é preciso enfatizar que nao pretendi, com nenhuma de minhas observag6es, expressar qualquer tipo de ce- ticismo quanto ao futuro desenvolvimento das ciéncias fisicas e biol6gicas. Tal ceticismo, de fato, estaria muito longe da mente dos fisicos no momento atual, quando justamente o reconheci- mento do carater limitado de nossos conceitos mais fundamentais resultou em tao notavel desenvolvimento de nossa ciéncia. Tam- pouco a reniincia a uma explicagio da vida impediu 0 espléndido progresso ocorrido em todos os ramos da biologia, inclusive os que se revelaram tao benéficos na arte da medicina. Ainda que nao possamos estabelecer uma clara distingao fisica entre a satide ea doenga, decerto nao ha lugar para ceticismo no campo espe- cial que é objeto deste congresso, desde que nao abandonemos a trilha de progresso que vem sendo seguida com tanto éxito desde © trabalho pioneiro de Finsen, e cuja marca distintiva € a mais intima combinagao da investigacao dos efeitos medicinais da tera- pia através da luz com 0 estudo de seus aspectos fisicos. Biologia ¢ fisica atomica 1937 O trabalho imortal de Galvani, que inaugurou uma nova era em todo o campo da ciéncia, ilustra brilhantemente a extrema fecun- didade de uma combinacdo intima da exploragio das leis da natu- reza inanimada com o estudo das propriedades dos organismos vivos. Nesta ocasido, portanto, talvez seja oportuno examinar a atitude que os cientistas de todas as épocas tém adotado perante a questiio da relacio entre a fisica ¢ a biologia e, em especial, discu- tir a perspectiva criada, nesse contexto, pelo extraordindrio de- senvolvimento da teoria atémica nos tltimos tempos. Desde 0 alvorecer da ciéncia, a teoria atémica realmente tem estado no centro do interesse, no que diz respeito aos esforgos de obter uma viséo abrangente da grande diversidade de fendmenos naturais. Assim, j4 Demécrito, que com tao profunda intuicdo enfatizou a necessidade do atomismo para qualquer explicagao racional das propriedades comuns da matéria, também tentou, como se sabe, utilizar idéias atomisticas para explicar as peculiari- dades da vida orgdnica e até da psicologia humana. Em vista do carater fantasioso dessas concep¢des materialistas extremadas, foi natural que Aristételes reagisse, com sua magistral compreensio dos conhecimentos de sua época, tanto na fisica quanto na biolo- gia, rejeitando por completo a teoria dos atomos, e tentasse forne- cer um arcabougo suficientemente amplo para uma explicagao da profuséo dos fendmenos naturais com base em idéias essencial- 17 18 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO mente teleoldgicas. Por sua vez, 0 exagero da doutrina aristotélica foi claramente trazido a luz pelo reconhecimento gradativo de leis clementares da natureza, validas tanto para os corpos inanimados quanto para os organismos vivos. Ao pensarmos no estabelecimento dos principios da mec&nica, que viriam a se tornar 0 proprio fundamento da ciéncia fisica, talvez no seja sem interesse, nesse contexto, perceber que a des- coberta de Arquimedes do principio de equilibrio dos objetos flu- tuantes — que, segundo uma conhecida tradi¢ao, foi-lhe sugerido pela sensagao de elevacao de seu proprio corpo numa banheira — poderia igualmente ter-se baseado na experiéncia comum da per- da de peso das pedras na 4gua. Do mesmo modo, devemos con- siderar bastante acidental que Galileu tenha sido levado ao re- conhecimento das leis fundamentais da dinamica observando o movimento pendular de um candelabro na bela catedral de Pisa, e nao olhando para uma crianga num balango. Essas analogias pu- ramente externas foram de pouca monta, é claro, para o crescente reconhecimento da unidade essencial dos principios que regem os fenémenos naturais, comparadas as semelhancas profundas entre 0s organismos vivos e a maquinaria técnica que foram reveladas pelos estudos da anatomia e da fisiologia, intensamente efetuados na época do Renascimento, sobretudo aqui na Italia. A nova abordagem experimental da filosofia natural — igual- mente incentivada pela ampliagdo da imagem do mundo, gracas A visio de Copérnico, e pela elucidago dos mecanismos circula- térios nos corpos dos animais, inaugurada pela grande descober- ta de Harvey — abriu perspectivas que talvez tenham se expres- sado de forma mais marcante na obra de Borelli, que conseguiu esclarecer com detalhes muito minuciosos a fungdo mecanica do esqueleto e dos misculos nos movimentos dos animais. O carater classico dessa obra em nada é prejudicado pelas tentativas do proprio Borelli e de seus seguidores de explicar também a agdo nervosa e a secregao glandular por meio de modelos mecanicos ivos, cuja evidente arbitrariedade e primarismo logo susci- BIOLOGIA E FISICA ATOMICA 19 taram uma critica generalizada, ainda lembrada pela designacio semi-irdnica de “iatrofisicos” que ficou ligada aos adeptos da es- cola boreliana. Do mesmo modo, os esforgos — sélidos em sua base — de aplicar o crescente conhecimento das transformagdes tipicamente quimicas da matéria a processos fisiologicos, que en- contraram um expoente tao entusidstico em Sylvius, levaram ra- pidamente, pelo exagero das semelhancas superficiais da diges- tao e da fermentag4o com as reagées inorganicas mais simples, e por sua aplicagao precipitada para fins médicos, a uma oposicio que se expressou na rotulagao desses esforgos prematuros como “jatroquimica”. Para nés, sao evidentes as razGes dos insucessos desses esfor- cos pioneiros em utilizar a fisica e a quimica numa explicacio abrangente das propriedades dos organismos vivos. Nao apenas era preciso esperar pela época de Lavoisier para que se revelas- sem os principios elementares da quimica, que abririam caminho para o entendimento da respiracao e, mais tarde, forneceriam a base para o extraordinério desenvolvimento da chamada quimica organica, como também, antes das descobertas de Galvani, todo um aspecto fundamental das leis da fisica ainda permanecia ocul- to. E extremamente sugestivo considerar que o germe que, nas méaos de Volta, Oersted, Faraday e Maxwell, iria desenvolver-se numa estrutura de importancia rival 4 da mecdnica newtoniana brotou de pesquisas voltadas para fins biolégicos. Na verdade, é dificil imaginar que 0 progresso havido desde os experimentos com corpos eletricamente carregados, por mais fecundos que eles tenham sido nas maos de Franklin, até o estudo das correntes galvanicas, pudesse ter sido alcangado, se os instrumentos sens{- yeis necessdrios 4 deteccdo dessas correntes, depois tao pronta- mente construidos, no tivessem sido fornecidos pela propria na- tureza no tecido nervoso dos animais superiores. E impossivel esquematizar aqui, até mesmo sob a forma de um esbogo, o tremendo desenvolvimento da fisica e da quimica desde a €poca de Galvani, ou enumerar as descobertas feitas em todos 20 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO os ramos da biologia no tltimo século. Basta-nos recordar as li- nhas que levaram desde a obra pioneira de Malpighi e Spallan- zani, nesta venerdvel universidade, até a embriologia e a bacterio- logia modernas, respectivamente, ou do préprio Galvani até as recentes e fascinantes pesquisas sobre os impulsos nervosos. Ape- sar da vasta compreenso assim obtida sobre o aspecto fisico ¢ quimico de muitas reagdes biolégicas tipicas, o maravilhoso refi- namento estrutural dos organismos, bem como sua profusao de mecanismos regulatorios interligados, continuam a ultrapassar a tal ponto qualquer experiéncia feita com a natureza inanimada, que nds nos sentimos to distantes como sempre de uma expli- caciio da propria vida dentro desses moldes. Na verdade, ao tes- temunharmos as apaixonadas controvérsias cientificas referentes 8 relagdo que tém com esse problema as recentes descobertas de efeitos venenosos e das propriedades generativas dos chamados virus, vemo-nos diante de um dilema tao agudo quanto aquele com que se defrontaram Demécrito e Aristoteles. Nessa situacio, é novamente na teoria atOmica que se concen- tra o interesse, embora num cendrio muito diferente. Nao apenas essa teoria — desde que Dalton aplicou as concepgdes atomis- ticas com tao decisivo sucesso a elucidagao das leis quantitativas que regem a constituig¢ao dos compostos quimicos — tornou-se a base indispensdvel ¢ 0 guia infalivel de todo o raciocinio na qui- mica, como também o espléndido aperfeigoamento da técnica experimental na fisica deu-nos até os meios para estudar fendme- nos que dependem diretamente da aco de atomos individuais. ‘Ao mesmo tempo que, dessa maneira, esse progresso eliminou os iiltimos vestigios do preconceito tradicional segundo o qual, em vista da precariedade de nossos sentidos, qualquer comprovagao da existéncia efetiva dos dtomos estaria perenemente fora do al- cance da experiéncia humana, ele revelou, nas leis da natureza, aspectos ainda mais profundos de atomicidade do que os expres- sos pela antiga doutrina da divisibilidade limitada da matéria. De fato, foi-nos ensinado que o préprio arcabougo conceitual que se BIOLOGIA E FISICA ATOMICA 21 propunha explicar nossa experiéncia na vida cotidiana e formu- lar todo o sistema de leis aplicdveis ao comportamento da ma- téria em geral, e que constitui o imponente edificio da chamada fisica classica, teria que ser fundamentalmente ampliado para que pudesse abarcar os fenémenos atémicos propriamente ditos. Para avaliar as possibilidades fornecidas por essa nova visdo da filo- sofia natural com respeito a uma atitude racional perante os pro- blemas fundamentais da biologia, entretanto, ser necessério re- lembrar sucintamente as principais linhas de desenvolvimento que levaram 4 elucidagao da situag4o na teoria atémica. O ponto de partida da moderna fisica atémica, como se sabe, foi o reconhecimento da natureza atémica da propria eletricidade, inicialmente apontada pelas famosas pesquisas de Faraday com a eletrélise galvanica, e estabelecida em definitivo pelo isolamento do elétron nos belos fenémenos de descargas elétricas em gases rarefeitos, que tanta atencdo suscitaram no fim do século passado. Embora as brilhantes pesquisas de J.J. Thompson cedo tenham trazido a luz o papel essencial desempenhado pelos elétrons nos mais variados fendmenos fisicos ¢ quimicos, nosso conhecimento das unidades estruturais da matéria sé foi completado com a des- coberta do nticleo atémico por Rutherford, coroando seu traba- lho pioneiro sobre as transmutacgées radioativas espontancas de certos elementos pesados. De fato, essa descoberta forneceu, pela primeira vez, uma explicagdo incontestavel para a invariabilidade dos elementos nas reacées quimicas comuns, nas quais o mintis- culo nticleo pesado permanece inalterado, enquanto apenas a dis- tribuigao dos elétrons, mais leves, ao seu redor é afetada. Além disso, ela proporcionou uma compreensao imediata nao s6 da ori- gem da radioatividade natural, na qual assistimos a uma explosdo do proprio miicleo, mas também da possibilidade, posteriormen- te descoberta por Rutherford, de se induzirem transmutacées dos elementos através do bombardeio com particulas pesadas em alta velocidade, que, ao se chocarem com o nticleo, podem provocar sua desintegracdo. i. FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO © tema deste pronunciamento seria demasiadamente amplia- do se examindssemos mais a fundo 0 novo e maravilhoso campo de pesquisas inaugurado pelo estudo das transmutagées nuclea- res, que ser um dos principais temas de discussao entre 0s fisicos neste encontro. O essencial para nossa argumentagdo nao se en- contra, de fato, nessas novas experiéncias, mas na evidente im- possibilidade de explicar os dados fisicos e quimicos comuns, com base nos j4 estabelecidos aspectos principais do modelo atémico de Rutherford, sem nos afastarmos radicalmente das idéias classi- cas da mecanica e do eletromagnetismo. Com efeito, apesar da mecanica newtoniana ter elucidado a harmonia dos movimentos planetarios expressa pelas leis de Kepler, as propriedades de es- tabilidade de modelos mecanicos como o sistema solar — que, quando perturbados, nao tendem a retornar ao seu estado ori- ginal — obviamente nao tém uma semelhanga suficiente com a estabilidade intrinseca das configuragées eletrénicas dos 4tomos, que é responsdvel pelas propriedades especificas dos elementos. Acima de tudo, essa estabilidade é notavelmente ilustrada pela andlise espectral, que, como se sabe, revelou que todo elemento possui um espectro caracteristico, de linhas nitidas, tao indepen- dente das condicdes externas que proporciona um meio de identi- ficar a composigéo material até mesmo das estrelas mais distan- tes, através de observacdes espectroscépicas. Uma chave para a solucao desse dilema, no entanto, ja havia sido fornecida pela descoberta de Planck do quantum clementar de agdo, que resultou de uma linha de pesquisa fisica muito dife- rente. Como se sabe, Planck foi levado a essa descoberta funda- mental por sua engenhosa andlise de aspectos tais do equilibrio térmico entre a matéria e a radiagdo, que, segundo os principios gerais da termodinamica, deveriam ser totalmente independentes de quaisquer propriedades especificas da matéria ¢, por conse- guinte, de quaisquer idéias especiais sobre a constituicéo at6mi- ca. A existéncia do quantum elementar de agao expressa, a rigor, uma nova faceta da individualidade dos processos fisicos, a qual BIOLOGIA E FISICA ATOMICA 23 é desconhecida das leis classicas da mecAnica ¢ do eletromagnetis- mo, e restringe a validade destas leis basicamente aos fenémenos que envolvem acGes grandes em comparagdo com o valor de um unico quantum, tal como fornecido pela nova constante atémi- ca de Planck. Essa condicao, embora amplamente satisfeita nos fendmenos da experiéncia fisica comum, nao é de modo algum aplicavel ao comportamento dos elétrons nos 4tomos e, a rigor, somente a existéncia do quantum de aco impede a fusio dos elétrons e do néicleo num corpiisculo neutro macico, de extensdo praticamente infinitesimal. O reconhecimento dessa situagao sugeriu prontamente a des- cric&o da ligacdo de cada elétron no campo ao redor do niicleo como uma sucessdo de processos individuais, pelos quais 0 ato- mo passa de um de seus chamados estados estaciondrios para ou- tro desses estados, com emissao de energia liberada sob a forma de um tinico quantum de radiagao eletromagnética. Essa visio, intimamente aparentada com a exitosa interpretacdo einsteiniana do efeito fotoelétrico, e tao convincentemente corroborada pelas belas pesquisas de Franck e Hertz sobre a excitagio das linhas espectrais pelos impactos dos elétrons nos dtomos, de fato nao apenas forneceu uma explicacdo imediata para as intrigantes leis gerais das linhas espectrais, destrincadas por Balmer, Rydberg e Ritz, como também, com 0 auxilio de provas espectroscépicas, levou gradativamente a uma classificagao sistematica dos tipos de ligagdo estacionaria de qualquer elétron num Atomo, fornecendo uma explicagéo completa das notaveis relagGes entre as proprie- dades fisicas ¢ quimicas dos elementos, tal como expressas na fa- mosa tabela periédica de Mendeleev. Embora essa interpretacio das propriedades da matéria tenha-se afigurado uma realizacio do antigo ideal de reduzir a formulagao das leis da natureza a consideracées de ntimeros puros — superando até mesmo os so- nhos dos pitagéricos —, o pressuposto basico da individualidade dos processos atémicos implicou, ao mesmo tempo, uma rentin- cia essencial 4 detalhada vinculacao causal entre os eventos fisi- 24 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO cos, que, ao longo dos séculos, fora o fundamento incontestavel da filosofia natural. Nao s6 se eliminou qualquer possibilidade de retorno a um modo de descri¢o compativel com o principio da causalidade, através de experiéncias inambiguas dos mais variados tipos, como logo se mostrou possivel desenvolver as tentativas primitivas ori- ginais de explicar a existéncia do quantum de aco na teoria at6- mica, transformando-as numa mecanica do 4tomo propriamente dita, essencialmente estatistica e plenamente comparavel, em sua coeréncia e completude, a estrutura da mecénica classica, da qual ela parece constituir uma generalizacao racional. O estabeleci- mento dessa nova mecAnica, chamada mecfnica quéntica, que, como se sabe, devemos sobretudo as engenhosas contribuigées da nova geracio de fisicos, de fato esclareceu essencialmente, parte sua assombrosa fecundidade em todos os ramos da fisica atémica e da quimica, a base epistemolégica da anilise e da sintese dos fendmenos atomicos. O reexame do préprio problema da obser- vacio nesse campo, iniciado por Heisenberg, um dos principais fundadores da mecdnica quantica, evidenciou pressupostos até ent&o desconsiderados para 0 uso inambiguo até mesmo dos mais elementares conceitos em que repousa a descrigao dos fendmenos naturais. O aspecto crucial, neste ponto, é o reconhecimento de que qualquer tentativa de analisar, 4 maneira habitual da fisica classica, a “individualidade” dos processos atémicos, condiciona- dos pelo quantum de acao, é frustrada pela inevitdvel interacdo dos objetos atémicos em exame com os instrumentos de medida indispensdveis para esse fim. Uma conseqiiéncia imediata dessa situagao € que as observa- Ges referentes ao comportamento dos objetos atémicos, obtidas mediante diferentes projetos experimentais, em geral ndo podem ser combinadas nos moldes habituais da fisica classica. Em par- ticular, qualquer procedimento imaginavel que vise localizar os elétrons de um Atomo no espago e no tempo implicard, inevita- velmente, uma troca essencialmente incontrolavel de momento BIOLOGIA E FISICA ATOMICA 25 energia entre o dtomo e os aparelhos de medida, aniquilando por completo as notavt quais 0 quantum de acao é responsavel. Inversamente, qualquer is regularidades da estabilidade atémica pelas investigagao dessas regularidades, cuja descrigao implica, ela mes- ma, as leis de conservagao da energia e do momento, impor4, em principio, uma rentincia no que tange A localizacao espaco-tem- poral dos elétrons individuais do 4tomo. Longe de serem incoe- rentes, portanto, os aspectos dos fendmenos quanticos revelados pela experiéncia obtida nessas condicdes mutuamente excluden- tes devem ser considerados complementares, de uma maneira to- talmente inédita. O ponto de vista da “complementaridade”, com efeito, de modo algum significa uma renincia arbitraria 4 andlise dos fenémenos atomicos, mas é, a0 contrario, a expresso de uma sintese racional da abundante experiéncia nesse campo, que ultra- passa os limites a que naturalmente esta confinada a aplicagdo do conceito de causalidade. Apesar do incentivo dado a essas investigagées pelo grande exemplo da teoria da relatividade — que, justamente pela re- velacao de pressupostos insuspeitados para o uso inambiguo de todos os conceitos fisicos, abriu novas possibilidades de com- preendermos fenémenos aparentemente irreconcilidveis » deve- com que se depara a moderna teo- ria atémica é totalmente sem precedentes na historia da ciéncia mos reconhecer que a situa fisica. De fato, toda a estrutura conceitual da fisica classica, leva- da a uma unificagdo e conclusao tao espléndidas pelo trabalho de Einstein, assenta-se na suposicao, bem adaptada a nossa expe- riéncia cotidiana dos fendmenos fisicos, de que é possivel discri- minar entre 0 comportamento dos objetos materiais e a pratica de sua observacao. Para um paralelo com a licao da teoria atémi- ca acerca da limitada aplicabilidade dessas idealizacdes costumei- ras, devemos nos voltar, na verdade, para ramos bem diferentes da ciéncia, como a psicologia, ou até para o tipo de problemas epistemolégicos com que ja se confrontavam pensadores como Buda e Lao Tsé, ao tentarem harmonizar nossas posicées de es- 26 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO pectadores ¢ atores no grande drama da vida. Entretanto, 0 reco- nhecimento de uma analogia no caréter puramente ldgico de pro- blemas que se apresentam em campos tao largamente separados do interesse humano nao implica, de modo algum, que se aceite na fisica atémica qualquer misticismo que seja alheio ao verda- deiro espirito da ciéncia. Ao contratio, dé-nos um incentivo para examinar se a solucao dos paradoxos inesperados com que depa- ramos na aplicagdo de nossos conceitos mais simples aos fendme- nos atémicos nao nos ajudaria a esclarecer dificuldades concei- tuais em outros campos da experiéncia. Também nao tém faltado sugestdes de que se busque uma cor- relacdo direta entre a vida, ou 0 livre arbitrio, e aspectos dos fe- némenos atémicos, para cuja compreensio o arcabougo da fisica classica é, obviamente, estreito demais. De fato, é possivel apontar muitos tracos caracteristicos das reacdes dos organismos vivos, como a sensibilidade da percepeao visual ou a inducdo da muta- cdo genética pela penetragdo da radiagéo, que sem diivida impli- cam uma ampliacio de efeitos dos processos atémicos individuais, semelhante aquela em que se baseia essencialmente a técnica expe- timental da fisica atémica. Contudo, a simples constatagao de que dos seres vivos supera qualquer expectativa prévia nao nos permite, de maneira alguma, explicar as caracteristicas peculiares da vida. Com efeito, os chamados aspectos holisticos ¢ finalistas dos fené- menos bioldgicos decerto nao podem ser imediatamente explica- dos pela caracteristica de individualidade dos processos atomicos, revelada pela descoberta do quantum de aco; antes, 0 carter es- sencialmente estatistico da mecanica quantica parece, 4 primeira 6 refinamento dos mecanismos de organizagao e regula vista, até mesmo aumentar as dificuldades de compreendermos as regularidades biol6gicas propriamente ditas. Nesse dilema, entre- tanto, a licdo geral da teoria atémica sugere que 0 tinico modo de conciliar as leis da fisica com 0s conceitos adequados a uma des- ctic&io dos fendmenos da vida é examinar a diferenca essencial das condicdes de observagao dos fendmenos fisicos e biolégicos. BIOLOGIA E FISICA ATOMICA. 27 Antes de mais nada, devemos nos aperceber de que qualquer arranjo experimental com que possamos estudar o comportamen- to dos 4tomos que compdem um organismo, tal como isso pode ser feito com dtomos isolados nos experimentos fundamentais da fisica atémica, elimina a possibilidade de manter vivo esse orga- nismo. Inseparavelmente ligada a vida, a troca incessante de ma- téria implica até mesmo a impossibilidade de encararmos um or- ganismo como um sistema bem definido de particulas materiais, a semelhanga dos sistemas considerados em qualquer explicagao das propriedades fisico-quimicas corriqueiras da matéria, De fa~ to, somos levados a conceber as regularidades biolégicas propria- mente ditas como representando leis da natureza complementares as que se adequam a explicagao das propriedades dos corpos ina- nimados, numa analogia com a relagéo complementar que ha entre as propriedades de estabilidade dos proprios 4tomos e um comportamento de suas particulas integrantes que permita uma descrigao em termos da localizacao espago-temporal. Nesse senti- do, a existéncia da prépria vida deve ser considerada, no tocante a sua definigao e observagao, um postulado fundamental da bio- logia, nao susceptivel de andlise posterior, do mesmo modo que a existéncia do quantum de ago, juntamente com a atomicidade liltima da matéria, compée a base elementar da fisica atomica. Veremos que esse ponto de vista estd igualmente distante das doutrinas extremadas do mecanicismo e do vitalismo. Por um lado, ele condena como irrelevante qualquer comparagao dos or- ganismos vivos com mdquinas, sejam estas as construgées relati- vamente simples imaginadas pelos antigos iatrofisicos, sejam os modernos dispositivos de amplificacdo, sumamente aperfeicoados, cuja enfatizacao acritica nos exporia a merecermos o apelido de “jatroquantistas”. Por outro lado, ele rejeita como irracionais to- das as tentativas de introduzir algum tipo de lei biolégica especial que seja incompativel com as regularidades fisicas e quimicas j4 estabelecidas, como as que foram revividas, em nossa época, sob 0 impacto das maravilhosas revelacGes da embriologia a respeito do 28 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO crescimento e da divisio celulares. Nesse contexto, convém lem- brar, em especial, que a possibilidade de evitar qualquer incoe- réncia dessa ordem no Ambito da complementaridade é dada pelo proprio fato de que nenhum resultado da investigagao biol6gica pode ser inequivocamente descrito de outra maneira que no em termos da fisica e da quimica, do mesmo modo que qualquer ex- plicag&o da experiéncia, mesmo na fisica atémica, tem que funda- mentar-se, em tiltima instancia, no uso dos conceitos indispensa- veis a um registro consciente das impressdes sensoriais. Esta tiltima observacao leva-nos de volta ao campo da psicolo- gia, no qual as dificuldades apresentadas pelos problemas de defi- nicdo e observagdo nas investigag6es cientificas foram claramente reconhecidas, muito antes de essas quest6es terem-se agudizado na ciéncia natural. Com efeito, na experiéncia psiquica, a impos- sibilidade de distinguir entre os fendmenos em si € sua percep¢ao consciente requer, claramente, a rentincia a uma simples descri- cao causal nos moldes da fisica classica, e a propria maneira de usar palavras como “pensamentos” e “sentimentos” para descre- ver essa experiéncia nos relembra, muito sugestivamente, a com- plementaridade encontrada na fisica atémica. Nao entrarei em maiores detalhes aqui. Quero apenas enfatizar que é justamente essa impossibilidade de distinguir com clareza 0 sujeito eo objeto, na introspecc4o, que proporciona o espago necessdrio 4 manifes- taco da voligdo. No entanto, vincular mais diretamente o livre arbitrio a limitagao da causalidade na fisica atémica, como mui- tas vezes se sugere, é totalmente alheio 4 tendéncia subjacente aos comentarios feitos aqui sobre os problemas biolégicos. Para concluir esta exposig&o, espero que a temeridade em que consiste um fisico aventurar-se tio além de seu campo restrito de ciéncia possa ser perdoada, em vista da tao bem-vinda oportuni- dade de discussdes proveitosas que é oferecida aos fisicos e bidlo- gos por este encontro em honra da meméria do grande pioneiro a cujas descobertas fundamentais esse dois ramos da ciéncia tanto devem. Filosofia natural e culturas humanas 1938 Foi com enorme hesitacdo que aceitei o gentil convite de me diri- gir a esta assembléia de distintos representantes das ciéncias an- tropolégicas e etnograficas, das quais, como fisico, naturalmente nao tenho conhecimento em primeira mao. Contudo, nesta oca- sido especial, em que até as circunstancias hist6ricas falam a cada um de nés sobre outros aspectos da vida que nao os discutidos no funcionamento normal dos congressos, talvez seja interessante tentar chamar sua atenc&o, em poucas palavras, para o aspecto epistemoldgico do recente desenvolvimento da filosofia natural e sua influéncia sobre os problemas humanos em geral. A despeito da grande separacao entre nossos diferentes ramos de conheci- mento, a nova lig&o que se impés aos fisicos no tocante A cautela com que devem ser aplicadas todas as conveng6es usuais, tao logo deixemos de nos voltar para a experiéncia cotidiana, pode real- mente servir para nos lembrar, de nova maneira, os perigos, tio conhecidos dos humanistas, de julgar culturas desenvolvidas em outras sociedades a partir de nosso proprio ponto de vista. Evidentemente, é impossivel tragar uma distingao nitida entre a filosofia natural e a cultura humana. As ciéncias fisicas, na ver- dade, sao parte integrante de nossa civilizagdo, nao apenas pelo fato de nosso dominio cada vez maior das forgas da natureza ha- ver modificado tio completamente as condigdes materiais da vi- da, mas também porque o estudo dessas ciéncias contribuiu mui- 29 30 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO to para esclarecer os antecedentes de nossa propria existéncia. Nesse aspecto, que significado ter tido nao mais nos conside- rarmos dotados do privilégio de viver no centro do universo, cercados por sociedades menos afortunadas, vivendo a beira do abismo, e sim, mediante o desenvolvimento da astronomia e da geografia, havermos reconhecido que todos dividimos um peque- no planeta esférico do sistema solar, que, por sua vez, € apenas uma pequena parte de sistemas ainda maiores? Quo imperiosa nao foi também a adverténcia que recebemos, em nossa época, sobre a relatividade de todos os juizos humanos, através da revi- sao renovada dos pressupostos subjacentes ao uso inambiguo até mesmo de nossos conceitos mais elementares, como 0 espaco e 0 tempo, os quais, ao revelarem a dependéncia especial em que es- tAo todos os fenédmenos fisicos do ponto de vista do observador, tanto contribuiram para a unidade e a beleza de toda a nossa vi- sao de mundo? Embora a importancia dessas grandes conquistas para nossa visdo global seja comumente reconhecida, isso ainda mal chega a acontecer no tocante a insuspeitada lig4o epistemolégica que nos deu a abertura de novissimos campos de pesquisa fisica nos ulti- mos anos. Nossa penetragao no mundo dos 4tomos, antes vedado aos olhos do homem, é de fato uma aventura compardvel as gran- des viagens de descobrimento dos circunavegadores e as ousadas exploracdes dos astrénomos nas profundezas do espago celeste. Como se sabe, 0 maravilhoso desenvolvimento da arte da experi- mentagio fisica nao apenas eliminou os iltimos vestigios da anti- ga crenga em que a precariedade de nossos sentidos nos impediria permanentemente de obter informagées diretas sobre os Atomos individuais, como até nos mostrou que os préprios 4tomos com- poem-se de corptisculos ainda menores, que podem ser isolados cujas propriedades podem ser investigadas separadamente. Ao mesmo tempo, entretanto, nesse fascinante campo da experimen- tacdo, aprendemos que as leis da natureza até entao conhecidas, que compéem o grande edificio da fisica classica, s6 sao validas FILOSOFIA N NATURAL E CULTURAS HUMANAS 3r ao lidarmos com corpos formados por um numero praticamente infinito de dtomos. De fato, o novo conhecimento concernente ao. comportamento de 4tomos individuais e dos corpiisculos atémi- cos revelou um limite inesperado para a subdivisao de todas as aces fisicas, que ultrapassa em muito a antiga doutrina da divi- sibilidade restrita da matéria e confere a cada processo atémico um cardter individual peculiar. Essa descoberta, com efeito, gerou uma novissima base para que se compreenda a estabilidade intrin- seca das estruturas atémicas, a qual, em ultima instancia, con- diciona as regularidades de todas as experiéncias corriqueiras. Quao radical foi a mudanga promovida por esse avango da fisica atémica em nossa atitude perante a descrigao da natureza talvez possa ser mais claramente ilustrado pelo fato de que até o principio da causalidade, antes considerado o fundamento incon- testavel de toda interpretacdo dos fenémenos naturais, revelou-se um referencial estreito demais para abarcar as regularidades sin- gulares que regem os processos atémicos individuais. Sem duivida, todos hao de compreender que os fisicos precisaram de razdes muito convincentes para renunciar ao préprio ideal de causalida- de; mas, no estudo dos fendmenos atémicos, foi-nos repetidamen- te ensinado que questdes que se acreditava terem recebido suas respostas finais h4 muito tempo haviam reservado para nds as mais inesperadas surpresas. Todos vocés, por certo, terio ouvido falar dos enigmas relativos as propriedades mais elementares da luz e da matéria, que tanto intrigaram os fisicos nos tltimos anos. As aparentes contradigdes com que deparamos a esse respeito sao, na verdade, tao agudas quanto as que deram origem ao de- senvolvimento da teoria da relatividade no comego deste século e, tal como esta, s6 encontraram explicagdo através de um exame mais rigoroso do limite imposto pelas préprias novas experiéncias ao uso inambiguo dos conceitos que entram na descrigo dos fe- némenos. Enquanto, na teoria da relatividade, 0 ponto decisivo foi o reconhecimento dos modos essencialmente diferentes pelos quais observadores em movimento em relacdo uns aos outros des- 32 F{SICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO crevem 0 comportamento dos objetos, a elucidagao dos parado- xos da fisica atémica revelou o fato de que a inevitavel interagdo dos objetos e dos instrumentos de medida instaura um limite ab- soluto a possibilidade de falarmos de um comportamento dos ob- jetos atémicos que independa dos meios de observacao. Estamos diante de um problema epistemolégico bastante novo na filosofia natural. No ambito desta, toda descrigéo das expe- riéncias, até entao, baseara-se no pressuposto, ja inerente as con- vencdes comuns da linguagem, de que é possivel tragar uma dis- tingdo nitida entre 0 comportamento dos objetos e os meios de observagao. Esse pressuposto é no s6 plenamente justificado por toda a experiéncia cotidiana, como constitui, inclusive, toda a base da fisica cldssica, a qual, justamente pela teoria da relati- vidade, recebeu um arremate téo maravilhoso. No entanto, tao logo comecamos a lidar com fendmenos como os processos atd- micos individuais — que, por sua propria natureza, so essen- cialmente determinados pela interacdo dos objetos em questo e dos instrumentos de medida necessarios 4 definic¢ao dos projetos experimentais —, somos forgados a examinar mais de perto a questio do tipo de conhecimento que se pode obter com respeito aos objetos. Nesse aspecto, devemos reconhecer, por um lado, que a meta de todo experimento fisico — obter conhecimento em condicdes passiveis de ser reproduzidas e comunicadas — deixa- nos sem outra alternativa seno utilizar conceitos cotidianos, tal- vex aperfeigoados pela terminologia da fisica classica, no apenas em todos 0s relatos da construgao e manipulagdo dos instrumen- tos de medida, mas também na descrigao dos resultados experi- mentais efetivamente obtidos. Por outro lado, é igualmente im- portante compreender que justamente essa situacao implica que nenhum resultado de um experimento concernente a um fenéme- no que, em principio, esteja fora do ambito da fisica classica pode ser interpretado como dando informagées sobre propriedades in- dependentes dos objetos; esta, antes, intrinsecamente ligado a uma situacdo definida, em cuja descrig&o os instrumentos de me- FILOSOFIA NATURAL E CULTURAS HUMANAS 33 dida que interagem com os objetos também tém uma participa- cdo essencial. Este tiltimo fato explica as contradigées aparentes que surgem quando os resultados obtidos sobre objetos atémicos por diferentes processos experimentais sdo provisoriamente com- binados numa imagem auténoma do objeto. Entretanto, as informacdes sobre o comportamento de um ob- jeto atémico, obtidas em condigdes experimentais definidas, po- dem, segundo uma terminologia freqiientemente usada na fisica atémica, ser satisfatoriamente caracterizadas como complemen- tares a qualquer informagdo sobre o mesmo objeto, obtida por um outro arranjo experimental que exclua o atendimento das pri- meiras condicdes. Embora esses tipos de informacao nao possam ser combinados num quadro tinico por meio de conceitos co- muns, eles de fato representam aspectos igualmente essenciais de qualquer conhecimento do objeto em questao que se possa obter nesse campo. O reconhecimento desse cardter complementar das analogias mec4nicas pelas quais se tem tentado visualizar os efei- tos radiantes individuais levou, de fato, a uma solucdo totalmente satisfatoria dos enigmas das propriedades da luz a que aludimos anteriormente. Do mesmo modo, foi somente levando em conta a relagéo complementar entre as diferentes experiéncias sobre 0 comportamento dos corptisculos atémicos que se tornou possivel obter uma pista para compreender 0 contraste marcante entre as propriedades dos modelos mecAnicos comuns e as leis peculiares de estabilidade que regem as estruturas atémicas, que compdem a base de qualquer explicacao mais exata das propriedades fisicas € quimicas especificas da matéria. £ claro que nao tenho nenhuma intengao, nesta oportunidade, de examinar mais de perto esses detalhes. Mas espero ter sido capaz de lhes transmitir uma impress suficientemente clara de que nao estamos, de modo algum, envolvidos numa reniincia ar- bitrdria no que tange a andlise pormenorizada da riqueza quase esmagadora de nossa experiéncia no campo dos 4tomos, que vem crescendo rapidamente. Ao contrério, temos que enfrentar o de- 34 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO safio de um desenvolvimento racional de nossos meios de classi- ficar e compreender novas experiéncias que, por seu proprio ca- rater, néo se encaixam no arcabougo da descrigao causal. Esta s6 é adequada a explicagdo do comportamento dos objetos na medi- da em que esse comportamento independa dos meios de observa- cdo. Longe de conter qualquer misticismo contr4rio ao espirito da ciéncia, o ponto de vista da complementaridade consiste, na verdade, numa generaliza¢ao coerente do ideal de causalidade. Por mais inesperada que possa afigurar-se essa ocorréncia no campo da fisica, estou certo de que muitos de vocés terao reco- nhecido a estreita analogia entre a situagao referente a andlise dos fendmenos atémicos, que descrevi, e alguns aspectos caracteristi- cos do problema da observacao da psicologia humana. Com efei- to, podemos dizer que a tendéncia da psicologia moderna pode ser caracterizada como uma reagao a tentativa de decompor a ex- periéncia psfquica em elementos que se possam associar da mes- ma maneira que os resultados das mensuragdes na fisica classica. Na introspeccio, é claramente impossivel tragar uma distingao ni- tida entre os fenémenos em si e sua percep¢ao consciente, e, em- bora muitas vezes falemos em voltar nossa atengao para algum aspecto particular da experiéncia psiquica, um exame mais detido evidencia que efetivamente lidamos, nesses casos, com situagdes mutuamente excludentes. Todos conhecemos 0 antigo provérbio que diz que, se tentarmos analisar nossas emog6es, dificilmente continuaremos a possui-las. Nesse sentido, reconhecemos entre as experiéncias psiquicas, para cuja descrico se usam adequa- damente termos como “pensamentos” ¢ “sentimentos”, uma re- lac&o de complementaridade semelhante 4 que existe entre ex- periéncias referentes ao comportamento dos dtomos obtidas em diferentes projetos experimentais, ¢ descritas por meio de diferen- tes analogias extraidas de nossas idéias habituais. Com essa com- paracdo, é claro, de modo algum se pretende sugerir uma relagdo mais estreita entre a fisica atémica e a psicologia, mas apenas fri- sar uma questdo epistemolégica que é comum a ambos os cam- FILOSOFIA NATURAL E CULTURAS HUMANAS 35 pos, e, desse modo, nos incentivar a verificar até onde a solugdo de problemas fisicos relativamente simples pode ser util para es- clarecer as mais intricadas questées psicolégicas com que nos confronta a vida humana, e com as quais os antropélogos e etné- logos deparam com tanta freqiiéncia em suas investigacées. Agora, aproximando-nos mais de nosso tema — o da perti- néncia desses pontos de vista para a comparagao das diferentes culturas humanas —, frisaremos, de inicio, a tipica relagéo de complementaridade que existe entre os modos de comportamen- to dos seres humanos caracterizados pelas palavras “instinto” “azo”. Qualquer dessas palavras é usada em sentidos muito diferentes; instinto pode significar poder motivador ou compor- tamento herdado, e razao tanto pode denotar um juizo mais pro- fundo quanto uma argumentacdo consciente. O que nos interes- sa, entretanto, é apenas a maneira pratica como essas palavras sdo usadas para distinguir as diferentes situagdes em que se en- contram os animais ¢ o homem. Ninguém ha de negar, é claro, nosso pertencimento ao mundo animal, e seria até dificil en- contrar uma definicdo exaustiva que distinguisse o homem e os outros animais. A rigor, as possibilidades latentes de qualquer organismo vivo nao sao faceis de aquilatar, ¢ creio nao haver nenhum de nés que, em algum momento, nao tenha ficado pro- fundamente impressionado com o grau em que os animais de cir- co podem ser adestrados. Nem mesmo no que tange a transmis- so de informagdes de um individuo para outro seria possivel tragar uma distingao nitida entre os animais ¢ o homem, embora, € claro, nosso poder de usar a linguagem nos coloque, nesse aspecto, numa situacao essencialmente diferente, ndo apenas na troca de experiéncias prdticas como, antes de mais nada, na pos- sibilidade de transmitir As criangas, através da educacio, as tra~ dicdes referentes ao comportamento e ao raciocinio que com- poem a base de qualquer cultura humana. Com respeito 4 comparagio entre razao e instinto, é essencial, acima de tudo, reconhecer que nenhum pensamento humano pro- 36 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO priamente dito é imagin4vel sem a utilizagdo de conceitos, enun- ciados numa linguagem que cada geragdo tem que reaprender. Esse uso dos conceitos, de fato, nao apenas elimina a vida instintiva em larga medida, como também, em grau ainda maior, mantém uma relacdo tinica de complementaridade com o sortimento dos instin- tos herdados. Comparada 4 do homem, a espantosa superioridade dos animais inferiores na utilizagao das possibilidades da natureza para a manutengiio e a propagacao da vida decerto encontra sua verdadeira explicacdo, com freqiiéncia, no fato de que, nesses ani- mais, nao podemos identificar nenhum pensamento consciente, em nossa acepcio da palavra. Da mesma forma, a surpreendente capacidade dos chamados povos primitivos de se orientar em flo- restas ou desertos, a qual, embora aparentemente perdida nas so- ciedades mais civilizadas, pode ocasionalmente ser revivida em qualquer um de nés, talvez justifique a conclusio de que esses feitos 86 so possiveis quando nao se recorre ao pensamento con- ceitual, que, por sua vez, estd adaptado a finalidades muito mais variadas, de importancia fundamental para 0 desenvolvimento da civilizagao. Pelo simples fato de ainda nao haver despertado para 0 uso dos conceitos, uma crianga recém-nascida dificilmente pode ser considerada um ser humano; mas, por pertencer 2 espécie hu- mana, ela tem, é claro, apesar de ser uma criatura mais desampa- rada do que a maioria dos filhotes de animais, as possibilidades organicas de receber, através da educagio, uma cultura que lhe permitird ocupar seu lugar em alguma sociedade humana. Essas consideracées nos colocam prontamente diante da ques- to de saber se a difundida crenga em que toda crianga nasce com uma predisposigao para adotar uma cultura humana especifica é realmente bem fundada, ou se nao se deve presumir, antes, que qualquer cultura pode ser implantada e vicejar tendo suportes fi- sicos muito diferentes. Tocamos ai, é claro, num tema de con- trovérsias ainda nao resolvidas entre os geneticistas, que tém rea- lizado estudos muito interessantes sobre a heranga dos caracteres fisicos. No contexto desses debates, entretanto, devemos ter em FILOSOFIA NATURAL E CULTURAS HUMANAS 37 mente, acima de tudo, que a distingdo entre os conceitos de gené- tipo e fendtipo, tao fecunda para esclarecer a hereditariedade nas plantas e nos animais, pressupée essencialmente a influéncia se- cundaria das condigées externas de vida sobre as propriedades caracteristicas da espécie. No caso das caracteristicas culturais especificas das sociedades humanas, entretanto, o problema se inverte, no sentido de que a base da classificagao, nesse caso, séo os habitos tradicionais moldados pela histéria das sociedades e seus ambientes naturais. Esses habitos, assim como seus pressu- postos inerentes, devem ser detidamente analisados para que se possa avaliar qualquer possfvel influéncia das diferencas bioldgi- cas herdadas no desenvolvimento e na manutencao das culturas em causa. De fato, ao caracterizar diferentes nagdes e até diferen- tes familias dentro de uma nagao, podemos considerar os tragos bioldgicas e as tradigdes espirituais, em larga medida, como sen- do independentes uns dos outros. Seria inclusive tentador reservar 0 adjetivo “humano”, por definicao, pata as caracteristicas que nao estao diretamente ligadas 4 heranga corporal. A primeira vista, talvez pareca que essa atitude equivaleria a uma enfatizagdo indevida de aspectos meramente dialéticos. Mas a ligdo que recebemos de todo 0 crescimento das ciéncias fisicas é que o germe do desenvolvimento fecundo reside, com freqiiéncia, justamente na escolha adequada das definicées. Ao pensarmos, por exemplo, no esclarecimento trazido em varios ramos da cién- cia pela argumentacao da teoria da relatividade, vemos, efetiva- mente, 0 avango que pode haver nesses aperfeigoamentos formais. Como ja sugeri em momentos anteriores desta exposic¢do, os pon- tos de vista relativistas decerto também sao titeis para promover uma atitude mais objetiva para com as relagdes entre as culturas humanas, cujas diferencas tradicionais podem assemelhar-se, sob muitos aspectos, 4s maneiras diferentes e equivalentes pelas quais se pode descrever a experiéncia fisica. Contudo, essa analogia en- tre os problemas fisicos e os humanisticos tem um alcance limita- do, e seu exagero chegou a produzir uma apreensio equivocada da 38 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO esséncia da propria teoria da relatividade. A rigor, a unidade da imagem relativista do mundo implica, precisamente, a possibilida- de de que qualquer observador preveja, dentro de seu arcabouco conceitual, como um outro observador ird descrever a experiéncia dentro do arcabougo que lhe é natural. O principal obstaculo a uma atitude nao preconccituosa para com a relaco entre as varias culturas humanas, entretanto, s4o as diferencas profundamente arraigadas dos antecedentes tradicionais em que se baseia a har- monia cultural nas diferentes sociedades humanas, e que excluem qualquer comparagao simplista entre essas culturas. F nesse contexto, acima de tudo, que o ponto de vista da com- plementaridade se oferece como um meio de lidar com a situacao. De fato, ao estudarmos culturas humanas diferentes das nossas, temos que lidar com um problema particular de observacao que, ante um exame mais rigoroso, mostra muitos tragos em comum com os problemas atémicos ou psicolégicos, nos quais a intera- ¢40 dos objetos e dos instrumentos de medida, ou a inseparabi- lidade entre contetido objetivo e sujeito observador, impede uma aplicaco imediata das convengoes adequadas a explicagao das experiéncias da vida cotidiana. Especialmente no estudo das cul- turas de povos primitivos, os etndlogos nao apenas estao efetiva- mente cénscios do risco de corromper essas culturas através do contato necessdrio, como até se confrontam com o problema da repercussao desses estudos em sua prépria atitude humana. O da- do a que aludo aqui é a experiéncia, bastante conhecida dos ex- ploradores, do abalo imposto a seus preconceitos, até ent&éo nao reconhecidos, pela experiéncia da insuspeitada harmonia inter- na que a vida humana pode apresentar até mesmo em meio a convengées e tradigdes radicalmente diferentes das deles. Como um exemplo especialmente drastico, talvez eu possa lembrar-lhes, neste momento, até que ponto, em algumas sociedades, os papéis dos homens e das mulheres se invertem, nao apenas com respeito aos deveres domésticos e sociais, mas também no tocante ao com- portamento e 4 mentalidade. Ainda que muitos de nds, numa si- FILOSOFIA NATURAL E CULTURAS HUMANAS 39 tuagdo como essa, possamos talvez hesitar, a principio, em admi- tir a possibilidade de que seja um mero capricho do destino que as pessoas em questao tenham sua cultura especifica, e ndo a nossa, e€ que nds nao tenhamos a deles em vez da nossa, est4 claro que até a mais infima suspeita nesse aspecto implica um desvelamento da complacéncia nacional inerente a qualquer cultura humana alicercada em si mesma. Usando a palavra tal como é usada, na fisica atémica, para caracterizar a relac&o entre experiéncias obtidas por diferentes arranjos experimentais, e visualizaveis apenas por idéias mutua- mente excludentes, podemos dizer que as diferentes culturas hu- manas sao complementares entre si. Com efeito, cada uma dessas culturas representa um equilibrio harmonioso de convengoes tra- dicionais por cujo meio as potencialidades da vida humana po- dem manifestar-se, de um modo que nos revela novos aspectos de sua ilimitada riqueza e variedade. Naturalmente, nao ha possibili- dade, nesse campo, de nenhuma relagao absolutamente excluden- te, como as que se constatam entre experimentos complementares sobre 0 comportamento de objetos atémicos bem definidos, j4 que dificilmente haveria alguma cultura que se pudesse dizer ple- namente aut6noma. Ao contrdrio, todos sabemos, por numerosos exemplos, como 0 contato mais ou menos intimo entre diferentes sociedades humanas pode levar a uma fusao gradativa das tradi- ges, dando origem a uma cultura inteiramente nova. Nesse as- pecto, nem é preciso lembrar a importancia da miscigenagao das populagées, através da emigracao ou da conquista, para o avango da civilizagao humana. Na verdade, a grande perspectiva dos es- tudos humanistas talvez consista em eles contribuirem, através de um crescente conhecimento da histéria e do desenvolvimento cul- turais, para a eliminacdo gradativa dos preconceitos, que é a meta comum de todas as ciéncias. Como frisei no inicio desta exposigdo, esté muito além de mi- nha capacidade, é claro, contribuir de maneira direta para a solu- ¢40 dos problemas discutidos entre os especialistas neste congres- 40 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO so. Meu tinico propésito foi transmitir impressdes sobre uma pos- tura epistemolégica geral que fomos forgados a adotar, num cam- po tao distante das paixdes humanas quanto a anilise de simples experimentos fisicos. Nao sei, no entanto, se terei encontrado as palavras certas para lhes transmitir esta impressio e, antes de con- cluir, talvez me seja permitido relatar uma experiéncia que, certa vez, lembrou-me muito vividamente minhas deficiéncias nesse as- pecto. Para explicar a uma platéia que eu nao estava usando a palavra preconceito para produzir nenhuma condenagao de ou- tras culturas, referi-me, em tom de brincadeira, aos preconceitos tradicionais que os dinamarqueses alimentam em relagao a seus irmos suecos, situados |4 fora destas janelas na margem oposta do belo Oresund, com quem lutamos durante séculos dentro das préprias muralhas deste castelo, e de quem recebemos, pelo conta- to ao longo das eras, tao frutffera inspiragao. Bem, os senhores podem imaginar 0 choque que tive quando, depois de minha ex- posicao, um membro da platéia aproximou-se de mim e disse que no conseguia entender por que eu odiava os suecos. Obviamente, devo ter-me expressado de maneira muito confusa naquela oca- sido, e temo que também hoje tenha falado de modo muito obscu- ro. Ainda assim, espero nao ter falado com tanta falta de clareza a ponto de dar margem a mal-entendidos desse tipo quanto 4 orien- taco de meus argumentos. O debate com Einstein sobre problemas epistemolégicos na fisica atomica 1949 Ao ser convidado pelo Editor da série Filésofos Vivos a redigir um artigo para este volume,* no qual cientistas contemporaneos ho- menageiam as contribuig6es decisivas de Albert Einstein para o progresso da filosofia natural e reconhecem a divida de toda a nos- sa geragao para com a orientacdo que sua genialidade nos deu, re- fleti muito sobre a melhor maneira de explicar 0 quanto devo a ele em matéria de inspiracao. Nesse contexto, as muitas ocasides, ao longo dos anos, em que tive o privilégio de debater com Einstein os problemas epistemolégicos suscitados pelo moderno desenvolvi- mento da fisica atémica voltaram-me vividamente A lembranga, e achei que dificilmente eu poderia tentar fazer melhor do que forne- cer um relato dessas discussées, que me foram do maximo valor e estimulo. Espero também que o relato possa transmitir a circulos mais amplos uma impress&o de quao essencial foi a troca franca de idéias para 0 progresso num campo em que, vez aps outra, a ex- periéncia nova exigiu um reexame de nossas concepsées. Desde 0 comeco, a principal questo em debate foi a atitude a adotar perante o afastamento dos principios costumeiros da filo- sofia natural, caracteristico do desenvolvimento inédito da fisica * Trata-se do livro Albert Einstein: Philosopher-Scientist, Evanston, Illinois, The Library of Living Philosophers, Inc., v. 7, 1949. (N. do E.) 4r 42 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO que foi iniciado, no primeiro ano deste século, pela descoberta do quantum universal de acao por Planck. Essa descoberta, que revelou uma caracteristica de atomicidade nas leis da nature- za que superava em muito a antiga doutrina da divisibilidade li- mitada da matéria, de fato nos ensinou que as teorias classicas da fisica sdo idealizagdes, que s6 podem ser aplicadas de forma inambigua se todas as acdes envolvidas forem grandes em com- paragio com 0 quantum. A questéo em debate era saber se a re- nincia a um modo causal de descrever os processos atémicos, implicada nos esforcgos de lidar com essa situago, deveria ser encarada como um afastamento temporario de ideais a serem re- vividos em dltima instancia, ou se estarfamos diante de um passo irrevogavel para chegar 4 harmonia adequada entre a andlise ¢ a sintese dos fenémenos fisicos. Para descrever os antecedentes de nossas discussdes ¢ expor com a maxima clareza possivel os argumentos usados pelos pontos de vista contrastantes, achei ne- cessario deter-me um pouco na rememoracao de alguns aspectos do desenvolvimento para o qual o préprio Einstein contribuiu tao decisivamente. Como se sabe, a estreita relacio, originalmente elucidada por Boltzmann, entre as leis da termodinamica e as regularidades es- tatisticas exibidas pelos sistemas mecanicos com muitos graus de liberdade norteou Planck em sua engenhosa abordagem do pro- blema da radiagao térmica, levando-o a sua descoberta funda- mental. Enquanto, em seu trabalho, Planck interessou-se primor- dialmente por consideracées de carater essencialmente estatistico , com grande cautela, absteve-se de conclusées definitivas sobre a extensdo em que a existéncia do quantum acarretava um afasta- mento dos fundamentos da mecAnica e da eletrodinamica, a gran- de contribuig4o original de Einstein para a teoria quantica (1905) foi justamente o reconhecimento de como alguns fenémenos fisi- cos, tais como 0 efeito fotoelétrico, podem depender diretamente de efeitos quanticos individuais.' Nesses mesmos anos em que, na elaboragao de sua teoria da relatividade, Einstein langou novas © DEBATE COM EINSTEIN 43 bases para a ciéncia fisica, ele explorou com espitito intrépido os aspectos inéditos da atomicidade que apontavam para além do arcabouco da fisica classica. Com intuigao infalivel, Einstein foi gradativamente levado a conclusdo de que qualquer processo de radiacdo implica a emis- sdo ou a absorgao de quanta individuais de luz, ou “fotons”, que apresentam, respectivamente, energia e momento E=hv e P=ho, (1) onde h é a constante de Planck, enquanto ve oso 0 niimero de vibragGes por unidade de tempo e o numero de ondas por unidade de comprimento, respectivamente. Apesar de sua fertilidade, a idéia do foton gerou um dilema bastante imprevisto, 4 que qual- quer imagem corpuscular simples da radiacio seria irreconcilid- vel, obviamente, com os efeitos de interferéncia, que sio um as- pecto essencial dos fenémenos radiantes e s6 podem ser descritos nos termos de uma imagem ondulatéria. A agudeza desse dilema é enfatizada pelo fato de que os efeitos de interferéncia fornecem nosso tinico meio de definir os conceitos de freqiiéncia e compri- mento de onda, que entram nas préprias expressées da energia e do momento do féton. Nessa situagdo, nao havia como tentar empreender uma anili- se causal dos fenémenos radiantes, mas tao-somente, através do uso conjunto das imagens contrastantes, estimar as probabilida- des de ocorréncia dos processos individuais de radiagao. Todavia, € muito importante perceber que o recurso as leis da probabilida- de, nessas circunstancias, tem um objetivo essencialmente diferen- te do conhecido emprego das consideracées estatisticas como um meio pratico de explicar as propriedades de sistemas mecanicos de grande complexidade estrutural. De fato, na fisica quantica, nao nos confrontamos com complexidades desse tipo, mas com a incapacidade do quadro classico de conceitos de abarcar 0 trago peculiar da indivisibilidade, ou “individualidade”, que caracteri- Za Os processos elementares. 44 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO A falha das teorias da fisica classica em dar conta dos fend- menos at6micos foi ainda mais acentuada pelo avango de nossos conhecimentos sobre a estrutura dos 4tomos. Acima de tudo, a descoberta do niicleo atémico por Rutherford (1911) logo revelou como 0s conceitos mecanicos e eletromagnéticos classicos eram in- suficientes para explicar a estabilidade intrinseca do 4tomo. Aqui, mais uma vez, a teoria quantica forneceu uma pista para elucidar a situacdo. Em especial, verificou-se ser possivel explicar a estabili- dade atémica, bem como as leis empiricas que regem os espectros dos elementos, presumindo que qualquer reacdo do 4tomo que re- sulte numa alteracdo de sua energia implicava uma transigao com- pleta entre dois chamados estados quAnticos estacionarios, e que, em particular, os espectros eram emitidos por um processo abrup- to, em que cada transigdo era acompanhada pela emissao de um quantum de luz monocromitica, de energia exatamente igual 4 de um féton de Einstein. Essas idéias, que logo foram confirmadas pelos experimentos de Franck e Hertz (1914) sobre a excitacao de espectros pelo im- pacto dos elétrons nos 4tomos, provocaram uma nova rentincia a modalidade de descrigdo causal, j4 que, evidentemente, a interpre- tacao das leis espectrais implica que um dtomo em estado de exci- tac4o tem, em geral, a possibilidade de transigdes, com emissao de fétons, para um ou outro de seus estados de energia mais baixa. De fato, a prépria idéia de estados estaciondrios é incompativel com qualquer diretriz para a escolha entre essas transigdes, e da margem apenas 4 nogao das probabilidades relativas dos pro- cessos individuais de transigao. O tinico guia para estimar essas probabilidades era o chamado principio da correspondéncia, ori- gindrio da busca da mais estreita ligacao possivel entre a explica- c4o estatistica dos processos atémicos e as conseqiiéncias a serem esperadas da teoria cldssica, que deveria ser valida dentro dos li- mites em que as acdes envolvidas em todos os estagios da andlise dos fendmenos fossem grandes quando comparadas ao quantum universal. © DEBATE COM EINSTEIN 45 Nessa época, ainda nao se vislumbrava nenhuma teoria quan- tica dotada de coeréncia interna. A atitude vigente talvez possa ser ilustrada pela seguinte passagem de uma palestra feita pelo autor em 191 Espero ter-me expressado com suficiente clareza para que vo- cés possam avaliar o grau em que essas consideragoes entram em conflito com o esquema de concepgées admiravelmente coerente que, com acerto, se denominou de teoria classica da cletrodinamica. Por outro lado, tentei transmitir-lhes a im- pressdo de que — justamente pelo vigor desse conflito — tal- vez também seja possivel, no correr do tempo, estabelecer uma certa coeréncia nas novas idéias. Um importante avango no desenvolvimento da teoria quantica foi feito pelo proprio Einstein, em seu famoso artigo de 1917 so- bre o equilibrio radiante,} no qual ele mostrou que a lei de radia- go térmica de Planck podia ser deduzida, de forma simples, de pressupostos compativeis com as idéias basicas da teoria quan- tica da constituigdo dos 4tomos. Para esse fim, Einstein formulou regras estatisticas gerais sobre a ocorréncia de transigdes radian- tes entre os estados estacionarios, presumindo nao apenas que, quando o tomo é exposto a um campo de radiagao, os processos de absorgao e emissao ocorrem com uma probabilidade por uni- dade de tempo que é proporcional a intensidade da radiacao, mas também que, mesmo na auséncia de perturbagées externas, ocor- rem processos espontaneos de emisséo numa taxa correspon- dente a uma certa probabilidade a priori. Quanto a este ultimo ponto, Einstein enfatizou o carater fundamental da descrigo es- tatistica de maneira muito sugestiva, chamando a atengdo para a analogia existente entre os pressupostos relativos 4 ocorréncia das transigdes radiantes espontaneas ¢ as conhecidas leis que re- gem as transformagées das substancias radioativas. No contexto de um exame minucioso das exigéncias da termo- dinamica com respeito aos problemas da radiacio, Einstein frisou 46 FISICA ATOMICA FE CONHECIMENTO HUMANO ainda mais o dilema, assinalando que a argumentacao implicava que qualquer processo de radiagdo era “unidirecional”, no senti- do de que ndo s6 0 momento correspondente a um f6ton na dire- cdo da propagagio é transferido para um dtomo no proceso de absorgao, mas também de que 0 4tomo emissor recebe um impul- so equivalente na direcdo oposta, embora, na imagem ondulaté- ria, ndo se possa falar em preferéncia por uma diregao tinica num processo de emissao. A atitude do préprio Einstein perante essas surpreendentes conclusées foi expressa numa passagem no fim de seu artigo (loc. cit., p. 127s), que pode ser traduzida da seguinte maneira: Esses aspectos dos processos elementares parecem tornar qua- se inevitavel o desenvolvimento de um tratamento quantico apropriado da radiago. O ponto fraco da teoria reside em que, por um lado, nao se pode obter nenhuma ligago mais estreita com os conceitos ondulatérios, e, por outro, ela deixa ao acaso [Zufall] o tempo ¢ a direcdo dos processos elementa- res; nao obstante, tenho plena confianga na fidedignidade do caminho pelo qual se enveredou. Quando tive a grande experiéncia de me encontrar com Eins- tein pela primeira vez, durante uma visita a Berlim em 1920, essas questdes fundamentais foram o tema de nossas conversas. As dis- cussdes, as quais voltei com freqiiéncia em meu pensamento, acrescentaram a toda a minha admiracdo por Einstein uma pro- funda impressao quanto a sua atitude imparcial. Certamente, o uso que ele favorecia de expressées pitorescas, como “ondas fan- tasmas [Gespensterfelder] a guiar os fotons”, nao implicava ne- nhuma tendéncia ao misticismo, mas ilustrava, antes, um pro- fundo senso de humor por tras de suas penetrantes observagées. Contudo, persistiu uma certa diferenca de atitude e visao, ja que, com sua capacidade magistral de coordenar experiéncias aparen- temente contrastantes sem abandonar a continuidade e a causali- dade, Einstein talvez tenha relutado mais em renunciar a esses © DEBATE COM EINSTEIN 47 ideais do que alguém para quem a rentincia, nesse aspecto, se afi- gurasse a tinica maneira de prosseguir na tarefa imediata de coor- denar os miltiplos dados referentes aos fendmenos atémicos, que se acumulavam dia a dia na exploracao desse novo campo do conhecimento. Nos anos subseqiientes, durante os quais os problemas atémi- cos atrairam a atengao de um circulo cada vez maior de fisicos, as aparentes contradigGes inerentes 4 teoria quantica foram ainda mais agudamente sentidas. Iustrativo dessa situagao foi o debate suscitado pela descoberta do efeito de Stern-Gerlach em 1922. Por um lado, esse efeito deu marcante respaldo a idéia de estados esta- cionarios e, em particular, 4 teoria quantica do efeito Zeeman, desenvolvida por Sommerfeld; por outro, como foi muito clara- mente exposto por Einstein e Ehrenfest,* ele camulou de dificulda- des insuperaveis qualquer tentativa de se fazer uma imagem do comportamento dos 4tomos num campo magnético. Paradoxos similares foram suscitados pela descoberta, por Compton (1924), da alteragéo do comprimento de onda que acompanhava o es- palhamento dos raios X pelos elétrons. Esse fendmeno, como se sabe, proporcionou uma prova extremamente direta de como era adequada a opiniao de Einstein acerca da transferéncia de energia © momento nos processos radiantes; ao mesmo tempo, ficou igual- mente claro que nenhum modelo simplista de uma colisio cor- puscular podia oferecer uma descrigdo exaustiva do fenémeno. Sob o impacto dessas dificuldades, houve quem tivesse diividas, por algum tempo, até mesmo a respeito da conservagao da energia e do momento nos processos radiantes individuais;> mas essa vi- sao logo teve de ser abandonada, diante de experimentos mais aperfeigoados, que destacaram a correlagao entre a deflexao do féton e o recuo correspondente do elétron. A rigor, 0 terreno para o esclarecimento da situagdo seria ini- cialmente calgado pela elaboragao de uma teoria quantica mais abrangente. Um passo inicial em direcao a essa meta foi 0 reco- 48 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO nhecimento por De Broglie, em 1925, de que a dualidade onda- corpisculo no se restringia as propriedades da radiacao, mas era igualmente inevitavel na explicacdo do comportamento das particulas materiais. Essa idéia, que logo foi convincentemente confirmada por experiéncias com fenémenos de interferéncia de elétrons, foi prontamente acolhida por Einstein, que ja tinha vis- lumbrado a profunda analogia entre as propriedades da radia- cdo térmica e dos gases no chamado estado degenerado.* A no- va orientagio foi seguida com extremo éxito por Schrodinger (1926), que mostrou, em particular, como os estados estaciond- rios dos sistemas atémicos podiam ser representados pelas solu- cOes apropriadas de uma equagao de onda a cujo estabelecimen- to ele foi levado pela analogia formal, originalmente tragada por Hamilton, entre os problemas mecanicos e os 6pticos. Mesmo assim, os aspectos paradoxais da teoria quantica ndo s6 nao fo- ram sanados, mas foram até enfatizados pela aparente contra- dicdo entre as exigéncias do principio de superposicao geral da descri¢do ondulatéria e a caracteristica de individualidade dos processos atémicos elementares. Ao mesmo tempo, Heisenberg (1925) havia langado as bases de uma mecanica quantica racional, rapidamente desenvolvida mediante importantes contribuigdes de Born e Jordan, bem como de Dirac. Nessa teoria, introduziu-se um formalismo em que as varidveis cinematicas e dindmicas da mecdnica classica foram substitufdas por simbolos sujeitos a uma Algebra nao comutativa. A despeito da renuincia as imagens orbitais, as equagdes canénicas da mecAnica de Hamilton mantiveram-se inalteradas, e a constan- te de Planck entrou somente nas regras de comutagéo Va gp - pq=N-15— (2) t aplicaveis a qualquer conjunto de varidveis conjugadas q ¢ p. ‘Através de uma representacao dos simbolos por matrizes com ele- mentos referentes as transigGes entre os estados estacionarios, tor- © DEBATE COM EINSTEIN 49 nou-se possivel, pela primeira vez, uma formulacdo quantitativa do principio da correspondéncia. Convém lembrar aqui que um importante passo preliminar em direcdo a essa meta foi dado pelo estabelecimento, sobretudo pelas contribuigdes de Kramers, de uma teoria quantica da dispersdo, que se serviu basicamente das regras gerais de Einstein sobre a probabilidade de ocorréncia dos processos de absorgao e emissao. Esse formalismo da mecdnica quantica logo revelou, através de Schrédinger, fornecer resultados idénticos aos obteniveis pelos métodos amitide mais convenientes, em termos matemAticos, da teoria ondulatéria. Aos poucos, nos anos subseqiientes, estabe- leceram-se métodos gerais para uma descrigdo essencialmente quantitativa dos processos atémicos, combinando as caracteris- ticas de individualidade e os requisitos do principio de superposi- ¢40, igualmente caracteristico da teoria quantica. Dentre os mui- tos avancos desse perfodo, podemos mencionar, em especial, que o formalismo revelou-se capaz de incorporar o principio de ex- clusdo que rege os estados dos sistemas com diversos elétrons, e que, antes mesmo do advento da mecnica quantica, j4 fora de- duzido por Pauli de uma andlise dos espectros atémicos. A com- preensdo quantitativa de um vasto volume de dados empiricos nao podia deixar dividas quanto 4 fecundidade e & adequagao do formalismo quantico, mas seu cardter abstrato deu origem a um sentimento muito difundido de mal-estar. Na verdade, elucidar a situagdo iria exigir um exame minucioso do proprio problema observacional da fisica atémica. Essa fase do desenvolvimento foi, como se sabe, iniciada em 1927 por Heisenberg,” que assinalou que 0 conhecimento obteni- vel sobre o estado de um sistema atémico sempre envolveria uma “indeterminagao” peculiar. Qualquer medida da posicdo de um elétron por meio de um aparelho, tal como 0 microscépio, que utilize radiagdo de alta freqiiéncia estard, segundo as relagées fun- damentais (1), ligada a uma troca de momento entre o elétron eo instrumento de medida, que sera tao maior quanto mais exata for 50 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO a medida da posigao que se procurar obter. Comparando essas consideragdes com as exigéncias do formalismo quantico, Heisen- berg chamou atencdo para o fato de que a regra de comuta¢ao (2) imp6e uma limitagdo reciproca na fixacéo de duas variaveis con- jugadas, q ¢ p, expressas pela relagao Aq-Ap~b, (3) onde Aq e Ap sao incertezas* em p e q adequadamente definidas na determinagio dessas varidveis. Ao apontar para a intima liga- cdo entre a descrigdo estatistica da mecAnica quantica ¢ as possibi- lidades efetivas de medida, essa chamada relagao de indetermina- ¢o** foi, como mostrou Heisenberg, de suma importancia para elucidar os paradoxos envolvidos nas tentativas de analisar os efei- tos quanticos tendo como referéncia as visdes fisicas costumeiras. O novo progresso da fisica atémica foi comentado sob varios Angulos no Congreso Internacional de Fisica realizado em Como, em setembro de 1927, em comemoragao a Volta. Numa palestra feita nessa ocasiao, defendi um ponto de vista convenientemente denominado “complementaridade”, proprio para abranger os tra- cos caracteristicos de individualidade dos fendmenos quanticos e, ao mesmo tempo, esclarecer os aspectos peculiares do problema observacional nesse campo da experiéncia. Para esse fim, € decisi- vo reconhecer que, por mais que os fendmenos transcendam o dm- bito da explicagao fisica cldssica, a descrig&o de todos os dados deve ser expressa em termos classicos, O argumento é que, com a Aqui e em outras passagens, preferimos usar “incerteza”, como € mais co- mum, embora Bohr tenha utilizado latitude. Ambas as expressdes se refe- rem & largura do intervalo em que uma varivel fisica pode ser encontrada num ato de medida. (N. do 8.) ** A expressio usual é “principio de incerteza de Heisenberg”. Preferimos manter a forma “relagdo de indeterminacio”, que traduz literalmente a expresso usada pelo autor e é mais afinada com sua interpretagao dos fenémenos quanticos. (N. do R.) © DEBATE COM EINSTEIN 5 palavra “experimento”, referimo-nos a uma situagdo em que po- demos dizer aos outros o que fizemos e 0 que aprendemos, e que, portanto, a explicagdo do arranjo experimental e dos resultados das observagées deve ser expressa numa linguagem inambigua, com a aplicagio adequada da terminologia da fisica classica. Esse ponto crucial, que iria tornar-se um grande tema dos de- bates relatados a seguir, implica a impossibilidade de qualquer separagao nitida entre 0 comportamento dos objetos atémicos e a interacao com os instrumentos de medida que servem para definir as condicées em que os fendmenos aparecem. De fato, a indivi- dualidade dos efeitos quanticos tipicos encontra expresso apro- priada no fato de que qualquer tentativa de subdividir os fendme- nos exige uma mudanga do arranjo experimental, introduzindo novas possibilidades de interagao entre os objetos ¢ os instrumen- tos de medida, as quais, em principio, nao podem ser controladas. Consegiientemente, os dados obtidos em diferentes condigoes ex- perimentais nao podem ser compreendidos dentro de um quadro tinico, mas devem ser considerados complementares, no sentido de que s6 a totalidade dos fendmenos esgota as informagoes pos- siveis sobre os objetos. Nessas circunstancias, ha um elemento essencial de ambigiti- dade quando se conferem atributos fisicos convencionais aos ob- jetos atémicos, como logo se evidencia no dilema relativo as pro- priedades corpusculares e ondulatérias de elétrons e fotons, no qual lidamos com imagens contrastantes, cada qual referindo-se a um aspecto essencial dos dados empiricos, Um exemplo ilustra- tivo de como os aparentes paradoxos so eliminados por um exa- me das condigées experimentais em que aparecem os fendmenos complementares também é fornecido pelo efeito Compton, cuja descrig&o coerente nos apresentou, a principio, dificuldades tao agudas. Assim, qualquer arranjo adequado para estudar a troca de energia e momento entre o elétron e o féton deve acarretar, na descrigdo espaco-temporal da interac4o, uma incerteza suficiente para definir o ntimero de ondas e a freqiténcia que entram na rela- 52 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO cdo (1). Inversamente, em virtude da inevitavel interagdo com as escalas fixas e os relégios que definem o referencial do espaco- tempo, qualquer tentativa de localizar com maior exatidao a coli- sdo entre o féton e o elétron excluiria qualquer descrigéo mais precisa com respeito ao balango entre o momento e a energia. Como foi enfatizado na palestra, um instrumento adequado a um modo de descricio complementar é oferecido, precisamente, pelo formalismo quantico, que representa um esquema puramen- te simbélico que s6 permite previsées, nos termos do principio da correspondéncia, quanto aos resultados que podem ser obtidos em condigées especificadas através de conceitos classicos. Con- vém lembrar aqui que, até na relacdo de indeterminagao (3), lida- mos com uma implicagao do formalismo que desafia uma expres- so inambigua, em termos adequados para descrever os pontos de vista fisicos classicos. Assim, uma frase como “nao podemos co- nhecer 0 momento € a posigdo de um objeto atémico” desde logo levanta questées relativas a realidade fisica desses dois atributos do objeto, as quais s6 podem ser respondidas mediante uma refe- réncia 4s condigdes do uso inambiguo dos conceitos espaco-tem- porais, de um lado, e as leis de conservagao dinamicas, de outro. Embora a combinagao desses conceitos no quadro tinico de uma cadeia causal de acontecimentos seja a esséncia da mecAnica clas- sica, o espaco para regularidades que ficam fora do alcance dessa descrigdo é proporcionado, justamente, pela circunstancia de que o estudo dos fendmenos complementares requer arranjos experi- mentais mutuamente excludentes. Na fisica atémica, a necessidade de um exame renovado das bases do uso inambiguo de idéias fisicas elementares lembra, de certa maneira, a situagdo que levou Einstein a sua revisdo original da base de toda a aplicacao dos conccitos de espago-tempo, que, por sua énfase na importancia primordial do problema observa- cional, emprestou tamanha unidade a nossa imagem do mundo. A despeito de todo 0 ineditismo da abordagem, na teoria da rela- tividade a descrigdo causal € sustentada com qualquer sistema de © DEBATE COM EINSTEIN 53 referéncia considerado. Na teoria quantica, a interacao incontro- lavel dos objetos e dos instrumentos de medida forca-nos a uma rentincia até mesmo nesse aspecto. Esse reconhecimento, ade- mais, de modo algum aponta para uma limitacao do alcance da descrig&o quantica, e o sentido de toda a argumentag4o exposta na palestra feita em Como foi mostrar que 0 ponto de vista da complementaridade pode ser considerado como uma generaliza- cao racional do préprio ideal de causalidade. No debate geral em Como, todos nés sentimos a falta de Eins- tein, mas, pouco tempo depois, em outubro de 1927, tive a opor- tunidade de encontra-lo em Bruxelas, na V Conferéncia de Fisica do Instituto Solvay, que foi dedicada ao tema “Elétrons e fétons”. Nas reunides do Solvay, Einstein fora, desde o comego, uma fi- gura de extremo destaque. Varios de nés comparecemos & confe- réncia com grandes expectativas quanto 4 reacao dele ao estagio mais recente do desenvolvimento, que, a nosso ver, ajudava a esclarecer os problemas que ele mesmo levantara, desde 0 inicio, de maneira tao engenhosa. Durante os debates, nos quais todo © assunto foi revisto através de contribuigdes vindas de muitas partes, e onde os argumentos mencionados nas paginas anteriores também voltaram a ser apresentados, Einstein expressou, no en- tanto, uma profunda preocupacao quanto ao grau em que a expli- cago causal no espago e no tempo era abandonada na mecanica quantica. Para ilustrar sua atitude, Einstein referiu-se, numa das sesses,? ao exemplo simples, ilustrado pela figura 1, de uma particula (elé- tron ou féton) que, por um orificio ou uma abertura estreita, passasse através de HTN : \ «{ um diafragma situado a uma certa distan- He WN) ao cia de uma chapa fotografica. Em virtude ITNT |’ 1 aa difracao da onda, ligada ao movimen- to da particula e indicada na figura pelas FIGURA 1 linhas finas, nao € possivel prever com 54 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO| certeza, nessas condicées, em que ponto o elétron chegara 4 chapa fotografica, mas apenas calcular a probabilidade de que, num ex- perimento, ele seja encontrado dentro de uma regido qualquer da chapa. Nessa descrigdo, a aparente dificuldade, que Einstein sentiu com tanta agudeza, esta no fato de que, se o elétron for registrado no experimento num ponto A da chapa, estard fora de questéo observar um efeito desse elétron num outro ponto (B), embora as leis da propagacao usual da onda nao déem margem alguma para que esses dois eventos sejam correlacionados dessa forma. Aatitude de Einstein deu margem a discussdes acaloradas num pequeno circulo, do qual Ehrenfest, que por anos fora amigo inti- mo de nés dois, participou de maneira muito ativa € proveitosa. Decerto, todos reconhecemos que, no exemplo acima, a situacao ndo apresenta nenhuma analogia com a aplicacao da estatistica para lidar com sistemas mecdnicos complexos, mas faz lembrar, antes, os antecedentes das primeiras conclusées do proprio Eins- tein sobre a unidirecionalidade dos efeitos da radiagao individual, que contrasta tao vigorosamente com uma imagem ondulatéria simples. Mas as discussées centraram-se na questao de determi- nar se a descrigéo da mecAnica quantica esgotava as possibilida- des de explicar fenémenos observaveis, ou se, como sustentava Einstein, a andlise podia ser levada adiante e, em especial, se uma descrigdo mais completa dos fendmenos poderia ser obtida levan- do-se em conta o balango detalhado da energia e do momento nos processos individuais. Para explicar a linha dos argumentos de Einstein, talvez seja ilustrativo examinar, aqui, alguns aspectos simples do balango en- tre momento ¢ energia ligados a localizagdo de uma particula no espago € no tempo. Para esse fim, examinaremos 0 caso simples de uma particula que penetre por um orificio num diafragma, sem ou com um obturador para abrir e fechar 0 orificio, como indicam as figuras 2a e 2b, respectivamente. As linhas paralelas equidistantes 8 esquerda das figuras indicam a série de ondas planas correspon- dente ao estado de movimento de uma particula que, antes de che- O DEBATE COM EINSTEIN 55 | gar ao diafragma, tem um momento P, rela- ah )) cionado com o néimero de ondas ¢ conforme a segunda das equagoes (1). De acordo com a difraco das ondas ao atravessarem 0 orificio, o estado de movimento da particula 4 direita | do diafragma é representado por uma série de if )) ondas esféricas, com uma abertura angular @ FIGURA 2a | | adequadamente definida e, no caso da figura : | 2b, também com uma extensio radial limita- da. Conseqiientemente, a descricao desse esta- do envolve uma certa incerteza Ap no compo- nente de momento da particula que € paralelo ao diafragma, e, no caso de um diafragma com obturador, uma incerteza adicional AE da energia cinética. Jé que uma medida da incerteza Aq na localizacao da particula no plano do diafragma é fornecida pelo raio a do orificio, e j4 que @= 1/oa, obtemos, usando (1), apenas Ap ~ OP = h/Aq, de acor- do com a relagdo de indeterminagao (3). Este resultado também FIGURA 2b poderia ser diretamente obtido, é claro, notando-se que, em virtu- de da extensao limitada do campo de onda no lugar da abertura, a componente do ntimero de ondas paralela ao plano do diafrag- ma acarretara uma incerteza Ao ~ 1/a = 1/Aq. Da mesma forma, a difusdo das freqiiéncias dos componentes harménicos da série ondulatéria limitada da figura 2b é, evidentemente, Av~ 1/At, onde At é 0 intervalo de tempo durante o qual o obturador deixa 0 orificio aberto; portanto, representa a incerteza temporal da passagem da particula pelo diafragma. A partir de (1), obtemos AE-At~h, (4) novamente de acordo com a relagao (3) para as duas varidveis conjugadas E e t. Do ponto de vista das leis de conservagao, a origem dessas in- certezas que entram na descrigdo do estado da particula depois de sua passagem pelo orificio pode ser rastreada até as possibilidades 56 Fisica ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO, de troca de momento e energia com 0 diafragma ou o obturador. No sistema de referéncia considerado nas figuras 2a e 2b, a veloci- dade do diafragma pode ser desconsiderada, e apenas uma troca de momento Ap entre a particula e o diafragma precisa ser leva- da em consideracdo. O obturador, contudo, que deixa 0 orificio aberto durante o tempo Af, move-se com uma velocidade conside- ravel, v ~ a/At, e portanto, uma transferéncia de momento Ap im- plica uma troca de energia com a particula, que corresponde a Ee At At? v Ap sendo exatamente da mesma ordem de grandeza da incerteza AE fornecida por (4) e, portanto, permitindo o balango do momento e da energia. O problema levantado por Einstein foi, entao, saber até que ponto um controle da transferéncia de energia e de momento, envolvida numa localizacao da particula no espago e no tempo, poderia ser usado para uma especificacao adicional do estado da particula depois de ela atravessar 0 orificio. Aqui, convém levar em consideracao que a posigao e o movimento do diafragma edo obturador, até este ponto, foram presumidos como exatamente localizados no referencial espago-temporal. Esse pressuposto im- plica, na descricio do estado desses corpos, uma incerteza essen- cial quanto a seu momento e energia, que obviamente nao preci- sam afetar de maneira expressiva as velocidades, se 0 diafragma e o obturador forem suficientemente pesados. Entretanto, téo logo queremos conhecer 0 momento e a energia dessas partes do dis- positivo de mensurac&o, com precisdo suficiente para controlar a troca de momento e energia da particula investigada, perdemos, de acordo com as relagées gerais de indeterminagao, a possibilida- de de localiz4-la exatamente no espago e no tempo. Logo, temos que examinar até que ponto essa circunstancia afetara 0 uso pre- tendido de todo o dispositivo e, como veremos, esse aspecto cru- cial destaca claramente o cardter complementar dos fendmenos. © DEBATE COM EINSTEIN 57 Voltando por um momento ao caso do arranjo simples indica- do na figura 1, no se especificou, até aqui, a que uso ele se desti- na. Na verdade, é somente ao se presumir que o diafragma e a chapa tém posigdes bem definidas no espaco que é impossivel, no contexto do formalismo quantico, fazer previsdes mais detalha- das quanto ao ponto da chapa fotografica em que a particula se- ra registrada. Se admitirmos, no entanto, uma incerteza suficien- temente grande no conhecimento da posigao do diafragma, sera possivel, em principio, controlar a transferéncia de momento para o diafragma e, com isso, fazer previsées mais detalhadas quanto A direcdo da trajetéria do elétron desde 0 orificio até o ponto re- gistrado. Quanto a descrigéio quantica, temos que lidar aqui com um sistema de dois corpos, composto tanto pelo diafragma quan- to pela particula, e é justamente com uma aplicacao explicita das leis de conservagao a um sistema como esse que nos preocupamos no efeito Compton, no qual, por exemplo, a observagao do recuo do elétron por meio de uma cAmara-de-nuvens [ou camara de Wilson] nos permite prever em que diregdo o f6ton que sofreu dispersdo acabard podendo ser observado. A importancia desse tipo de ti | at y sil) mY | a consideragées, no decorrer dos aD debates, foi esclarecida de ma- neira muito interessante pelo icv 3 exame de um arranjo em que, entre o diafragma com a abertura e a chapa fotogréfica, insere-se um outro diafragma com duas aberturas paralelas, como é mos- trado na figura 3. Se, vindo da esquerda, um feixe paralelo de elétrons (ou fétons) atingir o primeiro diafragma, observaremos na chapa, em condig6es usuais, uma figura de interferéncia (fran- jas), indicada pelo sombreamento da chapa fotografica que apa- rece em visdo frontal 4 direita da figura. Com feixes intensos, esse padrao € construfdo pela acumulagao de um grande namero de processos individuais, cada um dos quais dé origem a um peque- 58 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO no ponto na chapa fotografica, e a distribuigao desses pontos se- gue uma lei simples, dedutivel da andlise ondulatoria. A mesma distribuicdo também devera ser encontrada na descrigao estatisti- ca de muitos experimentos, efetuados com feixes tao ténues que, numa tinica exposicao, apenas um elétron (ou foton) chega a cha- pa fotografica em algum ponto, exibido na figura como uma es- trelinha. Uma vez que agora, como é indicado pelas setas ponti- Ihadas, 0 momento transferido para o primeiro diafragma devera ser diferente, caso se tenha presumido que o elétron passou pela fenda superior ow pela fenda inferior do segundo diafragma, Bins- tein sugeriu que o controle da transferéncia de momento permiti- ria uma andlise mais rigorosa do fendmeno e, em particular, pos- sibilitaria decidir por qual das duas fendas o elétron teria passado antes de chegar a chapa. Um exame mais rigoroso, entretanto, mostrou que o controle sugerido da transferéncia de momento implicaria uma incerteza no conhecimento da posigao do diafragma que climinaria o surgimen- to dos fendmenos de interferéncia em questao. De fato, se @ é 0 pequeno Angulo entre as trajetrias hipotéticas de uma particula que atravesse as fendas superior ou inferior, a diferenca da transfe- réncia de momento nesses dois casos sera, de acordo com (1), igual a hoa, ¢ qualquer controle do momento do diafragma com exa- tidao suficiente para medir essa diferenca implicard, em virtude da relacdo de indeterminagao, uma incerteza na posi¢io do dia- fragma da ordem de, pelo menos, 1/ow. Se, como na figura, 0 diafragma com as duas fendas for colocado no meio, entre 0 pri- meiro diafragma e a chapa fotografica, veremos que 0 ntimero de franjas por unidade de comprimento sera justamente igual a ow. Ja que uma incerteza na posigio do primeiro diafragma, da ordem de 1/oo, causaré uma incerteza igual nas posigdes das franjas, decor- re dai que nenhum efeito de interferéncia poderd aparecer. E facil demonstrar que o mesmo resultado se aplica a qualquer outro po- sicionamento do segundo diafragma entre o primeiro e a chapa, € também seria obtenivel se, em vez do primeiro diafragma, outro © DEBATE COM EINSTEIN 59 desses trés corpos fosse usado para controlar, para a finalidade sugerida, a transferéncia de momento. Esse ponto é de grande importancia légica, uma vez que somente a circunstancia de nos ser apresentada uma escolha entre tracar a trajetoria de uma particula ou observar os efeitos de interferéncia permite que escapemos da necessidade paradoxal de concluir que o comportamento de um elétron ou de um féton deve depender da presenca de uma fenda no diafragma através da qual se possa pro- var que ele no passa. Lidamos aqui com um tipico exemplo de como os fenémenos complementares aparecem em arranjos expe- rimentais mutuamente excludentes (cf. p. 51) e ficamos diante da impossibilidade, na andlise dos efeitos quanticos, de tragar qualquer distingdo clara entre um comportamento independente dos objetos atOmicos e sua interagéo com os instrumentos de medida que ser- vem para definir as condigdes em que os fendmenos ocorrem. Nossas conversagées sobre a atitude a tomar diante de uma situacao inédita, com respeito a andlise e 4 sintese, tocaram, na- turalmente, em muitos aspectos do pensamento filos6fico, mas, apesar de todas as divergéncias de abordagem e opiniao, um espi- rito muito bem-humorado animou os debates. Einstein pergun- tou-nos em tom de troga se realmente acreditavamos que 0 bom Deus jogava dados (*... ob der liebe Gott wiirfelt), ao que re- truquei apontando para a grande cautela, j4 recomendada pelos pensadores antigos, ao se conferirem atributos 4 Providéncia na linguagem cotidiana. Lembro-me também de que, no auge da dis- cussao, Ehrenfest, com seu jeito afetuoso de implicar com os ami- gos, aludiu jocosamente a aparente semelhanca entre a atitude de Einstein e a dos oponentes da teoria da relatividade; mas, no instante seguinte, ele acrescentou que nao teria sossego enquanto nao se chegasse a um acordo com Einstein. O interesse e a critica de Einstein deram-nos a todos um incenti- vo muito valioso para que reexamindssemos os diversos aspectos da situagao concernente a descricdo dos fendmenos atémicos. Para 60 F{SICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO, mim, foi um estimulo muito bem-vindo esclarecer ainda mais 0 papel desempenhado pelos instrumentos de medida, de modo que, para ressaltar bastante o cardter mutuamente excludente das con- dices experimentais em que os fendmenos de complementarida- de aparecem, tentei, nessa época, esbogar varios aparelhos em esti- lo pseudo-realista, dos quais as figuras que se seguem constituem exemplos. Assim, para o estudo de um fenémeno de interferéncia do tipo indicado na figura 3, sugere-se usar um arranjo experimen- tal como o mostrado na figura 4, onde as partes sélidas do apare- Iho, servindo de diafragmas e porta-chapas, sao firmemente aparafusadas num suporte co- mum, Num dispositivo como esse, no qual o conhecimento das posigdes relativas dos dia- fragmas e da chapa fotografica é garantido por uma rigida co- nexo, é obviamente impossivel controlar o momento trocado en- tre a particula e as partes separadas do aparelho. A tinica mancira, nesse arranjo, de garantirmos que a particula passe por uma das fendas do segundo diafragma é cobrir a outra com uma portinho- la, como indicado na figura; mas, se a fenda for fechada, nao have- FIGURA 4 14, é claro, nenhum fenémeno de interferéncia, e simplesmente ob- servaremos na chapa uma distribuicdo continua, como no caso do diafragma fixo tinico mostrado na figura 1. No estudo dos fenédmenos para cuja explicagao lidamos com um balanco detalhado do momento, algumas partes do dispositi- vo completo devem ter, naturalmente, a liberdade de se movimen- tar independentemente das demais. Um aparelho desse tipo é es- quematizado na figura 5, onde um diafragma com uma fenda é pendurado por molas finas num suporte sélido atarraxado a base, 4 qual outras partes iméveis do dispositivo também devem ficar presas. A escala do diafragma, junto com 0 ponteiro na lateral do suporte, refere-se a estudos do movimento do diafragma que pos- © DEBATE COM EINSTEIN 61 sam ser necessarios para uma estimativa do momento transferido para ele, permitindo que se tirem conclusées quanto a deflexio sofrida pela particula na passagem pela fenda. Entretanto, j4 que qualquer leitura da escala, como quer que seja efetuada, implicara uma variacao incontroldvel no momento do diafragma, sempre haver, de acordo com o principio de indeterminagao, uma rela- co reciproca entre nosso conhecimento da posigao da fenda e a exatiddo do controle do momento. Nesse mesmo estilo semi-sério, a figura 6 representa parte de um aparelho adequado ao estudo de fendmenos que, em contraste com os que acabamos de discutir, implicam explicitamente a loca- lizagdo temporal. Ele consiste num obturador rigidamente conec- tado a um relégio robusto, apoiado na base, que tem um diafrag- ma e na qual também devem ser fixadas outras pecas de cardter similar, reguladas pelo mesmo relégio ou por outros, padroniza- dos em relacao a ele. O objetivo especial da figura é enfatizar que um relégio é uma maquina cujo funcionamento pode ser com- pletamente explicado pela mecanica comum, e que nao é afetada nem pela leitura da posigdo de seus ponteiros nem pela interacdo de seus acessérios e de uma particula atémica. Assegurando a abertura do orificio num momento definido, um aparelho desse tipo poderia ser usado, por exemplo, para uma medi¢a0 exata do tempo que leva um elétron ou um féton para ir do diafragma até algum outro lugar, mas, evidentemente, nao daria nenhuma pos- sibilidade de controlar a transferéncia de energia para o obtu- rador, no intuito de tirar conclusées quanto a energia da particula que passa pelo diafragma. Se estivermos interessados nessas conclusées, de- veremos, é claro, usar um arranjo em que os dis- Ppositivos de obturagao ja ndo poderdo servir de relégios exatos, mas em que o conhecimento do instante em que o orificio do diafragma é aber- to implicaré uma incerteza ligada a preciso da Figura § _ mensuraciio da energia pela relacao geral (4). 62 FisICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO A consideragao desses dispositivos mais ou menos praticos e de seu uso mais ou menos ficticio revelou-se muito instrutiva para dirigir a atengo para certos aspectos essenciais dos problemas. O principal, aqui, é a distingao entre os objetos investigados e os instrumentos de medida que servem para definir, em termos classi- cos, as condigdes em que os fendmenos aparecem. A propésito, podemos assinalar que, para ilustrar as consideracées precedentes, nao é relevante constatar que os experimentos que implicam um controle exato da transferéncia de momento ou de energia das par- ticulas atémicas para corpos pesados, como os diafragmas e os obturadores, seriam muito di- ficeis de efetuar, se é que se- riam exeqiiiveis. A tinica coisa decisiva é que, em contraste com 0s instrumentos de medi- da apropriados, esses corpos, juntamente com as particulas, constituiriam, nesse caso, 0 sis- tema a que teria que ser apli- cado 0 formalismo quantico. FIGURA 6 Com respeito A especificacéio das condigées para uma aplicagao bem definida do formalismo, é ainda essencial que todo 0 dispositivo experimental seja levado em conta. Na verdade, a introduc&o de qualquer outro aparelho na trajet6ria de uma particula, como um espelho, por exemplo, pode- ria produzir novos efeitos de interferéncia, que influenciariam es- sencialmente nas previsées referentes aos resultados a serem final- mente registrados. O grau em que a reniincia a visualizagdo dos fendmenos atomi- cos nos é imposto, pela impossibilidade de sua subdivisao, é ex- pressivamente ilustrado pelo exemplo seguinte, para o qual Eins- tein chamou a atengio desde cedo e ao qual voltou muitas vezes. Quando um espelho semi-refletor é colocado na trajetoria de um foton, deixando duas possibilidades para sua direcdo de propaga- © DEBATE COM EINSTEIN 63 ao, o foton pode, ou ser registrado numa e apenas numa de duas chapas fotogrdficas situadas a grandes distancias nas duas diregdes em questo, ou entao, em se substituindo as chapas por espelhos, podemos observar efeitos que exibem uma interferéncia entre as duas séries ondulatorias refletidas. Assim, em qualquer tentativa de representacao pictérica do comportamento do féton, depara- tiamos com esta dificuldade: sermos obrigados a dizer, por um lado, que o foton sempre escolhe uma das duas trajetérias e, por outro, que se comporta como se houvesse passado por ambas. So justamente os argumentos desse tipo que relembram a im- possibilidade de subdividir os fenomenos quanticos e revelam a ambigiiidade de qualquer imputacao de atributos fisicos habi- tuais aos objetos atémicos. Em particular, convém perceber que — sem contar a descrigao do posicionamento e da regulagem de tempo dos instrumentos que compdem 0 dispositivo experimen- tal — qualquer utilizacao inambfgua de conceitos espaco-tempo- rais na descrigéo dos fenémenos atémicos limita-se ao registro de observages que se referem a marcas numa chapa fotografica, ou a efeitos de amplificacdo similares, praticamente irreversiveis, como 0 crescimento de uma gota d’4gua em volta de um fon nu- ma cdmara-de-nuvens. Embora, é claro, a existéncia do quantum de acdo seja responsdvel, em tiltima instancia, pelas propriedades dos materiais de que sao construfdos os instrumentos de medida e dos quais depende o funcionamento dos dispositivos de regis- tro, essa circunstancia nao é relevante para os problemas da ade- quacao e da completude da descrigdo quantica em seus aspectos aqui discutidos. Esses problemas foram instrutivamente comentados, sob dife- rentes Angulos, na reuniao do Solvay,!° na mesma sesso em que Einstein levantou suas objegées gerais. Nessa ocasiao, surgiu tam- bém um interessante debate a respeito de como falar do apareci- mento de fendmenos sobre os quais s6 se podem fazer previsées de carater estatistico. A questao era se, com respeito 4 ocorréncia de efeitos individuais, deveriamos adotar uma terminologia pro- 64 Fisica ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO posta por Dirac, dizendo que estavamos interessados numa esco- tha feita pela “natureza”, ou se, como sugerido por Heisenberg, deverfamos dizer que estavamos lidando com uma escolha do “observador” que constréi os instrumentos de medida e faz a lei- tura de seus registros. Qualquer terminologia desse tipo, entre- tanto, pareceria dtibia, j4 que, por um lado, nao é propriamente razoavel dotar a natureza de volig&o, no sentido corriqueiro, en- quanto, por outro, certamente nao € possivel que o observador influa nos acontecimentos passiveis de surgir nas condig6es que ele instaura. A meu ver, nao ha outra alternativa sendo admitir que, nesse campo da experiéncia, lidamos com fenémenos indivi- duais, e que nossas possibilidades de manejar os instrumentos de medida s6 nos permitem fazer uma escolha entre os diferentes ti- pos complementares de fendmenos que queremos estudar. Os problemas epistemoldgicos em que tocamos aqui foram mais explicitamente examinados em minha contribuicdo para a edigdo de Naturwissenschaften que comemorou o septuagésimo aniversdrio de Planck, em 1929. Naquele artigo, também foi feita uma comparacio entre a ligdo extraida da descoberta do quantum universal de ago e o desenvolvimento que se seguiu a descoberta da velocidade finita da luz e que, através do trabalho pioneiro de Einstein, trouxe tio grande esclarecimento sobre alguns princfpios basicos da filosofia natural. Na teoria da relatividade, a énfase no fato de que todos os fendmenos dependem do sistema de referén- cia abrira caminhos inéditos para se descobrirem leis gerais da fisi- ca, de alcance impar. Na teoria quantica, afirmei, a compreensao légica de regularidades fundamentais antes insuspeitadas, regendo os fenédmenos atomicos, exigira o reconhecimento de que nao se pode fazer nenhuma separacao nitida entre 0 comportamento in- dependente dos objetos e sua interagdo com os instrumentos de medida que definem o sistema de referéncia. Nesse aspecto, a teoria quantica apresenta-nos uma situagao inédita na ciéncia fisica, mas chamei atengdo para a analogia mui- to estreita, no tocante a andlise e a sintese da experiéncia, com a © DERATE COM EINSTEIN 65 situacdo encontrada em muitos outros campos do conhecimento e do interesse humanos. Como se sabe, muitas das dificuldades da psicologia originam-se no posicionamento diferente das linhas de separacao entre o objeto ¢ 0 sujeito, na andlise de varios aspec- tos da experiéncia psiquica. Na verdade, palavras como “pensa- mentos” ¢ “sentimentos”, igualmente indispensdveis para ilustrar a variedade e 0 alcance da vida consciente, so usadas de um mo- do complementar, semelhante ao da coordenagao espago-tempo- ral e das leis de conservagao dinamicas na fisica atémica. Uma formulacao precisa dessas analogias implica, é claro, complexida- des terminoldgicas, e a melhor indicagdo da postura do autor tal- vez se encontre numa passagem do artigo que sugere a relagdo mutuamente excludente que sempre existira entre o uso pratico de qualquer palavra e as tentativas de lhe dar uma definicio es- trita, Contudo, o objetivo principal dessas consideragdes, que fo- ram também inspiradas pela esperanca de influenciar a atitude de Einstein, foi apontar para as perspectivas de ressaltar os proble- mas epistemoldgicos gerais através da licdo extraida de uma expe- riéncia fisica nova, mas fundamentalmente simples. Na reuniao seguinte com Einstein, na Conferéncia do Instituto Solvay de 1930, nossas discussdes tomaram um rumo bastante dramatico, Como a objegao A visio de que o controle da troca de momento e€ energia entre os objetos e os instrumentos de medida seria eliminada se esses instrumentos cumprissem sua finalidade de definir o sistema espaco-temporal dos fendmenos, Einstein ex- pds a tese de que esse controle deveria ser possivel quando as exi- géncias da teoria da relatividade fossem levadas em consideragao. Em particular, a relagao geral entre a energia e a massa, expressa em sua famosa formula E=me?, (5) deveria permitir, através de uma simples pesagem, medir a ener- gia total de qualquer sistema e, com isso, em principio, controlar 66 FISICA ATOMICA E CONHECIMENTO HUMANO a energia transferida para ele em sua inte- racao com um objeto atémico, Como um arranjo adequado para esse fim, Einstein propés o dispositivo indicado na figura 7, composto de uma caixa com uma abertura lateral, que poderia ser aber- ta ou fechada por um obturador acionado por um reldgio no interior da caixa. Se, no comego, a caixa con- tivesse uma certa quantidade de radiacao e 0 relégio fosse pro- gramado para abrir o obturador por um intervalo curtissimo FIGURA 7 num instante escolhido, seria possivel conseguir que um tinico f6- ton fosse liberado pela abertura num instante conhecido com to- da a precisio que se desejasse. Além disso, aparentemente tam- bém seria possivel, pesando-se a caixa inteira antes e depois desse evento, medir a energia do foton com toda a precisao desejada, o que definitivamente entraria em contradigao com a indetermina- cdo reciproca do tempo e das quantidades de energia na mecanica quantica. Essa argumentacdo foi um sério desafio e deu origem a um exame minucioso de todo o problema. No fim do debate, para o qual o proprio Einstein contribuiu efetivamente, ficou claro, no entanto, que a tese ndo era susten- tAvel. De fato, no exame do proble- ma, verificou-se que era necessdrio examinar mais de perto as conse- giiéncias da identificagdo da massa inercial com a massa gravitacional, decorrente da aplicagdo da relago (5). Em particular, seria essencial levar em conta a relacao entre a ta- xa, ou ritmo, do relégio e sua posi- ¢do num campo gravitacional — co- nhecida pelo desvio para o vermelho das linhas no espectro solar —, de- FIGURA § O DEBATE COM EINSTEIN 67 corrente do principio de equivaléncia de Einstein entre os efeitos da gravidade ¢ os fendmenos observados em sistemas de referén- cia acelerados. Nossa discussio concentrou-se na possivel aplicacio de um aparelho que incorporasse o dispositive de Einstein, desenhado, na figura 8, no mesmo estilo pseudo-realista de algumas das figu- ras precedentes. A caixa, mostrada com um corte para exibir seu interior, fica suspensa numa balanga de mola e é provida de um ponteiro para a leitura de sua posigdo numa escala presa ao su- porte da balanga. Assim, a pesagem da caixa pode ser feita, com qualquer exatidao Am considerada, ajustando-se a balanca em sua posicdo zero, através de pesos adequados. A questao essen- cial, entao, é que qualquer determinagao dessa posigo com uma dada exatidao Aq implicara uma incerteza minima Ap no controle do momento da caixa, vinculado a Aq pela relacdo (3). Essa incer- teza, por sua vez, obviamente deve ser menor do que o impulso total que, durante todo o intervalo T do procedimento de pe- sagem, possa ser dado pelo campo gravitacional a um corpo de massa Av, ou apm

7 ct Am Juntamente com a formula (5), essa relagio, por sua vez, leva a AT: AE>b, de acordo com o principio de indeterminacao. Conseqiientemente, a utilizacdo do aparelho como meio de medit com preciso a ener- gia do foton nos impediria de controlar o instante de seu escape. Assim, essa discussao, tao ilustrativa do poder ¢ da coeréncia dos argumentos relativistas, enfatizou mais uma vez a necessida- de de se fazer uma distincao, no estudo dos fendmenos atdmicos, entre os instrumentos de medida apropriados, que servem para defini o sistema de referéncia, e as partes que devem ser encara- das como objetos sob investigacdo, ¢ na explicagao das quais nao se podem desconsiderar os efeitos quanticos. A despeito dessa confirmacao sumamente sugestiva da solidez e do grande alcance do estilo de descrigdo quantico, Einstein, numa conversa poste- rior comigo, expressou sua inquietacao a respeito da aparente falta de principios solidamente fundamentados para a explicagao da natureza, com o que todos pudemos concordar. De meu pon- to de vista, entretanto, sd pude responder que, ao lidar com a tarefa de introduzir ordem num campo inteiramente novo da ex- periéncia, dificilmente poderfamos confiar em quaisquer princi- pios costumeiros, por mais amplos que fossem, a nao ser pela exigéncia de evitar incoeréncias Idgicas. Nesse aspecto, 0 forma- lismo matematico da mecanica quantica deveria, com certeza, cumprir todos os requisitos. A reuniao do Solvay de 1930 foi a ultima ocasido em que, nas discussdes comuns com Einstein, pudemos nos beneficiar da in- fluéncia estimulante e mediadora de Ehrenfest, mas, pouco antes

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