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Indignos de vida_ Pas | OrtANDO ZACCONE wi uP INDIGNOS DE VIDA: a forma juridica da politica de « exterminio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro Editora Revan Copyright © 2015 by liditors Res ‘Todos os direitos reservados no Brasil pela Editorn Revan Lida, Nenhuma parte desta publicagho podeti set reprocuzicta, seja por meios mecd trénicos ou Via cOpia xerogrifica, sem a autorizagio prévia da Eclitora, Revises Roberto Teixeia cae J. Batista Inipressiva clesrénien en ipo FTC Garamond Sih & (Gm papel afte B: 8pds paginas CIP-BRASIL, CATALOGAGAO-NA-FON' SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, 1 375i D'Elia Filho, Olando Zaceone Indignos de vida: « forma juridiea dla politica de exterminio de fnimi- gos na cidacle co Rio de Janeiro / Orlando Zaccone. - 1, ed. - Rio de Janeiso : Revan, 2015. 1 reimpressio, 2015, 280 p.; 21 em. Inclui bibliografia ISBN 978 85 7106 534-5 1. Criminologia - Rio de Janeiro (RD. 2. Crime - Aspectos sociais. 3. Violéné Rio de Janeiro (R)). 4, Crime e eriminosos - Rio cle Janeivo (RD. I. Tiulo, 1795 cpp: 364 DU: 343.9 in/o4/2015 16/04/2015 policial nZo € um erro de procedimento de alguns policiais despreparados. £ uma politica de Estado no Brasil, que recebe 0 apoio ¢ 0 incentivo de parcela la socie- cade. Punir policiais que sao identificados no abuso do uso da forga, inclusive a letal, no itd resolver o problema. Muito pelo contrario, punit os policiais é a forma que o Estado tem de nao sé comprometer com a sua prépria politica. Este li- vro & dedicado a todos os policiais que morreram na mesma légica irracional do exterminio de traficantes de drogas na cidade do Rio de Janeiro. Orlando ‘aceon e888 8888588 Ft tte eee eo PRADO HRA edsevece Coeeeeveecoee t SUMARIO PREFACIO...oo 13 : | INTRODUGAO.... 2 1. A VIOLENCIA DO DIREITO A3 1.1 Da critica da violéncia € do direito.... 60 1.2 Das razbes de Estado ¢ a excegiio soberana. 75 oe 1.3 Protegdo da vida € Violéncia..sseusnenenn OA = 2, VIDAS MATAVEIS NO CONTRATO SOCIAL... 99 o | 2:1 O inimigo por natureza. 167 | 2.2 Humanizacao das penas € defesa social...s.ne11? ' 2.3 A barbérie civilizatéria da tanatopolitica..re.ne-126 \ (3. A JUDICIALIZAGAO DA MORTE NOS AUTOS DE RESISTENCIA... ” senna 1 \ 3.1 A mfquina burocritica do descaso e do | esquecimento..... . : 144 3.2 A excegio da plenitude legal. 154 } 3.3 A hora dos MOMOS-VIVOS...... 2 164 3.4 A profecia autorrealizfivel na construgio de legitiina defesa., 182 iL Www wewolvrlTVsssceccce 3.5 A indignidade da vida « d lt motte em “comunidades faveladas”... ae 194 4. PACIFICACAO, MILITARIZAGAO & § (GURANGA CIDADA NO BRASIL. esse ott 207 47 4 goncalogia da paciticaggo brasileira: uma histéia de massacres... iss sanws " 216 42 4 pacificacto republicana: de Canudos a0 Complexo ALES eaeramstbstsbitenoninanece 233 4.3 Seguranca militarizada com cidadania., 1.249 CONCLUSAO. vetvaeneansenesses sieteenaten eee 2SD REFERENCIAS, sttresveesneanvesenenstasestesennesesee DOG. ANEXO.... en senveneren 276 2 PREFACIO Por uma desconstruco do poder punitive Carlos Henrique Aguiar Serra! Fol com imenso prazer e honta que aceite! o convite Para fazer © Prefiicio deste livro, “Indignos de vida. 4 forms jurdica da Politica de exterminio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro", de Orlando Zaccone D'Flia Filho EAE fivto configura-se na Tese de Dowtoracio, apresen- tada ¢ defendida por Orlando Zaccone, junto ac Programa com a nota 10,0 (Dez). Tive o privilégio de ter acompanhado toda trajet6ria do Zaccone no Doutorado do PPGCP. Esta uajetsrin come- Soante Rone Be etdade, desde o inicio duquele anc, guando fol aprovado para o Doutorado, Zaccone jé tang uma ideia clara a respeito do que gostaria de investigar ao longo do seu doutoramento, Nale destacar que esta trajetéria, no decorrer de todo o aera ies desenvolvimento e construsio do trabalho, foi Porencializando, ¢ multo, a maturagao intelectual do avtor c da Ten ae Sta vez mais intensa e consistente no campo da Teoria Politica. Trata-se de um wabalho minucioso de investigugao onde 9 leitor poders perceber logo nas primeicas linha que # anilise empreendida pelo autor tem as marcas emblet piesor do Departamento de Cidacia Politica da Universidade Fe sal Fluminense (UFE). Coordenador do sma de Pés-Gradluag’ om Ciéncia Politica da UFR. Doutoe em Historia pela Ute 13 STIS 33RE Cooeeneeee C8CCOR teas do rigor critico, seriedade, fundamentagao te6rico-me- todolégica ¢ muito zelo e altivez a0 debrugar-se sobre as fontes documentais, Assim sendo, tendo um escopo te6rico flexivel e de corte interdisciplinar, no qual observa-se que este trabalho estabelece significativas interfaces entre a Teoria Politica, 0 Direito, a Criminologia Critica, a Sociologia e a Hist6ria, lcitor é brindado com um texto muito bem escrito, redagio que flui de forma muito aprazivel, ideias bem articuladas, , portanto, trabalhando ininterruptamente as fronteiras entre © geral c © particular, descortina-se uma bela ¢ instigante reflexio critica que com muita coragem e ousadia, desvela toda a cultura punitiva que perpassa a formago social bra- ©, muito particularmente, a cidade do Rio de Janeiro. H interessante registrar que esta cultura punitiva, no entencimento do autor, produz e reproduz de forma incessante a lgica do inimigo. Este é fabricado em larga es- cali, numa espécie de linha de montagem de longa duragdo, nas com sinais € cédigos contemporineos, pelo poder pu- nitivo cuja existéncia, num certo sentido, somente justifica- -S¢ por esta esséncia punitiva que acaba inexoravelmente por clespolitizar os conflitos sociais e sacralizar a punigio, Neste sentido, Orlando Zaccone, que é jornalista, de- lugado de Policia e doutor em Giéncia Politica, vai na con- tramlo do pensamento politico contemporineo, de core hegeménico, que nfo s6 sacraliza a puniglio como também, icnta despolitizar as questdes sociais, A proposta de Zaccone, um dos méritos do trabalho, inalizt para a desconstrugto de todo este modelo punitivo “jue encontra-se intimamente imbricado a politica de exter: nuinio daqueles que sio considerados inimigos na cidade do Ki de Janeiro. Na critica contundente e consistente A politica de ex- nio de inimigos na cidade do Rio cle Janciro, o leitor tunbém inf depararse com a andlise minuci asa do autor 14 | cerca de 308 “autos de resisténcia” ocorridos entre os anos «le: 2003 a 2008. & impactante a constatacio da “legitimidade juridica’ por parte dos “operadores do sistema penal", como, por cxemplo, promotores e julzes, Este olhar de Zaccone traz 4 tona e desnuda o papel politico com que o Ministério Publico, muito especificamente na cidade do Rio de Janeiro, tem corroborado juridicamente com esta politica do exterminio dos “indignos de vida Entlo, neste cendrio trigico, onde imimigos que sto considerados verdadeiramente indignos dle vida encontram- -se como sujeitos de toda esta politica de exterminio, levaca a cabo pelas classes dominantes, aparato midiético, “opera- dores do sistema penal", € a Policia nlo esté sozinha nesta pritica, pois tem como parceiro 0 Ministério Priblico, Orlando Zaccone convida o leitor a um mergulho profundo nas refle- xées desenvolvidas por autores como, por exemplo, Hobbes, Walter Benjamin, Eugénio Raul Zaffaroni, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Michel Foucault e Giorgio Agamben. © resultado de todo este escopo teérico-metodolégico nfo poderia ter sido mais proficuo, pois, como sempre, cru- zando as fronteiras entre o geral e o particular, as formu! (goes tedricas de cada autor, no presente trabalho, ganham uma densidade admirivel e todos, sem excegio, so muito bem mencionados. Hi, portanto, didlogos enriquecedores, © que revela toda a manuridade intelectual do autor, enue Zaccone € cada um desses autores. ‘Cumpre ainda registrar, de forma mais veemente, 2 co- ragem do autor 20 realizar este trabalho. Vale dizer: Zaccone foi muito corajoso ao concluir seu doutoramento em Ciencia Politica precisamente ao estudar, com 0 veio critico sempre presente, um tema tio complexo e polémico, como a poli- tica de exterminio daqueles que silo considerados “indignos de vida" na cidade do Rio de Janeiro. ty Esta coragem de Orlando Zaccone, que se traduz tam- bém na sua postura altiva, ¢ também, conforme palavras do saudoso Darcy Ribeiro, o coloca como um legitimo e auren. Seo tracundo, sempre teve as companhias indispensdvels Ga integridade, retidao de carater e honestidade intelecwaal No seu rigor flexivel analitico, estabelecendo as neces. sitias conexdes entre os campos de saber da Teorls Polit, Vee: ), 4 fuibort desconfle das propostas de reforma das policias como solugdo para redugao da histérica violencia das forcas Pliciais no pais. A permanéncia de um marco militaria, dlc seguranga piiblica, a0 relacionar pacificagio contele de terit6rios, data do Brasil Império. Duque de Caxias, multe Os policiais que executam essa missio letal, em verdaciens Perigo para os seus cidaciios,!? Recente pesquisa realizada pelo Nuicleo de Bstucos da Cidadania, Conflito e Violéncia Urbana da UPI alguns indicios desta politica 20 concluir que “o thine, «ic inquéritos de autos de resistencia arquivados face a uncle Sto de ilicitude, a partir de 2005, alcanca a eifta che 99,2% dos inquéritos instaurados",® sendo certo que esses arquiva- RJ) nos waz "Y”[Caveitio™ €¢ nome populat do eto blindado vs pelo Batlhfo Gf (Petasdes Policiais Especiais da Policia Miltac do Lente an de Janeizo em incussdes nas favelas na capital fumincnne penaido coms Zaffroni (2012 . 358), “massacre antes de tudo, um homicidio miltplo, embo sejn, de exercicio de decisio politica e nto algum segmenie. Asim, nfo entiam no s de asssstinatos Policia isoladot que nfo sejam resultado de una prites saree ne wilt Chuistie. Dangerous States. Disponivel em: * presente na invasio das Amé- ricas, passando pela escravidao e pelos distintos regimes Politicos autoritérios de nossa Reptiblica, até os nossos dias de intolerancia com 0 criminoso, definido e escolhide como delinquente, o Estado decide pela difusio de emergéncias vinculadas 20 medo e ao caos.® Os pedidos de arquivamento dos autos de resisténcia, alguns escritos de préprio punho pelos promotores de justi-. ¢@ criminal, como documentos, podem nos fornecer indiicios de que, para além do “gatilho ficil’,# a forma juridica da le- talidade estatal pode ser tio violenta quanto um disparo de fuzil, Fica estabelecida assim uma relagio entre as palavras * © conceito de “vida indigna de ser vivida” foi construido por Kart Binding e Alfred Hoche no ensaio Die Freigabe der Vernichtung i ‘bentunwerten Lebens, publicado pela editora Felix Meines, ein Li aig, 1920 (BINDING, Kad; HOCHE, Alfred. La leencia para a aniquilacién de la vida sin valor de vida. Teadugio B, Serigés, Buenos Altes: dias, 2008), Neste trabalho, confocme observa Giorgio Agem= hen, “o conceito de vida indigna de ser vivida é, para Binding, essen ial, porque the permite encontrar uma resposta a0 quesito jurédico auc pectende cole impunidnde do anipeloment de ne dace Permanecer limitads, como 0 é no direito atual (feita excecto paca 0 estadlo de necessidade), a0 suicidio, ou de fato deve ser estendida & morte de tercciros?” (AGAMBEN, 2004b, p. 144) % Batista, 2003, p. 51. » Tid, A expressio gatilo ficil é utilizada na Argentina para apontar hip set em que ocoscem simulagdes de confionto entxe policisis eerimino- 1505 para esconder homicidios praticados a partir de ages da policia. 31 POO XXREEXEEL 00000000 COCO OCOECO®O TESTES V VT VVC CSe *) SOPOSHOHHOOHHOSOOHOHOOOOHOOHOOED: | com os cadaveres, naqu lo a que Zaffaroni descreveu como “linguagem mortifera’.* Mio se trata apenas, porém, de confrontar, mas também de averiguar se os cadaveres sio tais porque as palavras contribufram para condicionar (ou para no evita) as Condutas que os converteram em cadéveres, posto que é assim que as palavras matam, € assim que a linguagem mortifera opera, ou seja, legitimando, mostrando ou ocul tando, descobrindo ou encobrindo,® Para chegarmos 4s palavras que matam, percorremos um caminho que tentara compatibilizar 0 desenvolvimento Ge uma producao te6rica’ que, no primeiro capitulo, "A vie. Xencia do direito”, visa aproximar a Teoria Politica ea Teoria do Ditreito, no sentido de estabelecer o elo que reine a forma Joridica as relagbes concretas de poder. Principalmente na dimensio critica da violéncia e suas felagdes com o direito, iniciada no século XIX, que gahha verdadeiro impulso ne Pensamento politico apés a Primeira Grande Guerra Mundial, A violéncia como produtora e aplicadora do direito abre 3 Perspectiva para, a partir do debate estabelecido entre og defensores da politica como paz e da politica como guerra,® desvendar 0 direito sob a perspectiva da pacificagio, ou seja, de uma paz civil “que nada mais € do que uma violencia Constante travestida de paz’. A manutenglo do “estado de patureza” (Hobbes) ou do “estado de guerra” (Locke) no amago do Estado de direito nos remete 4 compreensio de que € no estado de excegio que a violéncia e 0 direito se indeterminam, e uma das hipéteses desta pesquisa ¢ a de que a forma juridica dos “autos de resistencia” revela este ponto * ZatEwroni, 2012, p. 29. * Zaffaroni, 2012, © Rodsigues, 2010. “Ibid, p. 235, 32 ule intersegio, viel pissente a partir da decisio soberana sobre us kus inclignas de serem vividas ler soberano, que gai na modernidade, a Pa tir da racionalizacio da existéncia de vidas mativeis, construldas e reinventacas na figura do ini igo Sntico, que coloca em risco a propria existéncia da so- Giedade. Barbatie e civilizacdo caminhatiam assim de maos dadas, ¢ os pedidos de arquivamento dee inquéritos intitula- os Vautos de resistencia” seriam os docume ree que podem revelar indicios da racionalidade existente no exce minio de Cade nas, identificados como criminosos/tesise dade do Rio de Janeiro, As favelas cariocas aparecem como campos de con- Bitar oct Ct aberto," a expor permanentements sees ha- bitantes ao jogo duplo da inclusto/exclaste cidad’. De um F que operam o disciplinamento estatuto juriclico/politica, nacui- fentes na ci- 33 VUUerrrrreecevess ALEC thtr Gperar na dlstingao entre o delinquente/suspeito € 0 cida- Co/vulneravel, conforme veremos no quarto capitulo “Pach, ficagao e miltarizacao da seguranga cidadla", no qual emes abordar os paradoxos da politica de seguranga de confronre humanitirio,46 Um dos nossos objetivos consiste em desvendar a pas- sagem que se deu, na forma da continuidade, entre a exce. $0 a que foram expostos os inimigos de Estado da ditactira anllitar brasileira, identiicados como subversivos, aos novos inimigos da sociedade, reconstruidos hoje como criminosos hedionclos, através da guerra as drogas € 4 criminalidede ‘7eremos como uma das hipéteses deste continuo a de que “xcecko brasileira transita pelo autoritarismo jusidico, a en. Acie uma violéncia conforme o direito, na forma da legitima slefesa da sociedade, Poderemos observar que 0 controle social da soberania ‘olue © Corpo do opositor foi incluso também na pritien iuwicial da ditadura, a0 articular uma politica que combina ‘lesaparecimentos com um imenso volume de processes jndiciuis. A Dritien de uma agto estatal de repressio planejada fica explicita quando observamos os niimeros judiciais tla repressiio, Se no Brasil desaparecem ou morrem Pouco mais de 400 pessoas, na Argentina foram apro- Simaclumente 20 mil e, no Chile, § mil. Por outro lado, © Brasil abyri 7378 processos, enquanto nos tribunaie Hraentinos esta cifra chega a irrisérios 350 processos. O putis impactante da “judicializagao” foi o legado de uma 5 Vinte © quatro de margo de 2011, no seu gabinete, o 1° Promotor de Justica do 5° Tribunal do Juri de Sto Pauld, Ro. Serio Leto Zagallo, redigiu 0 seu pedido de arquivamento do Inquérito Policial n° 887/2010, relativo aos fatos envolvents uma tentativa de roubo, em 16/09/2010, a um policial civ, Marcos Ant6nio Teixeira Martins, que resultou na morte de tum dos assaltantes, Ant6nio Rogério da Sliva Sena, ea fuga do comparsa. Com a palavra, 0 operador do direitos [guande Marcos AntOnio recebeu vor de assalto emi- ida pelos agentes, saiu do carro em que estava, d erdem de parada aos assaltantes © recebeu thor’ mee em revide, contra eles atirou, matando, infelizmente, so. mente Anténio, O agente, portanto, matou um que objetivava cometer um assalto contra ele, uiices absolutamente dentro da lei. [.] Ressalto que, par des Bosto dos defensores dos Direitos Humanos de plano, ndo hd dividas da tipificacdo da causa de exclusio dx ilicitude em comento, [..] Bandido que dé tiro part ma. tar tem que tomar tiro para morrer. Lamento, todavia Que tenha sido apenas um dos rapinantes enviado parn © inferno, Fica aqui o conselho para Marcos Antonio. melhore a sua mira. [..] Com efeito, a dindmica dlos fates ‘aqui estudados, leva a conclusdo que o presente eadon Ro investigat6tio somente foi distribuido para este “Iii. bunal do Juri em razto de ter Anténio Rogério cla silva Sena, para a fortuna da sociedade, sido morto"2? Ibid, * “ Ginzburg, 1985, 38 ‘oram ao todo analisados 308 inquéritos de homicidios provenientes de auto de resist@ncia, instauraclos =a kine ei Kio cle Janeiro’ e arquivados a pedido do Ministério Piblico, divide pelos anoe da ovatércin a fat ent 103 (2003); 92 (2004); 20 (2005); 13 (2006); 66 (2007); 10 (2008) ¢ 4 (2009). A puttir da identificagto dos Registros de Ocorréncia desses fatos, nas delegacias da Capital, obra através do sistema go- renciador RO Web, da Policia Civil, procedemos & identifica so daqueles que jd se encontravam arquivados, por meio de pesquisa no sistema informatizado do Tribunal de Justica — RY. Em razio’ dos ntimeros absolutos, foram priorizados os anos dos fatos registrados em 2003 e 2007, que apareciam como arquivados no momento da identificagio dos procedimentos isa, em outubro de 2010. tos de registro dos auios de resisténcia, no Estado © Capi- tal, ocorte no primeiro ano do govemno Rosinha Garotinho (2003), bem como no primeiro ano do governo Sérgio Cabral (2007), conforme Tabela 1, 39 SSSCCSCSCOTHOSC SCC HSC OESCEOHOOSEELCECE ©00COOHOOOOOOHHHOOHOOHOHOHOHOHOHOOES: autos de resisténcia pital (1993-2012). 1993 1994 1995 1996 1997 1908 1999 2000 2001 2002 2008 2004 TABELA 1: Frequéncia absoluia no Rio de Janeiro, Estado € Ca Caria 87 278 Su 61S 798 676 Lstado 150 200 350 390 300 397 289 454 S92 900 1195 985 2005 200 20072008 20090201 jor seus aes m8 Fado 1098 106313801137 10S SSS Fonte: ISP-RJ/Necvu-UFRJ. Ousamos discordar da Jeitura que aponta a diminuiglo dos registros de autos de resisténcia, a partir de 2007, através de uma possivel relagdo com a implantagio de Unidades de Policia Pacificadora. Entendemos que, a bem da verdade, os indices apenas retornam para os niveis da década de 1990, quando, apesar de politicas piblicas de incremento da letali- dace provocada a partir de ag6es policiais em nosso estado . delineadas na chamada “gratificacdo faroeste”,* ainda nao ha- MISSE, Michel; GRILO, Carolina C; TEIXEIRA, César P; NERI, Na- sha E. Quando a poliia mata: hamicidios por “autos de resstincia” no Rio de Janira 2001-2011). Rio de Janeiso: CNPQ / NECVU / Booklink, 2013. Apés ating seu ipice em 2007, o nmezo de vitimas dos autos de ress- téncia passou a decrescer ano a ano, como se pode constatar na Tabela 2 Esse movimento de queda acompanhou a queda dos homicidios dolosos, ‘o que pode ter relagio com a implantacio de Unidades de Policia Pacifica- dora (UPP3), com 0 enfraquecimento de grupos que dominam a venda de dzoges em favelas ¢a diminuicio de confiontos armados entre criminosos e policiis”. (MISSE; TELXEIRA; NERL, 2013, p. 8). 61 “HGratificagio fazoeste” foi o nome da pectiaia instituida, em 1995, pelo Governo Marcello alencss, n0 Rio de Janciro, através da gestio do Secretirio de Segucanga Publica, Cel. Newton Cerqueira, que esta- bclecia premiagio para policiais envolvidos como autores em homici- dios provenientes de autos de resisténcia, 40 viatios superado a marca dos quatrocentos registros de homi- cidioy provenientes de autos de resisténcia. Mas © que nos orienta nesta pesquisa nao € a analise dos ntimeros, que nada mais faz clo que incrementar a gestio sobre a vida @ 2 morte no marco biopolitico. Pretenclemos contribuir com um olhar critico que revele a opcao politica, inserida na cultura punitiva clo nosso pais, que nos afasta da pena de morte ¢ nos aproxima da morte sem pena. © dentro € 0 fora da lel se unem na forma juriclica dos autos de resis- téncia arquivados. E a caveira de toga que queremes decifrar! MPR LLRADARADVIARAIRIAL AT RILKK Kr ALIA s 1. A VIOLENCIA DO DIREITO A violéncia nfo € exterior 4 ordem do direito. Ela ameaga o direito no interior do direito. Gaques Derrida) Ente inumerdveis pontos de vista, o marco civilizaté- rio® pode ser observado no momento em que a liberdade a felicidade dos homens foram depositadas na comunidade Coube & ordem normativa, posteriormente definida como ordem juridica, a missio de criar as condig&es fiticas para a anunciada emancipacdo do homem, cuja existéncia coletiva Passou a ser direcionada a realizacio do bem comum,® A separagio entre a vida nua (zoé) e a vida politica: mente qualificada (bios) foi durante todo 0 periodo clissico © alicerce filossfico para a construc da polis como um es- Pago de Convivéncia humana, distinto do de outros viventes; Porque fundado, a partir da linguagem, numa comunidade voltada para viver 0 justo e no somente o prazer e a dor. A ideia da polis como uma construgio natural, baseada na visdo aristotélica do homem como animal politico, ou nos fundamentos teolégicos da boa Cidade dos Homens, em © De acordo com Norbert Elias (O processo civilizadon), 0 conceito de civilizacdo se refexe a urna grande vatiedade de frtos. Pasta pelo desen. volvimento teenclégico até as ideias rligiosas e o3 costumes, acento com que, rigorosamente falando, no ha aada que no posta ser faite de forma “civilizada' ou “incivilizada”, e difieultando a delinicio de que seja civiizagio, © Conforme Italo Mezeu (2005), dizer bem comam é dizer tudo e nada “E tecomer a motives supraindividunis, sem ter que indici-los ou es, pecifci-los”. E-a base para a construgio de toda a teosia do homicicio legal, defendita por Sio Tomas de Aquino, na qual se uma pessos é prejadicial 20 bem comum ¢ oportuno climiné-la, fazendo com que 2 pacabola da ovelha desgarrada deixasse de ter significada “ Agamben, 2004, p16 SOSHSHSHOSHSSHSSSSSSOHSHSHCHSHHSHSOHSHOHCOE eee: ecoeceocece Cc harmonia com a Cidade de Deus, sofreu um grande impac- to com 0 advento do pensamento politico moderno. A obra O principe (1513), de Maquiavel, € 0 marco da ruptura com a construgio do ideal da boa Comunidade politica constituida para o bem comum e a justiga. Conso- ante 0 pensador florentino, toda a cidade estd dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes em oprimir e comandar € desejo do povo de nao ser oprimido nem comandado. © principado origina-se da vontade do povo ou dos grandes, conforme a oportunidade se apresente a uma ou outra dessas duas categorias de individuos: os gran- des, certos de no poderem resistir 20 povo, comegam a dar forca a um dos seus pares, fazem-no principe, para, & sombra dele, terem a oportunidade de dar liberdade 2 seus apetites; 0 povo, por sua vez, vendo que niio podem fazer frente aos grandes, procede pela mesma forma em relagio a um deles para que esse 0 proteja com sua autoridade,# Essa divisdo evidencia que a cidade nao € uma comu- nidade homogénea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razdo humana. Na realidade, a cidade € tecida Por lutas internas que obrigam a instituir um polo superior que passa a unificd-la ¢ dar-lhe identidade. Esse polo é 0 poder politico. Assim, a politica nasce das lutas sociais e é © “Parte da cidade terrena veio a ser imagem da Cidade celeste; nio sim- volas ss mex, at tous pore sane: Nis fk ie para sex Bigura de si mesma, mas da outs, ¢ a cidade que prefigura fol por sua ver prefigurada por outra figura antetior (..) Encontramos, Pol, na cidade cerzena duas formas: uma, que ostenta2 sua presenga: outra, que & com sua presensa, imagem da Cidade celeste” @ANTO AGOSTINHO. In: A Cidade de Deus contra os pagios. Braganca Paulista: Ed. Universitisia Sie Francisco, 2008, p. 175) Maguiavel, 2007, p. 98. 44 j | ob cht prpria sociedade para dar a si mesma unidade e identichades Ness perspectiva, a politica no é mais vista como a rucional da justica e da ética, mas a légica da forca, translormada em Iégica do poder e da lei. Talvez esta te. nha sido a maior contribuigio do pensamento de Niccold Machiavelli: a secularizacao da politica, Ao propor desligar © poder politico de fundamentos extrapoliticos, tais como Deus, natureza € raz4o, Maquiavel abriu caminho para 2 discussiio de novos fundamentos para a anilise do poder. A construgtio do conceito de soberania, enquanto stin- ma polestas, surge entio da necessidade de se deslocar 2s questdes afetas 20 exercicio do poder, da figura do gover. Rante, summa majestatis, para a de uma unidade maior. Em. sua obra, Os seis livros da Republica (1520), "Jean Bodin introduz a ideia da soberania como um poder tinico de le- sislar e comandar, pertencente no ao governante (que € efémero) ¢ sim ao Estado (que € permanente)". © Estado como soberano é entendido como um sistema articulaco que redne uma ordem juridica (0 direito © a legislacho) ¢ uma autoridade independente (0 comando ¢ 0 uso da for. 5). Com isso, Bodin distingue o poder soberano de outros. Poderes (religiosos, econdmicos, sociais) que sé podem sex exercidos sob as ordens e sob o comando do Estado.” Direito ¢ fora aparecem, assim, unidos como duas ca- Tacteristicas necessarias para a legitimaglo do poder. Um nao pode existir sem o outro e, com a constituigaio dos Es. tados nacionais, podemos arriscar apontar que a imbricacio dos fen6menos juridicos com as relagdes de poder, fore « violencia passa a ocupar 0 centro da filosofia politica, como uum marco de distinglo entre 0 classico eo moderno, Joy & Chui, 2006, p 368 Ibid, p 371 @ Tia 45 CAAEATDDDDT Tee rare ener se vee \ CTCHCOHHCOCCOOO oe Construcaa de saberes legitimadores do poder, na inodernidade, acaba por engendrar um esforco no senticio Ge demarcar as distingSes entre violéncia e formas suposta. mente legitimas’® do uso da forca, muitas vezes identifcadies como justiga. Tal distingao ser4 necessiria para estabeleces © paracligma da seguranca individual e coletiva dos homens inalidade de toda a repdblica na visto hobbesiana de Esta’ «lo, que se fard presente nas demais teorias contratualistas que a sucederio, apesar das diferentes matrizes, A causa final, finatidade © designo dos homens (que amam naturalmente a liberdade € © dominio sobre os outros), uo introduzic aquela restric sobre si mesmos sob a qual os vemos viver em repuiblicas, & a precaugio cum Sa pr6pria Conservagio e com uma vida mais sa- tisfeita” feréncia da forca natural, bruta ¢ desmedida do Hemet [obo do homem” para uma unidade maior serd a ssiruntia da seguranga para todos os homens e fundamento ‘1 propria reptblica, uma vez que “os pactos sem a espa- sta nto passam de palavras, sem forca para dar seguranca " ninguém"” © poder de punir’? na leitura hobbesiana, € “Wn seu coals inca e poles, dss vocagBex, Ma Weber aponta Isto consteugio polis da violence nan elehe comes ree th pier: "Asin com todos os grpamenton paltcce wee nce skram wo tempo, o sto conse em un eke de toa so mcm pelo omen, com tne no ineumenta da volenea aeecg Nubbes, 2008, p. 143, eee hs \ scion Clases Lispectoringtesto na Faculdade Nacionl tito, no Rio de Janeiro, em 1959, Publicou na evista A Epon ogaee, ‘ada pelos alsnos do curso de Dsein em I94ie ato ences subst cio de poi” (SPECTOR, 2005 48) no geal eee ‘Nio M dito de punic Fit spenas poder de fone O hen ido pelo seu cxime porque o Estado t mis forte dn que tle a puctey «lcisuclo" pelos sdditos ao soberano nas mesmas condligées win que sé encontrava no estado da natureza. Ao tratar das € recompensas’, no seu "Leviata", Hobbes argu- que © poder punitive do soberano nao foi transferido divctamente pelos stiditos, uma vez que eles em nenhum momento renunciam ao direito de autodefesa. Para Hobbes, © poder de punir do Estado advém da mesma condico em ra exercido no estado de guerra de todos contra todos. punigg ment que -antes da institvicao da republica, cada um tinha direito todas as coisas, e a fazer o que considerasse necessi- rio para a sua prépria preservaclo, podendo com esse fim subjugar, ferir ou matar qualquer um, E é este 0 Fandamento daquele direito de punir que é exercide em todas as repiiblicas, Porque nfo foram os siiditos que deram ao soberano esse direito; simplesmente ao reaun- ciarem ao seu, reforgaram 0 uso que ele pode fazer do seu préprio, da maneira que achar melhor, para a pre~ servacdo de todos eles. De modo que o direito cle punit nio foi dado a0 soberano, fol-the deixado, e apenas a ele; € tho pleno om excecto dos limites estabelecicios pela lei natural) como na condicao de simples natureza, ow na guerra de cada um com 0 seu préximo Assim, ainda segundo Hobbes, existe um direito A vio- Iencia, que se traduz na oposigho, por natureza, entre os homens. Na medida em que a necessidade da natureza fi ‘os homens desejarem aquilo que é bom para si ¢ evitarem 0 que € danoso — “sobrenudo este temivel inimigo da natureza, a morte, de que esperamos tanto a perda de todo 0 poder, como também nas maiores dores corporais que acompa- nham esta perda””’ -, nfio é contra a raz%o que © homem grande cme, nfo é punida porque se acima dum homem hii os ho- mens acima dos homens nada mais ha” Hobbes, 2008, p. 263. % Td., 2010, p. 69. a

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