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A Arte de Estudar Violino Robert Gerle (Trad. Edson Queiroz de Andrade) (The Art of Practicing The Violin — Londres: Stainer & Bell Lid, 1983) Introdugdo Todos os instrumentistas , amadores ou profissionais, tem hoje em comum uma constante diminuiciio do tempo de que dispdem para estudar, e portanto a necessidade de fazer o melhor uso deste tempo. Essa falta de tempo para estudar se deve as graduais porém implacaveis mudangas no quadro sociolégico de nossa época. O perfodo relativamente curto desde o fim da II Guerra Mundial em 1945 tem testemunhado urrs expansio dramatica da midia e telecomunicagdes para as massas: televisio, telefone, radio e cinema, jomnais por computador e transmissées via satélite. Esse progresso tem produzido todo tipo de entretenimento disponivel de forma bastante acessivel para um grande numero de pessoas & seu facil apelo esta cada vez mais invadindo o tempo de todos, de forma nunca vista antes. A crescente facilidade e rapidez das viagens tem aumentado a atividade das pessoas, expandido 0 circulo de contatos e possibilitado um calenddrio de concertos nunca antes imagindvel. Hoje, com todas essas pressdes externas, é cada vez mais dificil até mesmo para o misico mais dedicado achar duas ou trés horas de tempo de estudo concentrado e ininterrupto. Outras mudangas sociais ttm também contribuido para esse estado de coisas, especialmente para a geragiio mais jovem. Na tenra idade, quando os esforgos para uma. carreira musical precisam ser feitos, a influéncia e orientagao dos pais ¢ forte e decisiva. A tendéncia destes é encaminhar mesmo o mais talentoso jovem a buscar um curso académico (com todas as disciplinas inerentes a ele) concomitante com seus estudos musicais: um diploma universitario deverd trazer mais seguranca do que a imprevisibilidade da profissio musical. Na auséncia de um programa nacional sistematico de busca de talentos, grande quantidade de jovens talentos comega a estudar musica seriamente muito tarde — particularmente instrumentistas de cordas. Entio, altas taxas escolares e desaparecimento de fundos de bolsas de estudo acabam por forgar mais e mais estudantes universitarios em todo o mundo a trabalhar pelo menos meio expediente para cobrir algumas dessas despesas. resultado disso é no s6 a redugéio da aucntidade:do tempo disponivel para estudo diario, mas também um menor numero de anos onde € possivel um estudo relativamente concentrado, para aprender um vasto repertério. E portanto mais importante aprender como usar melhor o tempo disponivel; desenvolver uma muneira mais eficiente de aprender; estabelecer um plano cuidadosamente pensado para o estudo diario; e elaborar uma tabela de tempo para objetivos a longo prazo. Tornou-se crucial como nunca antes adquirir uma técnica de estudo que the ajudaré a aprender melhor em menos tempo e que lhe dard mais seguranga técnica ~ livre de preocupaciio — para desffutar do fazer musical. Mesmo que estudar muitas horas diariamente nao é uma virtude por si s6, e nem € sempre possivel ou necessério, 0 ponto de vista expresso nesse livro nao é uma oposigéo a estudar muito: ¢ especificamente e somente contra estudar muito de forma errada, ou contra maus habitos de estudo que causem grande perda de tempo. Afinal existem circunsténcias em que uma grande necessidade de estudo ¢ essencial, como quando se tem ‘uma data limite para se aprender novas obras, preparar um grande repertério para uma competig&o ou concurso, ou substituir alguém em cima da hora. Mesmo assim, quanto maior 0 estudo, melhor e mais eficiente a técnica de estudo deve ser, de forma que tanto 0 tempo gasto quanto 0 resultado desse estudo possam ser igualmente frutiferos e agradaveis. Somente um bom estudo traz a perfeigao. Capitulo 1- © Bom Estudo: As Dez Regras Bisicas 1. Saiba sempre exatamente o que vocé precisa estudar — e porqué. Nao existe nada mais frustrante do que gastar horas estudando sem sinal de progresso. Portanto, defina o problema, identifique a’ razo da dificuldade, e escolha 0 remédio correto para resolvé-lo. Para estudar bem é preciso entender os prinefpios basicos do violino, como aplica- los de varias maneiras e como selecionar 0 melhor modo que se encaixa em sua constituigdo fisica individual. Pense no que voeé precisa alcangar especificamente durante o dia de estudo: gastar trés minutos pensando sobre seu estudo antes de ccmegar valem trés horas de pura repetic&o, durante as quais vocé apenas toca sen: vodjetivo tragado. 2. Organize o tempo de estudo para atender As circunstancias. Planeje com antecedéncia a quantidade de tempo que vocé quer gastar com cada componente de seu material de estudo, dependendo de para que vocé esta se preparando & de quanto tempo vocé tem disponivel. O plano deve incluir um calendario diario, semanal, e até mesmo um periodo mais longo. Existem basicamente cinco categorias de estudo: Aptendizado de material novo (repertorio ¢ técnica) Mudanga ou trabalho sobre uma abordagem técnica de um problema especifico (como vibrato ou spiccato) Manutencdo ¢ consolidag&o de repertorio ¢ técnica Preparagdio para um concerto, competi¢do ou concurso 5. Revisio de repert6rio antigo para uma nova interpretagdo » aY Essas categorias podem combinar ou se cruzarem mas geralmente uma delas é dominante. Planejar um calendério também poder ter influéncia de cireunsténcias particulares. Vocé poderd estar: ‘Ainda na escola, submetido a um hote.‘v apertado de disciplinas. Na escola e também num trabalho de meio expediente. Na condigiio de um amador com tempo limitado de estudo. Na condigdio de um profissional bastante ocupado. Na condigao rara de uma pessoa com muito tempo para estudar (de férias, ou simplesmente sortudo). a Quaisquer que sejam as circunstancias, quanto vocé deve estudar? Em geral, n&o mais que o necessario para aprender uma obra bem o suficiente para fazer mtisica sem qualquer preocupagao técnica. Esta é a melhor vrescrig&o para banir 0 medo de palco. Nao existe virtude alguma em estudar oito horas por dia sé por estudar: duas ou trés horas de bom estudo é melhor do que seis horas de estudo ruim. E também importante se conhecer, avaliar seus pontos fortes e fracos de forma objetiva, a adaptar sua técnica de estudo de acordo, Aprender a se escutar e fazé-lo objetivamente. Algumas pessoas aprendem rapidamente ¢ decoram automaticamente, enquanto outras t8m que primeiro aprender como decorar. Facilidade de aprendizado pode ser uma bénofo relativa: aquele que aprende rapido pode nao reter bem o que ele ou ela aprendeu, enquanto aquele que tem de trabalhar duro para um pequeno progresso poderd absorver melhor o aprendido e alcangar um entendimento mais profundo. 3. Repetigao é a mie do conhecimento somente se a passagem tocada perfeitamente é repetida mais yezes do que a passagem tocada com erros. Quando vocé toca uma passagem ou pega pela primeira vez corretamente apés varias tentativas sem sucesso, vocé pode sentir que o trabalho est feito — aprendido finalmente! Na verdade, vocé até ent&o tocou a passagem varias vezes de forma incorreta, mas apenas uma vez de forma correta. Naturalmente a forma incorreta, por ter sido mais vezes repetida, estar mais presente na meméria do que a forma correta, tocada apenas uma vez. E por esta razio que, apés tocar a passager: de forma correta pela primeira vez, vocé deve continuar a trabalhar nela e se certificar de que ela se torne natural através da repetigdo desta forma correta — arcadas e tudo mais — até que os tragos da forma errada sejam apagados. 4, Estude tanto rapido quanto lento. Oestudo lento é essencial para permitir que 0 cérebro codifique os varios comandos que ele deve mandar aos mtisculos para a execugdo de uma dada passagem, e para julgar a exatidio da resposta e do resultado. Mas basicamente, uma pega estudada mais lentamente do que o seu andamento apropriado é uma pega diferente. A tinica maneira de se ter a verdadeira idéia da peca e dos seus problemas é tocd-la em seu andamento final, mesmo nos estgios iniciais do seu aprendizado, O andamento em que a passagem deve ser tocada, a velocidade com a qual os movimentos devem ser executados, sfio elementos essenciais e especificos da técnica envolvida na sua performance. Isto deve ser levado em conta desde os primeiros estégios quando arcadas e dedilhados s&o escolhidos, caso contrario eles no funcionaro mais tarde. Quando estas arcadas e dedilhados estiverem solidificados através do estudo lento, a passagem, bem como toda a pega, deve ser estudada outra vez no tempo final com o objetivo de aprender ‘0s movimentos fisicos apropriados e os impulsos mentais na velocidade correta. Uma maneira efetiva de estudar passagens problematicas é combinar o estudo lento eo répido, adicionando a vantagem de praticar os movimentos cruciais no andamento e com tempo para pensar: Concerto pata Violino, 1° movimento pa € = # = = ‘Tehaikovsky para estudar as mudangas de posigiio em sua velocidade apropriada. As fermatas adicionadas fornecem o tempo para que seja julgada a exatidaio com gue a passagem foi executada, para pensar na proxima passagem de forma detalhada, e para formular 0 comando seguinte em sua totalidade. E também boa idéia estudar passagens num andamento mais rapido do que 0 andamento final (¢ andamentos lentos ainda mais lentos) para construir uma margem extra de seguranga abaixo e acima do tempo de performance. A chave para se tocar répido com exatidao e sem esforgo é fazer com que, enquanto a velocidade dos dedos e do arco aumentam em andamentos mais rapidos, 0 cérebro mantenha constante a velocidade com que manda os comandos para a executar 0 mecanismo da performance. Mantendo constante essa velocidade de comando, o cérebro deverd entretanto aumentar a quantidade de informagdo incluida em cada comando enviado no comego de cada passagem. O aumento da quantidade de informagao contido em cada unidade de comando é proporcional a0 aumento do andamento, e cobre proporcionalmente um maior niimero de notas a serem tocadas entre cada unidade de comando. Basicamente funciona da seguinte maneira: Ts Moderato J= 60 Cordas La La Ré Ré =Dedilhados 1 2 Mudanga 1 2 3 4 de Posigéo 3 4 Intervalos Terga = Terga Terga Terga Maior Menor Menor — Maior = Uma Unidade de Comando Fiatiadg ‘Allegro J= 120 Cordas La La Mud.de = Mi Mi Ré Ré Corda La La = Dedilhados 1 2 Mud. de 1 2 Mud. de 1 2. - Mud. 1 2 6 4 Pos. 3 4 Pos. 3 4 de Pos 3 4 Intervalos Terga Terga Terca Terga Terca Terga Terga Terga Maior Menor Menor Maior Maior Menor Menor Maior = Uma Unidade de Comando Obs.: A freqtiéncia do Comando permanece em J=60 Dessa maneira a mente estard sempre no controle da ago, ao invés de correr atrés, ou apenas ligeiramente A frente, dos dedos e do arco. Se os misculos recebem atrasadas as ordens da mente, eles reagem de forma emergencial e estabanada; subitas contragdes logo se degeneram em tensdes e retens6es, atrapalhando a fluidez, dos movimentos indispensaveis para se tocar rapido. Nos estégios iniciais de se estudar no andamento final, ndo sera possivel sempre se tocar afinado, ou correto em todos os sentidos. Tenha em mente que 0 objetivo imediato, temporirio desse estudo 6 tomar contato com certos problemas uma vez que estes sO aparecem no andamento final, Pureza de afinago, portanto, podera ser temporariamente considerada de importncia secundaria, Entretanto é essencial que essa negligéncia momentanea seja corrigida o mais cedo possivel, pelo estudo lento. boa preparagdo e relaxamento 5, Dé igual atencdo ao arco: no pratique apenas a mio esquerda. ‘A fungiio da mao esquerda é a atividade mais ébvia num instrumento de cordas € seu efeito é mais imediatamente notado uma vez que ele produz a altura da nota ea melodia, Fa drea onde naturalmente se tende a concentrar 0 estudo e onde a maior parte dos instrumentistas de cordas gasta 90 % de seu esforgo. Mas 0 arco (“‘a alma do violino”, como afirma a Escola Francesa) e seus problemas especificos deve ter a mesma atengao € tempo de estudo para que se possa aperfeigoar todos os elementos técnicos, musicais ¢ expressivos de seu dominio. Isso significa nao apenas os ingredientes basicos da técnica de arco como detaché, spiccato, e mudangas de corda: os elementos mais sutis da arte da mao direita sio igualmente importantes, mesmo que menos dbvio € mais indefinido para se dominar. Isso inclui procedimentos tais como escolha de ataque e terminagiio da nota de acordo com o estilo ¢ o cardter musical; a natureza da mudanga de arco ditado pela exigéncia da frase; as varias gradagGes de dindmica; articulado realizada pelo arco, acentos; experimentos em cores sonoras através de varias combinagdes de pressao, velocidade e ponto de contato; a velocidade do arco ao tocar a corda em notas curtas, fora da corda, determinando assim seu estilo e carater; a yelocidade e quantidade de arco usada, e sua interacfio com os movimentos da mao esquerda e brago esquerdo; qualidade de som em geral; e acima de tudo, a capacidade expressiva do arco. Esse aspectos da técnica do arco séo os mais dificeis de se estudar pela sua natureza menos concentrada e mais estética. E mais dificil perseverar até que uma melhora seja notada porque qualquer mudanga acontece de forma gradual e qualitativa; a concep¢aio jdeal deve estar clara na mente como um padrdo contra o qual todo o progresso precisa ser medido. Entretanto, no final das contas é a técnica de arco que ira determinar a categoria artistica do executante, e é 0 uso sofisticado desta técnica que, sem ser dbvio, pode ajudar a fazer de uma performance algo extraordinario e memordvel. 6. Separe os problemas ¢ resolva-os um por um. Toda passagem é a soma de muitos componentes separados e distintos, cada um com seus proprios problemas, A mera repetig#o de uma passagem da maneira como est escrita—e tocando a passagem de forma incorreta — ir somente reforgar os erros na mente. muito mais produtivo e eficiente separar a passagem emi scus componentes, isolar os problemas e se concentrar neles separadamente, € aps corrigi-los, reconstituir e estudar a passagem como esta escrita. Um exemplo de separar uma passagem em seus componentes de mao direita com 0 objetivo de estudo pode ser mostrado no Estudo n° 13 do Kreutzer, tocado no meio do arco: (a) Movimento do brago na mudanga de corda: —Fe- xy (b) Movimento de ante-brago no detaché: VaAVe (c) Movimento circular da mao para alternar o detaché ente as cordas LA e Ré: Vins (@) Agao dos dedos para manter a crina plana sobre as cordas, contrariando o efeito de rolamento do movimento da mao. Uma vez funcionando bem separadamente esses elementos técnicos componentes, eles combinardio naturalmente em um movimento organico, unificado: Estudo n°13 om VR VAY — o/ ) Esta mesma abordagem deve ser usada para superar dificuldades da técnica de mao esquerda. Separe a passagem em questio em seus elementos componentes (incluindo afinacio, mudanga de posigiio, seqiléncia de dedos, velocidade, articulacao), em seguida isole e estude as passagens problematicas separadamente. Somente ai estude a passagem completa como esté escrita. 7, \ Estude passagens dificeis dentro do seu contexto. Esta regra complementa a anterior. ‘Apés se isolar e dominar um problema especifico, estude esse problema e esteja certo de que vocé pode toc4-lo corretamente num contexto mais amplo, incluindo passagens que se encontram imediatamente antes e depois do trecho estudado. ‘No exemplo seguinte, a passagem de décimas constitui uma dificuldade que deve ser estudada primeiro separadamente: Capricho n° 4 Paganini mas 0 salto do Si b grave que imediatamente precede a passagem é um elemento adicional importante a ser considerado. Um deslocamento t&a rapido como esse influencia enormemente a disposigo da mio, do brago ¢ teuus os outros musculos do lado esquerdo envolvidos. Além disso a passagem anterior: 2 4 Cordes La Sol La Re RE envolvendo como neste caso um répida sucesstio de mudangas ascendentes, seguidas por dois grandes saltos stibitos em diregées opostas, tem uma influéncia crucial no sucesso da passagem em décimas, ¢ tem de ser eventualmente estudada juntamente com esta tiltima. A interagdo de passagens vizinhas emerge como um problema por si s6. Da mesma maneira, ao estudar a passagem seguinte nio é suficiente trabalhar somente no problema ébvio da triade: Concerta pra Violino n° 4, K. 218 primero movimento ee Mozart 2 ££ A dificuldade inicial para a mo esquerda é acertar o primeiro “Ré” a partir do nada (a apogiatura serd automatica), Mesmo assim, a maioria dos instrumentistas sé repetem essa passagem a partir da primeira nota, nunca abandonando a 6* posi¢ao. Na performance, entretanto, néo se tem o privilégio de se estabelecer a posicdio previamente; nio se deve também depender de artificios elementares como testar a nota em pizzicato (uma vez que o solista nfio pode ouvir a nota de qualquer forma) enquanto a orquestra toca a introdugio. Portanto a primeira coisa a se estudar e aprender nesse caso é como achar esse primeiro “Ré” de forma confidvel visando a hora da performance. Felizmente, gracas a forma do instrumento de cordas, cada nota tem seu conjunto de caracteristicas fisicas distinto. Trata-se da soma total de elementos tais como a espessura do brago ¢ a largura do espelho naquele ponto particular, o angulo formado pelo ante-braco € 0 brago no cotovelo esquerdo, a distancia entre 0 comego e o fim do espelho, a sensagao da palma da mao esquerda contra o corpo do instrumento nas posigdes mais agudas . .. e muitos outros. Isto pode ser aprendido, memorizado e servir de apoio, além do método convencional de se estudar a distancia da mudanga de posigo a partir de uma posigdo mais familiar (1* ou 3*) : \— O principio de estudo dentro do contexto se estende no s6 para o técnico, mas também para 0 contexto musical. Uma coisa é estudar a passagem seguinte visando a afinagdo, por mais importante que isso seja: Concerto de Violino: 1° movimento Brahms Outra coisa é tocd-a com toda a expressiio e drama que ela merece, ¢ que transforma a abordagem técnica a ser adotada pelo instrumentista. Isto resulta em mudangas tais como vibrado mais intenso, maior pressdo nos dedos da mao esquerda influenciando afinagao (principalmente em diregéio a uma afinagéio mais alta), maior pressio no arco alterando a produgao de som, mais movimentos do corpo, e geralmente mais tens&io muscular como conseqiiéncia de uma maior intensidade no estado emocional da performance. Estas reagdes devem se tornar familiares ao instrumentista durante 0 estudo: o concerto nao é a hora, nem o pédium o lugar, para essa manifestagGes aparecerem pela primeira vez, podendo se transformar em elementos desconhecidos e perturbadores. 8. Estude tocando: nio estude apenas estudando, O estudo nfo é um objetivo por si s6, ainda que ele possa ser algo bem prazeroso. E apenas um meio para atingir um fim, uma performance emocionante com a técnica polida e com um significado musical. Mas as condigées durante a performance - tanto externas quanto internas ao instrumentista — séo completamente diferentes daquelas durante o estudo. No lugar do ambiente familiar de sua prépria casa, a sala de concerto se mostra estranhamente desconhecida; a consciéncia tranquilizadora de que um erro pode ser corrigido e uma passagem repetida sem o crivo do julgamento ou desaprovacdo de outra pessoa (exceto de vocé mesmo), da lugar ao desejo de agradar o piiblico. Meméria, que funciona bem na solidéo do seu gabinete pode ser perturbada por visdes e ocorréncias inesperadas durante a performance; as propriedades acisticas diferentes da sala, e a maneira pela qual as percebemos poderao fazer-nos tocar uma obra familiar de uma maneira estranha; e, mais importante, nossas proprias reagGes internas a agitac&io do momento, 0 aumento da tenso emocional e muscular de uma performance inspirada, em contraste com a relaxada objetividade do estudo, pode transformar a premissa j4 estabelecida de todo o mecanismo da execugao. Podemos entretanto achar meios para recriar as condigdes de performance, incluindo esta preparagao no tempo de estudo. «¥* Quando o trabalho de uma nova pega esta ja em andamento, mas antes dele estar no seu final, tente tocar a peca no tempo final (mesmo sem acompanhamento), e com toda a expresso musical. Isso iré mostrar, antes que seja tarde demais, quais mudangas técnicas e musicais ou melhoramentos precisam ainda serem incorporados. Durante essas tentativas de performances tente também se imaginar no momento do concerto, completo com entrada no palco, agradecimento dos aplausos da platéia (que pode ou no incluir pessoas que vocé conhece), saudagdo a orquestra quando for o caso, ¢ tente conseguir o “feeling” da sala de concerto para induzir, se possivel, a agitacfo e o pulso acelerado causado pela ocasitio. Dessa forma poderio ser feitos ajustes técnicos adicionais ou tomadas precaugdes que se tornem necessdrias para essas condigdes fisicas e psicolégicas. Como observado na regra anterior, uma coisa é trabalhar de forma técnica e objetiva a sessiio em Dé maior do primeiro movimento do concerto de Brahms, e outra é tocar a mesma sessdo com expressao e paixio. E ainda outra coisa tocd-la sob os holofotes e num ambiente estranho, em frente & uma grande platéia. Existe ainda a projegdio do som numa sala grande. Isto estd relacionado com a distat.cia maior entre o instrumentista e a platéia ea grande disorepdncia entre o tamanho da sala de concerto ¢ da sala de estudo, que em ambos os casos reduz o impacto expressivo e actistico da performance. Quando um compositor escreve “piano” ou “forte”, é isso que ele quer ouvir, mas nao significa necessariamente que vocé deve tocar meramente p ou f': os meios técnicos de expresso e dindmica devem ser intensificados, até mesmo exagerados, para compensar 0 tamanho da sala; 0 poder de proje¢dio do instrumento dever ser aumentado por uma produg&o de som apropriada, especialmente quando tocando acompanhado por uma orquestra, para que se alcance todos os cantos do auditério; a concepgiio da interpretagaio deve combinar com as dimensées da sala. Os ajustes técnicos necessdrios devem ser parte da preparagdo e da técnica basica de performance, que néo deve mudar drasticamente num ambiente diferente, seja a sala muito “seca” ou muito “viva”. Mesmo assim, é uma boa idéia estudar de quando em quando em um ambiente estranho e, quando possivel, no proprio local da performance. Familiarizar-se com as necessidades técnicas e psicoldgicas, nao importa quao estranhas sejam as circunsténcias, criard a base para a seguranga e 0 equilibrio da técnica, que é 0 pré-requisito indispensavel para a livre expressdo musical. Finalmente, procure estudar com sua roupa de concerto. O que voeé vai usar no concerto podera ser um outro elemento estranho e opressor.. Mulheres devem estudar com salto alto se forem usé-lo no concerto, j4 que 0 salto alto projeta o corpo para frente, mudando 0 equilibrio ¢ o centro de gravidade. Homens devem estudar com paleté e gravata, e néo sempre sé de camisa: a espessura da lapela e da gravata entre o instrumentista ¢ o instrumento pode aumentar em até 8 mm o comprimento do violino fazendo a localizagao das notas muito mais distante do que o costumeiro. 9, Estude também sem o instrumento. Assim como os misculos precisam ser treinados para praticarem a parte fisica da perfo:mance, também a mente deve se exercitar separadamente e independentemente desta parte fisica. -Afinal de contas ¢ 0 cérebro que é 0 controle central de onde cada aco da performance se origina. O cérebro humano tem a maravilhosa capacidade de recriar vivamente ocorréncias do passado e futuro sem que essas estejam realmente acontecendo. Isto é verdade também para performances musicais. Indo através da performance imaginéria de uma obra, completa ou em sessées, imaginando vivamente ( corretamente) cada elemento ligado 4 execugio (altura e ritimo, movimentos fisicos da mao esquerda e direita, expresstio musical, etc.) ira melhorar o trabalho do controle central e, consequentemente a performance em si. ‘A qualidade do computador depende da qualidade dos programas que ele recebe. Essa maneira de estudar ¢ itil nfo sé para os aspectos técnicos da performance, é especialmente titil na memorizacdo. Uma performance imagindria forga vocé a conhecer cada nota da pega inteira sem o apoio auditivo ou tatil da execugio fisica. Para isso 0 maximo de informagdo pertinente de cada nota e o maximo de caracteristicas desta nota devem estar firmemente fixas na mente. Se vocé pode tocar um obra inteira mentalmente, no tempo e sem qualquer lapso ou hesitagdo (julgando-se honestamente), vocé pode dizer com convicgéio que a obra esta completa e seguramente memorizada. Se no, os pontos fracos aparecerao: haverd um. inevitavel colapso nas partes hesitantes. Eu descobri a utilidade desse tipo de estudo puramente por acidente, ¢ devido a uma terrivel necessidade. Morando em Paris por causa da II Guerra Mundial, aguardando o meu visto Americano vencido em condigSes miseraveis, tive de tocar alguns concertos mas © quatro onde me hospedei nao tinha aquecimento nem gua corrente. O inverno estava to rigoroso que eu tinha que ficar na cama a maior parte do dia para me manter aquecido. Ainda na cama, mas tendo de estudar, comecei a tocar com a mente o repertério. Logo descobri que, mentalmente, eu poderia repassar aquelas pegas muito bem sem as partituras, estudar e melhorar os pontos problematicos apenas lendo as partes (protegido sob as cobertas), e mais tarde aprender uma pega inteira, ainda sem o instrumento. Quando finalmente chegou o concerto, elas foram tocadas sem qualquer problema. ‘Alguns anos mais tarde, a eficiéncia deste método de estudo, desenvolvido ao ponto de uma aco imagindria produzir um resultado prdtico, foi confirmada por George Enesco. Um dia, dirigindo com Paul Rolland, Enesco pegou do bolso um lapis e comegou a mexer os dedos da mao esquerda sobre ele como se este fosse um brago de violino. Eu olhei aquele seu “estudo”, até que ele parou abruptamente e disse, olhando para mim, “Oops! Isso foi desafinado”. Este estudo mental e silencioso é também ideal para estabelecer arcadas e dedilhados para uma nova peca. Com experiéncia vocé verd que apenas poucos deles terdo de serem mudados quando forem tocados. Estudo mental também oferece uma forma de trabalho para quando vocé estiver fisicamente cansado ou doente, e é freqilentemente 0 tnico jeito de estudar quando vocé esta viajando para um concerto, ou antes dele. Ouvir misica com o ouvido interno é essencial para o estudo mental. Audigao interna deveria ser desenvolvida por todo musico, mas ¢ uma obrigago para aqueles que tocam um instrumento onde € preciso criar a altura correta de cada nota (¢ para cantores, regentes . . . e compositores). 10. Nao negligencie as sessdes “faiceis” : elas tendem a se vingar de vocé! A maior parte das miisicas contém passagens que nfo oferecem qualquer problema mesmo na primeira leitura. A tendéncia comum é, consequentemente, negligenciar completamente essas passagens no estudo. ‘ B verdade que, vocé no precisa gastar a maior parte do tempo de estudo em passagenis faceis tanto quanto nas dificeis.. Mas a menos que elas recebam um minimo de atengio (que pode ser considerado melhor do que nada), estas sessdes “faceis” sero em sua mente pontos brancos no meio daquelas bem estudadas. Na apresentagdio elas podem *~ parecer totalmente estranhas, como se vocé nunca as tivesse tocado. Essa situagiio pode causar apenas uma hesitagdo momentdnea. “Serd que esta certo?” “Que dedo devo usar para esta nota?” “Mudo de posic&o aqui ou mais tarde?” Muitas pecas podem sucumbir nesses momentos.

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