Texto - 10 - 03 - Tensões Na Relação Comunidade Profissional

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CAPITULO 5 TENSOES NA RELACAO COMUNIDADE-PROFISSIONAL Implicagées para os processos de conscientizacao e participagdo comunitaria Maria de Fatima Quintal de Freitas i. Breve introdugao: por que falar de relagoes e de tensées nos trabalhos comunitarios? Por que falar, aqui, de tensdes entre os processos de parti- cipagao e de conscientizagao, ao se considerar a perspectiva dos trabalhos comunitdrios? Quando se focalizam estas dimensées, destaca-se, de ime- diato, a figura dos agentes comunitarios, considerando-os seja na interface direta com a pratica comunitiria realizada, seja na intersec¢ao desta com as suas vidas, projetos ¢ sonhos. Em outras palavras, emergem dai aspectos relativos as dimensdes psicossociais que estariam na base da manutengdo, do fortalecimento ou do- enfraquecimento das ages de intervengdo psicassocial promovidas pelos diferentes atores envolyidos. Como esta a vida da comunidade, dos seus representantes ¢ dos moradores que participam de intimeras atividades coletivas? Que informagdes temos sobre isso ¢ sobre as suas condigdes cotidianas de existéncia, que nos permitam elaborar um quadro representativo e fiel dessas pessoas que tém enfrentado inumeros desafios e vivido, a cada dia, constantes dissabores? O que sera Bq Mania de Fatima Quintal de Freitas — eo que, em muitos momentos desalentadores, as transforma em fortes combatentes cm defesa da justiga ¢ da dignidade para todos c, em outros momentos, menos dificcis, as faz cair em certa descrenga, como se nao valesse a pena continuar em sua fata? Essas silo algumas das indagag6es por trds da proposta de compre- ensio do Homem como um ser psicossocial, que podem nos ajudar a compreender alguns desafios, desalentos ¢ sofrimentos presentes na dindnnca das relagées comunitarias e que podem subsidiar propostas de mudanga ¢ resisténcia na vida cotidiana dessas pessoas. Quando se focaliza a realizagdo dos trabalhos comunitirios, pode-se dizer que alguns aspectos tém sido cruciais para o processo de implantagio, desenvolvimento € consolidagdo das praticas de intervencdo psicossocial (Escorel, 1999; Flores & Gomez, 1999; Freitas, 1994, 1999, 2005, Lozada, 1999, Montero, 1994; Serrano-Garcia, 1992). Entre esses aspectos, podemos destacar aqueles relativos @ propria dinimica interna das priticas, como os relativos as relagdes estabelecidas entre os participantes e aqueles ligados aos objetivos propostos para a realizacao dos trabalhos comunitarias, Trata-se, entdo, das dimensdes psicossociais presentes nas relagdes travadas entre os diferentes participantes dos trabalhos comunitarios, sejam eles agentes internos ¢ autdéctones, sejam agentes externos comumente técnicos € profissionais das equipes de intervenclo ¢ planejamento comunitario, Esses aspectos podem tanto fortalecer como enfraquecer a participagaio das pessoas nas diferentes redes associativas ¢ de interagdo; podem interferir na construgdo da conseiéncia critica faverecendo (ou n§o) processos de conformismo ¢ fatalismo. Tudo isso pode acontecer independentemente de esses agentes Comunitérios estarem comprometidos com a transformagio social (Freitas, 1998, 2003, 2005), ou mesmo tetem (ou nao) clareza sobre significado psicossocial ¢ impacto social do seu papel nesse contexto, Partindo-se do princi de que a Psicologia Social Comunitaria latino-americana assume o compromisso com a libertaglio dos povos € sctores oprimidos ¢ que, para isso, tem como perspectiva que as populagdes, setores ¢ grupos Comunitirios possam se mobilizar e organi- var em tomo dos seus direttos bisicos para poderem construir uma vida mais digna ¢ justa, entio, toma-se importante proceder 4 andlise Capitula 5 Tensdes na Relacho Comunidade: Profisional 85 de alguns aspectos inerentes propria pritica comunitiria que podem interterir nesses propdsitos (Barreiro, 1985; Freitas, 2000, 2005, Martin Band, 1989). Dessa mancina, a compreensio sobre o que acontece com as pessoas em set dia a dia, sobre os significados que atribuem & vida que tém, ¢ sobre o lipo de relagdo que estabelecem com os demais durante o proceso: de intervengio comunitéria, pode se constituir em verdadeiro ponto de Ww Jo, em termes de que as priticas comunitirias possam avangar na diregdo proposta pelos objetivos © pelos compromissos assumidos (Freitas, 1998, 2003, 2005; Montero, 2000; Sandoval, 1994), Esses signiticados psicossociais ~ sobre a vida e sobre as relapdes estabelecidas assim como a compreensio sobre a cotidiano das pessoas devem ser identiticades ¢ analisados no contexte dos integrantes de dois grupos de agentes psicossociais importantes: o grupo de profissionais extemos ¢ 6 grupo autoctone dos moradores e/ou representantes ¢ lideres comunitirios, E tambem relevante que sejam identificadas ¢ compreendidas as relagdes que esses dois grupos travam enlre $1, para que se possa captar a dindimica dos fragmentos da vida cotidiana desses atores envolvidos, dinimica essa que acaba afetando a todos ¢, também, a0 trabalho realizado, Fazer isso Nod permitiria construir uma espécie de crivo de avaliagio para poder compreender em que medida os processos de conscientizaglo ¢ de participagdo tomam-se suscetiveis de mudanga a partir das interapdes estubelecidas ¢ dos sentidos de comunidade que as pessoas vio construindo, erando, reiterando ¢ fortalecendo; ou entio, redefinem, alteram, enfra- quecem e negam como decorréncia dos lagos interpessoais que constroem c dos resultados que suas o¢Ses produzem, seja na perspectiva individual c/ou coletiva (Barreiro, 1985; Flores & Gomez, 1999, Freitas, 2003, 2005; Martin-Bard, 1987; Serrano-Garcia, 1992). ‘Tendo essa preocupago é que se pretende recuperar, aqui, alguns elementos conceituais oriundos das praticas da Psicologia Social Comu- nitiria, com o intuito de compreender os processos psicossociais que acontecem no interior das relagdes dos atores sociais dos trabalhos comu- nitirios © que afetam seus processos de conscientizagio e participagio, assim como repereutem sobre a vida cotidiana e sobre 08 sentidos de coniunidade que essas pessoas possuem (Freitas, 2003, 2006; Martin-Bard, 1987, Sandoval, 1994). BG Maria de Fatima Quintal de Freitas Assim, a exposigdo girard em torno de dois eixas: um relativo ds dimensdes intemas ¢ externas presentes na telagdo profissional- -comunidade, outro referente as possivers tensdes que tém aparecido nessa relagho ¢ suas repercussdes na vida cotidiana dos trabalhadores ¢ trabalhos comunitirios. 2. Dimensées internas e externas na relagao profissional-comunidade: Eixo | A temitica relativa so compromisso social estabelecido ¢ existente nos trabalhos desenvolvides em contextos ¢ dinémicas comu- Mitdrias, tem-se tormmado um tema central ¢ relevante, nos ultimos anos. Tem tide, também, destaque nas discussdes das politicas publicas ifuais ¢ das diferentes propostas de agdo social, visto que hi um forte incentive para o desenvolvimento de wabalhos ¢ programas de a¢io social-comunitirio em sua maioria voluntarios. Esse é um fendmeno que tem tido grande visibilidade ¢ tem mobilizado, inclusive, distintas propostas povernamentais para 4 implantagdo ¢ desenvolvimento de programas comunitarios que tenham como caracteristicas primordiais serem eficazes ¢ rapidos nos efeitos produzidas junto ds populagdes. Entretanto, ndo ¢ pelo fato de que tais programas possam se dirigir a um conlingente grande de pessoas ¢ focalizem tematicas sociais importantes, que significa que estejam na mesma perspectiva dos pressupostos da psicologia social comunitina. Em outras palavras, o fato de terem tais caracteristicas nie garante (rés dimensées relevantes aos trabalhos comu- nitdrios ma perspectiva da PSC: as mecessidades vividas ¢ sentidas ¢ os compromissos decorrentes disso; a adocdo de estratégias de intervengao guiadas pelo foco da melhoria da vida das pessoas, tomando-as como referencia para isso, ¢ agdes ¢ intervengdes comunitérias que tenham importincia ¢ sentido na vida das pessoas e da sua Comunidade. A maior procura ¢ aceilagao que, recentemente, tem havido por trabalhos comunitarios © propostas de desenvolvimento e€ organizagio comunitarias trazem 4 baila a tematica do compromisso ¢ da implicagio social dos profissionais ¢ dos seus proyetos de intervengiio (Martin-Bard, 1987; Serrano-Garcia, 1992), Em outras palavras, embora pouco se ‘Capitulo 5 - Fensbet na Relagho Comunidade Fraftssionsl 87 fale sobre este tema, parecendo haver uma espécic de naturalizagdo da sua cxisténei durante a realizagdo desses trabalhos — ou seja, de que ha uma posigie generalizada de que o compromisso é uma condigio * existente —, na realidade © que podemos afirmar ¢ que a diseussio sobre o tipo de compromissa ¢ sobre os modelos de Homem ¢ de Sociedade, que estio presentes nus priticas psicossociais, apresenta-se como imprescindivel, se queremos explicitar as aliangas e as possibilidades de avango para as priticas comunitarias © fendmeno de grande expansio dos trabalhos comunitarios se avuga mats ainda quando detectamos haver uma posigio amplamente difundida, nos processos de formagdo de novos quadros de profissionais, de que devem ser feitas capacitagdes com qualidade e implicadas com a realidade social e com os problemas concretos da populagdo, da socicdade eda propria profissio. Assim, poderiamos dizer que, hoje, parecem estar sendo reedita- dos os velhos questionamentos acerca das relagées entre Profissio ¢ Sociedade, como aqueles relativos 4 qualidade, competéncia e abran- géncia dos trabalhos comunitarios, de um lado, e aqueles sobre o tipo de telagdo estabelecida entre os trabalhos ¢ os destinatanios de tais praticas, assim) como entre os agentes (internos ¢ extemos) comunitarias e as prateas realizadas. Sobre as praticas, formagao e producao de conhecimento Acrescente divulgagao e visibilidade que as praticas da psicologia social Comunitéria passaram a ter, em especial a partir da iltima década do século XX, contribuiram para que houvesse, internamente & academia, um movimento dirigido 4 formagio e capacitagado de quadros profissionais conhecedores da realidade social ¢ com ela comprometidos. (Freitas, 1998, 2000; Sarriera, 2000; Serrano-Garcia, 1992; Silva, 2003; Yamamoto, 2000). Ao mesmo tempo, esse movimento coloca a necessidade, ji sentida nas décadas anteriores, de serem produzidos e sistematizados conhecimentos afeitos a nossa realidade e as especificidades da area. Felizmente, na atualidade, tais conhecimentos vém sendo amplindos BB Maria de Fatima Quintal de Freitas — em inumeros lugares ¢ centras de investigagho de nosso pais. Ha que se destacar, entretanto, que as diversas priticas psicossociais, compro- metidas com a conscientizagle © partivipagdo politicas da populagao e as condigdes coneretas de vida, nio silo, 1 processo institucional dirigidas a: uma melhoria das st necessanamente, o resullado direto apenas formativo, Na realidade, a experi wta no desenvolvimento de trabalhos comunitarios tem mostrade que ¢ un pre icil e cheio de imbricagdes epistemologicas ¢ politicas. EF um processo que necessita ser construido colétivamente, a comeyar por agdes comprometidas com a climinago das condigdes eMruturas ¢ conjunturais responsaveis pela opressio, marginalizagdo ¢ exelusdo socias que tém subtraido de nossa populagio o direito 4 vida e 4 dignidade. Ressalte-se, tambem, que, dependendo da mancira como os Jimicas comunitarias, os setores: longo, di profissionais se inserem nos conten tos populares podem se tomar alvos ficeis de programas assistencialistas € paternalistas, uma vez que sdo gerados efeitos diferentes daqueles defendidos pela Psicologia Social Comunitiria latino-americana e que sho contrarios aos processos de participagde ¢ A conscientizagao politica da populagdo (Freitas, 1994, 1998, 2003, 2005), Sobre as dimensoes internas dos trabalhos comunitarios Quando se fala sobre as pniticas da psicologia em comunidade, normalmente, focaliza-se um ou ambos os polos da relagdo existente: deum lado, a comunidade ¢, de outro, os profissionais que desenvalvem suas atividades em um trabalho conjunto com a populagio. De fato, slo aspectos cruciais para a realizagdo dos trabalhos de intervengdo psicossocial. Porém, hi outra dimensio, também relevante a propria pritica que deve ser considerada: a da relagdo que se estabelece entre esses dois polos, revelando a relagio continua que se trava entre esses dois atores (Figura 1). Destacam-se, assim, aspectos intrinsecos As relagdes estabelecidas entre a Comunidade e os Profissionais/Agentes Externos, ¢ entre 08 proprios profissionais cnquanto equipe de trabalho; bem como seus refle- xs na condugdo das praticas comunitirias, identificando-se o lugar desses —— Capitulo 5 » Tensdes na Relacéo Comunidade-Profissional Bg agentes em algum panto do continuum processes de conscientizagdo eesice processos de naturalizagdo da vida cotidiana. Que cotidiano comum? Figura 1, Dialética na relagdo Comunidade-Profissional, Dessa mancira, se temos, neste momento, come proposta, discutir as praticas psicossociais desenvolvidas nos diferentes contextos comunitinos ¢ refletir sobre a nossa profissio ¢ 0 compromisso estabelecido para com a comunidade, em termos de como podemos tomar o mundo mais igualitario, justo ¢ humano, considera-se que esta proposigdo também deveria ser pensada no que se refere aos aspectos intrinsecos presentes nas relagdes. Isso deveria ser feito no sentido de como potencializar a construgdo de redes mais soliddrias ¢ comunitdrias de convivéncia que pudessem ser forjadas no cotidiano dos trabalhos, gerando, também, resultados para os proprios agentes envolvidos. Este tem sido um dos grandes desafios intemmos aos trabalhos comunttainos, que se manifesta, no minimo em dois planos: um referente a0 que se passa na relagao da equipe de profissionais com a comunidade; © outro, a© que se passa, internamente, na propria equipe de profissionais quando das suas interagSes cotidianas. Em verdade, aponta-se, aqui, uma dimensao importante, embora pouco abordada, relativa aos problemas © vicissitudes que acontecem no seio das discussées, negociagées ¢ atividades internas da propria equipe de trabalho, De uma maneira ou outra, acabam interferindo na participagao de cada um dos atores envolvidos, de modo que, durante o andamento do projeto implementado, 08 agentes se envolvam mais ou menos, de acordo com os significados Psicossociais que a agdo tem para si, 90 Maria de Fatima Quintat de Freitas Aaa a$$_$$____ Assim, tomado-se a perspectiva das relagoes internas presentes nas priticas ¢ intervengdes psicossociais em comunidade, poder-se-ia, neste momento, indagar quais aspectos tem se mostrado cruciais na orientagao dos trabalhos comunitarios comprometidos com a transtormagio social, Compreender alguns processos psicossociais que afetam og diferentes trabalhadores comunitarios torna-se relevante para entender por que alguns trabalhos continuam perseguindo seus objetivos € outros, nio. Para a andlise proposta destacam-se, entdo, gaafro elementos que tém afetado as dindmicas psicossociais em comunidade. Um deles refere-se ao proprio trabalhador comunitirio, em termos de serem compreendidos os caminhos pelos quais se di a sua construgdo come um ser psicossecial. Isso significa compreendé-lo em teomos de agente de intervengio ¢ de ages sociais, ao mesmo tempoem que se constitui como um produtor de conhecimentos coerentes com a pratica realizada (Freitas, 1998, 2003; Sandoval, 1994; Montero, 2000). Entramos, aqui, no terreno da compreensio do processo de construgiio da identidade psicossocial deste trabalhador. E, por se tratar de um proceso, faz-se necessdrio, entio, entender a sua identidade — antes ¢ durante (d) © trabalho comunitirio — uma vez. que isso contribui para compreender 03 movimentos de transformagio ou de manutengia dos projetos de comunidade que so considerados como relevantes por este profissional. Assim deveriamos perguntar: que identidades psicossociais estio sendo construidas, fortalecidas ou enfraquecidas? Outro aspecto importante a ser compreendido nas relagdes intemas dos trabalhos comunitarios liga-se a propria agdo deste trabalhador comunitdrio, Ou seja, torna-se importante saber que tipo de compreensao e significados psicossociais (pessoais, sociais e politicos) sao tributados — por ele e pelos outros ~ aquilo que os profissionais fazem em seus trabalhos. Com isso, busca-se identificar 0 gram de importancia que 0 ‘fazer psicossocial” esta tendo para cada um dos agentes envolvidos em suas Vidas, 0 que nos remete a pensar a pritica desenvolvida como uma a¢do psicossocial que s¢ja compreendida como processo ¢ coma resultado, em cada momento e etapa do trabalho desenvolvido (Freitas, 2003, 2005, 2006). ‘Um terceiro elemento refere-se a identificagdo da relagdo estabe~ lecida entre os trabalhadores comunitarios ¢ 0 seu objeto de intervengdo _—— = Capitulo 5 Tensdes na Relagio Comunidade-Profssional 94 ayo, u comunidade, Dependendo da natureza dessa relagdo — alogten Ou pragmitico-funcionalista — decorre que os polos de contecimento ¢ de experiéncia podem se cristalizar em um dos pentos do continuum (conhecimento unilateral x dialético; conhecimento dialgico © prigmitico-funcionalista), revelando, assim, diferentes poderes no conhecimento e na intervengao. Outra possibilidade seria esses polos alferuarem-se, resultando em um tipo de interveng3o coletiva que produziria conhecimentos histéricos ¢ dialéticos ligados 4 realidade social concreta. Compreender isso permite identificar o gram de crenga existente, em cada um dos atores, considerando-se agentes de twansformagdo social ou meros executores de decisdes ja estabelecidas apnoristicamente, Isso nos leva a identificar as categorias de “poder”, na perspectiva de Martin-Bard (1989), ¢ “atividade” e “processo grupal”, na perspectiva de Silvia Lane (1987), Pode, também, explicitar os caminhos para os diferentes tipos de produgao de conhecimento, ¢ iocalizar conhecimentos desde uma perspectiva harménica e funcionalista, até propostas de produgdes dialdticas dentro de uma concepgao histérico- social ~ que enfocam os conflitos micro ¢ macrossociais vividos pelas ¢ invest unilateral ou dhaletica pessoas. Por fim, um quarte aspecto relevante situa-se na propria prdtica de intervengdo psicossocial e suas relagées com a vida cotidiana, seja em termos de ser mantencdort, seja adaptadora ou transformadora das condig6es estruturais e conjunturais que est@o manienda a populagao naguele tipo de realidade ¢ vida. Aparece, aqui, a necessidade de apreendermos uma vise de totalidade histérica sobre os determinantes dos problemas nos quais vive a populagao € sobre como sua dindmica psicossocial ¢ (des)construida. Deparamo-nos, entio, com uma anilise que permite refletir sobre as repercussdes psicossociais, na vida cotidiana de cada um dos envolvidos, sobre o fato de os trabalhos comunitarios terem um cariter imediato, pontual ¢ curative, ou uma dimensfo preventiva ¢ mediata, tendo uma visio histérica; ou ainda serem obrigados a intentos de conciliagdo entre propostas imediatas e projetos politicos a longo prazo (Freitas, 1994, 1998, 2003, 2005). 92 Maria de Fatima Quintal de Freitas 3. Alguns desafios para os trabalhadores comunitarios No desenvolvimento dos diferentes programas de intervengiio psicossocial cm comunidade, alguns questionamentos tém acompanhadoos profissionais ¢ os grupos de trabalho. Constituem-se cm desafios a serem se nao vencidos, pelo menos, aplacados quando da realizagdo das atividades. Trata-se de indagagdes muitas vezes colocadas silenciosamente para os agentes comunitanos, cujas respostas poderiam constituir onentagdes metodolégicas para altemativas de ago, vidveis ¢ comprometidas com a realidade concreta. Indicamos, aqui, tés desses questionamentos cujas respostas ¢ reflexdes podem contribuir para o encontro de altemativas que pnmem pela coeréncia entre o fazer psicossocial em comunidade e os compromissos assumidos para com a populacdo. Um desses questionamentos que nos fazemos, a cada momento da pritica comunitaria, refere-se ao grau de impacto ¢ de importancia que nossos trabalhos tém na vida cotidiana de todos, profissionais, agentes comunitanos autoctones ¢/ou comunidade. Indique-se, aqui, também, 0 fato de que os ganhos ou fracassos, durante as atividades e em momentos diversos, podem afetar o valor da importincia atribuida ao trabalho ¢ 0 seu grau de impacto. Essas variagdes podem cnar incertezas que afetam a continuidade das praticas realizadas, chegando a fragilizar a rede de interagdes entre os atores implicados. Um segundo questionamento relaciona-se ao desafio ligado ao compromisse ¢ alianga presentes na proposta de acdo comunitaria. Que compromissos com a mudan¢a (ou de transformagcio) os trabalhos apresentam ¢ em que dire¢ao (individual ou coletiva) apontam? E que valor 95 participantes atribuem a isto? Do ponto de vista das relagdes internas da propria equipe, responder a essas perguntas aponta para uma discussdo, por parte dos profissionais ¢ agentes, sobre a sua prépria identidade — individual, grupal e social — ¢ sobre o sentimento de pertencimento que pode estar sendo construido (ou no) intemamente no grupo. Aprofundar isso significa analisar o que Martin-Baré (1989) denominou de “impacto das estruturas sociais no psiquismo humano”, permitindo a compreensao dos processos de internalizagilo, externalizagaio © objetivagao da vida humana (Berger & Luckmann, 1986), que fazem __—— Eapituto 4. Temes na Aelagho Comunidsde-Profissional 33 com que 0 individu de uma dada classe social, independentemente, (ic sua clareza sobre sua condigfo de pertencimento ow origem social, sinta-se fazendo parte dela, pereeba a si mesmo © queira pertencer a essa classe, ou, por outro lado, deseje pertencer, viver ¢ se sentir membro de putea classe Social, antagonista A sua de origem (Freitas, 2005, 2006), Como terceiro desafio para os profissionais que atuam nos mais diferentes contextos ¢ dinimicas comunitérias, encontram-se ox intentos de buscar uma delimitagdo ou posicionamento consensual — nas perspectivas individual ¢ grupal — sobre o tipo de compromisso € proposta que podem produzir um impacto maior na direg’o das transformagoes, dos beneficios ¢ das melhonias da vida comunitaria, Isso significa saber como cada uma das partes implicadas nesse processo avalia a relagdo entre a importincia das praticas e o tipo de compromisso ¢ alianga estabclecidos com a populagdo, com o trabalho © com a proposta politica implicita, ¢, consequentemente, delimitar que as Sio mais cficazes © melhores. agdes e estratégi 4. Tensdes na relacao profissional-comunidade e repercussées na vida cotidiana: Eixo I Enfrentar desafios ¢ questionamentos aponta para a necessidade de serem consideradas, dentro da dindmica das priticas psicossociais, duas calegorias importantes - 08 processos de conscientizagio ¢ de participagio — buscando-se possiveis ¢ necessdrias articulagdes entre clas, que permitiniam construir estratégias de enfrentamento dos chamados processos de naturalizagdo ¢ psicologizagdo da vida cotidiana. Tais intera- des € intersecedes esto indicadas na Figura 2. Dessa forma, falar sobre os precessos de conscientizagdo implica pensar como se constréi a consciéncia na vida cotidiana, a cada etapa e Momento das priticas de intervengdo psicossocial, € como ela pode ser apreendida nas relagdes concretas. Em relagdo a segunda dimensiio, poder-se-ia dizer que, ao indagar sobre a5 priticas comunitirias e suas formas de expressio, estariamos: falando da participagdo, devendo ser identificadas as varias dimensdes ¢ tepereussdes que apresenta no cotidiana das pessoas. 94 Maria de Fatima Quintal de Freitas Figura 2. Relagdes entre formas de participago na vida cotidiana © conscien- tizagio. As indagagSes relativas 4 maneira como se da e como se mantém essa relagdo (participagao — vida cotidiana — conscientizagdo), com vistas a uma transformagio no cotidiano das relagdes, esto presentes se, também, nos preocupamos com a avaliagao do nosso trabalho. Decorre dai anceessidade de compreender 0 processo de participar (como acontece e o que se faz para participar) ¢ suas repercussdes em nossa consciéncia, as quais podem resultar em relagdes de oposigdo, de confronto, de negociagio ¢/ou de concordancia, apontando para tensdes ou rompimentos entre essas categorias (vide Figura 2) Assim, podem-se deri var desta andlise a identificagace explicitagdo do Projeto Politico existente, construido a partir das diferentes agdes travadas nas interagées desses dois atores (vide Figura 3). bi | f Figura 3. Comunidade ¢ profissionais: identidade ¢ projeto politico distintos. —"y = Comunidade —y Pe ————— Capitulo 5 - Tensdes ma Relagho Comunidade-Profissional 95 Se, antes, cada um deles possula um projeto politico sobre a sociedade e sua insergao nela, sua identidade apresentava-se configurada de uma dada maneira, agora, apds as interugdes ¢ relagdes travadas pode- -sc. entio, indagar qual projeto politico estaria existindo (vide Figura 3). Em outras palayras, pode-se perguntar: haveria, agora, a existéncia de um projeto politico idéntico ap que possuiam antes da intervengio comunitana Ou essa interapdo possibilitaria a construgdo de um projeto politico hibndo? Havena a prevaléneia de um tipo de projeto politico ao longo do curso dos trabalhos a serem desenvolvidos e, em caso afirmativo, qual deles prevaleceria; 0 da comunidade ou o dos profissionais? Suas rela- gGes cotidianas teriam caracteristicas de aproximagao e cocréncia de tal modo que pudessem surgir condigdes objctivas ¢ subjetivas para que cons- iruissem, conjunta ¢ dialeticamente, um terceiro projeto, que pudesse ser a sintese de suas posigdes ¢ concepgdes de mundo e¢ de vida (vide Figura 4)? Figura 4, Comunidade ¢ profissionais: identidade ¢ projcio politico “sinteses™, Na dinamica da vida cotidiana, € possivel identificar tensdes que aconlecem entre a pritica desenvolvida — ¢ suas orientagdes filosdficas sob 4 forma do compromisso assumido ou intencionado =e asagdes resultantes, cujos reflexos se manifestam em tés esferas: no proprio trabalho, na vida do profissional ¢ na vida da comunidade. Assim, as tensdes na vida cotidiana dos trabalhadores comunitarios apontam para a necessidade de compreender os diferentes “fazeres” psicossociais decorrentes, em termos de: a) Que dimensio sociopolitica a ago humana implementada (seja do profissional, da comunidade, dos movimentos ¢ organi- zages populares e das ages resultantes) apresenta? b) Que natureza possui o comprometimento politico do trabalho que realizamos? of Maria de Fatima Quintal de Freitas repereussdes cotidianas acontecem come fruto das agdes, pelo tipo de compromisso? Lissus indugagdes nos levam a considerar as possibilidades de s psicossociais que tm predominado nas propostay de part o cotidiana j2uinas dimensdes agdes ¢ de prit infervengho ©, que podem trazer impactos ¢ mudan (lessee trabulhos, Esse leque decorre das interagdes ent ber a pritica realizada, o referencial de crengas © ideais qpic oricnta cula int dos atores, Os fazeres que se lornam(ram) possivers e os resultados obtids a cada etapa do trabalho realizado. Diante disso, pode-se dizer que a intersecgdo entre a “Ago como Resultado © Produto” das diversas atividades implementadas ¢ a “Agio «7 Processo” & que possibilita, compreender as pessoas, quando, nos trabullos comunitirios, em seu cotidiano, nos dizem que vale a pena (ou no vale a pena) continuar lutando ¢ trabalhando nas prat catividades na conmnidade, que vale a pena (ou nfo vale) continuar participando dos movimentos populares ¢ das reunides; que vale a pena (ou no) fazer coisas que Os outros pares, também, deveriam estar fazendo ec, no iportantes, © entanto, nie fazem, ¢ assim por diante, Deparamo-nos, entio, com um conjunto complexe de signifieados. sobre © tribalho ¢ as relagdes intrinsecas ao seu desenvolvimento, que ‘Vio aparecendo para cada um dos atores envolvidos © que permitem configurar alguns eéxes de avaliagdo baseados em: a) Julgamentodotrabalho como produto e processo, consideranda seus resultados, b) Tipo ¢ natureza de conhecimento produzido ¢ que atores esto envalvidos, seja na produgda, seja no desfrute ¢ destinagao; c) Crengas sobre o grau de importineia das agdes realizadas, das panicipagdes efetivadas e permitidas e¢ dos objetivos dl) Sentimentos de dignidade © justiga ao participar (ou ndo participar) das priticas comunitarias em suas diferentes elupas. Esses eixos de avaliago — muitas vezes acontecidos, mas nilo compartithados entre os diversos profissionais © agentes — imprimem um cariter de fortalecimento ou de enfraquecimento na continuidade das priticas, assim come na permanéncia dessas pessoas em seu desenvol- __—_————_ Capitulo '$ - Tenses na Relacio Comunidade-Profissional 97 vimento, Esses processos psicossociais que, silenciosamente, surgem © scompanham os profisstonais, tém sido alvo de poucos debates ¢ poderiam ajudar « compreender por que, em muitas ocasides, mesmo com condighes favoravels pare um bom andamenio das praticas psicossociais em comu- nidade, parece que “algo” acontece ¢ a pritica comunitiria ou panalisa, ou tem certo retrocesso, ou perde @ sua forga mobilizadora ¢ aglutinadora. Proceder 4 este tipo de andlise pode nos permitir construir alguns conle- cimentos a respeito das relagdes entre os processos de participagiio e de conscientizagie, © gue trana alguns contributos para a implementagdo de projetos que ampliem os canais de envolvimento ¢ participagiio da comunidade na construg’o cotidiana da sua histéria psicossocial, REFERENCIAS Barretto, J. (1985). Edicaciin popular y proceso de concientizacién, Madrid: Siglo Veintiune Editores, Berger, P_ & Luckmann, T. (1986). La construccién social de la realidad, Espanha: H. F. Martinez de Mur. Escorel.S. (1999). Midas ao léu. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. Flores, J. M. & Gomez, L. Y, (1999), /ntroduccién a la psicologia comunitaria, Cuemavaca: CEDEIT, Freitas, M. FQ. de. (1994). Pricticas en comunidad y psicologia comunitaria, Em M. Montero (Org.), Psicologia social comunitaria: Teoria y método (pp. 139-66). México: Editorial Guadalajara. Freitas, M. F. Q. de. (1998). 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