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Vara aay TE al Sueel0) (00 L138 Editora C/Arte Exitor Fernando Pedro da Silva Coordenagéo Editorial Fernando Pedro da Silva Marilia Ancirés Ribeiro Conselho Editorial Eliana Regina de Freitas Dutra Joao Diniz Ligia Maria Leite Pereira Lucia Gouvéa Pimentel Maria Auxiliadora de Faria Marilia Andrés Ribeiro Marilia Novaes da Mata Machado Otdvio Soares Dulci Vera Casa Nova Orientagoes Pedagégicas Lucia Gouvéa Pimentel e William Resende Quintal Assistente de Produgao Alessandra Andrade Revisao Consuelo Salomé Projeto grafico e capa Poliana Porazzoli Imagem da capa Pintura em guache. Arlindo Daureano Kexinawa (Alto Rio Purus). Colegdo. particular da autora, ‘Todos os direitos reservads. Proibida 9 reprodugso, armazenemento ou tronsmisaio de partes desta veo, através de qusisquer meio, sem 3 previa autorzagée por escrto. Ditoitos exclusivos desta ect Eaitora C/Arte ‘Av, Guarapari 484 ‘Cop 21550-200 - Belo Horizonte - MG Pabx: (1) 3491-2001 ‘com arte@eomartevirual.com.br Lagrou, Els, 1963 - Arte indigena no Brasil: agéncia, alteridade e relagao. / Els Lagrou. (Editor: Fernando Pedro da Silva; Coordenagdo: Fernando Pedro da Silva e Marilia Andrés Ribeiro; Orientagdes Pedagdgicas: Lucie Gouvéa Pimentel e William Resende Quintal]. Belo Horizonte: C/ Arte, 2009. 128 p.; 16x24 cm: il. (Historiando a Arte Brasileira — Didética) ISBN: 978-85-7654-086-1 1. Arte Indigena - Brasil 2, Arte Plumaria. 3. Desenho e Pintura Corporal I. Il, Silva, Fernando Pedro da. lll. Ribeiro, Marilia Andrés. IV. Pimentel, Lucia Gouvée. V. Quintal, William Resend. VI. Titulo, Vil. Série. DD (21): 704.0398 CAPITULO 1: ARTE OU ARTEFATO? AGENCIA E SIGNIFICADO NAS ARTES INDIGENAS Um texto que busca esbogar o quadro da arte indigena brasi- leira no pode senao comegar com um paradoxo: trata-se de po- vos que nao partilham nossa nog4o de arte. Nao somente nao tem palavra ou conceito equivalente aos de arte e estética de nossa tradig&o ocidental, como parecem representar, no que fazem e va- lorizam, o polo contrario do fazer e pensar do Ocidente neste cam- po. Dois problemas cenitrais e interligados ressaltam desde 0 co- meco da discuss&o: a tradicional distingao entre arte e artefato e o papel da inovacao na produgao selecionada como “artistica”. Estas quest6es, no entanto, dizem muito mais respeito a discuss6es internas a recente histéria, filosofia e critica da arte e da estética de tradigao ocidental do que a uma hipotética ausén- cia de sensibilidade, em outras sociedades, para a possibilidade de a percepgao sensorial produzir apreciagées qualitativas pare- cidas com o que vem a ser chamado de “fruigdo estética” entre nds. Ou seja, ndo é porque inexistem o conceito de estética e os valores que 0 campo das artes agrega na tradi¢o ocidental que outros povos nao teriam formulado seus préprios termos e cri- térios para distinguir e produzir beleza. Nossa selec&o de produ- ges artisticas indigenas brasileiras nao deixara duvidas quanto a vontade de beleza destes povos. Por outro lado, é importante frisar que toda sociedade pro- duz um estilo de ser que vem acompanhado de um estilo de gostar, e pelo fato de o ser humano se realizar enquanto ser so- cial através de objetos, imagens, palavras e gestos, os mesmos se tornam vetores da sua agao e pensamento sobre seu mundo. [p. 10] Menina ashaninka com pintura facial de urucum com o motivo de kempiro (foto Sonja Ferson). Desta maneira, a importancia dada 4 busca da beleza pode va- riar enormemente e pode nao adquirir a aura de “veneragao quase religiosa” que adquiriu no Ocidente pds-iluminista.'Visto que as raz6es que levaram a tal culto sao historicamente especi- ficas, fica dificil saber onde esta 0 perigo do etno- ou eurocen- trismo: na posig&o que defende a universalidade da sensibilida- de estética como apanagio da humanidade, ou na posigao contraria que denuncia 0 “esteticismo” como atitude etnocéntri- ca por ser essencialmente valorativa, apreciadora e, portanto, discriminatoria; é impossivel gostar sem desgostar.? E também sabido que, ha varias décadas, a parcela mais sig- nificativa da produgao artistica nos centros metropolitanos e legiti- madores do mercado de arte erudita pouco tem a ver com a procu- ra e apreciagéo do “Belo” que marcou a origem da filosofia moderna sobre arte e estética no século XVIII. Muito do que é pro- duzido na vertente, hoje em dia dominanie, da arte conceitual tem mais a ver com o questionamento de tal definigaéo do que com sua afirmagao. O que estes artistas visam com sua obra é provocar um processo cognitivo no espectador que se torna, desta maneira, par- ticipante ativo na construgao da obra, a procura de possiveis cha- ves de leitura. Quanto mais complexas e menos evidentes as alu- s6es presentes na obra, mais esta sera conceituada. A obra de arte, portanto, ndo serve somente para ser con- templada na pura beleza e harmonia das suas formas, ela age sobre as pessoas, produzindo reagées cognitivas diversas. Se féssemos comparar as artes produzidas pelos indigenas com 1 GELL, 1998; BOURDIEU, 1979; OVERING, 1991, 1996. * Com relagéo a definigdo da arte em termos estéticos, Gell afirma: “Acredito que o d sejo de ver a arte de outras culturas esteticamente nos diz mais sobre nossa prépria ideologia e sua veneragao quase religiosa de objetos de arte como talismas estéticos, do que diz sobre estas outras culturas. O projeto de ‘estética indigena’ é essencialmente equipado para refinar e expandir as sensibilidades estéticas do publico de arte ocidental produzindo um contexto cultural no qual artes de outras culturas podem ser incorpora- das” (GELL, 1998, p. 3). Severi, por outro lado, considera etnocéntrica a atribuigao res- tritiva do conceito ao mundo ocidental moderno: “O ponto de vista etnocéntrico reserva © termo ‘arte’ somente para a tradicao ocidental e nega que as produgées plasticas e figurativas das chamadas sociedades primitivas possam refletir uma atitude comparé- vel a do artista europe” (SEVERI, 1992: 82); @ Murphy afirma: “Assim como arte podia ser usada no século dezenove para distanciar ‘outros’ povos dos Europeus civilizados, ela pode hoje também ser usada como instrumento retérico para inclul-los numa cultu- ra mundial de povos igualmente civilizados” (MURPHY, 1997, p. 648). 12 Eis Lacrou as obras conceituais dos artistas contemporaneos, encontraria- mos muito mais semelhangas do que a primeira vista suspeita- riamos.° Pois muitos artefatos e grafismos que marcam 0 estilo de diferentes grupos indigenas sao materializagdes densas de complexas redes de interagdes que supdem conjuntos de sig- nificados, ou, como diria Gell, que levam a abdugées, inferén- cias com relagao a intengdes e agdes de outros agentes.’ Sao objetos que condensam agées, relagées, emogées e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se rela- cionam, se produzem e existem no mundo? Se objetos indigenas cristalizam acées, valores e ideias, como na arte conceitual, ou provocam apreciagées valorativas da categoria dos tradicionais conceitos de beleza e perfeicao for- mal como entre nés, por que sustentar que conceitualmente es- ses povos desconhecem o que nés conhecemos como “arte”? E preciso enfatizar este ponto para melhor entender o que exata- mente as producées artisticas provindas de contextos original- mente auténomos de produgao tém a nos oferecer e por que sua tradugao para o contexto metropolitano tem provocado *GELL, 1996. *GELL, 1998, p. 13-16. ° A inferéncie abductiva de Gell, ou, em outras palavras, a abduedo da agéncia de al- guém a partir de um /ndice, refere a muitos tipos de processos cognitivos que podem fazer com que 0 objeto aja sobre a pessoa. Os indices sao artefatos, objetos, ou obras de arte que estéo inseridas numa cadeia interativa que alterna a posicao de agente-pa- ciente. O art nexus, 0 né canénico de relagGes na vizinhanga de objetos de arte, prev quatro posicées:a do artista, a do indice, a do protétipo ¢ a do recipiente. Cada um destes pode se encontrar em posigao de agente ou paciente. Da combinacao destas relagdes surgem todas as situagdes possiveis de se pensar relacées em que coisas me- deiam relacoes entre pessoas. A semidtica de Peirce (197) prevé trés tipos de relagbes entre o signo € 0 objeto, ao qual o signo se refere: a relagao entre o referente e 0 sim- bolo é da ordem da convencéo; assim, a relagao entre o simbolo linguistico ¢ © objeto significado € totalmente arbitrério. A relagao entre o referente e o cone supée alguma relagao de semelhanca; jé a relagao entre 0 objeto e seu indice é uma relacdo de conti- guidade, em que o /ndice participa da natureza do objeto ao qual se refere. Gell decide na sua abordagem agentiva eliminar os dois outros termos do sistema, o icone e 0 simbolo, pera ficar somente com o indice. Na verdade, 0 que o autor quer enfatizar que ne relacdo pragmética e interacionista do seu modelo, nao é preciso distinguir indi- ce de icone. Todo icone ja é na verdade um indice. Tendo em vista que a imagem age sobre a pessoa, cla partilha nas qualidades daquilo de que é imagem. Aqui Gell segue Taussig em Mimesis and Alterity (1993), que mostra como 0 envolvimento sensorial com 0 percebido estabelece um contato entre o percepto e aquele que percebe, uma copresenca; por esta raza ver e tocar sao experiéncias muito proximas. Arte Indigena no Brasil » 13 tanta discussdo entre connaisseurs e criticos de arte, de um lado, e antropdlogos, de outro. Como salientado acima, a grande diferenga reside na inexis- téncia entre os povos indigenas de uma distingdo entre artefato e arte, ou seja, entre objetos produzidos para serem usados e outros para serem somente contemplados, distingéo esta que nem a arte conceitual chegou a questionar entre nds, por ser tao crucial a de- finigdo do proprio campo. Somente quando o design vier a suplan- tar as “artes puras” ou “belas artes” teremos nas metrépoles um quadro similar ao das sociedades indigenas.® A inexisténcia da figura do artista enquanto individuo criador -cujo compromisso com a invengao do novo é maior que sua von- tade de dar continuidade a uma tradig&o ou estilo artistico conside- rado ancestral — é outra diferenga crucial. Nao que artistas contem- poraéneos metropolitanos nao trabalhem dentro de tradigdes estilisticas bem definidas. Vale lembrar que o fundador da Arte Conceitual, Marcel Duchamp, instalou seu urinol ha praticamente um século, em 1917, e desde entao o paradigma do fazer artistico nao mudou, mas, /deologicamente, a figura do artista se projeta como inventor do seu préprio estilo, como inovador incessante, ao modo de um Picasso - emblema do Modernismo na arte. A fonte de inspiragao e legitimagao se encontra no génio do artista, que é visto como agente principal no processo de relagées e interagdes que envolvem a produgao de sua obra, uma obra produzida com o unico fim de ser uma obra de arte. Por mais que a arte moderna sempre se constitua como lugar de reflexao sobre a sociedade, ela tem sido enfatica na defesa de sua independéncia de outros dominios da vida social. “A arte pela arte” é um credo tanto de artistas quanto dos que pretendem levar a arte a sério, e reflete, segundo Overing,’ nos- sa dificuldade ocidental de pensar a criatividade individual e a ®Uma polémica surgida em torno de ura das instalagSes do Arte-Cidede em Sao Paulo (1994- 2002) ajuda a esclarecer a questdo. O artista estrangeiro Acconci construiu um confortavel abrigo para os moradores de rua. Quando a exposigdo terminou, a prefeitura retirou 0 abrigo do luger sob intensos protestos dos moradores e simpatizantes (DICKSTEIN, 2006, p. 127). Ou seja, caso tivesse sido permitido & obra concretizer de forma permanente sua utilidade para os moradores, ela deixaria de ser obra de arte e se tornaria projeto urbanistico 7 OVERING, 1991 14- Eis Lacrou autonomia pessoal juntas com a vida em sociedade. Em nossa tradic¢&o pds-iluminista o artista assume a imagem do individuo desprendido, livre das limitagdes do “senso comum” sociocén- trico. O pensamento ocidental associa coletividade com coergéo e se vé, desta maneira, obrigado a projetar o poder de criativida- de para fora da sociedade. Segundo Lévi-Strauss, um resultado deste estatuto solitario de génio é que 0 artista moderno teria perdido, através de um uso idiossincratico de signos e simbolos, sua capacidade de comunica- cao: nao ha linguagem fora da sociedade. Em entrevista cedida a Charbonnier no comego dos anos 1960,3 Lévi-Strauss propde uma interpretagao antropoldgica da diferenga entre arte moderna e “pri- mitiva”. Nossa tradigao intelectual ocidental seria responsavel por trés diferengas entre arte “académica” e arte “primitiva’; diferengas que a arte moderna tenta superar desde o comeco do século XX. A primeira diferenga diz respeito a individualizagdo da arte ocidental, especialmente no que se refere & sua clientela, o que provoca e reflete uma ruptura entre o individuo e a sociedade em nossa cul- tura — um problema inexistente para o pensamento indigena sobre socialidade. A segunda se refere ao fato de a arte ocidental ser re- presentativa e possessiva, enquanto a arte “primitiva” somente pretenderia significar. A terceira reside na tendéncia na arte ociden- tal de se fechar sobre si mesma: “peindre aprés les maitres” (“pin- tar seguindo os mestres”). Os impressionistas atacaram 0 terceiro problema através da “pesquisa de campo” e os cubistas o segun- do, recriando e significando em vez de tentar imitar de maneira realista, aprenderam das solug6es estruturais oferecidas pela arte africana. Mas a primeira e crucial diferenga, a da arte divorciada do seu plblico, nao péde ser superada e resultou, segundo Lévi- -Strauss, num “academicismo de linguagens”: cada artista inven- tando seus prdprios estilos e linguagens ininteligiveis. Nos anos 1980, a situagao do estudo da arte de outros povos ainda enfrentava sérios entraves teéricos, como podemos consta- tar na afirmagao de Overing: “a viséo contrastante da estética como dominio auténomo (mais um, ao lado da religiao, ciéncia, econo- mia e politica) tende a ser nossa heranga nas ciéncias sociais; ape- ® CHARBONNIER, 1989, p. 63-91 Arte Indigena no Brasil - 15 sar de termos na antropologia uma fraca ‘antropologia da arte’ que diz timidamente que outros povos, diferentemente de nds nao se- param a arte, sua atividade e seu julgamento, do seu uso”.? Esta visao da arte e da estética teve duas consequéncias: se a arte era um campo de experiéncia tao especffico, do qual se podia falar somente em termos técnicos, intraestéticos, nao era nem a tarefa hem a competéncia do antropdlogo de fazé-lo. E deste modo, a maioria dos antropdlogos deixou o tema de lado. Por outro lado, se antropdlogos decidiam dizer algo sobre o assunto, o risco de um viés sociocéntrico era grande. Neste caso, a arte era vista como reflexo e confirmago da estrutura social, algo sensivel sem senti- do e estrutura préprios, um cédigo visual confirmando o que pode ser melhor ou igualmente dito em palavras. Os sistemas dos obje- tos eram deste modo lidos como cédigos que ajudavam na classi- ficagao de fendmenos extraestéticos. Figura 1 — Pintura facial kadiwéu (foto Darcy Ribeiro, 1948). Fonte - Acervo Museu do indio. Esta visao “representativista” da arte obscurecia a maneira dindmica de a arte agir sobre e dentro da sociedade, sendo um discurso silencioso sobre a condigaéo humana e sua relagdo com os mundos naturais e sobrenaturais, ou sobre a propria socieda- ° OVERING, 1989, p. 159. 16+ Eis Larou de. Um exemplo da arte como reflexdo, em vez de reflexo da sociedade, pode ser encontrado na andlise de Lévi-Strauss da “representagéo desdobrada” nas pinturas faciais kadiwéu™ que sera retomada adiante. Em vez de refletir uma estrutura social de metades, este estilo imaginaria uma possibilidade cognitiva de organizagao social nao realizada na vida cotidiana. O estilo desdobrado nos informaria sobre o desejo dos Kadiwéu de su- perar a tens&o social inerente ao seu sistema de trés castas, uma tensao temporariamente dissolvida pela imaginagao artistica. Na maior parte das sociedades indigenas brasileiras 0 pa- pel de artes4o/artista nao constitui uma especializagaéo. Se a técnica em questéo compete as pessoas de seu género, cada membro da sociedade pode se tornar um especialista na sua realizagao. Porém, sempre ha os que se sobressaem; estes sdo considerados “mestres”. Assim, entre os Kaxinawa (grupo pano, Acre), a mestre na arte da tecelagem € chamada de ainbu keneya, “mulher com desenho” ou ainda de txana ibu ainbu, “dona dos japins”, ou seja, lideranga ritual feminina da aldeia, responsavel pela organizacao do trabalho coletivo do preparo do algodao. Figura 2 - Tecelé kaxinawa (foto Els Lagrou, 1995). “© LEVI-STRAUSS, 1973. Arte Indigena no Brasil - 17 Este mesmo titulo, “dona dos japins”, 6 dado as mulheres que lideram 0 canto feminino durante a performance ritual. O japim é um passaro que tece elaborados ninhos alongados, pendura- dos nos galhos das 4rvores. Em cantos rituais seu ninho 6 cha- mado de txana disi, “rede do japim” e assim o passaro serve de metafora para indicar a exceléncia na tecelagem. O lider de canto masculino é igualmente chamado de txa- na ibu, “dono dos japins”. O japim, além de ser um passaro tecelao, é também aquele que imita o maior numero de cantos de outros passaros e animais. Mulheres aprendem cantos que ajudam-nas a aprender a tecer com desenho, e também a de- senvolver outras atividades produtivas da vida em comunida- de, enquanto homens aprendem cantos ligados 4 sua esfera especifica de produtividade. A capacidade mimética musical, procurada e emulada pelos cantores da aldeia, que absorvem as qualidades desse passaro no rito de consagracao do novo lider de canto," importa antes por causa do seu valor “produti- vo” do que “representativo”. O canto masculino torna possivel a caga: ao imitar o canto dos animais, 0 cagador os chama para perto de si, os seduz para poder capturd-los. O canto feminino torna presente ao ritual as entidades donas das substancias utilizadas para “refazer” 0 corpo da crianga, indo do milho e da agua utilizados para produzir a caiguma as plantas medicinais e tintas utilizadas na sua decorag4o. Tecer e cantar sao duas atividades produtivas, constituti- vas do cotidiano kaxinawa, cuja estética consiste em uma arte de produzir a vida de modo préprio, kuin, ao modo dos Kaxina- wa. O japim seria o modelo de artista a emular pelos humanos, pois, além das capacidades de tecelao e cantor, o japim com- partilha com os humanos 0 habito e o conhecimento de viver em comunidade, um conhecimento considerado condigao para qualquer outra habilidade. * Ao chegar ao fim de um longo processo de aprendizedo, o aspirante ao status de dono de canto captura um japim, come seu miolo cru e leva o cranio com o bico para a aldeia. Ao chegar a aldeia, o mestre pega o bico do passaro e o molha com pimenta malagueta, depois toca repetidamente a lingua de seu discipulo com o bico. Enquanto procede deste modo, o lider canta para seu discipulo, cuja lingua saliva abundantemente. O mestre e 0 japim fortalecem a saliva e a voz do novo lider de canto, transferindo para este seu préprio conhecimento ¢ meméria. 18- Eis Lacrou Figura 3(a) - Augusto Feitosa Kaxinawa, txane ibude Moema, com esposa e netos, ouvindo sua prépria gravacao (foto Els Lagrou). Figura 3(b) — Augusto Feitosa Kaxinawa, iniciando o canto (foto Els Lagrou). Arte Indigena no Brasil - 19 Figura 4 — Cesto wayana com motivo de gavigo / ente sobrenatural (foto Marcio Ferreira). Fonte ~ Acervo do Museu do Indio. Entre os Wayana encontramos a mesma associagao entre conhecer e saber fazer, expressa na figura do txana ibu dos Kaxinawa: O conhecimento técnico da producao de objetos é raferido como tuwaré, "saber", conhecer, e assim um cesteiro habilidoso é um wama tuwaron. O saber humano é adquirido com a socializacao e representa 0 resultado de uma transmissao social, sexualmente diferenciada, cuja base pedagégica é a visualizacdo de um modelo e o continuo exercicio. de tentativa e erro. A visdo € 0 sentido que fornece a chave para a compreenséo das concepgdes relacionadas ao conhecimento, porque representa o principal meio de percepcao de um artefato.? Existem também grupos, como os Bororo, grupo de lingua Jé do Brasil Central, cuja produgao artistica nao deriva do aper- feigoamento das capacidades produtivas acessiveis a cada gé- nero respectivamente. Entre os Bororo, a fabricagao dos diferen- tes enfeites plumarios, das bracadeiras aos cocares, se organiza de acordo com uma légica clanica, reservando a utilizagdo de determinados ingredientes (tipos de penas de aves especificas e de determinadas cores) e a produgdo de certos objetos a deter- minados grupos rituais. "VAN VELTHEM, 2009, p. 213-236. "= DORTA, 1986; CAUBY NOVAES, 2006. 20° Ets Lacrou Figura 5 -Enfeite cabelo bororo (foto Els La- Figura 6 - Brinco bororo grou). Fonte ~ Acervo do Museu do indio. (foto Els Lagrou). Fonte — Acervo do Museu do Indio. y Figura 7 — Brinco kayapé-goro- Figura 8 - Akiaboro, chefe kayapé-gorotire tire (foto Els Lagrou). Fonte — demonstra ¢ explica 0 uso dos enfeites (foto Acervo do Museu do Indio. Els Lagrou, visita dos Kayap6-Gorotire ao Museu do Indio). Entre os Kayap6-Gorotire, por outro lado, o direito de uso de certos enfeites 6 condicionado pelo nome da pessoa. Essa divisdo de privilégios ¢ tarefas de acordo com o pertencimento a grupos sociais dentro de uma comunidade, entretanto, nao corresponde ao que se entende comumente entre nés por especializagao artesa- Arte Indigena no Brasil - 21 Figura 9 — Dangarino kayap6-gorotire com brinco (foto Els Lagrou). nal ou profissional, visto que todos os membros de todos os gru- pos tém o direito de produzir algum tipo de enfeite ou artefato. O fator considerado responsavel pelo éxito de um artefato depende do tipo de arte em questo: pintura corporal, tecelagem, trangado, ceramica, escultura, produgao de mascaras ou arte plu- maria. Quando predomina a dificuldade técnica, seréo prezadas a concentragao, a habilidade, a perfeigao formal e a disciplina do mestre. Mas quando predomina a expressividade da forma, a fon- te de inspiragéo é quase sempre atribuida a seres nado humanos ou divindades que aparecem em sonhos e/ou visées. Dificilmente se responsabilizaré a “criatividade” do artista pela produgao de novas formas de expressao. O artista é antes aquele que capta e transmite ao modo de um radio transistor do que um criador. Pre- za-se mais sua capacidade de didlogo, percepgao e interagao com seres nao humanos, cuja presenga se faz sentir na maior parte das obras de aspecto figurativo, do que a capacidade de criagao ex nihilo, criagéo do nada. Esta ideia de ser mais receptor, tradutor e transmissor que criador vale para a musica, a performance e a fabricagado de imagens visuais e palpaveis. O complexo processo de criagao artistica e performance do xama entre os Araweté é descrito por Viveiros de Castro nos seguintes termos: 22+ Eis Lacrou O xama é como um “rédio”, dizem. Com isto querem dizer que ele 6 um veiculo, e que 0 corpo-sujeito da vor esté alhures, que nao esta dentro do xama, O xamé ndo incorpora as divindades e os mortos, ele conta-canta o que vé € ouve: os deuses ndo estao “dentro de sua car- ne", nem ocupam o seu hiro (corpo). Excorporado pelo sonho, o xama ou seu “ex-corpo" (hiro pe) fica na rede, enquanto sua ~~ aquela que seré do céu - sai e viaja. Mas 6 quando ele volta que o xama canta. E, quando os deuses descem & terra com ele - que 6 quem “faz descer” (4) 08 deuses —, descem em corpo, nao em seu corpo... Um xama encena ou representa os deuses e mortos, ele torna visiveis e audiveis suas ages, mas ndo os encarna em sentido ontolégico."* Tradutor dos mundos dos seres invisiveis, a figura do xama muitas vezes coincide com a do artista entre os amerindios. En- tre os Araweté, a arte do xama reside na evocagao de imagens mentais através do canto: “Como um todo, os cantos xamanisti- cos sao uma fanopeia — projegdo de imagens visuais sobre a mente, para usarmos uma definig&o de Pound -, evocagées vivi- das mas elipticas de situagdes visuais ou sensoriais.”"® Teremos a oportunidade de voltar ao tema da traducao artistica de outros mundos; importa notar aqui que esta atividade prevé a possibi- lidade de diferentes énfases e processos de transposigao: em alguns casos, como no exemplo citado acima, o meio privilegia- do de expresséo das imagens em movimento € 0 canto; em outros os seres invisiveis ganham existéncia material através da fabricag&o de imagens, “roupas” e instrumentos. Entre os Wayana o peso do “modelo” tem sentido cosmold- gico. Inovar é perigoso, porque o modo certo de se produzir cor- Pos e artefatos foi estabelecido pelos demiurgos dos tempos de criagao. O conservadorismo estilistico deste grupo de lingua karib lembra o dos Wauja (autodenominagao dos Waura, grupo ara- wak, Alto Xingu), produtores de mascaras rituais, no sentido de que ambos acreditam que a relagao intrinseca entre o modelo e sua cépia torna a produgao artesanal uma empreitada arriscada. No caso wauja, 0 ser parcialmente reproduzido no artefato pode se vingar se a confecgao for artisticamente malfeita, enquanto en- tre os Wayana existe o risco de a tradugdo do ser em artefato tornar-se tao completa que ele ganhe agéncia e vida prdéprias."® * VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 543. * Ibidem. *® VAN VELTHEM, 2003. Arte Indigena no Brasil - 23 Figura 10 — Mascaras wauja, apapaatai atujuwa (foto Aristoteles Barcelos Neto). Figura 11 — Cesto wayana com motivo palapi"espécie de andorinha” (foto Els Lagrou). Fonte - Colecéo Museu do Indio, identificag3o de peca em: VAN VEL- THEM, 1995, p, 248. 24+ Eis Lacaou Figura 12 — Menina ashaninka Figura 13 — Menina ashaninka com pintura facial de urucum com kitarentse com 0 motivo com o motivo de kempiro (foto de atxama, lagarto (foto Sonja Sonja Ferson). Ferson). Também entre os Ashaninka (grupo de lingua arawak, Acre e Peru) retorna a mesma ideia: Jomanoria, Ashaninka do rio Envira, desenhou para mim a cobra kempi- ro, a mais venenosa que existe, como uma sucessao de varios “x”. Sua representagao da cobra parecia, a principio, a mais minimalista possivel @ a mais facil de ser realizada. Mesmo assim, ele passou praticamente dia inteiro a desenhar aquele “x”, representando kempiro. Sua demora em produzir 0 desenho nao advinha do fato de nao estar acostumado a desenhar em papel, mas porque se cometesse um erro ao desenhé-la ele poderia morrer. A cobra kempiro viria mordé-lo. O mesmo desenho, por exemplo, gravado num recipiente de xiko (cal para mascar coca) teria levado 0 mesmo tempo.” Da mesma forma que os Piraha,"® os Wayana se referem a produgao artesanal como um “fazer, experimentar”: ukuktop,"® que tem como modelo a perfeigao tecnolégica dos deuses cria- dores ou demiurgos. No caso Piraha, somente Igagai, o deus ” BEYSEN, 2008, p. 40. *® GONCALVES, 2001. *8 VAN VELTHEM, 2008. Arte Indigena no Brasil - 25 Curia AE? a ga Figua 14 — Animais de diferentes patamares, dese- nho piraha (Marco Antonio Goncalves, 2001). criador, saberia criar todas as coisas, enquanto os humanos nao fariam outra coisa que tentar imita-lo através do experimento. E o experimento que produz 0 evento, e assim o mundo é feito de semelhangas que produzem diferengas. 0 “experimento” |...) 6 um conceito importante na forma de os Piraha apresentarem sua cosmologia. Nada é feito de uma sé vez: tudo passa Por etapas, testes e experimentacdes. Faz-se sempre algo pequeno, um modelo em miniatura, e, se der certo, concretiza-se o que se tencionava executar. O “experimento”, ao mesmo tempo que indica 0 modo de criagao, explicita o risco de nao dar certo e permite a criagdio de novas coisas. A quase totalidade das coisas e dos seres do Cosmos é percebi- da como resultado de atos, de processos: as nuvens sao produtos da interferéncia dos humanos ao usarem fogo; o vento, os raios, a lua, 0 Sol, as estrelas, os animais e os vegetais foram e continuam sendo pro- duzidos pelos seres abaisi (deuses) a partir da lagica do “experimento”, modo de fabricagao que utiliza distintos materiais como areia, terra & vegetais ~ dos quais séo extraidas as tinturas e madeiras -, os quais, misturados, possibilitam a emergéncia da diferenca” * GONCALVES, 2001, p. 33. 26 - Ets Lacrou ento. E nda é feito de de os Piraha = tudo passa -pequeno, um tencionava ps o modo de de novas S € percebi- iprodutos da A partir de diferentes experimentos que produzem efeitos sempre novos de seres que se parecem, mas nunca sao iguais, os Piraha constroem uma imagética altamente estética, precisa e de- talhada dos diferentes corpos de seres que habitam os varios pata- mares que compdem seu cosmos. A importancia do ato e do evento é responsé- vel pelo fato de o mundo nunca estar acabado, estan- do em constante processo de fabricagéo e transforma- Go por causa dos atos que produzem efeitos e novos seres. Elemento especial- mente marcante desta cos- mologia é 0 fato de serem os acidentes que acontecem com os seres humanos os responsaveis pelo surgimen- to dos deuses imperfeitos Figura 15 — Panela wayana, motivo do cen- ‘tro: matawat atanta, larva de borboleta / ser- pente sobrenatural (foto Lucia Van Velthem). Fonte - Colegao Museu do Indio. que povoam o cosmos e vivem a lamentar suas imperfeigdes nos cantos xamanisticos. Se os Piraha tendem a enfatizar a impertfeigéo tanto da criag&o quanto da imitagao, entre os Wayana: Os objetos so (...) compreendidos enquanto edpias dos elementos existentes nos tempos primevos porque os substituem, porque tomam © lugar, no presente, daqueles seres e elementos do passado. Assim, a rede de dormir, état reproduz/constitui a teia da aranha primordial, um determinado banco muieré, encarna o urubu rei, a peneira circular pomkari, tem exatamente o mesmo aspecto do corpo de uma serpente constritora enrolada. Os objetos, tanto os de uso cotidiano como os empregados em rituais, apresentam, portanto, as caracteristicas for- mais de seus modelos, seres corporificados.” A énfase wayana é, portanto, na reprodugao fiel de um co- nhecimento ancestral, tanto no que diz respeito as técnicas de produgao de artefatos e pessoas, quanto aos mitos que sao compreendidos como pertencentes aos demiurgos e que expli- 21 VAN VELTHEM, 2009, p. 213-236. Arte Indigena no Brasil » 27 cam as afinidades existentes entre determinados artefatos e ani- mais ou seres sobrenaturais. A afinidade entre um artefato, sua forma, a técnica de produgao e sua decoragao, de um lado, eo ser vivo que Ihe serve de modelo, de outro, remete a capacida- de agentiva de ambos, artefato e modelo. “Eficacia e utilidade constituem o objetivo primeiro de toda e qualquer criagao, uma vez que coisas intiteis nado sao produzidas.”2 Como os cantores araweté, os ar- tistas wauja, autores de mascaras, pa- nelas e, também, de desenhos em pa- pel de grande apelo plastico,* localizam em sonhos sua inspiragao para a re- presentagao, no caso wauja, dos apa- paatai, seres sobrenaturais causado- res de doengas e passiveis de serem apaziguados através da promogao de grandes festas em sua homenagem. Neste caso sao fabricadas suas “rou- Pas” que serao encenadas na forma de mascaras de grandes proporcées. Os desenhistas wauja sao os xamas ou pajés da aldeia, os que sabem so- nhar com estes seres sobrenaturais. Figura 16 ~ Desenho de apapaa- Deste modo, os xamas tornam-se os cates) Ponte ees sees maiores artistas desta sociedade, pois ao sonharem com os apapaatai, seres invisiveis a olho nu, criam novas ima- gens destes seres que serao materializadas na forma de mascaras rituais. Esses mesmos seres sao visualizados pelo pajé, em minia- tura, dentro do paciente onde agem como agentes patogénicos e precisam ser retirados como parte do processo de cura. Desde Kant, o Ocidente tem associado o fenémeno artistico ao “extraordinario” e ao “sublime”, além de dar grande énfase a modalidade representativa e figurativa das expressées plasticas. Nao é de se estranhar que éste “olhar educado”, um olhar marcado ® VAN VELTHEM, 2009, p, 213-236. * BARCELOS, 1999. 28 - Eis Lacaou por uma cultura visual especifica, foi procurar a arte dos outros em lugares que apresentavam caracteristicas afins aos objetos de arte conhecidos no Ocidente ou descobertos pelos arquedlogos nas “altas culturas” antigas. Essas culturas arqueolégicas, produtores do que eram consideradas produgées artisticas “mais sofistica- das”, eram na sua maior parte marcadas pelo desenvolvimento de aparatos estatais mais ou menos absolutistas como a China, india, Mesopotamia, e, nas Américas, 0 Império incaico e asteca. Dessa forma, os colecionadores de arte “primitiva” muitas ve- zes sO reconheciam pegas incomuns, “espetaculares” e de uso nao cotidiano como candidatas a serem incluidas nas colegées de arte n&o ocidental, desconhecendo 0 fato de a maior parte da produgaéo. artistica indigena se encontrar no campo da chamada “arte decora- tiva” de uso cotidiano,” assim como desconsiderando a realidade da avaliagdo nativa da qualidade das pegas, que nem sempre se- gue a ldgica da valorizagao do incomum.”* Assim, por exemplo, 0 que caracteriza a pintura corporal e facial ritualmente mais eficaz e, portanto, mais apreciada no ritual de passagem de meninos e meninas kaxinawa, 6 a sua qualidade de ser malfeita em vez de ben- feita: as linhas grossas aplica- das com os dedos ou sabu- gos de milho, com rapidez e pouca preciséo, permitem uma permeabilidade maior da pele & ago ritual quando comparadas com as pinturas delicadas aplicadas com finos palitos enrolados em algo- dao, pinturas estas que sdo consideradas benfeitas e este- ticamente mais agradaveis e que s&o usadas pelos adultos nessa e em outras ocasides. Figura 17 - Menino com “desenho grosso” s (huku kene) ou"desenho matfeito” (tube kene) Estas representariam a roupa Ge uso ritual, motivo nawan Kene, desenho do estrangeiro/inimigo (foto Els Lagrou). * GELL, 1998, p. 73. 2 OVERING, 1991 AGROU, 1998, 2007. Arte Indigena no Brasil - 29 Figura 18 - Jovem adulto com kene kuin desenho “verdadeiro”, motivo no quei- xo: txede bedu, olho de periquito, e no nariz isu meken, mao de macaco-prego (foto Els Lagrou). Figura 19 (a) - Menina sendo pintada com kene kuin, no estilo pua kene, desenho cruzado, com 0 motivo nawan kene, dese- nho do estrangeiro/inimigo (foto Els Lagrou). 30 - Ets Lacrou Figura 19 (b) - Recém-nascido sendo tingido por Augusto, dauya, especia- lista ritual, com jenipapo para “fechar o corpo”, torné-lo invisivel aos yuxin (espiritos) e protegé-lo dos insetos (foto Els Lagrou). do cotidiano ou das festas e contrastam com a “roupagem” liminar dos ne6fitos por causa de sua menor suscetibilidade a processos de transformagao. A apreciagao valorativa nao esta, assim, necessariamente nos aspectos comumente considerados como padrées estéticos nativos; pode estar condensada, pelo contrario, na sua tempord- ria distorgao. A ligéo metodoldgica tirada desta constatagao 6 a impossibilidade de isolar a forma do sentido e o sentido da capa- cidade agentiva; o sentido e efeito de imagens e artefatos mudam conforme o contexto em que estes se inserem. Constatamos a partir deste exemplo que a “eficacia da arte” reside na capacidade agentiva da forma, das imagens e dos objetos. A forma nao pre- cisa ser bela, nem precisa representar uma realidade além dela mesma; ela age sobre o mundo a sua maneira e surte efeitos. Deste modo ela ajuda a fabricar o mundo no qual vivemos. Esta nova énfase na agéncia de imagens e artefatos e no processo cognitivo de abdugao de agéncia e intencionalidade que provoca nas pessoas que com eles interagem expressa a Arte Indigena no Bra grande influéncia exercida pelo trabalho péstumo de Alfred Gell, Art and Agency,?° que veio coroar um processo de 15 anos de criticas ao modelo representacionalista nas ciéncias humanas e sociais. O deslocamento da ateng4o do significado para a efica- cia do artefato tem um rendimento particularmente interessante no contexto da analise de artefatos e imagens amerindias, por- que permite fugir do segundo dos pressupostos que definem a discuss&o no campo das artes no Ocidente. Se como afirmamos acima, a propria histéria de arte no Oci- dente se incumbiu de questionar o critério de beleza como defini- dor do estatuto de obra de arte, 0 peso do critério interpretativo nao diminuiu. Assim, na definigao do importante fildsofo de arte, Arthur Danto, pode ser considerado arte aquele objeto que foi produzido em dialogo com a histéria da arte. No caso das artes produzidas fora do contexto metropolitano, este contexto seria substituido, em termos claramente hegelianos, pelo discurso reli- gioso ou cosmoldgico do lugar.” A arte, portanto, para se distin- guir do “mero” artefato de uso cotidiano e utilitario, deve ser obra de reflexdo, expressando 0 “Espirito do seu Tempo” (Zeit Geist), ou, no caso, 0 “Espirito do seu povo” (Kultur Geist. Reconhecendo que, no contexto nativo, todos os objetos po- dem possuir varias fung6es, inclusive utilitarias, Danto afirma que mesmo assim é preciso e possivel distinguir entre “meros objetos utilitarios”, os artefatos, e “objetos especiais”, candidatos ao esta- tuto de obra de arte. Para deixar claro como se pode fazer esta distingao, o autor prope um exemplo imaginario para 0 qual pro- curou inspiragao na etnografia africana. Ou seja, em vez de procu- rar exemplos na etnologia existente, o fildsofo produz uma hipd- tese plausivel sobre dois povos de uma mesma regiao que poderiam existir em termos ldgicos. Os dois povos produziriam cestos e panelas de barro que, em termos formais, seriam indis- tinguiveis para um observador externo. Um dos povos, o povo cesteiro, teria uma relagao privilegia- da com seus cestos, que seriam considerados como possuindo um significado e poder especial. Segundo os sdbios da tribo, o 7 GELL, 1998, 7” DANTO, 1989, p.8-32. 32 - Eis Lacrou proprio mundo é (como) um cesto, tecido de grama, ar e agua pela deusa criadora do povo, uma tecela. As pessoas, ao produzi- rem cestos, “estariam imitando a criatividade divina, assim como escultores e pintores imitam Deus na Sua Criatividade, segundo Giorgio Vasari”. Para 0 povo oleiro, as panelas é que sdo “densas em significados”. “Os sabios do povo oleiro dizem que deus é oleiro, por ele ter moldado o universo a partir do barro informe, e os oleiros, que sao artistas, s4o agentes inspirados que reence- nam na sua arte o processo primevo através do qual a simples desordem de mera sujeira recebe graga, significado, beleza e até uso.” Deste modo, “encontrando-se na encruzilhada entre arte, filosofia e religiéo, as panelas do povo oleiro pertencem ao Espi- rito Absoluto. Seus cestos, bem tecidos para garantir utilidade duradoura, sao insipidos componentes na prosa do mundo.” Com 0 povo cesteiro acontece o contréario. Entre eles sdo os ces- tos que ganham em valor, enquanto as panelas sao meros obje- tos utilitarios. Vemos neste exemplo que Danto permite que os artefatos tenham utilidade, mas esta utilidade nada tem a ver com o valor e o significado do objeto. Gell critica de forma contundente a definigao interpretativa da arte defendida por Danto.*' O que produziu a reflexao, tanto de Danto quanto de Gell, foi uma exposigao na qual Suzan Vogel, historiadora de arte e curadora de uma exposigaéo chamada Art/ Artifact no Center for African Art em Nova York, expunha uma rede de caga amarrada dos Zande como se fosse uma obra de arte conceitual. A curadora plantou, desta maneira, uma verda- deira armadilha para o publico, que se equivocou totalmente acerca do que viu, sem saber se 0 exposto era para ser visto como uma obra de arte conceitual ou nao. Defendendo a distingdo con- ceitual entre arte e artefato, Danto argumenta que a rede nao pode ser uma obra de arte porque ela foi feita meramente para um uso instrumental, nao possuindo o poder de invocar um sig- nificado mais elevado ou transcendental. Os critérios que justifi- cam a inclusdo de certas panelas e cestos no “Museu de arte” ea *= DANTO, 1989, p. 23. ® DANTO, 1989, p. 23-24. ® Ibidem. 5" GELL: 2001. Arte Indigena no Brasil - 33 exclusdo de outras panelas e cestos, aparentemente iguais a es- tas em forma e execugao, sao, segundo Danto, unicamente inter- pretativos. As panelas do povo oleiro e os cestos do povo tecelao ganhavam estatuto de obra do espirito gragas 4 sua associagdo com a criatividade divina e apesar da sua utilidade. Argumentando contra Danto, Gell vai mostrar, a partir da ideia da armadilha (e a rede Zande colocada na exposicao é um exemplo singular do tipo de légica operante nessa ideia), que ins- trumentalidade e arte néo necessariamente precisam ser mutua- mente exclusivas.** Muito pelo contrario, se reforgam mutuamen- te. Assim, uma armadilha feita especialmente para capturar enguias, por exemplo, poderia muito melhor representar o ances- tral, dono das enguias, do que sua mascara, visto que nao repre- senta somente sua imagem, mas presentifica, antes de mais nada, a acao do ancestral: sua eficacia 6 tanto instrumental quanto so- brenatural e reside na relagao complexa entre intencionalidades diversas postas em relagao através do artefato, como aquelas da enguia, do pescador e do ancestral. Desta maneira, Gell supera a classica oposigao entre artefato e arte, introduzindo agéncia e efi- cacia em que a definigdo classica s6 permite contemplacao. Gell sempre se interessou pela “arte conceitual” e era assi- duo visitante das galerias Londrinas. Este envolvimento com o mundo da arte conceitual o fez propor uma mudan¢a de perspec- tiva totalmente bem-vinda e ao mesmo tempo surpreendente para a antropologia da arte: se no mundo da arte contemporanea a arte nao se define mais pelo critério do belo e sim pela ldgica do trocadilho ou da armadilha conceitual, pelo complexo entrelaca- mento de intencionalidades sociais, porque continuar avaliando a arte de outros povos com critérios que nao valem mais no nosso mundo artistico? Por que achar que sdo as mascaras africanas as pegas que mais se aproximam da nossa nogdo de arte? E neste momento que Gell propde associar, numa exposigdo imaginaria, obras conceituais ocidentais com armadilhas de povos sem tradi- Ao artistica institucionalizada como € comum entre nds. As ar- madilhas africanas, oceadhicas e amazénicas se aproximariam mais da arte conceitual contemporanea do que as mascaras ou % GELL, 2001, 34 Ets Lacnou esculturas por causa da complexidade cognitiva envolvida na montagem das armadilhas; por causa da maneira como agem sobre a mente do receptor, sugerindo uma complexa rede de in- tencionalidades, em que o cagador mostra conhecer bem os ha- bitos da sua presa através da propria estrutura da armadilha.* E exatamente esta distingao entre arte e artefato que a maioria das etnografias sobre a produgao de artefatos e artes indigenas vem negando ha mais de dez anos: nao ha distingao entre a beleza produtiva de uma panela para cozinhar alimentos, uma crianga bem cuidada e decorada e um banco esculpido com esmero. Como afirmam os Piaroa (Venezuela), todos estes itens, desde pessoas a objetos, sao frutos dos pensamentos (a’kwa) do seu produtor, além de terem capacidades agentivas prdoprias: sdo belas porque funcio- nam, nao porque comunicam, mas porque agem.* Na classificagao piaroa, toda criagdo pela qual um individuo é responsavel 6 considerada seu a‘kwa (pensamento). Portanto, os produtos do trabalho de uma pessoa, 0 filho do mesmo e uma transformagao xamanistica, como a transformagao do xama em jaguar ou anaconda, s4o todos consi- derados os “pensamentos” desta pessoa. Os produtos do rogado de uma mulher so seu a’kwa, assim como a zarabatana feita por um homem & seu a’kwa, @ um ralador feito por uma mulher é seu a’kwa.™ Tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de manei- ras muito especificas que precisam ser analisadas em seu contex- to. No caso do grafismo na pele dos jovens kaxinawa, a qualidade das linhas, sua grossura, era 0 que interessava as pintoras, mais que os nomes dos motivos. O grafismo que cobria os corpos das criangas nao servia de sistema de comunicagao, a informar por meios visuais sobre 0 pertencimento desta pessoa a determinadas metades ou segoes, visava, pelo contrario, unificar os corpos e co- brir as peles. Sua fungao era performativa e produtiva, dizia respei- to a dinamica relagao entre grafismo e suporte. O desenho cobrin- do a pele agia como filtro a deixar penetrar na pele e no corpo os cantos e os banhos medicinais sobre este proferidos. O desenho abria a pele para uma intervengao ritual e coletiva sobre o corpo da GELL, 2001. * OVERING, 1991. 5 OVERING, 1986, p. 148-149. Arte Indigena no Brasil - 35 crianga, que estava sendo moldado, fabricado, transformado. Como a maioria dos ritos de passagem amerindios, as interven- ges sobre o corpo visam moldar tanto a pessoa quanto o corpo do futuro adulto. A reclusdo, dieta, 0 uso de eméticos e banhos medicinais, os testes de resisténcia, todo um conjunto de interven- Ges visa moldar um corpo forte, um “corpo pensante”, como di- zem os Kaxinawa, “com coragao forte” implicando a simultaneida- de dos processos de modulagao fisica, mental e emocional. A imagem tem sentido porque funciona, e nado apesar de o fato de ter utilidade. A imagem sintetiza os elementos minimos que caracterizam 0 modo como o modelo opera e é por esta ra- 7 ae. Figura 20 — Menina kaxinawa sendo pintada du- rante o ritual nixpupima {foto Els Lagrou). 36 + Eis Lacrou z&o que uma imagem é€ um indice e nao um simbolo ou um icone do seu modelo. Deste modo, entre os Wayana, o tipiti, prensa de mandioca, é uma cobra constritora, pois constringe que nem a cobra. Ela néo possui cabega nem rabo no entanto, para nao se tornar o ser independente que devora humanos. O tipitié um ar- tefato que compartilha com a cobra a capacidade agentiva de constringir e é isto que se quer fazer com a mandioca.* O tipiti wayana evoca, deste modo, a ldgica da armadilha de enguia invo- cada por Gell. O que os artefatos imitam 6 muito mais a capacida- de dos ancestrais ou outros seres de produzir efeitos no mundo do que sua imagem. Podemos entender, deste modo, por que a separagao entre capacidade produtiva e reflexdo, proposta por Danto para salvar a nogao de arte e protegé-la da contaminagaéo pelo conceito de artefato, nao procede no mundo indigena. Figura 21 — Tipiti wayana (foto Els Lagrou). Fonte - Acervo do Musou do indio. *° VAN VELTHEM, 2003, p. 130. Arte Indigena no Brasil - 37

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