Concepção de História Literária Na Formação

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DENTRO DO TEXTO, DENTRO DA VIDA Ensaios sobre Antonio Candido Orpanizagio MARIA ANGELA D'INCAO ELOISA FARIA SCARABOTOLO a 9 a * Oe TinTANTIN AST TRAN sair mals duradoura; nto serd obra de uma geracio, nem de duas; muita taba Inarlo para ela até perfazé-ta de todo" Depois disso, em poucas linhas suas, 0 autor encerra a Formacao da literatura brasileira, que de fato acabava de ser encerrada por Machado de Assis. Com a cortesia que todos the conhecemos, Antonio Candido se afastou © cedeu 0 lugar 2 personagem central do seu grande livro, 182 CONCEPCAO DE HISTORIA LITERARIA NA “FORMAGAO” Luiz Costa Lima ‘Bo sera excessivo dizer-se que a atividade critico-literdria no século XX se enraiza em trés cixos. Forma o primeiro a questo da especificidade dda linguagem literdria, o segundo, a relagio da linguagem Uterdria com a sociedade, ¢ o terceiro, a idéia de literatura nacional, Para que a afirmagao nao seja arbitraria, é indispensivel pensar os regimes diferenciais que af dominam, Em primeiro lugar, hao de ser notadas suas diferengas de “idade": a idéia de literatura nacional se impusera desde 0 século xix, como desdo- bramento do privilégio concedido ao estado-nacio, a0 passo que os dois primeiros eixos fixam'se, no século atual, até mesmo por reagao a exclusi: vidade das historias nacionais. Como bem escreve Jauss, na abertura do “Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft’' “Nos tem- pos de Gervinus e Scherer, De Sanctis ¢ Lanson, escrever a hist6ria de uma literatura nacional significava escrever a obra coroadora de uma vida de fil6logo" (H.R. Jauss: 1967, 144) A historia literdria era entdo a meta almejada pelo critico, pois a obra de literatura era considerada parcela integrante e concretizadora do espitl: to nacional. Este desiderato, presente quer em livros teoricamente mais am biciosos, a exemplo de £ ‘evolution des genres dans lbistoire de la littéra- ture (1890), de F. Brunetigre, quer em apanhados enciclopédicos, como De la littérature du midi de I'Furope (1813), de 8, de Sismondi, tinha em comum desconsiderar qualquer especiticidade do objeto literario, fosse por: {que se considerava que os géneros literrios eram a resultante de uma de- terminagio geral aos produtos hist6ricos (caso de Brunetiere), fosse por se julgar bastante a ordenacio cronolégica e sua diferenciagio por paises (caso de De Sismondi, Este absolutismo do nacional tornava as historias literdrias uma sucur- sl do pdtbos das hist6rias politicas, uma e outra movidas pela aco de he- ls ¢ pais ca patria, Assi ndo estranha que a critica literdria da segunda 155 metade do século passado hostilizasse os autores, sobretudo poetas, que, por no mais servirem A musa nacional, terminavam vetados ou a0 menos ‘marginalizados pelas histOrlas iterrias. Muito menos estranha que, pela mes- ma razio, a historia literdria, jf no comeco do século xx, viesse a ser rene: gada tanto por B. Croce, quanto pelos depois chamados formalistas rus- sos. Em suma, 0 reconhecimento de que a imponencia da idéia de historia nacional terminava por excluir de sia compreensio do proprio objeto lite- rio motivou a preocupacdo oposta da busca de determinagio dos tracos distintivos da obra literria e/ou do estudo de sua relagio com a sociedade. Em segundo lugar, ¢ também indispensavel notar que, embora distin- tos, os dois primeiros eixos no so, em seu tratamento, necessariamente antagonicos. Com a passagem das décadas, assim de fato tenderdo a se tor- nar:a obra de new critics, a exemplo de Ransom e Tate, niio poderia dialo- gar com 2 de criticas sociologicamente orientados como K. Burke e R. Wil- liams ou, muito menos, 2 obra de Valéry com a de Sartre. No comego do século, porém, algumas das mais fecundas propostas interpretativas da li- ‘eratura visavam simultaneamente a iluminar sua especificidade € sua for magdo social. caso mais conhecido € 0 do entio jovem Lukes, que, em preficio a uma de suas primeiras obras, escrevia: “O elemento social da literatura porém é a forma. A forma faz com que a experiéncia vivida pelo poeta se comunique aos outros, 20 piblico; ¢ s6 através desta comunica- ‘cio “formada’ ¢, dat, através da possibilidade de exercer uma influéncia & a influéncia efetiva que realiza essa possibilidade, a arte assume um signif: cado social" (G. Lukics: 1912, 76), Posteriormente & sua conversio a0 marxismo, sem que propriamente viesse a negar sua formulagdo, Lukics a enrijecera e mudara sua enfase, A forma continuard a ser vista como “das wirklich Soziale (...] in der Litera- tur" seu rendimento estético, porém, passari a subordinar-se a0 papel, po- sitivo ou negativo, que o analista terd assegurado a0 social (daf as conheci das oposigdes entre 0 “bom 0 “mau realismo de Balzac ¢ de Zola, de . Mann e de Joyce etc.). Sem de antemao descartar a necessidade de um exame da propria interpretacdo do marxismo pelo autor € da pressio ai cexercida pelo stalinismo, chamo a ateng2o para a maneira como aquele Lu: kaics entendia a forma, Para dizé-lo de modo cru: contexto social era o motivador de uma forma que, enquanto estética, no tinha hist6ria. “A for ‘ma autentica de um arusta autentico ¢ @ priort:€ uma forma constante frente as coisas, € uma condigdo necessdria para que as prOprias coisas possam ser percebidas pelo artista" (G. Lukacs: 1912, 77). Sendo essa solugao fragilizada pela mescla da motivagdo hist6rica, exer: ida pelo contexto social, com a permanéncia a-histérica da forma eleita ‘eta teGrica e analiticamente mais fecunda a formulacao apresentada, em ar. tugo de 1927, por Jakabson e Tynianov: Ahhist6ria do sistema é, de sua parte, um sistema. © sineronismo puro mostra ‘agora ser uma ilusio: cada sistema sincrOnico contém seu passado e seu futu +0, que sto elementos inseparveis do sistema [.) A nogdo de sistema sincrO- nico lterério nao coincide com a nogao ingenua de época, pois que € const twido nao s6 por obras de arte proximas no tempo mas também por obras ara das uo sistema e provenientes de literaturas estrangeiras ou de €pocas anterio: tes, Nao basta catalogar os fendmenos coexistentes dando Ihes direitos igual; ‘0 que importa é sua signficacao hierirquica para uma certa época (). Tynia nov € R. Jakobson: 1927, 139). © principio da “significagao hierarquica’ (das obras) tinha a imediata van- tagem de assinalar que 0 exercicio da critica ea feitura da hist6ria literdria supdem necessariamente a atualizagdo de valores ¢ nao a apreensio de de- terminagdes causais, Tinha ainda a de ultrapassar a linearidade cronol6gica das hist6rias do século passado, pela combinag2o, no presente, de um pas- sado que permanece vivo e de um futuro que se projeta. Fosse por influencia ‘0u por coincidencia com a concepgao husserliana do tempo, “‘retensio" do passado e “protensio” do futuro retiravam o tempo do determinismo ‘mecanicista ¢ forgosamente linear das histérias tradicionais. Deste modo ‘0 tempo podia ser visto como instante tridimensional em que se realiza 0 investimento diferenciado de valores. Passado ¢ futuro se despojavam do carter de fatalidade para se tornarem objeto de escolha; de escotha me: nos individual que socialmente motivada, Passado e futuro no sio, do pon- to de vista do sistema, 0 que se estende, respectivamente, antes ¢ depois, ‘mas 0 que, no antes, os agentes culturais sentem como presente e, no de- pois, como projecio antecipadora. Nestas sintonias, so 08 agentes tao con- dicionados por seu presente quanto dele condicionadores. ‘Nao sei se foi a histdria politica, obrigando Jakobson 20 exilio e Tynia- nov ao quase completo silencio, a responsivel pelo ndo-desdobramento das teses de 1927, Apenas constato que os estudos posteriores de Jakob- son sobre poética jf no tém a mesma ambi¢ao interativa. Jakobson tornar- se-4 um intérprete da poesia e um teGrico da fungio poética sem preocu: agdes com as mudangas no sistema literitio Algo de semelhante no ocorre ainda com um E. Auerbach, pouco ci tado neste tipo de comparagao? Refiro-me a diferenca entre 0 ensaio “La cour et la ville” (1930) € 0 seu famoso Mimesis, de 1946. Nao se trata de diminuir a qualidade deste, talvez a tinica obra de hist6ria literdria contem- porinea que de fato inteligencia o seu objeto. Esse reconhecimento, con- tudo, ndo diminui a sensagio de que 0 ensaio de 1930 continha uma com- binagao de rigor e sensibilidade, de atencao ao detalhe hist6rico e de apreen- io sintética da obra literéria que nao se repetira em sua obra-mestra. Ou: tra vez, terdo sido as vicissitudes politicas as responsivels pela descolors- (lo da proposta analitica? Ou a explicagio estaria noutro fator: na impossi- bilidade interna 2 andlise Iterdria contemporanea de realizir 0 que a mul 155 tos parccerd seu mais ambicioso projeto — conceber a literatura como fe: ‘ndmeno socialmente motivado e, 20 mesmo tempo, especificamente defi- nivel? Por ora apenas me interessa afirmar que a incompletude deste pro- jeto afetaa valia intelectual — ndo digo o interesse didiftico ou mercadol6- ‘gico — das hist6rias da literatura que ora se escrevem, As consideracdes acima so de ajuda para que se situe, no panorama contemporiineo, a Formagao da literatura brasileira, do mestre Antonio Candido, Dentro deste propésito, a primeira pergunta a dirigitse & For- ‘magao concerne a como ela se localiza quanto aos eixos aludidos. Passagem do Preficio a segunda edigIo pareceria conduzis a resposta desejada: "[...] Procurei mostrar a inviabilidade da critica determinista em geral, ¢ mesmo da sociolgica em particular quando se erige em método exclusivo ou predominante; e procurei, ainda, mostrar até que ponto a consideragao dos fatores externos (legitima e, conforme 0 aso, indispen. sivel) $6 vale quando submetida zo principio basico de que a obra € uma centidade autdnoma no que tem de especificamente seu" (A. Candido: 1962, 1,16) A critica explicita 20 critério determinista mostraria seu afastamento «das historias orientadas pela exclusividade do fator nacional. Ademais, sendo tal exclusivismo substitufdo pela hierarquia estabelecida entre os fatores estético e sociolégico — este, de ordem externa, haveria de estar subordi- nado ao primeiro, declarador do “principio basico de que a obra é uma centidade autonoma’’ —, poder-se-ia mesmo pensar que a posicdo do Autor consistiria em privilegiar o intercruzamento do primeiro com 0 segundo ixo. A precisio ainda poderia ser maior: entre os trés exemplos aduzidos, Candido apresentaria extrema sintonia com a do jovem Lukes. Esta apro- ximago, por sua vez, pareceria reforcada pela retificaglo que a passagem citada do Preficio tera em texto ligeiramente posterior. Em “Critica e so- ciedade"," 0 autor jé nao se contenta com a equagio “elemento sociol6- ico : fator externo :: elemento estético ; fator interno”, sendo que aponta, como alvo da critica, a apreensdo do momento, textualmente realizado, tem que "“o externo se torna interno ea critica deixa de ser socioligica, para ser apenas critica” (A. Candido: 1965, 7). A retificagio introduz um refinamento considerdvel, Seria, entretan to, bastante para criar uma ruptura quanto a proposta analitico-interpretativa «la Formagdo? Se a resposta fosse afirmativa, de antemao reconhecer-se-ia ‘que 0 exame da obra de 1959 destacava um momento rapidamente supe- radlo pelo proprio autor. Mas a conclusio seria errada, De fato, a mudanga cra uma proximidade ainda maior com a fecunda posigdo daquele Lukacs; + correlatamente, traz a Candido os mesmos embaragos que ela jé criara Como se hava notado, a fuslo, proposta por Lukies, entre o socioldgico 150 € 0 estético esbarrava na estabilidade a-historica da forma, Em sua defesa, poder sevia dizer que Lukas tivera 0 cuidado de nao dissolves a “historia interna” da literatura ante mudancas externas; mesmo que isso seja valid, no basta para tornar inatacavel sua posicao. £ também verdade que Can- dido nao cai explicitamente na mesma armadilha, i. e., que nao hé nenhum ‘enunciado declarador da z-historicidade da forma. Nem por isso ela est menos presente. £ 0 que se mostrari por dois caminhos, um de percurso ‘mais curto, outro mais longo. O primeito aparece no curso do mesmo “Cr tica e sociedade”’ ‘Uma critica que se queira integeal deixara de ser unila teralmente sociolbgica, psicol6gica ou linguistica, para utilizar ivremente ‘0s elementos capazes de conduzirem a uma interpretacao coerente” (A. Can dido: 1965, 7). (Ora, se 0 ctitico deve dispor dessa liberalidade de estratégias seré para ‘que nio se torne prisioneiro de um método, i. e., de algo que se julga a rincipio externo, entretanto capaz de se transfundir com interno, 1. €., 4 “estrutura’ da obra. Desta mancira a simpética defesa da “esteutura" ‘da obra contra as unilateratidades do método se apoia em uma identifica ‘cio implicita do mérodo com o que é externo a obra, Por essa sua condi ‘G10, 0 método nao pode se impor por si mesmo; antes ha de se confundir com um estoque de variiveis, dentro do qual o critico selecionara a mais, afim sua propira personalidade. (Dizer-se que essa escolha € “pedi” pela propria obra nio passa de uma metafora de mau gosto.) Para Candido, pois, 4 critica continua praticamente definida como uma “aventura da persona lidade”. , como todo método remete a uma teoria que 0 respalda, é, no ‘minimo, coerente que, para 0 autor, a teoria seja tao dipensével” quanto julga o capitulo te6rico-metodologico de sua Formagao (ct. A. Candido: 1959, 1, nota a p. 23). Em suma, se 0 dado te6rico a priori é externo e, entio, varidvel, as- sim sucede mesmo porque diversos caminhos poderiam conduzit 4 mes- ma Roma, i. €., 2 mesma “estrutura". Por conseguinte, o favorecimento da tolerancia metodol6gica, em prol do que W. Iser chamaria um “concei- to pluralist” da atividade critica, deriva em Antonio Candido da manuten- (a0 de uma concepgio 2-historica da forma, A obra literiria é plena em si mesma; tcorias € métodos, uma espécie de mal necessitio. Empzegando a metifora de Sérgio Buarque, pode-se dizer que Candido mantinha uma concepcio cordial da critica, que afastava a obra lteraria do espaco pro- priamente piblico.? Para que um camino contrério pudesse ser aberto, i.e. parase trazera dinamicidade s6cio-historica a propria forma, seria pre ciso conceber a critica como atividade dirigida por valores e entao apro- fundar as conseqiéncias derivaveis da posicdo weberiana. Desta maneira, la no poderia ser julgada, em seu aparato te6rico-metodologico, algo dispensivel”. Dispensivel, se é hem ela que explica a conduta interpre iva do eritiea?! 157 Atividade ditigida por valores, a cadela de decisoes em que a critica se insere — a cadeia formada por pressupostos tedricos, operacionaliza¢ao merodol6gica e pragmatica critica — implica que seu agente no mais po- de ser confundide com um cagador que, em busca da caga, se orienta pe- los rastros que a presa deixa. Ao critico, assim como ao historiador, 86 ca be a analogia com o cacador se se lembrar que um € outro no s6 perse- ‘quem rastros mas que, assim fazendo, produzem outros rastros: 0s rastros do rastreador, S20 estes que indicardo a outros "‘cagadores” por que aque- le primeiro tragou tal caminho, chegou a tal presa ou desprezou tal outra, Os rastros seguidos e produzidos unanimemente declaram os valores que orientam seu agente, ( resultado a que se chegou pode ser ratificado por um outro percur: so, este agora longo. De imediato, apenas 0 formulo, deixando que seu de- senvolvimento se confunda com a propria andlise da Formagdo. Destaque-se para isso passagem do Preficio a sua primeira ediclo, em que se afirma © que a obra mesma reiterara varias vezes: ‘A nossa literatura € galho secun- ario da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas... Os que se autrem apenas dela slo reconheciveis a primeira vista, ‘mesmo quando eruditos ¢ inteligentes, pelo gosto provinciano ¢ falta do senso de proporgdes” (A. Candido: 1959, 1, 9-10). Por um lado, a formulagio deveria servir de adverténcia para os que, or inadverténcia ou por adesio ao nacional-popular, pretendem conhe- cer literatura ¢ virar seus especialistas e professores, interessando-se ape- nas pelos autores nacionais. Por outro, ela reflete um sentimento que, 20 ‘menos até os anos 60, era freqente na intelligentsia dos povos jovens.? Mas aqui a passagem importa por outro Angulo: que torna inquestiondvel aaafirmagio de que a literatura brasileira € secundaria sendo a inquestiona- bilidade da escala de valores que orientou a atividade critica? Admita-se sem preambulos que nenhuma escala criticamente valida, serd capaz de tornar Gongalves Dias maior poeta que $4 de Miranda. Nao é menos verdade, po: rém, que a auséncia de tematizacdo dos proprios valores facilita a manu tengo de jufzos fundados na idéia de inequivoca secundariedade. Ora, co- mo Candido iré caracterizar a literatura no Brasil como produto de uma aaclimatagao do legado europeu, automaticamente assim sela a manutengio le uma certa escala valorativa, O que no deixa de ser coerente com sua visao a-historica da torma (da “estrutura”, como preterira dizer). ssa coe: rencia € 0 invés confrontada ao verificar-se que tal estabilidade da “‘estru- ura” € resultante nao de um trago substanctal da propria obra literéria, sendio que da manutengio de um juizo de valor. Outros juizos poderio con: smar a secundariedade da literatura produzida no Brasil mas a partir dou- tras razbes, necessarlamente coordenadas a outro valor. Em sintese, o primeiro exame da Formagdo levara a consideré-la co: imo Inserida em uma concepgdo da obra literdria que derivava da interago 150 de sua especificidade em face de seu confconto com a propria sociedade, Este resultado, sem diivida banal, foi, contudo, desmentido pela continua ‘lo da andlise, que parece mostrar que a estabilidade estética conferida por Candido & “estrutura” € antes efeito de uma concepgao mais tributéria de ‘uma visio tradicional do que se estava disposto a admitir. Que se quer, no entanto, dizer pela iltima frase? Com 0 propOsito de esclarecé-o, parte-se do exame da idéta de siste- mma literdrio, que orientard a feitura da Formagdo. Como € sabido, Candido distingue as manifestacbes literdrias, descontinuas € dispersas, ¢ © sistema literario, caracterizado pela articulagao entre um conjunto de produtores, “mais ou menos conscientes de seu papel”, “um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de péblico, sem os quais a obra nio vive; win ‘mecanismo teansmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em es: tilos), que liga uns a outros" (1959, 1, 23). A partir desta premissa incluem-se nas manifestacOes desde o teatro jesuftico de Anchieta até 0 barroco de Viel ra ¢ Gregério de Matos. Especificamente, sobre este, justificava 0 autor: “[..] Embora tenha permanecido na tradi¢ao local da Bahia, ele ndo exis tiu literariamente (em perspectiva hist6rica) até o Romantismo [...] Antes disso, nao influiu, nao contribuiu para formar 0 nosso sistema literario, € Hio obscuro permaneceu sob os scus manuscritos, que Barbosa Macha- do, o minucioso erudito da Biblioteca lusitana (1741-1758), gnora-o com: pletamente, embora registre quanto Joao de Brito e Lima pdde alcancar” (idem, 24) A exclusio do barroco, sobretudo de Gregorio, tem servido de mat ria para os mais indignados ou mais sérios protestos contra a armadura te6- rica da Formagao. Mas qual a contribuigao desta para o ostracismo da pro- ducdo do século xvi? Aparentemente, ela é directa. Algumas passagens da obra, porém, levam a matizar 0 jufzo. A primeira surge no item “A presen- ca do Ocidente’, integrante do capitulo 1. "[...] Os escritores brasileiros que, em Portugal ou aqui, escrevem entre, digamos, 1750 (infcio da ativi- dade literdria de Cldudio) ¢ 1836 (iniciativa consciente de modificagao lite: risia, com a Nitero?, tas escritores langaram as bases de umia literatura bra- sileira organica, como sistema coerente e nao manifestagoes isoladas”” (A. Candido: 1959, 1, 72, grifo meu). Embora a frase pareca constituida por um tom descritivo ¢ nada judi cativo, como se 0 que ela refere ndo tivesse a imporvancia decisiva que, no contexto da obra, de fato, tem, € nitida a concordancia do efeito da aglo descrita — as sementes em favor da organicidade e da coeréncia da litera. tura nacional — com 0 préprio lastro em que se funda o princfpio de siste ‘ma. Mas, para que se entenda a forga que o registro descritivo terd no ver- dadeiro papel da idéia de sistema, precisa'se recorrer a outros trechos. Pouce adiante, a notada auto-suficiencia do registro descritivo reapa- rece em formuliglo que comenta trecho de Garrett, “Com semelhantes ie conceitos, inspitados no gosto pela expressio local, ¢ mais ainda pelo set- timento do exético, pode-se dizer que surgiu a teoria da literatura brasilei 1a, cujo principal critério tem sido, até hoje, a anilise do brasileirismo na expressdo como elemento diferenciador” (idem, 73). 0 distanciamento do historiador parece assegurado pelo tom descriti- vo. Além do mais, 20 conteirio do “principal critério” que até hoje servi ria para “a teoria da literatura brasileira", na Formagdo nao se enfatizam (0 brasileirismos, enquanto elemento linguistico. Estaria, pois, explicada a neutealidade da descri¢io, a isencio do historiador quanto ao historiado: semelhantes critérios engendravam uma concepgio de literatura que nao € respaldada por aquele que a comenta, ‘Mas a solugio no € satisfat6ria, pois af est implicito um endosso que ainda no captamos. Sua presenga se torna viva pela comparago com ou tras passagens. Assim, no capitulo 1 do segundo volume, se Ie, a propésito de “a renovacio litericia designada genericamente por Romantismo”; "O seu interesse maior, do ponto de vista da historia literdtia e da literatura ‘comparada, consiste porventura na felicidade com que as sugest6es exter nas se prestaram a estilizagao das tendéncias locais, resultando um movi: mento harmonioso € integro, que ainda hoje parece 4 muitos 0 mais brast- leiro, mais auténtico dentre os que tivemos” (A. Candido: 1959, 2, 14). © tom descritivo € mesmo. Pela inclusio do “porventura”, o enun- ciado parece reforgar a leitura distanciada como a adequada. Mas 0 leitor talvez jé nao se engane, Comparando-se com a passagem precedente, me Ihor se compreende que o propriamente distanciado do ide4rio de Canct do € 0 exotismo a diferenciagio meramente verbal — 0 brasileitismo. ‘A sensago que ali entdo se tinha de se presenciar algum tipo de endosso agora se coneretiza: 0 exotismo € afastado para que se louve 0 servigo pres: tado pelas “Sugestoes externas” para a “‘estilizagao das tendéncias locais", © brasileirismo Hngaistico € secundario mesmo por forga da autenticidade brasileira do “harmonioso e fntegro" romantismo nacional. Que entdo se conclui senao a constatacio que @ leitura anterior era incorteta; que se de- codificara “descrigao" onde ela se mesclava com uma valorizac20 implict 1a? Mas, no sendo prudente retificar uma leitura habitual por outra que 4 questiona Uo fundamente, € justo que se promovam outros exames. (Ora, 0 mesmo problema ressurge em trecho imediato ao precedente ‘Chamando a atenglo para a relevincia que, para a primeira geragao roman. tica, assumem as “necessidades de individuacI0 nacional”, o autor acres- centa: "Esta tendéncia era ceputada de tal modo fundamental para a ex: pressio do Brasil, que os jovens da segunda geragio manifestavam verda- deiro remorso a0 sobrepor-Ihe os problemas estritamente pessoais, ou 20 deixé-la pelos temas universais e 0 cenirio de outras terras" (idem, 15) ‘© tom parece de um texto efetivamente liso, sem sombras ou dobras da vor que fala quanto au que refere. Mas @ acompanhamento da past 100 gem também mostraré que essa impressio nfo se sustenta, Analisando 0 “remorso' presente no Macdrio, Candido primeieo assinalaa propria auto censura de Alvaes de Azevedo, quem cit: “Esse americano nao sente que cle € filho de uma nagio nova", Logo a seguie, Candido enconta a justtica Go para a causa do “remorso" 0 poeta da segunea geracio, fel a0 princ- pio da autenticidade expressiva, se rebelava contra a prtica de seus ante passados porque o indianismo ca poesia americana eram atificiais (ef. A Candido: ibidem, 15). A intervengio do narrador, conquanto presa 3 refe rénciaimplicita “esta eraa opiniao de Atvaces de fato interrompe scu con: vido distanciamento. A atificialidade a que alude nao se correlaciona dire tamente com a oposicio, acima notada, entre brasitirismo da expressio verbal e movimento brasileiro? Ou sea, 0 "temorso" resulta de a negacio dos brasilerismos ser acompanhada da impossibilidade de se incorporat 20 mais “auténtico” dos movimentos brasieios, Mas € preferivel dar a pa lavra a0 préprio Candido A pergontarelativa a correlugio encontra sua res posta cabal no final do tem: "Trechos capitais, exprimindo a ambivalencia de nosso Romantismo, transfigaridor de uma tealidade mal conhecida © atraidoirresistivelmente pelos modelos ewropeus, que acenavam com a ma- gia dos paises onde radica a nossa cultura intelectual” (ibidem, 16). Jno € possivel que aise veja apenas a soberana neutalidade do is curso indireto, A andlise ajudara a melhor determinar a posigao do histo- riador quanto-a0 zomantismo. Elogiado por sua atengio a0 nacional, crtici-o por nao ter escapado & atracio européia. Dai a ambivaléncia que acusa no romantismo, Dai a ambicto de purificé-to. Reifcase, portanto, também aparente exchusividade descrtiva que haveria nas consideragdes de Can dido sobre a segunda geracao romantica, Sua retificagao tera conseqiaém cias mais amples, Tendo aprendido a desconfiar de sua decodificacto habitual, o leitor aif ndo ve a soberana isengao do deseritivo; sua tendéncia agora sera, 30 invés, a de voltar ats e questionar a constatacio descritiva de seguidas passagens, Destaque-se apenas uma. O autor analisa a estética do arcadis mo ¢ escreve: “Na imitagao da vida interior, este (.€., 0 decoro) leva 20 mesmo senso de moderacao, restringindo a iteratura a superficie da alma € tolerando mal os desvios. Mais do que nunca, €0 tempo da psicologia do adulto, beanco, civilizado € normal ~ 2 qual se procura reduzie a do proprio primitivo, do homem em estado de natureza, que era 0 padrio” (A, Candido: 1959, 1, 56) Agora o leitor nio mais caei na armaciha que the oferece a pritica do discurso historiogefico, que elege a descrigdo como seu recurso por exceléncia porque ela parece assegurar a neutralidade de quem fala ¢4 ob ietividade do que diz, Sob 0 phino do deserito, é 0 préprio critica quem interpreta. E, para «quem conhega a imporincis, entre nds, da podtica arc, sua posicio tol ‘nao € aqui menos que certeira, Isso significa dizer que o registro descriti vo, assegurado pelo discurso indireto, nlo $6 esconde 0 autor da cena da ‘enunciagdo em momentos problemiticos, sendo que ainda o faz em mo: mentos de formulagio inequivocamente valiosa Mas bastatia essa conclusto? Estar-se-ia por acaso insinuando que, 20 ‘menos no caso das formulagdes felizes, 0 registro descritive seria disfun- ional? Mero produto da atualizago automitica e ociosa de recurso histo: riogrifico? Estas perguntas, contudo, supdem que a leitura da patsagem jf cesteja cumprida, Ao fazé-lo agora, teremos simultaneamente condigdes de respondé-las, Afinal, pode se pensar, nfo € a propria expressio literéria brasileira que reitera a rejeigio de toda ousadia? Por um lado, a releitura da Formagao permititia recolher varias confirmagdes dessa ejeigao da ousadia como nos. so trago freqiente; por outro, contudo, nao € menos verdade que nem a passagem citada nem outra qualquer afirma a generaliza¢i0. Conclui-se, por tanto, que, mesmo nos casos de apreciago valiosa, o recurso ao descriti: vo nio € ocioso. Ao contriio, sua fungdo permanece precisa: por ele, 0 autor descomplexifica a sua prépria interpretacao. abe entio perguntar por que esta tdtica se Ihe imps? As razdes serio provavelmente varias: evitar a acusagio de confundir a escrita da historia literdria com a critica literdria ou de Servir-se da indagaglo hist6rica para afirmagoes generalizadoras etc. De minha parte, prefiro acentuar 4 probs bilidade doutra raz2o: o texto da Formagao descomplexifica suas formula: ‘$0es para que torne mais nitido seu servigo a diretriz aberta pelos romanti cos. Servigo que se julgaria tanto mais necessario porque eles ndo se des- vencitharam da ambivaléncia de ver seu prdprio pais ou de ser seduzido pela matriz, européia, assim motivando j a geraclo seguinte a viver o ex travio de cantar ora as prOprias dores ora temas universais, Sem que ja se considere esgotado o exame do papel do deseritivo, por ora conduz-se apenas o acima analisado a uma pergunta, que, tendo sido feita, ainda nio foi respondida: a funcio efetivamente desempenhada pela armadura te6rica da Formagdo. £ 4 medida que o leitor aprende a de fato “ler” 0 texto de Candido que se habilita a compreender methor essa Tungio. Sobre ela, atrés se repetira a glosa habitual: a idéia de sistema literdrio implica que s6 se pode falar em literatura nacional quando as obras af pro: duzidas Si0 também af recebidas € fecundadas. Esse entendimento corti queiro tem, entretanto, 0 defeito de elidie uma quest2o tao simples quanto decisiva: quo extensa deverd ser a recepcdo para que se The tenha como declaradora de um sistema? Bastard uma recepclo atestada para que 0 sis tema se afirme em funcionamento? Se 0 fosse, a fama local de Gregorio lo justificaria sua exclusio. Se, portanto, no basta uma recepglo local vad, qual a extensao dt necessi Joe Porque a perguata fora elidida, também a resposta escapara. Contu: do, ela jf estava contida em passagem aqui citada: "|..] Os escritores brasi- leiros que {... Jangaram as bases de uma literatura brasileira orgénica, cO- ‘mo sistema covrente e mio manifestagdes isoladas” (A. Candido: 1959, 1, 72, grifo meu). Pelo exame agora conclufdo, compreende-se que 0 decisi vo na armadura te6rica da Formacao € menos a idéia de articulacao entre producdo e recep¢ao literirias do que sua extensao nacional e seu carter de coeréncia, ste segundo trago, “coeréncia”, por sua vez reitera a po: breza da leitura usual da idéia de sistema litersrio, Melhor indagi-lo, pode: rf oferecer outra via para sua compreensio. No Preficio a terceita edigao do Literatura e sociedade, comsapondo se a voga de entdo do estruturalismo lévi-straussiano, 0 autor esclarecia seu uuso da palavra estrutura: “..] A acepcio aqui utilizada foi desenvolvie: com certa influéncia da Antropologia Social inglesa (tio atacada neste as- ecto por Lévi-Strauss) ¢ se aproximaria antes da nogio de ‘forma organi ca’, relativa a cada obra ¢ constituida pela inter-relagao dinamica dos seus elementos, exprimindo-se pela ‘cocréncia’ " (A. Candido: 1972, Xi) privilégio, pois, do conceita de coeréncia também se prende a in: ‘Aluencia do funcionalismo antropolégico inglés. Embora aqui nao caiba exa- me mais detalhado, deve-se acentuar a importincia decisiva deste legado na concepgo de sistema. Em ensaio originalmente publicado em 1935 Radcliffe-Brown, acentuando 0 destaque que concedia 3 fungao, 8 concel tava e indicava sua relagdo com o sistema social Funcio" € a contribuigio que determinads atividade proporcions 2 ativida de total da qual € parte. A fungio de determinado costume social € 8 contri: buicio que este oferece a vida Social total como 0 funcionamento do sistema social total. Tal modo de ver implica que certo sistema social [.-] tem cexto tipo de unidade a que podemos chamar de unidade funcional, Podemos defini to ‘como condigdo pela qual todas as partes do sistema social atuam juntas com suficiente grau de harmonia ou consisténcia interna, ito €, sem ocasionar con: ftos persistentes que nem podem ser solucionados nem conerolados (A. R. Radeliffe-Brown: 1952, 224) Nao sera preciso muita argiicia para se pesceber que essa concepgio da funcio, clara e explicitamente formulada por analogia com 0 contexto biol6gico, privilegia a “harmonia ou consisténcia” do sistema, Em caso Ge iivida, o leitor deve se lembrar do resultado pritico da pesquisa doutro imoso funcionalista, Evans-Pritchard, cujo livro sobre os nuefS assume, imbém neste circuito, um cardter antol6gico. Conforme dele se depreen: dle, a vida do povo sudanes apresenta um maravilhoso sistema de perfeitos ‘enggites. Tendo © gado como seu meio central de relacionamento com 0 mundo, os nuers sao primeiro descritos em seu cotidiano de apascentado- res; observam-se a seguir as condigées climaticas ¢ le solo em que 8¢ opera los ‘essa simbiose do homem com o gado, acentuando-se que a imposta varia ‘sito sazonal (chuvas, seca) condiciona uma vida cfelica, migrat6ria e, con: seqiicntemente, uma economia mista — criago de gado e agriculwura, Este perfeito elo, por sua ver, se engasta no cardter das relagoes socials. ‘As ligugies sociais sao por assim dizer restritas eas gentes da aldeia e do acam- pamento, em'um sentido moral, esto unidas, pois, em conseqaéncia, si0 ‘muito interdependentes ¢ suas atividades tendem a ser tarefas conjuntas (E, Evans-Pritchard:' 1940, 89), As relagdes sociais entio se engastam sua concepeao de tempo, seus sistemas politico e de linhagem, Deste modo, o sistema é da mais absoluta coeréncia © a coesio no pouco invejivel, A influencia a que Candido alude, na passagem ha pouco citada, pro- mmove, no caso da literatura brasileira, o privilégio de uma interpretagao cextremamente favorecedora da coesdo homogeneizante, Quer-se dizer: res- saltadora de uma produgio ¢ de uma circulagao literdrias que favorecem 1 coesio nacional. O barroco € entio "‘seqdestrado" (Haroldo de Campos) da Formagao nio tanto porque sua clrculaglo fosse drasticamente menor que a dos arcades, sendo porque impede que se langassem “as bases de luma literatura brasileira organica, como sistema coerente”. Em termos da cextensdo de recepgdo de uns € outros, a idéia de sistema, enquanto siste Ima, ndo supée um patamar que justificasse a exclusio de Gregorio e a in- ‘clusdo de Cliudio Manuel e Toms Antonio Gonzaga. Tais gestos 6 se ex: plicam porque © peso decisivo recal na qualificagdo de sistema nacfonal, 6 assim se faz justica a5 palavras do autor: “O leitor perceberd que me coloquei deliberadamente no Angulo dos nossos primeiros romanticos € dos criticos estrangeitos, que, antes deles, localizaram na fase arcidica 0 inicio da nossa verdadeira literatura [...)” (A. Candido: 1959, 1, 25), Esse reconhecimento, contudo, tem um significado dristico para a in terpretagdo proposta: reitera que, a0 contririo do que muito a principio se afirmara, a articulagao decisiva da Formagao € com o que se chamara o terceiro eixo da preocupagao critica contemporainea, precisamente aquele «que derivava da atitude dominante no século XIX, E af ressalta a importan- ccia da antropologia social britanica. Foi ela que ofereceu as condigdes para que, na Formagao, vigorasse a convergencia entre 0 primado da nagio e uma certa anilise do social, Porque em ambos domina a preocupacao com «4 coesag, fol ento posstvel a Candido manter o vinculo com os fomant ‘cos sem se tornar um mero epigono. Ademais a andlise efetuada demonstra o realce do registro descritivo tna Formagdo: € ele 0 responsavel para que permanecesse velada a intensa soliduriedade de seus valores com 0 cinone romantico. Mas 0 proprio Can: ido j4 nao © explicitara? O mérito do exame aqui cumprido, se ele ter Iqum, consiste em rclacionar este resultado com a exclusaio do barroco © com a retificaydo do papel da armadura tebrica: ndo € porque o autor tot steve preocupado com a idéla de sistema social que sua obra tem a infle- xio que lhe é propria, sendo porque, nele, a idéia de sistema esté subordi: nada ao primado da coesao. ‘Ao menos quanto a exclusio do barroco, no se fez mais do que, por outro circuito, ratificar a conclusio de Harolde de Campos: (© modelo semiol6gico, articulado por Antonio Candido para descrever a for- acto da literatura brasileia, privileia as Fungdes Emouiva e Referencial, co- pladas na funcio Comunicativo-Expressia de exteriorizacao das "veleidades ‘mais profundas do individuo” e de “interpretag3o das diferentes esferas da realidade” [..] Quando ao privlégio dessa fung20 Emotiva se alla uma voca (Go igualmente entitica para a funcio Referencial (para a literatura da terceira pessoa pronominal, objetiva, descritiva, tal como caracterteada pela dptca), & possivel dizer que estamos diante de um modelo literirio de tipo romantico Imbuidlo de aspiragOes clssiizances (aspiragdes a converters, num momen to de apogeu, em “classicismo nacional”) (H. de Campos: 1989, 26.8). Porém, depois de reconhecido 0 canone que os excluia, a recupera- do de Gregério ¢ a no menos imperiosa de Vieira, por uma historia da literatura brasileira, estaria facilitada? Ao contrério do que pressinto estar contido na reflexio de Haroldo de Campos, a resposta afirmativa esté lon- ge de ser automstica. Insinuo apenas os aspectos de consideragio indis- Pensével, chamando a atengio para a sua pega hoje fundamental: 0 A sdti- ra eo engenbo, de J. A. Hansen, Hansen demonstra, quanto a Greg6rio, jd ser hoje um anacronismo ro mantico propor-se a questio de sua legitima autoria dos poemas que circu- lavam com seu nome: “A autoria, no caso, € produida pela unificacio que se torna produtiva a posteriori: ‘Gregorio de Matos’ € uma etiqueta, unt- dade imaginaria e cambiante nos discursos que o compdem contraditoria- ‘mente numa hierarquia estética, determinada pela ‘cadeia de recepgdes’, 1a expresso de Jauss. Nao-substanckal é efeito da leitura dos poemas atri- ‘buidos, no sua causa" (J. A. Hansen; 1989, 14-5) (Assinale-se de passagem que 0 caso de Gregorio nilo € singular. O his- toriador da literatura havera de considerar a propria historicidade da no. ‘lo de sujeito individual, que, no século xvu, estd longe de ja haver alcan: ado 0 curso de normalidade pressuposto pelo romantismo.) Obra menos de um autor que por ela se expressaria do que de uma persona que fala, por sua vez, a sitira barroca, nota ainda Hansen, era codificada e assim pre- vista nos tratados de poética, o que impede tomar se seu autor como re- helde € nativista avant la lettre. 1. €., esse estatuto da sitira impeditia, se ‘nao por vezo anacrOnico, que se envolvesse a poesia de Gregorio em al: gum propOsito nacional. A desqualificacio operada pela sitica “liga defesa cht ordiem assoctuda a defesa da posigdo hierdrquica, pois seu pres suposto @o dle que a boa ordkem politica implica a manutengsho da hierar 165 ‘quia ideal” J. A, Hansen: 1989, 30). Por isso mesmo, ainda acrescenta a passagem, todos os agentes sociais, portugueses e/ou brancos, Indios e/ou mulatos, clérigos ¢ senhores de engenho, tornam-se criticiveis enquanto suas agdes ponham em risco a ordem ideal (idem, 31). Em sua disposigao desabusada, a satira nao € menos prevista na poctologia barroca que o Seu aavesso, 0 panegitico. © que, no caso de Gregorio, significa a vigencia de uma norma no relacionamento do poeta com os poderes instituidas im possivel de ser automaticamente convertida nas normas correspondentes (que vigorardo na ordem burguesa Como entio o praticante de uma disciplina como a hist6ria da leratu- +a, nascida sob o império do individualismo expressivo do romantismo, poder dar conta do barraco? Sera de imediato preciso descartat as idéias de naclonatidade e de sistema expressivo fundado em individualidades cris doras, potencialmente contribuidioras de uma visio nacional cocrente, Mas tampouco pareceta suficiente, e essa € minha ressalva a posigao de Harol- do de Campos, a adogio de uma poética insubmissa ou mesmo contearia piragdes do romantismo “normal”, Isso ndo obstante o fato de 0 seu proponente tera vantagem de que tanto a poética do barroco quanto a poe: tica p6s-baudelairiana jgualmente enfatizem a atenglo sobre o proprio meio cexpressivo, a linguagem, ¢ favorecam a abordagem antiintencional. Essa ‘maior proximidade nao é bastante para nos tornar sincrdnicos ao basroco. A sintonia com 0 barroco se prende & sua posigao quanto a0 objeto poéti- cco, sua valorizagdo da palavra-coisa, seu realce da forma "impessoal”, an- tecipadamente contciria a0 expressivismo romantico. Contemporaneo, con- tudo, da crise que conduziu ao absolutismo, o barroco no pode ser con- temporineo da crise do fim do século xx, marcada pelo questionamento «la heranga do racionalismo ituminista e seu privilégio da subjetividade in- vidual, do paradigma cientifico ¢ da utopia da sociedade mais perfeita, Do ponto de vista de constituigao de uma histOria da literatura capaz de abrigar as figuras impares de Gregorio e Vieira seri talvez preciso pensar se no desenvolvimento do principio de mistranslation, praticado ainda nos anos 30 por E. Panofsky* (cf. E. Panofsky e F. Saxl: 1933, 228-79; E, Pa nofsky: 1936, 223-54). Quero dizer: se do ponto de vista critico ha de se pontar 0 vezo oriundo do privilégio da coesio nacional, se do ponto de Vista tanto critico quanto historiogréfico no € bastante @ reconstituiglo «da poética do periodo mencionado, tal qual € 0 propésito declarado de Hansen (cf. J. A. Hansen: 1989, 15), se, entretanto, essa reconstituigio € bnasica para que se evitem as leituras usuiais ¢ arbitrérlas, ela entao deve vir « car lugar a uma leitura interpretativa que, haja vista 0 hiato entre 0 mun: lo contemporineo € o do barroco, seri necessariamente infiel aos padroes ali clominantes. Por terem por objeto de estudo uma nago nova, 0 histo- Flador © o critico da literatura brasileira nao encontram este tipo de proble- ima xendo com o barroco. Jatins-lo ser um avango considerivel, quer do ponte de vistr anaes, quer do que sigait ton ‘Uma vantagem correlata desta tomada de consciéncia estar em 0 his- toriador e 0 eritico perceberem de modo concreto que seu discurso € co" ‘mandado por valores; que estes precisam ser explicitados e que, ao assim fazé-lo, necessitam tornar, na medida do possivel, manifestos seus pressu: postos, (© exame cuidadoso, pois, da Formagao termina por ressaltar menos ‘sua ubiquagao em certa linha axial da reflexao critica contemporanea do que a necessidade, nela ainda no imperiosa, de articular o debate teérico com 0 proprlamente analitico, A manutengdo de sua separagio, expressa pela idéia de que o primeiro € dispensavel, favorece a pretensa objetivida- de do registzo descritivo, velando seus efetivos valores. Por esse motivo, reservem-se ainda algumas palavras sobre a questio do descritivo na For- ‘magao Além do que jd se escreveu a sespeito, acrescente-se que a mancira co- mo 0 descritivo € adotado por Antonio Candido — sua aparéncia de mera ‘ neutra referencia, que oculta o endosso ou a presenga das vozes ali con- tidas — parece associada a uma tensdo que 0 autor nao resolvera: 0 espit to eritico, de que fé havia dado prova em Brigada ligeira,’ recusava solu- Bes que, entretanto, € levado a acatar pelo cardter empenhado de sua his- 6ria. No Preficio & segunda edi¢io da obra analisada, Candido verifica € endossa que “a literatura do Brasil, como a dos outros pafses latino: americanos, € marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstancia que inexiste nas literaturas dos paises de vetha cul tura” (A. Candido: 1962, 18). Isso nao o impede de também constatar que ‘esta participacao foi freqientemente um empecilho, do ponto de vista cestético” (idem, ibidem). A descrigdo, algumas vezes uma polida ironia, se- io meio de conciliar os contririos. Em consequéncia, sem que sempre © explicite, o historiador termina por endossar 0 que descreve. Desta ma- neita os tragos de bucolismo, de melopéia, de sentimentalismo, de ausén: cia de reflexio critica, de dissolucao do valor da palavra peto fluxo da elo- iiencia, conquanto se deixem aquém do que sua visio critica desejaria, terminam por ser ratificados. A coesao nacional, a que ajudariam, thes con- cederia um saldo positive. [Na impossibilidade do exame necessirio, tome-se um exemplo, Na ani- lise da poesia de Gongalves Dias enquanto consolidador do romantismo, ‘Candido anota: “Bem romantico pela concepgao, tema ¢ arcabouso, 0 “F- cca-Pirama’ tem uma configuragio plistica e musical que o aproxima do bai- lado” (A. Candido: 1959, 2, 86). Para que © jufzo assuma seu pleno peso é preciso que o leitor tenha uardado anotacio anterior que caracteriza 0 romantismo pela diminuigio do valor da palavra em prol da musicalidade, i. ., por sua infraverbalida- de. Mas, embora ambus as observagées estejam no mesmo livro, estahele- cor ess juncio equivaleria a diminuir o mérito do bardo naciona Wr ‘Candido nao faz, Ao invés, valoriza 0 “gorjeio sentimental” (2, 194) de um ‘poeta insignificante como Casimiro de Abreu € mantém a sétira de Bernar- do Guimaries em posigio secundliria (ndo falo de Soustindrade porque pro- vavelmente nao teve 0 acesso adequado a sua obra), Em suma, Candido optou pela solugo descritiva, em vez de privile- ‘lara atitude reflexiva, muito embora poucos como ele fossem mais dota- dos para seu incremento. Lé-lo criticamente nao €, portanto, apenas de- ‘monstrar que sua obra continua viva, mas dela exteai ligSes para'outra lei tura de nosso tempo ¢ de nosso pafs. Leitura por certo menos cordial mas nem por isso menos empenhada Se é verdade que aprendemos tanto por concordat como por diver: fir, a Formacao nos revela a mio de um mestse, De um mestre que nos defende da sensagio de viver em uma terra deserta NoTas (0) Notese que, embora s6 publicado ses anos depots da Formagto, 0 capitulo, como ssclatece nota 40 pé de piping, fol composto a parr de notas de conferencia promunclada ‘1961, ose, em data bastante proxima a obra que estudamos cf A. Cando: 1965, 3) (@) Sobre aaproximagio da crea da cordial por Sérgio Buarque eo conceito por ‘eriormenteelaborado de espago pubileo, cf L. Costa Lima: 198, p. 1224 {3} Notes, por exemplo, o que dizia 0 comparatsta nort-americano Harcy Levin em ‘conferenia pronunciada em 1966: "American erature may he tested either as lustated ‘supplement to American history a as. disinetive but continuous seque! to English language Iehas neither the esthetic eichnessnor the historic range to comprise a siping by isl (Levin: 1972, 67, (9) Note se que nem code traducio gramatialmenteIncorreta cabe na mstransation Ake Panoisky, Enquanto coneeito, a mistransacin reere um ato euluralmeate,€efeto de tuna pressio sociocultural que torn impossvel ov insficiente a tadugio gramatieaimente (6) Alm do valor de certs observages sobre pros, antes de seu period experimen {a de Oswald, dowtas sobre a ambigidade do listo em Jorge Amado, destaco a coragers \Gtanotacio, minima e contundente, acerca de Eucides. "0 tenebrso, ost mau gosto tte Hueldes da Cunha’, tanto mais singular porquanto a continuagio ea fase no delnava de eonhecer “a sas itulges penis” (A. Candido: 1945, 20, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ‘Campus 1 de 0 seuestro do Barroco na “Formagao da lteratura brasileira 0 caso Gre ‘rin de Mates. Saivador, Fund. Case de Jorge Ama, 1989. Candi, A, Brigada igre’ Sio Paula, Mains, 1945. Formagaw da tieraura brasileira: momentos deisoos. 1959 elo Morton, Pre a2 ei et Formagd (1962), op. Iiteranra esociedae, 1965. So Paul, Nacional, 1978 retin aS ean de Zaleratuna © scott, 1972. op. ei lost Costa Lima, 1. Socedade o atscurso ficconal. Rio de Janeto, Guanabara, 1986, EvansPritchard, & The Nuor. 1930. Oxford, Clarendon Press, 1971 Hansen, J. A.A sdtira eo engeno. Sao Paulo, Cia das Leas, 1989 Jakobson,R. "Os problemas dos estudosIterdeosetingisticon”, 1927. Tad, park 0 frances de. Todorov, In Todorov, Ted. Théorie de la Uitiature. Pais, Seu, 1968 Jauss, H.R. 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