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err agri Wa ain eel f ie a Ae a i? Ln oe oe Ps 12 A QUESTAO DA | EMANCIPACAO © copyright 1979 COMISSAO PRO-INDIO/SP Rua Caiubi, 162, Perdizes, S. Paulo ~ SP Coordenadora dos Cadernos: Lex Vidal duardo Caldarellt “oto de Capa: Cliudia Andujar Desenhos: Manuel Guedes Capa: Carlos Clémen N® de Catdlogo - 1155 1a, Edigfo: agosto/79 Direitos reservados por GLOBAL EDITORA E DISTRIBUIDORA LTDA. Rua José Antonio Coelho, 814 Cep. 04011 ~ Sao Paulo ~ SP Impresso na EDITORA PARMA LTDA. Rua da Varzea, 394 ~ S, Paulo ~ SP. APRESENTACAO Diante da gravidade da situagao das sociedades indigenas do Brasil, hoje, e da existéncia de iniciativas por parte de grupos muito diversificados no sentido de atuar em defesa daquelas Sociedades, surgiu a necessidade de congregar esforgos e@ informagées que déem uma idéia mais clara dos problemas e das medidas prioritarias adequadas. Se, por um lado, ha uma grande disposi¢aéo de trabalho por parte destes grupos, ha também pouca comunicagao entre eles e uma multiplicagéo de esforgos por falta de uma acgaéo mais integrada que leve em consideragao as varias experiéncias concretas e a diversidade de situagdes, bem como a vivéncia e a visdo que os préprios indios tém dos problemas que os atingem diretamente. Neste sentido, 6 importante o acesso, pelas comunidades indigenas, aos dados e opiniées expressas por seus membros, seja oraimente, seja por escrito, das quais toma-se hoje conheci- mento ocasionalmente pela imprensa, por cartas pessoais e por reivindicagées formais de alguns membros dessas comuni- dades. . O que se torna necessario 6, pois, a reuniao destes dados e a divulgagaéo — para indios e para os brancos comprometidos com a causa indigena — das varias situagées vividas pelos indios e da sua avaliagéo do processo para que, através do didlogo e da andlise objetiva dos problemas, chegue-se a propor solugées adequadas. A base primeira para a elaboragao destas solugdes sao, sem davida, os direitos constitucionalmente assegurados 4 popu- lagaéo indigena do pais que, aliados as experiéncias historicas 4 Apresentacdo anteriores e ao debate e reavaliagdo constantes, toriaau possivel a construgao de novas aiternativas. Diante desta realidade é que se formou, em nivel nacional, uma Comisséo Pré-Indio, contando com a participagao de indigenistas, médicos, juristas, religiosos, jornalistas, antropo- logos e outros profissionais relacionados com a questao indige- na. A Comisséo tem por objetivos basicos: —ser porta-voz das populagées indigenas, devendo apoiar qualquer iniciativa que delas parta de expressarem diretamente suas reivindicagées; _—informar a coletividade dos casos concretos de ameac¢as a integridade fisica, territorial e cultural dos grupos indigenas, com a finalidade, portanto, de assessorar os 6rgaos publicos na procura de solugées apropriadas para os problemas que vém surgindo. A idéia da formacao de uma Comissao Pré-indio foi langada pela primeira vez durante o ciclo de debates da “Semana do indio”, cuja organizagao foi possivel pela iniciativa de um grupo Apresentagéo 5 de jornalistas, estudantes e antropdlogos e tornada viavel pelo patrocinio da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Municipio de Sao Paulo. Estes Cadernos, de que este exemplar pertence ao primeiro numero, objetivam concretizar a funcao informativa da Comis- sao, através da divulgagéo dos fatos que digam respeito a questao indigena. Quanto a este primeiro ndmero, dedica-se ao Ato Ptiblico que a Associagaéo Nacional dos Cientistas Sociais promoveu no TUCA, no dia 8/11/78, contra o projeto oficial de falsa emanci- pacaéo das comunidades indigenas. Futuramente, os Cadernos abordaraéo outros assuntos de interesse para as comunidades indigenas e para as pessoas ligadas a quest6es indigenas, tais como: problemas relativos a terras, legislagéo e politica indegenista, educagao, projetos comunitarios e autodeterminagaéo das comunidades indigenas etc. Os Cadernos manteréo uma segao, cujo objetivo sera proporcionar um painel da situagaéo das comunidades indigenas e cuja principal fonte serao as colaboragées de todos os que tenham algo a informar a respeito de fatos concretos de que tenham conhecimento. NOTA INTRODUTORIA O nucleo de uma publicagéo que se dedica a quest6es indigenas do Brasil e ao ano de 1978 nao poderia ser outro, sendo o debate que se instalou em todo o Pais, em torno do projeto de emancipacao das comunidades indigenas, de lavrae origem oficiais. Os escritos que fazem parte deste primeiro numero refletem as posigdes de diversas pessoas ligadas as questées indigenas no Brasil, em face dos problemas que surgiriam fatalmente, uma vez aprovado o decreto de emancipagéo das comunidades indigenas. Além desses escritos, publicam-se também neste numero um histérico cronoldégico dos fatos ligados a falsa emancipagéo das comunidades indigenas, um documento em que os antrop6- logos esclarecem os motivos por que o repudiam e uma lista de mogées de apoio ao Ato Publico patrocinado pela Associagéo Nacional de Cientistas-Sociais, cujo numero e importancia evidenciam a recusa por parte da consciéncia nacional e internacional a mais esta agao que se procurava, entao, perpre- tar contra o indio. Histérico da Emancipacdo 1975 Janeiro (27) O Ministro Rangel Reis, em entrevista coletiva a imprensa, revela que o Estatuto do Indio poderd ser alterado, para permitir a emancipagdo de comunidades indigenas. Essa alteragao, segundo o Ministro, possibilita- r4 a emancipagao coletiva, atingindo de uma s6 vez grupos inteiros. Outra conseqiéncia possivel, seria a instituigao de um sistema de tutela indireta sobre os indios, aproximadamente igual a exercida pelo INCRA, sobre seus colonos, os quails, além de um saldrio mensal, recebem assisténcia técnica, de satide e educacional (sic) fevereiro (2) Antropélogos do Museu Géeldi, de Belém, criticam politica do Ministro do interior, dizendo que o indio sempre se integra a sociedade nacional num nivel mais baixo do que desfrutava em sua vida tribal... (7) O Presidente da FUNAI associando-se as intencdes do Ministro do Interior, defende a reformulagao do Estatuto do Indio, no qual identifica varios dispositivos passiveis de aperfeigoamento. Admite que “talvez seja perigosa a existéncia de uma legislagao unica-para todos os indios", pois eles n&o sao iguais e estéo nos mais variados niveis de aculturagao. abril (14) O Ministro do Interior, Rangel Reis, afirma em Brasilia, ao inaugurar a Semana do Indio, que a politica da FUNAI visa basicamente a integrar 0 indio na sociedade e emancipé-lo, resultando que os préprios grupos mais aculturados estao interessados em sua emancipagao. “Nas areas habitadas por tribos em adiantado estado de aculturacéo, a meta é conduzi-las a uma auto-suficiéncia econémica, por meio de aplicacao de Pprojetos especiais orientados pela FUNAI. 10 Histérico da Emoncipagso 1976 abril (18) Em entrevista ao jornal O Estado de Sao Paulo, o presidente da FUNAI, general Ismarth afirma que nao ha grupos indigenas integrados, mesmo 08 do sul do pais e, por isso, nao hd grupos para serem emancipados. Para considerar uma comunidade indigena integrada, prossegue o general, é preciso que ela seja independente economicamente. Dai os projetos de desenvolvimento comunitario que a FUNAI vem realizando em areas indigenas. {20) © Ministro Rangel Reis, de acordo com diretrizes sugeridas pelo presidente Geisel, afirma que vai acabar com o paternelismo da FUNAI e adotar uma politica agressiva de integragao (sic) através da implemen- tacdo de projetos de desenvolvimento econdmico de areas indigenas. (27) O sertanista Oriando Villas Boas, em entrevista & imprensa, condena a idéia de integragao agressiva do Ministro Rangel Reis. outubro (07) O Ministro Rangel Reis divulga noticia sobre a existéncia de um ante-projeto para regulamentar a questao da Emancipacao dos indios, Alega que o Estatuto do Indio retarda a emancipagao e propée decisao judicial a partir de solicitagao da FUNAI. O objetivo confessado ¢ acelerar a emancipagao dos indios que vivem nos Estados do sul do pais e no sul do Mato Grosso. (12) O Ministro Rangel Reis afirma: Quem deve determinar a época correta para a emancipagdo 6 a FUNAI. Se nao emancipar (sic) algumas comunidades até o final do governo estaré frustrada a politica indigenis- ta do governo Geisel. O Ministro também critica a experiéncia do PNX. dezembro (15) O sertanista Orlando Villas Boas, em matéria assinada em O Estado de $40 Pauio, critica a tendéncia empresarial da politica indigenista oficial, (28) O Ministro Rangel Reis anuncia que a meta para 1977 6 a emancipagéo das comunidades indigenas. “E preciso acabar com a ma fé e a ignorancia dos que apoiam o paternalismo da FUNAI". E conclui: “Precisamos deixar de lado o pensamento de que o indio é um ser diferente". Histérico da Emancipagéo n (27) Rangel Reis anuncia as metas da politica indigenista: {a) integragdo répida dos indios, e conseqiiente emancipacao; (b) aboligéo do ensino bilingue; (c) afastar as miss6es religiosas; “Vamos procurar cumprir as metas fixadas pelo presidente Geisel, para que através de um trabalho concentrado entre varios Ministérios, daquia a 10 anos possamos reduzir para 20 mil os 220 indios existentes no Brasil e daqui a 30 anos, todos eles estarem devidamente integrados na sociedade nacional”. (29-31) Antropdlogos, missionarios ¢ sertanistas reagem criticamente as intengdes do Ministro Rangel Reis. (31) 0 general ismarth de Aratijo, em férias, estranha declaragées do Ministro Rangel Reis. No entanto, afirma que vai propor convénio FUNAI com as 26 missées religiosas que atuam no Brasil e iniciar avaliagdo do seu trabalho. 1977 janeiro (3) Divuigado manifesto assinado por 17 antropélogos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, criticande politica de rapida integragao anunciada pelo Ministro Rangel Reis. fevereiro (25) Reuniao sigilosa Rangel Reis — Ismarth de Araujo para tratar de alteragées no Estatuto do Indio, inclusive da emancipagao. margo (03) Indios Gaivao do Para enviam tita magnética ao presidente da FUNAI na qual dizem que a emancipacao definitiva da tribo é prematura. (04) Reuniao entre o Ministro Rangel Reis, Ismarth de Araujo, Orlando Villas Boas e Temistocles Cavalcanti anuncia que tutela devera cair em alguns casos por iniciativa da FUNAI. (20) Mesa redonda publicada n’ O Estado de Sao Paulo retine o presidente da FUNAI, missionarios e antropdlogos. Criticadas posi¢ées do Ministro Rangel Reis. Unanimidade entre os debatedores: ndo se pode pensar em emancipacao antes de se definir a situagao das terras indigenas. (23) O Ministro Rangel Reis insiste no exemplo TERENA e declara que os indios querem ser emancipados. “Eu quero 6 melhorar a cultura deles” abril (21) 26 caciques de nove nagdes na 1* Assembiéia Nacional dos indios Brasileiros (Santo Angelo-RS) enviam carta ao presidente da FUNAI denunciando suas condi¢ées de vida e solicitando solugées. O general Ismarth, em visita ao Posto Indigena Araribé (SP) declara que'a emancipagao do indio e a posse da terra sfio metas da FUNAI". 12 Histérico da Emancipaao: abrit (22) O general Ismarth envia uma fita magnética aos indios Gavido na qual afirma que a FUNAI sé emanciparé comunidades indigenas quando elas préprias solicitarem. outubro O Ministro Rangel Reis, por ocasido da CPI do indio, reafirma as intengdes do governo em regulamentar a emancipacao dos indios. 1978 fevereiro (02) O ministro Rangel Reis anuncia que o Presidente Geisel assinara este més, 0 decreto da emancipagdo. A medida “beneficiara” 2 mil fidios emancipando 100 no atual governo. Os indios emancipados receberao terras alienaveis apés 10 anos e caberé a FUNAT indicar os que devem ser emancipados, desde que preencham os seguintes requisitos: (a) servigo militar prestado; (b) possuir titulo de eleitor; (c) capacidade para ganhar a vida; (d) alfabetizado; (e) participar da vida nacional; O Ministro cita alguns exemplos de grupos de individuos emancipaveis, como os Teréna e o chefe Xavante M4rio Juruna. E pergunta: Porque nenhum indio pediu a emancipacao até hoje? (10) General Ismarth:Manter um indio praticamente integrado sob regime de tutela 6, na minha opiniao, uma discriminagao racial e 0 governo nao quer criar quistos raciais” fevereiro (12) Ministro Range! Reis: A politica indigenista atual tera fracassado se nao emancipar pelo menos 1 indio”. (13) Mario Juruna, da tribo Xavante, reune-se com o general Ismarh e afirma, criticando o projeto de emancipa¢ao: “'A gente vai desaparecer, virar caboclo”. (15) Padre Antonio lasi, ex-secretario do CIMI, afirma: “Os interessados na Historico da Emanciparso 13 fantasmagérica emancipacdo dos indios estao mais preocupados com a emancipacao das terras dos indios”. (16) O ministro Rangel Reis recua e afirma que a emancipagao néo é meta prioritaria do seu ministério. margo (02) Manifesto contra o decreto de emancipagéo do Ministro Rangel Reis e divuigado pela imprensa, assinado por 150 antropdlogos, médicos e lingilistas de todo o pais. (24) Editorial de O Estado de Sao Paulo critica o Ministro Rangel Reis. (29) O sertanista Orlando Villas Boas defende a emancipacao dos indios destribalizados, mas condena emancipacao coletiva das comunidades. abril (16/19) Semana do indio em Sao Paulo: a secretaria municipal de cultura promove debates, com a participagao de 30 indios Xavante, antropélo- gos, lingilistas, sertanistas e missionarios. Critica-se a emancipagao e 6 lancada a idéia da Comissao Pré-indio. (18) CIMi-Sul divulga nota repudiando a intengao do governo de emancipar os Indios. (28) Congresso Nacional sobre a questao indigena, realizado nas ruinas de So Miguel (RS) e promovido pelo CIMI ¢ ANAi, divulga nota prometendo lutar contra a falsa emancipagao. agosto (26) 30 antropdlogos das principais universidades do pais reunidos na USP em Sao Paulo, discutem a questao da emancipacao e a posi¢ao a ser levada a Brasilia na reuniao com a FUNAI - MINTER. (28) Antropdlogos reunidos na USP dia 26 divutgam nota na qual condenam toda e qualquer tentativa de emancipagaéo dos indios nas presentes condigées. (31) Debate sobre a emancipagao na UNICAMP - SP condena projeto do governo. julho (06) Participantes do Simposio de Etnologia, patrocinado peta regional da SPBC do Rio de Janeiro, divulgam documento advertindo que a emanci- pagdo dos indios 6 uma alternativa perigosa ao processo de expropria- go territorial qué vem sendo enfrentado por essas comunidades. 4 Histérico da Emancipacao (07) CIMI divulga nota condenando emancipacao, apdos reuniao do secreta- riado nacional em Goiania. (14) Participantes do debate sobra a ‘Questao Indigena na XXX* Reuniao Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciéncia (SBPC), em Sao Paulo, criticam fortemente o decreto de emancipagao. Conclusdo: Repudio ao‘decreto — mog4o 38, aprovada na Assembléia Geral da XXX reuniaéo da SBPC — Sao Paulo. (22) CIMI-Norte | divuiga em Manaus nota condenando projeto de emanci- pagao. setembro (11/13) Alguns antropdlogos de todo o pais se rednem em Brasilia com representantes da FUNAI-MINTER e reafirmam criticas ¢ inoportunida- de da emancipagao, encaminhando novo documento ao Ministro do Interior, esclarecendo as razées de seu repudio ao projeto mas deixando claro que estao dispostos a dialogar com o érgao responsa- vel pela politica indigenista e a contribuir na procura de solucées a favor das comunidades indigenas no pais. (14) A Camara Municipal de S40 Paulo condena por unanimidade o projeto de emancipagao. Mocao de autoria do deputado estadual Flavio Bierren- bach. Ressalta que é necessério apoio da classe politica, dos professores e de todas as pessoas de bom senso que se preocupam com esse. problema dos indios em nosso pais. (14) Apoio da Igreja Luterana ao Documento dos antropélogos. outubro (12) Imprensa divulga que, apesar de todos os protestos, 0 Mini Reis decidiu levar adiante o projeto de emancipacao, agora sigilosamen- te, para ser assinado até o final do governo Geisel. Reuniram-se em Brasilia para estudar copias numeradas do texto do projeto: General Ismarth, Apoema Meirelles, Laia Mattar, Getulio Barreto e Gerson Alves. (15) Fontes do MINTER informam que sera criada uma comissdo, que tera representante do Conselho de Seguranga Nacional, para revisar todo o texto do Estatuto do Indio. (19) O Ministro Rangel Reis anuncia que enviara o texto do decreto de emancipagao ao presidente Geise! no préximo dia 30. outubro (19) A Associagao Nacional de Cientistas Sociais e a Associagaio de Docentes da USP apoiam antropélogos brasileiros na luta contra o projeto de emancipagéo do governo (20) Varios antropdlogos, médicos, lingilistas e estudantes de pés-graduagao fundam em Sao Paulo a Comissao Pré-Indio. Histérico da Emancipagdo 18 (19/21) Debate sobre a emancipacéo em Belém do Para faz aumentar criticas ao projeto do Ministro Rangel Reis. (23)Antropdlogos da UNICAMP, PUC e USP, além do presidente do CIMI dao coletiva a imprensa nacional e correspondentes estrangeiros. Presidente do CIMI afirma que o decreto de emancipacao é uma forma de genocidio, (25)general Ismarth: “‘O governo nao pretende tumultuar os valores tribais ao emancipar os indios, mas sim tornd-los conscientes para uma nova realidade, para a propria sobrevivéncia das comunidades indigenas”. (26)Pronuncia-se sobre o caso a CNBB: “A emancipagao sera submeter de forma premeditada os povos indige- nas as condi¢es de existéncia que acarretam forcosamente seu extermi- nio como povo, O exterminio se fara com a fria letra da lei. Os governos anteriores, mesmo pondo em pratica uma politica contraria aos interesses dos Indios nado eregiram a agresséo as populacdes indigenas em cédigo de Estado, tal como este. Em vez de regulamentar o Estatuto, o poder executivo, escudado, exciusivamente na forca do arbitrio, mantendo a distancia todos os setores comprometidos, com a causa Indigena, e deixando o poder legisiativo completamente a margem das decisées, inverte contra o texto da lei, com o fito de modifica-lo, Caso se concretize, a opiniao publica nacional saberé 0 nome dos responsdveis (O Estado de Sao Paulo) novembro (05) Editorial de O Estado de So Paulo critica 0 Ministro Rangel Reis. (07)Ato Publico contra o decreto Rangel Reis 6 realizado no Rio, reunindo 700 pessoas no auditério da ABI (08)O Ministro Rangel Reis divulga pela imprensa a "Exposi¢ao de Motivos”” que acompanha o texto do decreto de emancipagao enviado ao presidente Geisel. Na mesma data, Ato Publico Contra a Falsa Emancipacao redne mais de 2 mil pessoas no TUCA, em So Paulo, com 190 mogdes de apoio. (09)Mesa redonda critica emancipagao faisa, em Brasilia. (11)Editorial do Jornal do Brasil apoia o decreto de Rangel Reis. (12)Editorial de O Estado de Sao Pauto critica projeto sigioloso de Rangel Reis. (17)Finalmente o governo divutga a integra do texto do decreto de emancipa- Gao enviado ao presidente Geisel(sic). (22)0 jornal O Estado de Sao Paulo publica resposta de Rangel Reis ao editorial do dia 12. (24)O Ministro Rangel Reis admite alteragées no documento sobre a emancipagao. dezembro (03)Fontes da assessoria de imprensa do MINTER, em Brasilia, informaram que a presidencia da Republica decidiu, estrategicamente, esquecer por Histérico da Emancipacao algum tempo a aprovagao do projeto de emancipacdo de grupos indigenas. Antropélogos Manifestam-se Contra Projeto de Emancipacdo de Grupos Indigenas Acusam-se, as vezes, os antropdlo- gos @ certos indigenistas de quere- rem preservar os indios em redo- mas, transforma-los em pecas vivas de museu. A opiniao geral.é de que “os indios tém o direito de serem como nés”. Os indios, no Brasil, estéo em regi- me de tutela, sendo que seu tutor é o Estado Brasileiro. Isto significa que eles nao detém a mesma capa- cidade e responsabilidade juridica dos demais adultos brasileiros. Sig- nifica, também, que o Estado tem o dever de zelar pela defesa de seus interesses. Assim, por exemplo, os territorios indigenas s&o de posse e usufruto dos indios, mas proprieda- de inalienavel da Unido, o que os preserva da cobiga alheia. Muitos grupos indigenas esto ha longos anos em contato com a so- ciedade nacional, falam, eventual- mente, o portugués, podem empre- gar-se, mais ou menos seguida- mente, como m&o-de-obra e pouco se diferenciam, externamente, da populagao regional. Esta semelhan- ca aparente nao impede que se mantenham caracteristicas pré- prias que identificam 0 grupo como indigena, tanto para os seus mem- bros, quanto para a populagao re- gional. O Ministério do Interior fala atualmente em regulamentar a emancipagao de grupos indigenas do regime de tutela, através de um decreto. Por que, argumenta-se, embora tao semelhantes 4 popula- go regional, deveriam ser eles tu- telados, tidos, portanto, como par- cialmente incapazes diante da lei? A palavra emancipagao tem assim a conotagao de aigo que libertaria 18 Antropélogos Manifestam-se Contra Prajeto de Grupos Indigenas um individuo injustamente tido por incapaz e o equipararia aos demais cidadaos. Ora, isto é ver o problema as avessas e isto em dois sentidos. INTEGRAR AGORA E EN- TREGAR Primeiro, porque toda a Historia mostra a vulnerabilidade dos gru- pos indigenas brasileiros, diante da ocupagao econémica do interior do pais: s4o uns 100.000 indios hoje, eram cerca de 1 milhaéo em 1.900. Ora, estamos assistindo hoje a der- radeira e talvez mais forte investida da expanséo interna em todo o centro-oeste e norte do pais, lidera- da por grandes grupos empresa- iiais: momento pois, particularmen- te inoportuno para deixar os indios desprotegidos. Emancipar grupos indigenas agora é entrega-los de- sarmados a forcgas infinitamente mais poderosas, que Ihes arrebata- réo, em maior ou menor prazo, as terras a vil prego, por grilagem ou por execucao de dividas, absorven- do-os como mao-de-obra barata. A tais procedimentos ja estao sujeitos muitos brasileiros e nao ha porque aumentar seu numero. Desta situa- gao estéo ameacados tanto indios quanto posseiros: nao se trata, por- tanto, de tomar o partido de um, contra o outro. Apenas, parece-nos que o problema fundiario néo pode ser, tanto em termos de justi¢a co- mo por nao ser viavel, resolvido & custa dos indios. Emancipar grupos indigenas agora , portanto, em nome de uma igual- dade entre os cidadaos, “‘lavar-se as maos” do que thes venha a aconitecer. Ora, 0 Estado nao pode “lavar as maos'’, nao pode insentar- se das responsabilidades que Ihe cabem e que sempre, até agora, reconheceu. Foi neste sentido que © Brasil aderiu, em 1965 , a Conven- Gao N° 107 sobre a protegao e inte- gragéo das populacées indigenas, adotada em Genebra em 1957. E agora, mais do que nunca, 0 mo- mento de cumprir essas responsa- bilidades, para que a emancipacao, quando se concretizar, se faga em condigdes propicias. Isto supée transmitir aos grupos indigenas co- nhecimentos sobre a sociedade na- cional e sua dinamica, assim como devolver-Ihes o exercicio de toma- da de decisdes. Sd assim, e nao por decreto nem por piebiscito apressa- do, poderiam os indios libertarem- se da dependéncia e da necessida- de de uma assisténcia decidida ex- ternamente. Assim, a emancipa¢ao @ 0 desfecho de um processo que permite as populacées indigenas optarem por ela, com conhecimen- to de causa. Manter a tutela nao significa tratar os indios como criangas — pois nao o sao — mas orienta-los no seu trato com a so- ciedade envolvente e dela protegé- tos, até que sejam capazes de nela moverem-se sem maiores riscos. DIVERSIDADE E DEMOCRACIA RACIAL Os indios s&o seres adultos. E sao, também, e é este o segundo sentido em que a opinido publica pode se equivocar, respeitaveis em sua di- versidade. Eles néo tem apenas 0 direito de serem como nés, mas 0 de serem eles préprios. Diversidade nao significa desigualdade: demo- cracia racial nao 6, necessariamen- te, a fusao de todos em um modo de ser tinico, mas, talvez, 0 reconheci- mento do valor de modos de ser diferentes. Antropdlogos Manifestam-se Contra Projeto de Emancipagdo de Grupos Indfgenas 19 Ha que se respeitar essas diferen- eas. Podem, por exemplo, parecer exorbitantes, em relagdo ao que restou de certos grupos tribais, as areas de que dispdem. No entanto, © aproveitamento de tais areas faz- se segundo modalidades proprias ®, grupos ca¢adores, por exemplo, necessitam de grandes extensdes. Argumenta-se, contra isto, a des- proporgao entre o numeo de indios ea area que ocupam, esquecendo- se das fazendas varias vezes maio- res que existem ao lado deles, pro- priedades de grupos cujos acionis- tas séo em numero muito menor que 0 do grupo indigena. Objeta-se, entao, a fraca rentabilidade das ter- ras ocupadas. Isto levanta duas quest6es: uma que tange ao respei- to que se deve as formas culturais outras, como j& mencionamos; ou- tra que, nessas terras, que por sua historia Ihes pertencem, com justi- ga, uma vez interessados em novas técnicas produtivas, os grupos indi- genas podem produzir tanto ou mais que seus vizinhos. Isto nao é apenas uma hipétese: ha casos concretos que o confirmam. Esta insergao de grupos indigenas na economia regionai, longe de ser um fator de despersonalizagéo do in- dio, tem se mostrado elemento ba- sico do seu relacionamento com a sociedade nacional, em bases mais justas. O respeito a diversidade é mais do que se aceitar e até admirar aqueles grupos que ostentam uma tradigao cultural marcada, com cocares, pin- turas e, de preferéncia, arcos e flechas. Muito mais dificil, e, igual- mente importante, é aceitar esses outros grupos que perderam sua lingua e seus costumes tradicionais @ que teimam, no entanto, em afir- marem-se indios. Ha que se enten- der que esses movimentos de re- construgao de uma identidade indi- gena, entre grupos aparentemente semelhantes a qualquer grupo re- gional, significam a tentativa de re- cuperar uma imagem dignificante de si mesmos. E, 6 precisamente por isto, que nado existem parame- tros outros para definir uma comu- nidade ou um de seus membro como indios, sendo aqueles justa- mente adotados pelo Estatuto do Indio, de 1973, em seu Artigo 3°, a saber: indio é quem se identifica e 6 identificado como tal. RESPONSABILIDADES DA TUTELA Nao 6 pois, o momento de reguia- mentar a emancipacaéo,mas o de pensar nas responsabilidades da tutela. Ao aprovar o Estatuto do Indio, o Estado comprometeu-se a garantir protecao adequada as co- munidade indigenas e sua cultura, até que cheguem a situacdo de se integrarem harmoniosamente & Na- 9a0. Uma emancipacao depende de uma tutela bem sucedida. Ora, os recursos previstos para levar a bom cabo essa tutela nao foram esgota- dos, dai o despreparo das comuni- dades para uma emancipagao. Ha, portanto, problemas muito mais prementes do que reguiamenté-la. Entre eles, figura em prioridade ab- soluta a demarcagao das terras in- digenas que, pelo Artigo 65° do Estatuto do Indio, deveria estar ter- minada até o fim deste ano. Esta- mos longe disso. O dominio de uma extensdo de terra continua, coletiva e inaliena- vel 6 a condigao necessaria primei- ra para a sobrevivéncia de quaiquer grupo indigena com dignidade. 20 Antropélogos Manifestam-se Contra Projeto de Emancipacdo de Grupos Indigenas Mas, nao é suficiente. Nesta terra poderdo os indios garantir sua sub- sisténcia, segundo modalidades proprias, tradicionais ou n&o. Cabe ao Estado, quando requerido, orientar o grupo em novas técnicas produtivas e na comercializagéo dos excedentes, para promover sua independéncia de qualquer ajuda externa; cabe-Ihe, também, prestar uma eficiente ajuda médico- sanitaria e a protegao dos indios, sobretudo os recém-contactados das doencas que [hes transmitimos e os dizimam. Cabe-lhe a responsa- bilidade de uma educagao que res- peite as formas culturais, os valores e a dignidade da comunidade, en- quanto a oriente no seu convivio com a sociedade envolvente, aju- dando-os a nela moverem-se. COMISSAO PRO-INDIO Nés, antropdlogos, também temos. responsabilidades diante das popu- lagdes indigenas. Nos, que durante tantos anos tentamos ser os porta- vozes de populagées indigenas, de- vemos apoiar qualquer iniciativa que delas parta de expressarem, diretamente, suas reivindicacées. Nesse sentido, devemos apoiar a iniciativa recente de organizagao de uma Federag&o, por parte de representantes de comunidades in- digenas. Compete-nos informarmo-nos com- pletamente e informarmos a coleti- vidade dos casos concretos e espe- cificos de que temos conhecimento e assessorarmos, portanto, os or- gaos publicos na procura de solu- gées adequadas aos problemas que vem surgindo. Precisamos, no en- tanto, do concurso de indigenistas, juristas, médicos, religiosos, jorna~ listas e da populagao em geral para podermos obter algum resultado. Neste sentido, propomos a consti- tuigdo de uma Comissdo Pré-Indio, assim como a ades&o a este docu- mento, que pode ser enviada para um dos seguintes enderegos: SETOR DE ANTROPOLOGIA DEPTO. DE CIENCIAS SOCIAIS UNIVERSIDADE DE SAO PAULO C.P. 8105 - SAO PAULO - SP. DEPTO. DE ANTROPOLOGIA PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATO- LICA RUA MONTE ALEGRE, 984 SAO PAULO - SP CONJUNTO DE ANTROPOLOGIA DEPTO. DE CIENCIAS SOCIAIS IFCH - UNICAMP: .C.P. 1170 - CAMPINAS - SP. SETOR DE ANTROPOLOGIA DEPTO, DE CIENCIAS SOCIAIS UNIVERSIDADE DE BRASILIA C.P. 70.000 - BRASILIA - D.F. DPTO. DE ANTROPOLOGIA MUSEU NACIONAL - UFRJ QUINTA DA BOA VISTA ZC-08 20.000 - RIO DE JANEIRO DEPTO. DE ANTROPOLOGIA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PA- RANA CURITIBA - PARANA POS-GRADUACAO EM CIENCIAS SOCIAls. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAN- TA CATARINA FLORIANOPOLIS - SANTA CATA- RINA CENTRO DE DOCUMENTAGAO ET- NOLOGICA MUSEU DO INDIO RUA DAS PALMEIRAS - BOTA- FOGO RIO DE JANEIRO -20.000 MUSEU PARAENSE EMILIO GOELDI DIVISAO DE ANTROPOLOGIA CAIXA POSTAL 399 BELEM -PARA - 66.000 Antropélogos Manifestam-se Contra Projeto de Emancipagiio de Grupos Ind/genas O04 LMOMC/2e- Ovn Carta da “Indian Rights Association 26 de outubro de 1978. Gal. Ismarth de Aratjo Oliveira Fundagdo Nacional do Indio Ministério do Interior Brasilia, DF Brasil Prezado senhor: E alarmante a noticia da intengao que tem o Governo Brasileiro de promuigar um decreto de “‘emancipagéo” dos indios, sobretudo @ juz das terriveis semelhangas que apresenta com a Lei Dawes, aprovada pelo Congresso Norte Americano em 1887. A Lei Dawes determinava a diviséo das reservas indigenas em pequenos fotes de terra, atribuindo-os individuaimente aos indios. Em resumo, 0 Governo detinha a propriedade da terra em nome e beneficio de cada um dos indios, por um perfodo de tempo (geralmente 25 anos) durante 0 qual o indio deveria cultivar a terra e tornar-se auto-suficiente. Ao término desse periodo, o Governo Federal transferiria a propriedade plena de terra ao indio, conferin- do-lhe, simultaneamente, a cidadania norte-americana. Muito tem sido escrito sobre a motivagao dos responsaveis pela Lei Dawes. Reformistas da época, profundamente preocupados com a crescente inva- sdo das reservas indigenas pelos brancos, perceberam que as derrotadas tribos indigenas eram impotentes para evitar as incursées de brancos as suas terras e que o Governo Federal dificilmente deteria a ‘‘inevitavel maré" da expansdo ocidental, conduzida peia forge. A melhor esperanga para os indigenas, argumentavam eles, estava em se tornarem “‘civilizados”, para 0 que o maior obstaculo residia em sua existéncia tribal primitiva e, particular- mente, na propriedade comum da terra, fato esse visto como encorajador da preguiga e indoléncia, tao abomindveis a moralidade ocidental. O “exceden- te" das reservas indigenas, isto 6, as terras remanescentes apés a entrega 24 Carta da “indian Rights Association” dos pequenos /otes aos indios, era vendido pelo Governo a colonizadores brancos. Alguns reformistas argumentaram, em vao, que a educagao deveria preceder © desmembramento das terras tribais e que os Indios nao estavam prepara- dos para a responsabilidade da “civilizagdo". Nao foram dados ouvidos a seus protestos e o caminho foi deixado aberto & usurpagao final da terra indigena. Em 1934, quando a politica do desmembramento foi abandonada, os indios tinham perdido 90 (noventa) dos seus antigos 138 (cento e trinta e oito) miihées de acres de terra, Hoje se reconhece que a Lei Dawes foi extraordinariamente desastrosa para os indigenas: um exemplo onde os reformistas teimosamente impuseram sua idéia do que era bom para os indios, independentemente de seu consentimento ou aprovagao, destruindo, dessa forma, a base agréria, que era o alicerce da vida e cultura indigenas. Mais recentemente, na década de 50, o Congresso aprovou a extingéo do regime de tutela & propriedade das terras indigenas, referentemente a certas tribos, consideradas aptas a dispensar a superviséo e ajuda federais. O exemplo mais famoso do fracasso dessa politica 6 0 da tribo Menominee, de Wisconsin: em poucos anos, a tribo estava empobrecida e desprovida de servigos basicos. A tribo finalmente valtou, em 1973, por decisao do Congresso, a “‘superviséo"’ federal. O presidente Nixon, em seu pronuncia- mento de 1970 sobre Politica indigena, reconheceu a faléncia da politica de extingaéo da protecaéo aos indigenas. Esses exemplos tém relagaéo direta com a proposta Lei Brasileira de Emancipagao do Indio. A histéria norte-americana mostra, sem sombra de dévida, que, quando a terra indigena esta em jogo, as questées sao encobertas por uma nuvem de nobre retorica sobre a necessidade de se civilizar o indio, conceder-the cidadania, terminar o ‘degradante" sistema de reservas. Esse fato persiste ainda hoje nos Estados Unidos, na medida em que grupos anti-indigenas falam de ‘direitos e responsabilidades iguais”” para os indios. A legislagao introduzida em 1978, ab-rogando todos os tratados indigenas e abolindo o sistema de tutela 4 propriedade das reservas indigenas foi entitulada “Lei de Igual Oportunidade aos Nativos”. Entendo que a {ei brasileira determina que um consetho de especialistas, convocado pela Fundagao do Indio, definiré quais as tribos que estdo aptas para a emancipacao e que as proprias tribos nao teréo qualquer voz ativa nessa deciséo. Provavelmente, com a emancipagao vira o direito de vender a terra, abrindo-se;- dessa forma, um enorme campo a agao dos especuladores e exploradores de terra. A “indian Rights Association” estava entre os grupos reformistas que, na década de 1880, clamavam pela promulgagao da Lei Dawes; 6 uma posigaéo que possa talvez ser explicada no contexto da época, mas a consequente dizimacao indiscriminada das terras indigenas néo poderé jamais ser justificada. © povo brasileiro nao pode, com certeza, pretender para os’ indios brastfeiros as mesmas politicas desastrosas que os americanos viram fracassar. A Lei de Emancipagao deveria ser cuidadosamente examinada, sem que se detenha Carta da “Indian Rights Association” 28 na expressdo de propésitos grandiosos, pelo terrivel prego que pode custar as terras @ cultura indigenas. Sandra L. Cadwalader Diretor Executivo * Traduzido do inglés por Maria-Helena de Barros Pimentel-Advogada Depoimentos e Exigéncias da Assembléia de Chefes Indigenas Ante a iminéncia de ver o novo projeto de Decreto de Emancipagao que “regularizara’ o Estatuto do Indio assinado por V. Excia. viemos respeitosamente cientificar o Sr. Presidente dos problemas levanta- dos, estudados e concluidos nesta Assembiéia, Tendo sido encaminhado a V. Excia. 0 Projeto de Decreto de Emancipacao, deixamos aqui o nosso parecer, o parecer do indio. O Unico individuo que nao foi con- vidado a dar seu parecer a respeito da emancipagaéo que o vai atingir. Antes de tudo, queremos re- lembrar trecho da carta de Andila Indcio Kaingang que V. Excia. bem deve conhecer. Hoje, nesta assem- biéia tornamos a dizer as mesmas coisas, apenas tomamos alguns dos seus pensamentos como nossos. Permita-nos dirigir este Docu- mento em nome dos indios que habitam o imenso territorio brasi- leiro. Sr. Presidente, nao seria talvez por nosso povo falar e -entender somente sua lingua materna e nao compreender estes gritos de paz, amor @ compreensdo. Nao, sr. Pre- sidente, temos certeza que o nosso povo entenderia essa mensagem, embora em outras linguas, como entendeu a de paciéncia até agora, gritada nos nossos ouvidos, pacién- cia esta que chega agora aos limi- tes, como chegaria a de qualquer povo, fosse qual fosse o estagio de civilizagao, Sr. Presidente, V. Excia. ha de convir que o sangue do nosso povo nao mais pode ser contido nas veias, vendo que as terras restan- tes, comparadas com o imenso ter- 28 Depoimentos @ Exigéncias da Assembigia de Chefes Indigenas ritério brasileiro, que tinhamos no passado o pleno dominio de posse, estado sendo usurpadas pelos brancos. O que mais nos deixa perpie- xos 6 que neste estado de coisas é que se langa o Projeto de Decreto de Emancipagao, quando sabemos que varios artigos da nossa lei, o Estatuto do indio, nao foram cum- pridos. O que mais chamou a atengao que tem sido objeto de debates e denuncias no seio de varias entida- des de Ambito nacional é 0 seguin- te: “O Poder Executivo fara, no prazo de cinco anos, a demarcagao das terras indigenas ainda nao de- marcadas”. (Art. 65). ‘Assim como a opiniao publica condenou esta emancipagao tam- bém nés em nome da comunidade indigena brasileira repudiamos esta emancipacao. Que ela seja afastada do vosso Gabinete e que sejam levadas em consideragao nossas exigéncias. Que seja cumprido este item da lei, que parece um dos pontos vitais que a nova lei quer evitar. Que se reconhega o indio como herdeiro e dono legitimo de suas terras e que as reservas sejam reconhecidas como propriedade coletiva das comunidades indige- nas. Qualquer omissao ou falta de interesse sobre este aspecto sera atitude que nos levara a concluir que a emancipacao pregada pelo Sr. Ministro do Interior nada mais nada menos uma atitude hostil e mal intencionada contra as comuni- dades indigenas. Portanto conde- navel. Outro artigo do Estatuto do in- dio diz o seguinte: “As terras indi- genas nao poderao ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negocio juridico, que restrinja o pleno exercicio da posse direta pela comunidade indigena ou pelo silvi- cola” (art. 18). Sr. Presidente, bem sabemos 0 grave problema que enfrentam as comunidades indigenas, que tém suas terras arrendadas pela propria Funai e que agora se vé imcompe- tente para tirar os mesmos intrusos que ela assentou em nossas areas. Outras séo invadidas sob o olhar pacifico, quando nao com o préprio apoio de chefes de postos ou de delegados regionais do orgéo de protegao ao indio, Caso concreto o de Roraima, onde o delegado da Funai permitia aos intrusos invadi- tem as Areas indigenas, conforme depoimentos dos chefes indigenas reunidos em Assembliéia em Su- rumu. © mais grave de tudo isso 6 quando um ato de violéncia pesa sobre uma comunidade indigena que j4 nao tem perspectiva de ver suas terras devolvidas, como ocor- re com os Kadiwéu de Mato Grosso do Sul que tiveram suas terras arre- batadas com a permissao do érgao competente, a Funai, mediante ar- rendamentos, Esses mesmos inva- sores formam hoje a Associagéo dos Arrendatarios da Reserva dos Kadiwéu, com forte aparato politico regional. O Estatuto do indio em seu artigo 66 diz: “Orgao de protegao aos silvicolas fara divulgar e respei- tar as normas da Convengao 107”, Essa Convengao defende nossos mais elementares direitos ¢ sendo 0 Brasil um dos signatarios dessa Convengao tem a obrigagéo de exe- cuta-la, especialmente no que se refere 4 nossa liberdade de comuni- cacao e expressao. Isto vem ao Depoimentos ¢ Exigéncias da Assembiéia de Chefes ind/genas 29 caso porque hoje denunciamos a agdo policialesca que a Funai vem exercendo sobre as comunidades indigenas, proibindo os indios de participarem de encontros e reu- nides. Ao que parece a Funai teme © que é dito nesses encontros onde nada mais fazemos que relatar nos- sas lutas e fracassos, os crimes praticados pelo branco nas comu- nidades nas quais cada um de nos esta integrado. Um fato que marcou profundamente a nossa memoria foi a dissolugao da Assembléia de Surumu em Roraima, 0 que contra- ria a propria lei n° 5.371 de 5 de dezembro de 1967 que autoriza a instituigaéo da Fundagao Nacional do indio, a qual diz em seu artigo 1°, item I que compete a Funai “Esta- belecer as diretrizes e garantir o cumprimento da politica indigenis- ta, baseada nos principios seguin- tes: respeito a pessoa do Indio e as instituigdes e comunidades tri- bais"’. Sr. Presidente, nao estamos querendo ditar normas e leis, pois n&o somos nenhum catedratico, ju- rista ou tedlogo, mas simplesmente queremos deixar claro as nossas exigéncias imediatas que nos asse- gura o Estatuto do Indio. Nao nos impressionam as de- claragées feitas pelo Sr, Ministro ou pelo Presidente da Funai através da imprensa, defendendo a emancipa- 0. Porque nés, as vitimas dessa politica, somos os Unicos a poder dar o parecer sincero sobre o que representa esta emancipagao, Por- que se as palavras bonitas resolves- sein O nosso problema, hoje nao estariamos em situagao tao diferen- te daquela que o Estatuto do Indio defende. Pois a emancipagao dese- jada pelo Sr. Ministro trara a destri- balizagéo das comunidades indige- nas, conseqiientemente a destrui- ¢ao coletiva e individual de seus componentes. Porque o indio tem de viver em comunidades préprias, em plena liberdade de tradigao cul- tural e liberdade de possuir a terra. Sr. Presidente, expirado o pra- 20 da demarcagao das éreas indige- nas, queremos cientificar V. Excia que as comunidades indigenas acham-se em pleno direito de de- fender e desintrusar suas dreas, caso 0 6rgéo competente, Funai, n&o conclua a demarcacao das areas indigenas. Conciuindo que nesta data na qual expira o prazo de demarcagaéo das areas indigenas, exigimos que seja cumprido o que a lei manda e que seja rasgado o projeto de lei de emancipacao da autoria do Sr. Ministro Rangel Reis. S&o os pensamentos do Indio Brasileiro, através de seus repre- sentantes hoje aqui presentes: Kari- puna, Palikur, Galibi, Dessana, Apu- rina, Jamamadi, Tapirapé, Xavante, Rikbaktsa, Pareci, Kaiwa, Kaingang @ Guarani, no encontro realizado em Goids, na data de 17 a 19 de dezembro pelos representantes in- digenas de Amapa, Amazonas, Ma- to Grosso, Mato Grosso do Sul, Espirito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Goids, 19 de dezembro de 1978 Mogées de Apoio ao Ato Publico Promovido pela ANCS Teatro Experimental do SESC —- AM Setor de Antropologia da UNESP — Araraquara. Conselho Indigenista Missionario — CiMi — Regional Norte | — AM Centro de Estudos do Comportamento Humano — CENSESC — AM Federacao independente de Teatro do Amazonas (FITAM) — AM Membros da 4° Assembiéia Regional do CIM! da Amazénia Ocidental — AM Associagéo Nacional de Apoio ao Indio (ANAi) — Porto Alegre — RS Associagao Nacional de Apoio ao Indio (ANAI) — PR Associagaéo dos Professores da Escola de Administragéo de Empresas de Sao Paulo (APEAESP) FGV Comissao Justig¢a e Paz de Séo Paulo Pesquisadores do Museu Paulista da Universidade de Séo Paulo Grupo de Estudo sobre a questéo indigena — Belo Hotizonte Funcionérios da Biblioteca da F.F.L.C.H — USP Instituto dos Economistas do Paré — Belém Grupo de Apoio ao Indio (GAl) — Belém — PA Professores da Escola Paulista de Medicina — SP Associagao Brasileira de Antropologia (ABA) — Belém — PA Associagaéo Regional dos Socidiogos — Belém — PA Associagao dos Sociélogos do Brasil — Setor Norte — Belém Associagao dos Orientadores Educacionais do Paré — Belém CIMI, Regional Norte Il, Belém — Para Diretério Central da Universidade Federal do Paré — Belém 32 Mogées de Apoio ao Ato Publico Promovide pela ANCS Diretério Académico do CESEP — Belém Federacado dos Ogdos de Assisténcia Social e Educacional ~ FASE — PA Centro Ecuménico de Documentagao e Informagao — RJ Associacao Brasileira de Linguistica — Campinas — SP Associagéo dos Socidlogos do Distrito Federal — Brasilia Igreja Evangélica de Confissdo Luterana no Brasil Grupo Kikuru de Apoio 4 Causa Indigena — Manaus — AM Diretério Universitario da Universidade do Amazonas — AM Idian Rights Association — Philadelphia — USA Ballet Stagium Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira — SP Jornal "Nos Mulheres"” Associagaéo das Mulheres — SP Smithsonian Intitution — Washington — EUA Cultural Survival American Antrhopological Association — EUA — Edward Lennan American Antrhopological Association — EUA — Richard Adams London School of Economics — Londres — Joana Kaplan Ecole Pratique des Hautes Etudes — Paris — Simone Dreyfus Société des Américanistes — Paris — Jacques Soustelle Survival International —- Londres — Bentley Departamento de Genética da Universidade Federal do Parané Departamento de Psicologia e Antropologia da Universidade Federal do Parana Oxfam no Brasil — Suzanne William — PE Diretério Académico Studium Theologium — Curitiba Centro de Estudos Rurais e Urbanos — SP. Federagdo de Teatro Amador do Acre ~~ Rio Branco Associac¢ao dos Engenheiros Agrénomos do Estado de Sao Paulo Associagéo dos Gedgrafos Brasileiros — Se¢do S40 Paulo Equipe do Jornal Varadouro — AC Prelazia do Acre Associagaéo dos Professores da PUC — So Paulo Diretério Académico Rocha Pombo do Parana Associagdo de Professores da Universidade Federai de St’ Catarina Movimento Feminino pela Anistia (Nécleo Florlandpolis) Manifesto de Solidariedade — Estudantes e Professores — da UFSC Associacaéo dos Socidiogos do Estado da Bahia — (Salvador) University of Cambridge Associagao Brasileira de Antropologia Faculdade de Odontologia da USP Centro Brasileiro de Anéalise e Planejamento — CEBRAP Associagéo dos Docentes da Universidade Federal de Sao Carlos Diretorio Central dos Estudantes — UFSCar Acgao democratica feminina gatcha Associagaéo para Proteg¢ao Ambiental de Sao Carlos — APASC Associagao dos Socidlogos do Brasil Mogdes de Apoio 20 Ato Pablico Promovido pela ANCS 33 Camara Municipal de Séo Carlos — SP Associagéo dos Docentes da Universidade de Séo Paulo Centro Académico 22 de agosto — Direito PUC Associagao dos Professores de Ensino Superior Privado do Estado de Sao Paulo Associacgao de Médicos Sanitaristas do Estado de Sao Paulo Unido Estadual dos Estudantes Sindicato dos Médicos —~ SP Regional Sul — CIMI Regional Norte — CIMI (MT) Regional Amazénia Ocidental Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro Associagéo dos Médicos Residentes de Séo Paulo . Associacéo Profissional dos Bibliotecarios do Estado de Séo Paulo — APBESP Centro Paulista de Estudos Geolégicos — USP Centro de Estudos Geogréticos — USP Unido Paulista dos Estudantes de Geogratia Diretorio XV de agosto — Faculdade de Teologia — N. Sra.da Assun¢ao-Ipiranga Centro de Estudos de Cultura Contemporanea — CEDEC Associagao Profissional dos Assistentes Sociais de Séo Paulo Movimento Negro Uniticado contra a Discriminagao Racial Pesquisadores em Ciéncias Sociais (RU) Associagaéo Brasileira de Antropologia — Sao Paulo Grupo Chaski — Musica Folciérica Latino-Americana Consolata Society for Foreign Missions Ana Lucia da Silva Castro Comissao de Defesa do Patrimonio da Comunidade Sociedade Goiana de Sociologia Associagao dos Socidlogos do Estado de Sao Paulo Uniéo dos Fotégrafos de Brasilia AGRAF — Associagéo dos Artistas Graficos e Fotégratos de Imprensa e Publicagées Culturais AFAPUC — Associagao de Funcionarios da PUC — SP Jornal “Em Tempo” Comisséo de Maes em Defesa dos Direitos Humanos Comissao Pré-indio — RU Jornal Reporter Pastoral da Juventude — Regiao Episcopal Leste Il — Sao Miguel Paulista. Associagéo Médica do IAMSPE Centro Académico de Psicologia — PUC Comissao Arquidiocesana dos Direitos Humanos e Marginalizados Centro Academico X! de Agosto Departamento Juridico do Centro Xi de agosto Sociedade Paulista de Paisagismo Grupo Semente das Faculdades Objetivo DA. XXViI de Abril das Faculdades integradas Alcantara Machado Escritério Renovo (Assessoria, Pesquisa e Planejamento em Educagao) 34 MocBies de Apoio ao Ato Publico Promovido pela ANCS Consetho indigenista Missionério (CIMI) — DF Centro de Educagao do Instituto Sedes Sapientae Center for Latin American Studies CADAL — Nemesio J. Rodrigues - Centro Academico Ledo XIll - Eco- nomia - PUG - SP - Unido Municipal dos Estudantes de S&o Carlos « Centrinhos da Engenharia da UFSCar - Centrinno da Biologia - DCE - UFSCar - Comissao Pré-Centrinho da Peda- gogia - UFSCar - Centro Académico Armando Sales de Oliveira - Setor CUPECE Luta pela legaliza- ¢4o dos loteamentos clandestinos - Jornal Informe OVNI - Associacdo dos Docentes da Uni- versidade de Sao Carlos - Missao Anchieta - MT - DCE-Livre da PUC/SP - Associagao Brasileira de Preserva- Gao da Vida Selvagem ~ Diretério Académico de ARQUITE- TURA do Mackenzie - Grupo atuagéo da Faculdade de Direito da PUC ~ Associagao Ajuri Pré-Cultura, Arte @ Educagao - SP ~ Centro Académico Viadmir Herzog da Faculdade de Comunicagao So- cial Casper Libero - Centro Académico da Quimica - USP - Centro Académico da Farmacia e Bioquimica - USP - Associagao de Engenharia Quimi- ca - USP - Sindicato dos Artistas e Técnicos em espetaculo de divers6es no Es- tado de Sao Paulo - Atores da Novela “Aritana” da Rede Tupi de Televisao - Jornal “O trabalho” - Movimento pela Unido dos Profes- sores MUP - Grupo “Berra Boi" (Musica e Teatro) - Grupo da Revista Pariat - SP - Centre Académico da Escola de Sociologia e Politica de Sao Paulo - Cooperativa de Escritores - Ndcleo So Paulo, St Catarina e Parana ~ Jornal Versus - Frei Gil - Enid Diva Marx Bacher (AS8) - Prof. José Camargo - Prof. Paulo Sergio Pinheiro — UNICAMP - Paulo Ayres (Bispo Metodista — Ru) - Geraldo Siqueira Filho) - José Maria da Gama Maleher - José Savio Leopoldi ~ Dr. Jodo Paulo Boteiho - Claude Levi-Strauss - Antonio Teodoro Grillo ~ Deputado Robson Marinho - Deputado Alberto Goldman - Deputado Santili Sobrinho ~ Deputado Airton Soares - Fernando Moraes - Senador Franco Montoro + Deputado Airton Sandoval - C. Gab. Marcos Freire - Deputado Faria Lima - Deputado Freitas Nobre - Deputado Pacheco Chaves - Guilhermo Bontim Bataiha ~ Luiz Olavo Baptista - O.A.B, - PS - Almiro Afonso + Fernando Henrique Cardoso - Henfil - Eduardo Matarazzo Suplicy - Ruth Escobar - Audalio Dantas Mogies de Apoio a0 Ato Publico Promovido pala ANCS 35 - Antonio Resk - Orlando Sampaio Silva - Prof. Jean Jackson - Senador Orestes Quercia ~ Prof. Jorge Zarur - Senador Gilvan Rocha - Pierre Monbeig - Deputado Joao Cunha - Simone Gamelon + Silvio Coelho Santos —- UFSC - Joana Kaplan - José Menezes Bastos - Flavio Bierrenbach - Josefam Antunes de Macedo Abertura do Ato Publico contra a Falsa Emancipacao das Comunidades Indigenas AAssociagao Nacional de Cien- tistas Sociais se sente muito honra- da em ter contribuido para a reali- zagaéo deste Ato Ptiblico contra a Falsa Emancipagaéo das Comunida- des Indigenas. Atendendo ao pedi- do de apoio dos antropdlogos bra- sileiros, situados nas mais presti- giosas instituigées universitarias & de pesquisa, tomamos a iniciativa de reunir neste Ato Publico, junta- mente com os colegas da Comissao Pré-Indio, as mais diversas e repre- sentativas instituigdes voltadas pa- ra as Ciéncias do Homem em nosso pais, personalidades de diversas areas, a fim de manifestar justa indignagao diante de Projeto, que as mais respeitadas instituigdes e personalidades, preocupadas com a situag&o das comunidades indige- nas, reputam de perigosas conse- qiiéncias para seus mais lidimos destinos. A presenga deste imenso publi- co, que sabemos nao ser apenas de Sao Paulo, mas das mais diversas regides do pais, a presenga de re- presentantes das comunidades in- digenas, nos convencem da impor- tancia decisiva deste Ato, mostran- do 0 profundo significado dos mo- vimentos unitaérios pelas lutas de- mocraticas. Porque afinal, este Ato Publico expressa uma demonstra- 940 democratica contra a tendéncia de s6 se decidir por cima, sem ouvir os interesses da comunidade, seja ela qual for. Em contribuindo para este Ato, estamos também realizando objeti- vos estatutdrios de nossa Asso- ciagao, que prevé um esforgo co- mum em defesa das Ciéncias do 38 Abertura do Ato Pabtico contra a Falsa Emancipagao das Comunidades Religiosas Homem em nosso pais contra a generalizada concepcdo tecnocra- tica do saber, onde o Homem, a Comunidade, passam a ser instru- mentos técnicos de uma racionali- zacao, a elas estranha Estamos também dando conti- nuidade ao trabalho de Duglas Tei- xeira Monteiro, nosso querido cole- ga recentemente falecido, um dos principais idealizadores de nossa Associagao e seu primeiro secreta- rio-geral. A meihor homenagem que Ihe prestaremos sera sempre a de procurar congregar todas as ins- tituigdes voltadas para as Ciéncias do Homem na defesa de seus inte- resses comuns. Quero, desde ja, em nome de nossa Associagao, transmitir os nossos agradecimentos aos antro- pdlogos, principais organizadores deste Ato, que séo extensivos aos estudantes da USP, da PUC e de outras universidades, pois nos aju- daram em muitos detalhes. Tam- bém aos jornalistas, a todas as insti- tuigdes aqui representadas, as per- sonalidades de diferentes setores, aos membros desta Mesa e a esse grande plblico, agradecimentos e convicgao de que o fizemos porque o fizemos juntos. Finalmente, nos- sos agradecimentos a Reitoria da Pontificia Universidade Catdlica de $40 Paulo, que teve a grande genti- leza de nos ceder esse grande audi- lério. Em nome de nossa Associagao, tenho a honra de convidar a antro- pdloga Carmen Junqueira para pre~ sidir os trabathos deste nosso Ato Puiblico. Prot. Braz José de Araujo secretério-geral da Associacao Na- cional de Cientistas Sociais - ANCS TUCA, 8/11/78 Apresentacao E um momento muito signiticativo para nés, mas também e principal- mente para as comunidades indigenas do nosso Pais, este em que estamos aqui reunidos, antropdlogos, missionérios e estudantes. Para nos, porque ilustra como a atividade cientifica néo estd desligada de um profundo compromisso com o destino dos povos indigenas. Para as comunidades indigenas, porque este ato pretende ser um dos pontos de partida para mobilizar a consciéncia democratica brasiteira para a melhor satisfagéo das necessidades das comunidades indigenas ¢ para 0 respeito pelo seu patriménio cilltural e material. Creio que este ato 6 tanto mais significativo, porque ele pode demons- trar a unidade dos antropdiogos, missiondrios, estudantes, indigenistas, entim, dos intelectuais do Brasil diante do problema da emancipacao e a solidariedade das instituigdes voltadas para as ciéncias humanas @ sociais que estamos recebendo. Para terminar, gostaria de dizer umas palavras sobre o problema da protecao. O tema da nossa noite 6 0 repudio ao ato que pretende estabelecer, regulamentar a emancipagéo e por emancipagéo devemos entender a cessagao da protecdo. Por que protecéo? As populagées indigenas, cujas cuituras séo diferentes das culturas do nosso padréo, com perspectivas diversas das alimentadas pelo capitalismo, tém, portanto, necessidades também especiticas. Deste modo, devemos pedir a essas comunidades apenas aquilo que elas podem dar. Mas, de nossa parte, devemos dar-ihes 0 40 Apresentago que estiver de acordo com as suas necessidades. Elas necessitam, neste momento e@ a meu ver, de protegao. A Justiga, entéo, deve respeitar efetivamente as diferencas, para tornar- se verdadeiramente justa. Era sé isso o que tinha a dizer (aplausos). CARMEM JUNQUEIRA TUCA, 8/11/78 Vamos aqui examinar rapida- mente o histérico da questéo do projeto governamentai de emanci- pagdo das comunidades indigenas. Em primeiro lugar, é preciso lem- brar que o interesse do Governo em tal medida reflete com limpida coe- réncia, e consagra, toda uma filoso- fia oficial a respeito do lugar e destino dos povos indigenas na so- ciedade nacional. Em marco de 1974, o ministro do Interior, Sr. Rangel Reis, prome- tia enfaticamente criar uma politica acelerada de integragao da popula- gdo indigena, e acrescentava: “achamos que os ideais de preser- var a populagao indigena dentro de seu habitat sao belas idéias, porém irreais’’. Isto foi repetido em outras ocasiées pelo sr. ministro (como na CPI do indio, por exemplo). Dois anos mais tarde, em outubro de Histérico 1976, a mesma autoridade declara que “se nao emancipar algumas comunidades indigenas até o fim do.governo, estaré frustrada a poli- tica indigenista do governo Geisei”’; nessa ocasiao critica ainda o Par- que Nacional do Xingu. Em feverei- ro de 1978, declara que “‘a politica indigenista atual tera fracassado se nao emancipar pelo menos 1 in- dio”. Poucos dias antes, afirmava que a medida'beneficiaria” 200 in- dios, sendo que 100 estariam eman- cipados no atual governo. Meses. depois, chegou a admitir que a emancipagdo podera vir a ocorrer daqui a uns 100 anos. Mas mesmo assim, dia 30 de outubro passado, 0 projeto de de- creto que regulamenta os artigos do Estatuto do Indio que dispoem sobre a emancipagao de comunida- des indigenas foi finalmente envia- 42 da ao Presidente Geisel para que fosse assinado, Ha pressa, como sabemos. Nesses quatro anos que nos separam da primeira declaragao ci- tada, a argumentagao oficial foi gradualmente deixando de subli- nhar o carater de entrave ao pro- gresso econémico nacional repre- sentado pelas populagées indige- nas, e passando a defender o direi- to dos indios participarem piena- mente dos beneficios oferecidos pela cidadania integral. Na CPI do indio em outubro de 1977, 0 minis- tro Rangel Reis declarou que mui- tos indios manifestam o desejo de ser cidadaos brasileiros com plenos direitos, com acesso ao crédito agricola, como os demais agriculto- res, com 0 direito de educar seus filhos como os demais brasileiros”’. Em 13 de fevereiro de 1978, porém, © Xavante Mario Juruna discorda: “Eu nao aceito que o ministro Ran- gel Reis diga que estou pedindo a emancipacao; o indio pode ter sua vida prépria...basta que seja garan- tida a sua terra — o resto a gente sabe. Agora desse jeito que estéo falando, a gente vai desaparecer, a gente vai deixar de ser indio quan- do a FUNAI quiser, para ser apenas um caboclo. Sem garantia nenhu- ma, como qualquer caboclo. Eu sou contra a emancipagdo”. Ja no ano anterior outros grupos indigenas, como os Teréna (depois usados pelo Governo como exemplo de indios “emancipaveis") e os Gaviao do Para declaravam-se contra a em- pancipacado. Em maio de 1978, du- rante a 11° Assembiéia de Chefes indigenas, na aideia Xavante de S. Marcos — e primeira de carater internacional, por contar com in- dios do Paraguai— foi discutidaem Histérico detathe a anunciada emancipacao. A posicaéo geral foi de repudio, ca- racterizando a medida como “um golpe de governo e de outras for- cas, para ficar com a terra do in- dio". Um més antes, no Congresso Indigena em S. Miguel (RS), foi igualmente condenada a falsa emancipacao. Assim, toda vez — e estas nao foram as Unicas vezes — que as vozes indigenas puderam ser ouvidas, manifestaram-se con- trarias ao projeto. As varias declaragées do Minis- tério do interior reiterando sua fir- me disposicao de emancipar as co- munidades indigenas que julgasse capazes ganharam maior concretu- de em fevereiro de 1978, quando se soube da existéncia de uma minuta de decreto de regulamentagdo dos artigos 9°, 10°, 11°, 27° e 29 do Estatuto do Indio. As reagdes nao se fizeram esperar. Em margo de 1978 6 publicado um manifesto de 150 antropdlogos, médicos, lingiiis- tas, repudiando a tentativa de alte- ragao do Estatuto do Indio, por permitir a decisao arbitraria e unila- teral do Estado sobre que comuni- dades deveriam ser emancipadas. O manifesto ressaltava que o que se pretendia, com o projeto, era a abertura de canais legais para que 0 Estado se isentasse da tutela, e de suas responsabilidades, . especial- mente no que se refere a demarca- Gao das terras indigenas (cujo pra- zo: limite previsto por tei se esgota em dezembro de 1978). Durante a Semana do Indio, realizada entre 16 e 19 de abril em S. Paulo, houve amplo debate sobre o problema, aonde se sublinhou que a questo da terra indigena era o ponto cru- cial do projeto de emancipagao anunciado. Nesta ocasido, com a Histérieo presenga de religiosos, educado- res, indios, antropdlogos, juristas, foi lancada a idéia da formacao de uma Comissao Pré-indio, visando divulgar aspectos de ameaga que pesa sobre as populagées indige- nas e angariar apoio ampio. Recor- de-se que ja entéo funcionava a Associacéo Nacional de Apoio ao indio (ANAl), no Rio Grande do Sul. Em junho de 1978, os participantes do simpdésio sobre “A Pesquisa Et- noldégica no Brasil”, realizado no Rio de Janeiro, divulgaram docu- mento aonde expressavam seu de- sacordo quanto ao projeto de emancipacgao e seu reptdio a filo- sofia oficial de tratamiento das mi- norias étnicas e culturais. Em julho de 1978, durante a XXXI Reuni&o Anual da SBPC, os antropélogos e missionarios do Ct- MI ja tinham tomado conhecimento dos termos da minuta do decreto de emancipagao. No dia 15 de julho, durante a Mesa Redonda sobre Po- litica Indigenista, 4 minuta foi dis- cutida, por Dom Tomas Baiduino, Darcy Ribeiro, Lux Vidal e Carmem Junqueira, e @ posicao firmada foi a de repdio unanime a seus termos, repudio este tornado mocao apro- vada na Assembiéia Geral da SBPC e@ enderecada ao ministro Rangel Reis pelo Presidente da Associagao Brasileira de Antropologia. Por oca- siao desta Mesa Redonda, o antro- pdlogo Darcy Ribeiro fez sérias de- ndncias sobre a questao da emanci- pagao, apontando interesses politi- cos fundidrios de carater privado que estariam subjacentes ao proje- to de decreto e & urgéncia com que vinha sendo conduzido. O Ministério do Interior, por intermédio da FUNAI, convidou en- tao varios antropdlogos, juristas, 43 indigenistas, sanitaristas, religiosos para discutir a minuta de decreto em Brasitia, visando”aprimora-la”. Os antropdlogos convidados, e ou- tros, reuniram-se a 26 de agosto em S.Paulo para deliberar sobre a atitu- de conjunta a ser tomada diante da ameaga de aprovagéio do decreto, e da ameaga de sua participagdo na reuniao com os representantes do MINTER e da FUNAI vir a ser usada como caucéo das medidas arbitra- rias do Governo. A minuta do decre- to foi integral e unanimemente re- jeitada, néo apenas quanto a seu contetido — que dava ao Estado o poder de decretar a emancipacao, e que indicava claramente a possibili- dade de uma rapida e eficaz aliena- Gao das terras indigenas — mas também quanto a inoportunidade e pressa com que estava sendo enca- minhada. Elaborou-se entaéo um do- cumento (que esta no cartaz de convocagao para este Ato Publico) visando esciarecer a populagdo ¢ convocar a formacdo da Comisséo Pré-indio. Este documento foi a ba- se do parecer dos antropdlogos na reuniao em Brasilia, e foi apoiado por representantes de varias outras entidades ali também presentes (e inclusive por varios funcionarios da FUNA\). Ao final da reuniao, o Gnico defensor da minuta foi o jurista de MINTER, uma vez que o Presidente da FUNAI encerrou a reuniao reite- rando o que ja afirmava em outras ocasi6es, a saber: que nao ha ne- nhuma comunidade indigena em condigées de ser emancipada atualmente. Em sua esséncia, 0 pa- recer dos antropdélogos defendia o desenvolvimento de mecanismos que permitissem o exercicio de uma tutefa eficaz e responsavel, defendendo também a necessidade 44 de se estabelecer um amplo debate sobre os problemas das popula- gdes indigenas. : Vendo fracassada sua tentativa de obter legitimagao para o projeto, © Ministro do Interior leva assim mesmo adiante seu intento. Trata- se agora da elaboragéo de uma nova minuta, desta vez sigilosa, com cépias numeradas, visando evitar a discussao. O fato iria ser consumado. Diante disto, acelera- se @ mobilizacao geral, especial- mente por parte da Igreja Catélica (o CIMI e a CNBB pronunciam-se vigorosamente contra a medida), a Igreja Luterana mobiliza-se igual- mente, e formam-se as Comissdes Pré-indio do Rio de Janeiro (que realizou ontem um ato ptiblico na ABI, com grande audiéncia e parti- cipagao), de Belém do Paré (que promoveu amplo debate nos dias 19 a 21 de outubro); o Grupo de Estudos da Questéo Indigena de Belo Horizonte acusa o ministro Range! Reis de ter recorrido a um “artificio juridico” para retirar do Congresso o debate sobre o Pro- jeto. Em meio a todas estas reagdes, ressalta a voz da Igreja, através do CIMI e de seu presidente, Dom To- mas Balduino, que em entrevistas a imprensa, afirma ser a emancipa- gao uma forma de genocidio, “Esse governo nao tem autoridade para falar em emancipagao, porque foi um mau tutor”... “Esse decreto sera um decreto criminoso, porém nao sujara as maos de quem o faz, mas sujaré a memoria para sem- pre...” Afirma ainda Dom Tomas que “se 0 governo n&o consegue promover a maioria dos brasileiros marginalizados a um nivel de classe média baixa, avaliem o que fara Histérico com os indios’* Compara a emanci- pac&o indigena com a aboligaéo da escraviddo, aonde os negros foram jogados 4 rua sem _ indenizagao (Jornal do Brasil 24.10.78). Em meio a grita geral, e acredi- tamos algo inesperada aos ouvidos do governo, comegam a surgir na imprensa indicagées sobre o con- teddo do “novo” e sigiloso projeto de emancipacdo. Hoje, finalmente, pudemos ler a exposigdo de moti vos que introduz o decreto. Ele, o decreto, continua sigiloso, como forma de transferir qualquer discus- a0 para quando os fatos estiverem consumados e mais uma vez quere- mos aqui repudiar o autoritarismo que dominou todo este longo pro- cesso, autoritarismo que, por tipi- co, nao pode deixar de ser registra- doe denunciado. Esta exposigao de motivos aparenta ser diferente, em pontos importantes , da minuta publica anterior; e curiosamente, incorpora em sua linguagem ter- mos e@ raciocinios presentes ante- riormente nos pareceres contrarios & minuta inicial. Tomemos um pon- to para exemplo. O estatuto das terras indigenas sempre foi o ponto considerado o mais fragil, o mais visado pela intengéo governamen- tal — e foi o mais violentamente criticado por todos. Outro ponto, os mecanismos de solicitagao/impo- sigéo da emancipacao. Pois bem, o que se 8, na exposi¢ao de motivos? A questao das terras na realida- de 6 e sempre foi central. Pelo que nos 6 dado vistumbrar a partir da exposicao de motivos, esté-se pen- sando agora em promover plebisci- tos locais. Ora, sem falar na facili- dade de se manipular comunidades. indigenas acuadas, o tipo de maio- ria definida na Exposicéo de Moti- Histérico vos 6 ao menos curiosa: trata-se de 2/3 dos membros da comunidade, maiores de 21 anos, residentes no local, que tenham conhecimento da lingua portuguesa, habilitagao para 0 exercicio de atividade util na co- munhao nacional é razoavel com- preensdo dos usos 6 costumes da comunhéo nacional. Em suma, exa- tamente os individuos que ja de- monstram seu interesse pela socie- dade envolvente. Os demais nao opinam, sua opiniao nao vale. No limite, se houver 3 indios nessas condigées, e 2 se manifestarem pe- la emancipagao, a maioria esta obti- da. E, se ouver um 86, haverd talvez unanimidade. E como ficaria a terra? Segun- do a exposicao de motivos, a terra das comunidades emancipadas re- verte a Unido, que podera eventuai- mente, mas s6 eventualmente, doa- las 4 comunidade emancipada, com clausulas de inalienabilidade. Se a 46 primeira alternativa.é uma espo- liagdo clara, a segunda alternativa 6 de consecugdo problematica: pois se a constituigaéo prevé que nao havera disting&o perante a lei entre todos aqueles dotados de capaci- dade civil plena, seja por que atri- butos for, n&o seria inconstitucio- nal se distinguir essas comunida- des tornando-as donatarias de ter- ras inatienaveis? Em suma, talvez nao haja que postular um projeto inalteravel em cada homem, ¢ no Ministro do Inte- rior em particular. No entanto, ha fatos que fazem pensar, e a impres- sao que se tem é que, com o correr dos tempos e dos protestos, o Mi- nistro cedeu em tudo o que nao era essenciai, sua linguagem se mati- zou, suas declaragées de principios se calaram nos préprios termos dos manifestos. Resta o essencial. Eduardo V. de Castro Tuca 8/11/78 Projetos Desenvolvimentistas Referindo-me a um artigo do Jornal “Estado de Sao Paulo" do dia 20 de marco de 1977, sintese de uma mesa redonda, promovida pelo proprio jornal, a possibilidade de emancipar comunidades indigenas, idéia que acabava de ser langada pelo Governo, foi rejeitada por to- dos os presentes, indigenistas, mis- sionarios e antropdlogos, inclusive e de modo categérico, pelo proprio presidente da FUNAI, chegando-se a conclusdo seguinte: “nao é s6 a integragéo do indio & comunhaéo nacional que precisa de tempo. A legislagéo que trata da situagao dessas mirorias no Brasil também exige para ser aprimorada um de- bate paciente e cuidadoso. ‘O que se pedia, publicamente, e através da imprensa, é 0 direito de fazer um levantamento rigoroso da situagao, de apontar solugdes, e de poder defender em bases concretas © que era justo e por outro lado garantido as comunidades indige- nas por lei. Apelamos, naquela época, mais uma vez, ao bom senso, a possibili- dade de um diaiogo, de um trabalho fundamentado no conhecimento, confiando na possibilidade de con- tribuir para a implantacao de uma politica indigenista senao perfeita, pelo menos honesta nas suas inten- ges, e firme na procura de solu- ges vidveis. A nossa meta era me- Ihorar a situagdo do indio, assesso- rando o Tutor para que este possa cumprir a tarefa e o programa que the cabe por lei desincumbir. No més de outubro de 1977, porém,: 0 Ministro do Interior, em discurso proferido durante a CPI do indio esciarece a orientagao da po- litica do governo em relagdo ao 48 Projetos Desenvolvimentistas indio:" aceteragéo do processo de integragéo e emancipacao das co- munidades indigenas" texto publi- cado na revista Ciéncia e Cultura, vol. 3, n° 30 margo 78. Orientagdo governamental que, apesar de to- dos os protestos, apelos, esclareci- mentos, resultou num projeto de decreto-iei que dispde sobre a emancipagao das comunidades in- digenas e encaminhado ao Presi- dente da Republica. Sendo que hoje foi publicado nos jornais a exposigao de motivos que acompanha o Decreto-lei, e onde se assinala que “na verdade n&o se pode pensar na incorpora- Go dos siivicolas a sociedade na- cional, que deve ser progressiva, harmoniosa e sem mudangas brus- cas, se antes nao se oferece as comunidades indigenas condigées adequadas de desenvolvimento téc- nico, econdémico e social, gostaria de mostrar através de trés exem- plos representativos que o que vem acontecendo na realidade 6 muito diferente, e com a exposigao destes casos, alertar também sobre a gra- vidade do Decreto. Projetos Desenvolvimentistas Uma grande parte da Reserva Parakana, no Para, cujos indios contam com apenas sete anos de contato, sera inundada devido a construgéo de uma hidroelétrica. Sem pér em duvida o interesse desta obra gigantesca, estranha- mos, porém, que tratando-se de um empreendimento desta ordem, que implica em grandes investimentos, planejamento, financiamento na- cional e estrangeiro, estudos de hidrografia, ecologia etc., nao hou- ve, no projeto, a minima preocu- pacéo de saber como ficaria a si- tuagao da comunidade indigena a quem parte destas terras perten- cem. Nao ha nada que se refira ao direito desses indios, direitos que Ihes sao assegurados por lei, artigo 20, §3 do Estatuto do Indio, isto é garantir & comunidade indigena re- movida “area equivalente a ante- rior, inclusive quanto as condigdes ecolégicas”. Esses indios Paraka- na, apos uma “pacificagao” ‘das mais desastrosas na histéria indige- nista, estao sendo novamente sacri- ficados, por omissdo, ma fé e falta de organizacdéo. Quando na verda- de tudo poderia ter se resolvido, senao em condigées ideais, pelo menos com menos sofrimento. E quando, ao lado disto, se compara os recursos empregados para a planificagao e a construgao da barragem e a total negligéncia no caso da comunidade indigena, a coisa torna-se uma monstruosidade imperdodvel. O segundo caso é 0 seguinte: 0 grupo Gavido do Para, perdeu as suas terras ha mais de quatorze anos, chegando a beira da extin- Gao. Foram recolocados em uma area, que hoje |hes pertence, rica em castanhais, a beira de uma es- 49 trada. Durante doze anos foram ex- plorados, pela propria FUNAI, como mao de obra barata na extragdo da castanha do Para. Tendo conquis- tado, apesar de muitos obstaculos, sua autonomia interna, e ainda pro- curando se adaptar a esta nova e dificil situag&o, chega-nos a noticia de que o territério Gavido sera cor- tado por uma linha de transmiss4o @ para isso sera desmatado um corredor de .vinte km de cumpri- mento e cento e cinglenta metros de largura, com estradas de acesso etc. Esse desmatamento representa uma terrivel perda para os indios € de conseqiéncias imprevisiveis. Perguntamos: sera que como j& aconteceu em outras ocasiées, serao langados pesticidas e inseti- cidas, nesse corredor, para impedir © crescimento de qualquer vege- tagéo? Sera que a 500 metros do. territério cogita-se na construcéo. de uma vila de sustentagéo com mais ,de duas mil pessoas? Sera que era absolutamente necessario que esta linha de transmissao pas- sase pelo territério indigena? Ou poderia ter passado um pouco mais ao sul ao longo da transamazéni- ca? E se a linha de transmissgo passando pelo territério Gavido é a solugaéo mais econémica, qual teria sido 0 custo do desvio que propo- mos, € qual a proporgdo deste cus- to comparado ao custo global do complexo hidroelétrico e ferrovia- rio Tucurui-Carajas? E a FUNAI nada fez, depois de tantos anos de autoritarismo em assuntos internos e de exploracao do trabalho indigena, nada fez para impedir esta espoliagdo do patrimo- nio indigena. Existem, porém, métodos ainda mais eficientes para acabar com as. 50 comunidades indigenas, e so jus- tamente aquelas que constam tam- bém na exposi¢éo de motivos do Senhor Ministro. Trata-se do desen- volvimento econémico das comuni- dades indigenas. Diz o texto: “os projetos de desenvolvimento darao mais eficdcia a tutela, a emancipa- Gao 2 a integragdo poderao vir co- mo conseqiéncia. Esta pode tor- nar-se a pior das armas, para a desorganizagao de um grupo, por- que destréi as comunidades por dentro, atingindo a organizacao e divisio do trabalho tradicionais, exacerbando fac¢ées e disputas in- ternas. Os unicos projetos vidveis s40 .aqueles desenvolvidos pela propria comunidade, por iniciativa dos pro- prios indios, podendo contar com uma assessoria e apoio adequados. O exemplo mais triste e recente 6 © projeto imposto aos indios Bo- roro de Tadarimana. Nenhum proje- to da FUNAI até agora teve resulta- dos satisfatérios, mas os economis- tas da FUNAI insistem que este projeto tem que dar certo quer os Indios queiram ou no. O chefe de posto ficou como gerente de cam- po do projeto, sendo os indios sim- ples executantes. Chegou um tra- tor, e os indios querem usar o trator para ir pescar e pegar lenha, insta- laram uma cantina que distribui va~ les aqueles que trabalham na roga do projeto, de tal a tal hora. Os indios recusam de plantar milho num tal lugar, mas o projeto diz que tem que plantar milho naquele lu- gar, indio vai aprender a plantar milho! O artesanato deve ser vendi- Projetos Desenvolvimentistas do & cantina do projeto para amor- tecer as dividas advindas das com- pras na cantina, mas que na verda- de sé deveriam ser pagas na época da colheita. As lojas de Rondono- polis foram avisadas de nao com- prar artesanato dos indios. Chegou uma perua, mas como o gerente de campo, alias chefe de posto e tam- bém motorista se ausenta bastante, continua-se a pedir favores as fa- zendas circunvizinhas para o trans- porte de doentes. A situagéo é grave e fere o propésito alegado, um projeto de integragdo, e esta provocando jana sua imptantagdo exatamente o con- trario. Cerca de trinta pessoas estéo pensando em sair da aideia, e so justamente aqueles que melho- res condigées teriam para iniciar um projeto comunitario, mas pro- movido pelo préprio grupo. E assim que os indios acabam se dispersan- do, abandonando suas terras e sub- metidos a total desorganizagao cul- tural, se marginalizam. Demos trés exempios do que est4 realmente acontencendo, mas existem centenas de casos tao gra- ves sendo mais, O que finalmente nos revolta é que este decreto-lei foi elaborado sigilosamente, por pessoas que desconhecem totalmente o assunto e@ que nunca assumiram compro- misso nenhum com a causa indige- na, Este decreto-lei é ura farsa. LUX VIDAL TUCA 8/11/78 indios do Sul do Brasil Hoje, quando em todo o mundo. revitalizam-se movimentos destina- dos a valorizacao de etnias, quando © processo de descolonizagaéo nao apenas permanece entendido como destinado a liberar nagdes, mas, e principalmente, povos que nao tem acesso aos meios de comunicagao para dizer que estéo presentes, quando luta-se em diferentes fren- tes para encontrar formulas de rela- cionamento simétrico entre as nag6es; quando anseia-se por con- digdes de vida mais dignas para todos os explorados; quando, neste pais, forgas cada vez mais podero- sas clamam pelo fim da excessao, do arbitrio e do autoritarismo, reu- nimo-nos com 0 objetivo especifico de trazer a ptiblico a tragédia do homem indio. Tragéida vivenciada por cerca de 200 mil individuos. Tragédia que agora deseja-se transformar em et- nocidio, através da implantagdo de um projeto de decreto que tornara 0 indio nao-indio. Ou seja, que tor- nara o indio “cidadao pleno” deste pais, incorporando-se a pelo menos outros 60 mithes de pessoas que tem padrao de vida miseravel, de- corrente dos baixos saldrios que conseguem auferir. Como ninguém Pode acreditar que se possa trans- formar pessoas, nem realidades so- ciais, por decreto; nem tampouco. que interesse aos indios ter acesso a situagdes que se desejadas eles efetivamente j4 possuem (refirmo- me, por ex. a obtencaé de registro civil; carteira de trabalho ou tituio de eleitor), temos de pensar sobre o que efetivamente ha como moti- vacéo para o esforco que se esta realizando no ambito oficial para implantar 0 malfadado e inoportu- No projeto de emancipagao. A realidade indigena da regio sui pode oferecer alguns dados es- clarecedores do interesse oficial. Nessa regiao o DGPi, DGO, e a Asplan, 6rgaos da FUNAI, disputam a exploragdo do patriménio indige- na, através de siglas como CPI e Prodec, Somente em madeira, o DGPI espera obter a receita de Cr$23.077.000,00 no corrente ano. Projetando-se a precos reais, vigen- tes na regio, este valor passara, entretanto, para o dobro pelo me- nos. Em Ibirama (SC) cerca de Cr$ 11,800.000,00 no minimo so devi- dos aos indios peta ocupacao de suas terras pelas aguas formadas pela construgao de uma barragem de. regularizagao do rio Hercilio. E em toda a bacia do Uruguai cerca de 11 areas indfgenas estao sujeitas a serem afetadas pela implantacéo de um complexo de barragens, des- tinadas a geragao de energia elétri- ca, projetada sob a responsabilida- de da Eletrosul. Foram também os indios da regido sul que comegaram o pro- cesso de expulséo dos posseiros que intrusavam suas éreas. Agora as terras estao livres. Parece muito claro que ao apoiar os indios no processo de expulsao dos intrusos, © Governo nao pretendia efetiva- mente deixar aquelas terras nas suas maés. Parece-me, que ai resi- de toda a motivagao do projeto de emancipagao. Segundo noticia do O Estado de Sao Paulo, de 20/09/78, 6 Conselho de Seguranga Nacional efetivou investigagGes nos postos indigenas da regiao sul e sugeriu & FUNAI que alterasse aspectos de suas agées, junto aos indios. Ora, 6 este mesmo Conselho de Segura- nga Nacional que agora 6 proposto para participar do processo de defi- Indios do Sul do Brasil nigaéo da politica indigenista do pais. Também o Ministro do Inteior, Sr. Rangel Reis, oferece algum e: clarecimento sobre o sigiloso proje- to, ao adiantar a imprensa (Folha de S.Paulo, 31/10/78) que “as terras nas quais vivem os indigenas eman- cipados continuarao pertencendo a unido” ... @ que “pensamos (...) em considerar inalienavel a terra doada peta uniao ao indio, mas me parece que depois de emancipado, em ple- no gozo dos seus direitos civis, essa medida parece violar (sic) os direitos humanos dos indios”. E evidente que a Unia&e nao deseja admitir que as terras de um posto indigena como Nonoai (RS}, por ex., com seus 14.910 ha., per- manecam livres e desembaragadas nas maos dos 1.156 indios que ali vivem. A idéia da Uniao certamente é a de outorgar a cada familia indi- gena um lote, digamos de 3,10 ou 30 hs. Em Nonoai existem cerca de 220 familias, o que na pior das hipéteses liberaré a area de 8.310 ha para a Unido. Ora, 0 que pensam os indios disto? Posso garantir que os indios do sul estéo cansados da servidaéo a que se acham reduzidos,.pela inca- pacidade da FUNAI em aplicar a lei e@ pela montagem ostensiva de um aparetho burocratico para explorar © patriménio que a eles pertence legitimamente. A FUNAI, como ou- trora, cabem criticas extremamente severas. Mas, os indigenas estao cada vez mais cientes de seus direi- tos e de modo algum pretendem abdicar de suas terras e da ajuda que o Governo Ihes deve para que continuem como povos diferenca- dos. Para esta juta todos presentes a partir de agora estao convocados. Indios do Sul do Brasil O indio tem direitos definidos na legislagao do pais. Tem direitos também previstos na legislagao in- ternacional, da qual o Brasil é sig- natario. Ele também tem o direito de deixar de ser indio, se quizer. Entretanto, toda decisdo deve partir dele e n&o ser outorgada a ele. Afinal o indio tem que passar a usufruir um direito dele e nao um direito sobre ele, que |he tolhe to- das as agdes. Creio, pois, que 6 necessario repensar o Indio no discurso oficial. 83 E para tanto, é preciso repensar toda a Nagao brasileira, tornando-a pluralista, multi-étnica, pluri- nacional e efetivamente democra- tica. Sabemos, que o projeto de emancipagao em nada contribui pa- ra o indigenismo que efetivamente desejamos, nem tampouco traré vantagens reais para os indios. So- mos, portanto, pela sua rejeic&o. ,Silvio Coelho dos Santos Tuca, 8/11/78 A proposta recente do Governo em regulamentar alguns artigos do Estatuto do Indio (Lei n° 6001, de 11/11/73), precisamente aqueles que dizem respeito a emancipagao e & posse das terras, trouxe nova- mente @ ordem do dia a questéo indigena, mobilizando a imprensa, entidades de classe e érgdos aca- démicos e cientificos. Desnecessa- rio dizer-se que a idéia da emanci- pagdo, por mais generosa que ela possa parecer, entra em conflito com os lineamentos basicos de uma politica indigenista que pre- tenda assegurar ao indio assistén- cia @ protecao. Com uma certa insisténcia tem- se utilizado os indios Teréna como exemplo de “indio emancipavel”, a saber aquele remanescente indige- na que, individual ou coletivamen- te, teria tudo para competir em Terena igualdade de condigées com seu vizinho alienigena, comumente chamado ‘‘civilizado". Possuindo condigées efetivas de competi¢ao e desejoso de se emancipar, o indio teria de ser atendido pelo Estado, que assim estaria igualmente reali- zando um ato de justi¢a. Aceitas as premissas, a conclusdo nao poderia ser outra, Entretanto, 0 que desejo pon- derar é que nem 0 indio Teréna tem e teria condigdes de competir em igualdade de condi¢gées com 0 alie- nigena, nem esta ou estaria reinvi- dicando sua emancipacéo — ao menos em termos coletivos, como grupo. Pretendo mostrar que as premissas séo falsas, e 0 uso dos Teréna para justificar a emanci- pacgao nao passa de um sofisma. Vejamos, em primeiro lugar, a emancipagao individual. A expe- 586 riéncia de observagao da realidade Teréna, demonstra que até agora nao tem sido necessaria nenhuma legisiagdo especial para que as au- toridades municipais, estaduais ou federais reconhecam como efetiva- mente emancipados indios que possuam carteira de identidade, se- jam eleitores e, por conseguinte, alfabetizados (sendo que, para os homens, ser reservista ainda 6 uma importante condi¢ao para que seja reconhecido como “civilizado"’). Is- so significa que é suficiente obter quaisquer desses documentos para que 0 indio possa ser reconhecido, formalmente e para efeitos prati- cos, um membro da sociedade na- cionai, com seus direitos e deveres, Ora, 0 que tem ocorrido — indepen- dentemente de qualquer legislacao especial — 6 que para esse indige- na “documentado” o que lhe 6 dificil comprovar é sua identidade indigena, sobretudo quando resi- dente fora de reservas indigenas, posto que a tendéncia das autorida- des — inclusive a prépria FUNAI — é ver nele um ex-indio, alguém que ja obteve a plenitude dos direitos e, sobretudo, dos deveres do cidadao. Isso é tao verdadeiro quanto pode comprovar a existéncia de um ve- reador Teréna, varios missionarios evangélicos também Teréna e um razoavel ntimero de pequenos em- presdrios igualmente Teréna, além de funcionarios publicos, comer- ciantes, etc., que nao tiveram ne- cessidade de qualquer regulamen- tacao de lei para lograrem “emanci- pagao” individua! — e isso s6 para nos limitarmos a exemplos Teréna. €stariam esses indios “emanci- pados” em iguaidade de condi¢goes com os regionais alienigenas? Evi- dentemente que nao. Salvo um ou Terens outro caso individual, onde a pro- pria identidade indigena passa a ser manipulada por seu portador com o objetivo, por exemplo, de atrair vo- tos de seus patricios aideados e urbanizados (0 caso do vereador), os demais lutam contra o precon- ceito étnico, contra a discriminagao de que sao vitimas, uma vez ser quase impossivel fugirem ao estig- ma de “bugre"”. Como identidade atribuida a eles petos regionais, “Bugre" € uma categoria étnica que sintetiza tudo o que ha de negativo para o indio, mostrando-o aos alienigenas e muitas vezes a si proprio como um poco de esteredti- pos de tal forma contraproducentes ao desempenho de seus papéis so- ciais que o maior esforgo desses Teréna “emancipados” é mistificar, encobrir, sua identidade étnica, sem, nao obstante, conseguir. Re- sultado: para a sociedade regional 0 Teréna, emancipado ou nao, sera sempre “bugre"; para as autorida- des, o Teréna possuidor de “docu- mentos" e nao residente em reser- vas, nao encontra facilmente uarida na protegdo do Estatuto do Indio. Sua situagao é extremamente ambigua e nao estara menos carre- gada de ambigiidade com a con- cesséo governamentai de um equi- voco status de emancipado. Mas a situagao mais equivoca nao esta aqui, mas na emancipacao coletiva. Isto 6, a emancipacéo de uma comunidade indigena determi- nada; no caso de que se esta tratan- do aqui: os Teréna. Embora nao saibamos ainda se se trata da co- munidade Teréna como 0 conjunto de seus grupos-locais — que vao a mais de uma dezena — ou de gru- pos-locais especificos, a saber “‘al- deias” e nao o grupo tribal em sua Terena 87 e @ o °é ° ° 0 8 tae 0 Bo eye oars totalidade, o certo é que a chamada capacidade empresarial dos Teréna (considerada como um dos indica- dores mais expressivos para sua emancipagao) esta presente num numero reduzidissimo de indivi- duos. Se é verdade que ha peque- nos empresérios indigenas, com suficiente iniciativa para se utilizar — ainda que com variavel eficiéncia — das regras do jogo econdmico imperante na sociedade regional alienigena, ha uma imensa maioria cuja unica chance — se emancipa- 58 da — sera atrelar-se as camadas menos favorecidas da sociedade nacional. Uma emancipacao nessas circunstancias representaria a insti- tucionalizagéo de uma estratifica- ao social altamente lesiva aos inte- resses indigenas, uma vez que seria uma cunha a mais a dividir, e por suposto, desorganizar a vida tribal. Por todas essas razdes, entre muitas outras que poderiam ser avocadas caso pudéssemos nos alongar nessas consideragées, a emancipacaéo, mesmo quando apli- cada a grupos tao aculturados co- mo os Teréna, néo se justifica. A aplicagao da legisla¢ao protetora — 0 Estatuto do Indio — tem estado aquém das necessidades urgentes dos grupos tribais, seja no que diz respeito a assisténcia de que neces- sitam, seja relativamente & demar- cago de seus territérios. A emanci- Terena pacaéo podera gerar pelo menos duas conseqiéncias as populagdes indigenas: primeira, sera coloca-tas ao desabrigo da Lei 6001, isto é, da tutela consubstanciada no Estatuto do Indio, a saber Ihes serd tirado 0 status legal de indio, sujeito a uma lei especial, protetora, que sera ne- gada a grupos tribais inteiros, con- siderados — por critérios discuti- veis — “emancipaveis". A segunda conseqiéncia a se temer refere-se a questéo das terras que se nao se mantiverem juridicamente inaliena- veis e impenhoraveis, ao mesmo tempo que destinadas ao usufruto coletivo, isto é jamais fracionadas, tais terras Ihes serao irremediavel- mente alienadas por empresarios alienigenas, moradores préximos ou distantes das areas indigenas. Roberto Cardoso de Oliveira Tuca, 8/11/78 Nambikwara “Entendemos por Nanbikwara os diversos grupos indigenas que, ligados por parentesco ou afinida- de lingiistica, se localizam a No- roeste de Mato Grosso, préximo ao territério de Rondénia. As duas dezenas de aldeias com um total de pouco mais de 600 individuos — a décima parte dos que existiam no inéio do século — encontram-se em duas areas total- mente diferentes quanto as caracte- risticas ecolégicas, legais e situa- Gao de contato com a populagao envolvente: uma é 0 cerrado semi- érido a margem direita da estrada Cuiabé-Porto Velho, BR 364, na al- tura do km 650, reserva indigena desde 1968, posteriormente dimi- nuida por decreto e, sem intrusos dentro da area, salvo possivelmente num trecho junto a estrada, onde os limites n&o estéo bem definidos (um pequeno ocupante no interior da area foi expulso desumanamen- te); outra 6 0 fértil Vale do Rio Guaporé, confrontando com a ante- rior, com apenas uma pequena érea interditada e uma dezena de estu- dos e projetos de antropélogos ou funciondrios da Funai, numa tenta- tiva sempre frustrada de delimitar uma ou mais areas para os indios. A &rea est4 totalmente tomada por projetos agropecudrios, a maior parte deles gozando de incentivos fiscais carreados da Sudam ou de outros érgdos, que sé os liberam quando a Funai, mediante certidées negativas, atestar a nao existéncia de indios na respectiva area. A po- pulagéo fixa ou flutuante dentro da terra dos indios atinge a varios mi- ihares de pessoas em contato indis- criminado com os mesmos. As duas areas em questao retratam também 60 a ambivalente atitude da Funai: for- te e prepotente com os fracos; débil @ pusilanime com os poderosos grupos econémicos ou simples pessoas ligadas a esses grupos. Vamos enfocar, de modo espe- cial, a situacéo dos indios que se encontram no Vale do Guaporé. E uma situagdo grave! Talvez esta seja uma das Ultimas oportunida- des que temos de denunciar esta situagéo. Dentro de pouco tempo, os indios ja terao morrido. Tal é a situagao desses indios que o médico sueco Bo Akerrén, membro da Comisséo da Cruz Ver- melha Internacional, ao chegar ao Vale do Guaporé, disse: “A vida destes indios 6 uma vergonha nao 86 para o Brasil, mas para a huma- nidade"’. (Diario de Brasilia, 28/3/1973). E para que isto nao parega uma calunia levantada por estrangeiros, como se costuma dizer, é bom lem- brar as palavras do superintendente da Sudeco, Nelson Jairo Faria: “A situagdo dos Nanbikwaria so é comparavel 4 dos exilados da Bia- fra’’. (Correio Brazitiense, 10/9/1974). O exterminio dos indios Nan- bikwara vem de longa data, quando eram dizimados as dezenas por ra- Jadas de metralhadoras, segundo denuncia feita pelo ex-funcionario da Funai, Ramis Bucair. (J. do Bra- sil, 28/4/1968). Mas, por incrivel que pareca, foi a partir do aparecimento do Gen, Bandeira de Melo, que esse exterminio se tornou oficial, me- diante o fornecimento de certidées negativas autorizando a implanta- Gao de projetos agropecuarios na terra dos indios. Essas certidées negativas tém sido o aval do érgao de protecdo ao indio para que os Nembikwre incentivos fiscais — dinheiro do povo — sejam aplicados contra a camada mais desprotegida do pré- prio povo, os indios. Seria longo, enfadonho e nau- seante repetir, aqui, a lista de pes- soas fisicas ou juridicas que rece- beram certidées negativas da Fu- nai. Isto ja o fizemos no ano passa- do, ao depor na CPI do Indio e pode ser lido no Diario do Congresso Nacional de 17/6/1978, pag. 95. Mas nunca 6 demais relembrar que um dos contemplados por essas certi- dées foi o proprio filho do entéo Ministro do Interior, Costa Caval- canti, responsavel indireto, quando nao direto, por todos os desmandos. da gestéo Bandeira de Melo, de quem ja foi dito que “criou a manei- ra mais rapida e eficaz de extinguir 0 indio brasileiro”. A denuncia des- sa facilidade de pai para fitho jé nos custou até uma humilhante passa~ gem pela delegacia da Policia Fede- ral em Cuiaba. Em novembro de 1973, durante © Simpésiro Funai-Missdes, tenta- mos levantar a problematica em que se encontravam os indios Nan- bikwara, mas o entéo superinten- dente da Funai, auxiliar imediato do Gen. Bandeira de Melo e hoje presi- dente do Orgao, Gen. Ismarth de Araujo Oliveira, numa das suas ha- beis escamoteacdes da verdade, alegou n&o estar a par do que acon- tecia com esses indios, 0 que moti- vou a retirada de varios missiona- rios do recinto do simpésio, como protesto a essa fingida e vergonho- sa “ignorancia”’. Um ano mais tarde, o Gen. is- marth, ja presidente da Funai, anuncia a interdigéo de uma area no Vale do Guaporé e dizia ser “a maior vitoria de sua administragao Nambikwére (O Estado de So Paulo, 7/9/1974). Foi uma vitéria apenas aparente, uma vez que essa interdigao nao se manteve sendo reduzida a décima parte e os intrusos permaneceram dentro da area dos Indios. No ano passado, quando visita- dos por jornalistas e deputados da CPI do Indio, os Nanbikwéra se queixaram de nem sequer terem Agua para beber, pois estavam po- luidas por estrume de boi. Isto esté acontecendo a poucos metros da sede da Agro-pecuaria Vale Guaporé S/A, que possui até banheiro de acrilico e outras sofisti- cagdes como aviao somente para servi¢o interno. Esta fazenda de 100.000 ha. pertence a José Luiz Zilo, diretor secretario da Cooper- sucar, que até se da ao luxo de aceitar (ou aplicar) apenas uma par- te dos incentivos fiscais, Tomo a liberdade de ler algu- mas linhas do meu depoimento na CPI do Indio. “Hoje, os indios se encontram junto as fazendas, que se implanta- ram no Vale do Guaporé. O caso mais doloroso € 0 dos indios que vivem ou vegetam na total depen- déncia da Fazenda Agropecuaria, impossibilidade de se livrar dos in- dios por meios mais diretos, optou por um plane de genocidio por descuido intencional. Uma bem equipada enfermeira, na sede da fazenda, fica a menos de 500 metros da aldeia indigena; en- tretanto o administrador da fazen- da, Sr, Max Mosman, suigo, a partir de fins de 1975, proibiu que a enfer- meira atendesse os indios. Em come¢o de 1976, j4 haviam morrido duas indias. Uma delas mae de trés criangas. As duas in- dias morreram apenas de gripe. 61 Denunciamos estes fatos a opi- niao publica... para ver se a Funai tomaria alguma providéncia. Isto nos custou ameaga de morte e es- pancamento por parte do Sr. Max Mosman". (Diario do Congresso Nacional, 17/6/78, pp. 95-96). Para justificar 0 fornecimento de certidées negativas durante sua gest&o, o primeiro presidente da Funai, José de Queirés Campos, informou, em seu depoimento na CPI do indio, que ele ignorava a presenca do indio nessa area. (Did- rio do Congresso Nacional. 17/6/1978, pag. 152). Posteriormente a Funai desco- bre o erro, isto é, descobre que havia indio na area mas o forneci- mento de certidées negativas conti- nuou. Na tentativa de salvar os Nan- bikwara de uma morte certa, a Fu- nai procura transferir os indios do fértil Vale do Guaporé para o arido cerrado ou do Norte para o Sul da mesma area. Tudo resultou num fracasso porque os indios contrai- ram varias doengas, como o saram- po, que vitimou toda a populagao infantil de uma aldeia, sem contar os adultos que faleceram. Os indios tentam voltar para suas terras. Perambulam desnudos @ famintos pelas estradas, como eu os pude ver ainda em fins de 1976, mas suas terras esto tomadas. Cria-se, entao, uma das mais violen- tas situagdes de contato interétni- co, que, no dizer do antropdélogo Pedro Agostinho “‘é das coisas mais compulsivas e mais violentas a que jA assisti.’ (Diario do Congresso Nacional, 17/6/78, pag. 227). O mesmo antropdlogo no seu depoimento na CPI do Indio refere- alguns fatos para ilustrar essa si- 62 tuacdo: os trabalhadores de uma das fazendas pertencente ao grupo Bamerindus Agropastoril embebe- dam os indios de uma aldeia para depois violentarem as mulheres; a Fazenda Sapé-Sararé langa desfo- thante de aviao que arrastado pelo vento foi atingir parte dos manga- bais dos indios. As queimadas a perder de vista destruiram milhares de espécies vegetais, o capim se- meado de avido invade a lavoura dos indios, a caga desaparece e o peixe morre(...). Para terminar, sirvo-me das pa- lavras dos antropélogos convoca- dos pela Funai para estudar o pro- blema Nanbikwara: Nambikwéra © Vale do Guaporé esta, hoje em dia, praticamente, nas maés de particulares, quase todos com certi- dées negativas da propria Funai, confirmando a auséncia de grupos indigenas na area. Isto mostra que nem a lei nem a propria Consti- tuigdo foi observada e os érgdos aos quais competia a execugao da lei nao tinham o Poder ou interesse de cumpri-la. E concluem: A si- tuagdo do indio Nanbikwara é uma vergonha nacional". (O Estado de So Paulo, 28/10/75)". Pe, Antonio lasi Tuca, 8/11/78 Este depoimento sobre os indios Yanomami faz parte da luta em- preendida por cientistas, religiosos, sertanistas, artistas, jornalistas e outras pessoas sensiveis a proble- matica do Indio. Ela representa a luta pela sobrevivéncia fisica e cul- tural de um povo de 16.400 indige- nas que habitam a regido fronteiri- Ga Brasileiro-Venezuelana, dos quais 8.400 Yanomami vivem no Brasil. Conhecidos por missées cientificas desde 1787, isolados até 1973 devi- do as dificuldades de acesso aquela Area, a maioria dos yanomamis en- contram-se ainda hoje em estado de semi-isolamento. Desde 1974 o territério Yanomami, no Brasil, co- meca a ser seriamente ameagado por interesses econémicos da so- ciedade envolvente. € particularmente urgente tomar Yanomami medidas que protejam esses indige- nas do exterminio fisico e cultural. A seguir uma reconstituigaéo dos acontecimentos desde 1974: 1. 1974. Abertura da rodovia BR-210, Perimetral Norte. As equi- pes de construgéo sem nenhum esquema de controle de satide pe- netram macicamente na area tra- zendo inumeras epidemias de gri- pe, sarampo, doengas venérias, tu- berculose e doengas de pele. Em conseqiéncia desse contato, nos primeiros 130 km do trecho Caracarai-icana (Territério Fed. de Roraima-Estado de Amazonas) de- saparecem 13 aideias com aproxi- madamente 650 indigenas. Os pou- cos individuos remanescentes des- sas aldeias, aproximadamente 15% da populagao original da area, vi- vein hoje maltrapilhos e em estado de degradacao cultural e psicolégi- ca na beira da estrada. 64 Yanomami “s Yanomemi” 2, 1975. Garimpeiros invadem a regiao da Serra das Surucucus. (Territério Federal de Roraima) no lugar de maior concentragao indi- gena (76 aldeias, 3800 indios). Esse contato, mais uma vez, além de trazer os mesmos prejuizos de sat- de aos indigenas, acaba provocan- do sérios conflitos fisicos entre in- dios e garimpeiros. 3. 1976-77. Um periodo de rela- tiva trégua para os Yanomami. As autoridades federais determinam a evacuacdéo dos garimpeiros e os trabalhos da rodovia BR-210 sao interrompidos por dificuldades eco- némicas. 4, 1978. A Companhia de Mine- ragao Vale do Rio Doce assina um convénio com a Fundagao Nacional do Indio para explorar industrial- mente uma jazida de casseterita na regiao da Serra das Surucucus an- teriormente explorada pelos garim- peiros. Foi anunciado o ingresso, a curto prazo, na area, de 300 funcionarios da mineradora sem que tenha sido anunciada qualquer medida visan- do a vacinagao dos 3800 indigenas da area. Pode-se deduzir que isso equivale, de fato, ao exterminio dessa popu- lagao. — Est&o sendo reiniciados os trabalhos da rodovia Perimetral Norte e a entrega dos trechos cons- truidos & colonizagdo. Equipes de topografia contratados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonicagéo e Reforma Agraria) percorrem o territério Yanomami demarcando lotes para colonizagao situados em 4reas sabidamente indigenas. — O presidente da FUNAI ( Fundagao Nacional do indio } con- temporaneamente declara de ocu- 65 pagao dos indigenas 21 dreas “ilhas” que desmembram o territé- tio tradicional Yanomami liberando para a colonizagao 65% do mesmo em forma de corredores que cer- cam as diminutas areas indigenas. Essa diviséo do territério tribal, além de provocar a desorganizacao. das comunidades indigenas, tam- bém causard inevitavelmente a des-. truigéo do ambiente ecolégico in- dispensavel a sua sobrevivéncia. Se n&o forem tomadas medidas imediatas, os Yanomami seraéo condenados a extingdo. $6 podemos compartilhar da grande revolta do eminente an- tropdlogo Brasileiro Darcy Ribeiro que assim escreve: “Estou seguro de que muitos brasi- ieiros vao corar de vergonha, amanha, por terem tido, ontem — hoje, quero dizer — antepassados téo brutos como nés. Temo tam- bém que muitos homens humanos no mundo inteiro ja estejam nos olhando assustados. Por que tanta violén- cia contra indios indefesos? Qual 6 @ fonte de tanto desamor aos homens? Que sera dos Yanomami?" Yanomami. — Um depoimento so- bre os indios Yanomami, Darcy Ri- beiro, 1978. (1) Estas 13 aldeias foram plotadas em 1970 pelo lingiiista Ernesto Mi- gliazza da Universidade de Indiana e em 1972 pelo levantamento aéreo- fotografico do Projeto RADAM- Brasil. Em 1977 o desaparecimento das 13 aldeias foi comprovada por um levantamento aéreo da FUNAI (Fundagao Nacional do Indio). Claudia Andujar —Tuca, 8/11/78 PIMENTEL BARBOSA O governo Geisel est chegan- do ao seu final, sem ter divulgado 0s resultados da cémissao de in- quérito aberta pelo Ministério do Interior para apurar a questéo das terras da reserva indigena de Pi- mente! Barbosa, area Xavante que foi delimitada de forma fraudulenta por uma equipe mista Funai/Minter. Alegando que parte da ‘drea seria cortada pela rodovia Br-080, a Brasilia-Manaus, no trecho com- preendido entre Xavantina e Ca- chimbo, esta comissao propés a redugao da area reconhecida como habitat desses indios, sugestao en- dossada pelo presidente da Funai e transformada em decreto pelo pre- sidente da republica. Logo apés a liberagao da area, onde passaria a rodovia, foi imedia- tamente ocupada por fazendviros e Xavante 0s indios foram presenteados pelos empresarios, entre eles o ex- funcionario da Funai, Vaidenio Lo- pes com uma caminhoneta e varias cabegas de gado. No inicio deste ano, em decor- réncia das press6es feitas pelos indios e indigenistas e com a cons- tatagao de que a rodovia, na verda- de, nao havia cortado a area indige- na Xavante, o presidente da Funai decidiu pedir a abertura de um in- quérito, colocando-se como réu Ele afirma que, na ocasido, acredi- tou na boa fé dos mernbros da comissao. Até agora, no entanto, o resul- tado do inquérito nao foi divulgado, embora todos os depoimentos ja tenham sido colhidos dos princi- pais envolvidos. Atuaimente a area Xavante ja esta inteiramente ocupa- da por empresas agropecuarias e 68 teme-se, com razao, que 0 proble- ma seja jogado para o proximo governo, que a exemplo dos ante- riores reconhecera a delapidagao do patriménio indigena como “um erro cometido por administragoes passadas", lavando assim as suas maos, como ocorreu com 0 caso envolvendo a venda ilegal das ter- ras dos indios Nnambikwara, no Vale do Guaporé. COUTO MAGALHAES — area Xa- vante — Massacrados em 1951 na aldeia de Parabubu por inimigos brancos os indios Xavantes da regiao do rio Couto Magalhaes, durante varios anos, tiveram que se refugiar junto a Missao Indigena de Sao Marcos, onde viveram até 0 inicio da década de 60. A partir dessa 6poca, as familias sobreviventes comegaram a retornar A sua terra de origem, j4 entaéo transformada em area devo- luta pelo governo do Mato Grosso e titulada como propriedade de fa- zendeiros da regiao. Em 1973 0 governo, depois de uma prolongada época de tensdées entre indios e fazendeiros, criou a reserva Couto Magalhdes, destina- da ao grupo Xavante da area, terras. com 10.000 hectares, dezoito vezes menor que o seu territério tradicio- nal. Posteriormente, depois de va- rios conflitos, foi anexada uma fai- xa de mais 13.500 hectares, situada a margem direita do rio. Qs indios, no entanto, ficaram confinados em uma regiao de terra pobre, sem as matas necessarias para as suas atividades de caga e coleta. Enquanto isso, a Funai con- Xavante cedia certiddes negativas da pre- senga de indios para grandes fazen- delros que foram se instalando exa- tamente na area Xavante mais rica que ficou fora dos limites da re- serva. Estes fazendeiros, principal- mente os responsaveis pela Fazen- da Xavantina S/A, com quase 200 mil hectares nao tem respeitado os sitios arqueolégicos das antigas al- deias, destruindo cemitérios e apa- gando vestigios da ocupagao ime- morial do territério pelos Xavantes. Os indios, hoje em dia, nao relvindicam mais a totalidade de seu territério mas apenas a faixa de terra ao longo da margem esquerda do rio Couto Magalhaes. Isto por- que, n&o so os tratores tem destru: do os cemitérios mas também por- que 0 crescimento populacional re- gistrado nos Ultimos anos — 50% da populagao tem de 0-a 12 anos — exigira uma area mais ampla para o pleno desenvolvimento desta co- munidade. Esta pretensao, no entanto, es- té ameacada e o clima continua tenso na regiao pois a area preten- dida ja estaria sendo loteada pela Fazenda Xavantina S/A, conforme denuncia feita pelo indio Xavante Gustavo e pela antropéloga Aracy Lopes da Silva durante as comemo- rages da Semana do Indio em abril deste ano, em Sao Paulo. Nesta ocasiao, o presidente da FUNAI prometeu uma solugao para © problema mas até agora nada foi concretizado, Maria Aracy Lopes da Silva Tuca, 8/11/78 Pronunciamento de Nelson Xangré e Daniel Pareci 70 Nelson Xangré “Eu vou falar um pouco para vocés, povo querido, Ha muito tempo que a gente vem sentindo esses proble- mas que vém acontecendo para nds, para os indios desse pais brasi- leiro. Mas com tudo que eu tive experiéncia, 0 movimento dos in- dios 6 movimento de brigar que a gente chama. Durante que eu co- nheci esse a comunidade indigena como eu falei com o civilizado é uma vivéncia diferente, nao 6 assim que seja pessoas diferentes, mas a vivéncia @ tao diferente quanto vo- cés. Agora talvez e pode ser que a vivénela do civilizado, que é 0 cos- tume de vocés, eu acho que vocés sempre tem uma vivéncia que nao vai servir para nossa comunidade indigena. & uma que eu nao estou criticando a vivéncia de vocés, mas & que eu acho que é bom respeitar a vivéncia indigena porque nds te- mos direito de reclamar nossa vi- véncia que vai complicar com o tempo” (aplausos). Fim. Daniel Pareci “Antes de mais nada eu queria agradecer a esta entidade que pro- moveu este Ato Publico de apoio ao movimento contra a emancipagao do indio. E também agradecer a todos os presentes aqui, que com sua presenca nos dao forgas, nos d&o coragem para que possamos continuar na nossa luta indigena. Para que possamos ter as nossas terras garantidas e para que nao aconteca esta “emancipacao” dita pelo governo que nada mais é do que um grave crime contra todos os. indios do Brasil” (apiausos). Pronunciamento de Nelson Xangré e Daniel Pareci a “Eu pego que vooés notem bem a minha expressao e@ que isso sim- plesmente demonstre a todos vocés que o indio tem atualmente, outra dimenso na sua forma de pensar e na sua forma de agir. Hoje em dia ndo somos mais aqueles selvagens que ainda a televiséo e o cinema continuam a mostrar, auxiliando muito para deteriorar e dar uma falsa imagem do indio. Dar uma faisa imagem que muitas das socie- dades brancas tém sobre nés. Um tipo de esteredtipo, um falso indio. Entéo, como o tempo aqui 6 muito curto, eu quero agradecer do fundo do corac4o. E que vossas conscién- cias se tornem também consciéncia de outras pessoas iguais a vocés. Para que nos possam dar firme apoio na nossa luta,na nossa ver- dadeira juta de emancipacgéo, que n&o seré feita pelo governo ou pelo Ministro do Interior ou seja 14 quem for! (aplausos). Pronunciamento de Nelson Xangré e Daniel Pareci Ela sera feita por nds mesmos, por nos, os indios. Através da nossa juta de consciéncia. Assim como todas as classes da massa oprimida estéo formando suas consciéncias, também nés indios estamos empe- nhados em formar nossas cons- ciéncias para exigirmos os nossos direitos. £u tenho um ponto de vista, repre- sentando a consciéncia indigena. Digo que esta emancipacao nada mais, nada menos é que uma arma mortifera que simplesmente nos ti- rara todo e qualquer direito de re- clamar os nossos direitos. Taivez com essa emancipacao nds n&o possamos mais fazer nossas assembléias que tao ricamente nos tem ajudado. Eu vejo no futuro, se caso essa emancipagao for aprova- da pelo Presidente, que nds tam- bém seremos tachados , nés os mais conscientes, seremos tacha- dos como aqueles que sao chama- dos de “subversivos”. E por isso que, nés indios, conclamamos a consciéncia do mundo branco. Po! que 86 a consciéncia de vocés é que nos podera dar forgas para um dia sermos homens livres. E mais uma vez deixo aqui o meu n profundo agradecimento a todos aqueles que vierem prestigiar este encontro”. (fim do 1° depoimento de Daniel Pareci) Convidado a encerrar a sessao Daniel faz o seguinte pronuncia- mento: “Para encerrar esta série de apresentacées queremos agrade- cer mais uma vez a todos aqueles que tornaram possivel este Ato Pu- blico. £ quero conclamar a todos aqui presentes em nome de suas devidas entidades que sejam contra todos os crimes das declaragées aqui dei- xadas principalmente as dos indios. Contamos com 0 apoio firme dos meios de comunicagaéo de massa, que sejam fidis as declaragdes aqui deixadas (aplausos), para que o crime que esta prestes a desabar sobre os povos indigenas ndo seja uma realidade fatal. E que o branco e o Indio, no futuro, unidos e de braces dados possa- mos formar uma sociedade justa e humana. Ha igualdade de homens, como bem pode provar as socieda- des denominadas silvicolas; ob! gado!” A emancipagao do indio e a emancipacao da terra do indio A questao do indio e, particu- larmente, a da sua emancipacao, segundo os critérios e preceitos definidos pelo regime militar, mos- tra um aspecto da ditadura ao qual temos dado pouca atengdo. E que a ordem repressiva pressupde que os individuos que ela subjuga se definam ou se redefinam de con- formidade com uma identidade so- clal basica, que deve espelhar o modo de ser e de pensar da classe dominante, da classe que tem o controle do Estado e do seu apara- to de repressdo. E subversivo aquele que é diferente, vive dife- rente, pensa diferente. A nogdo de subversdo construida e manipula- da pela ditadura militar é muito mats ampla e radical do que aque- la que nos 6 dado perceber pela nossa meia-clareza do dia-a-dia. De fato, ela envolve todas as for- mas de divergéncias, desde as mais politicas até as mais inocen- tes. Envolve, por isso, também, varias modalidades de repressdo — desde a repressao policial- militar brutal até o aparente pater- nalismo dos governantes. A bondade emancipacionista do funciondrio, do ministro ou do. presidente nao é outra coisa se- néo outra modalidade de repres- sae ao fato subversivo da diferen- ¢a. & tentativa de homogeneizar social, cultural e politicamente, is- to 6, tentativa de aprofundar a dominagao onde ela é fragil. A proposta oficial de emanci- pagae do indio esta fundamentada nesse fato politico. O que o Estado repressive pretende 6 que o indio se feconhega na imagem e na concepG¢ao do seu dominador, que incorpore e aceite como legitimas 1 A.omaneipagiio do indio & a emancipagiie da verra do Andio as concepgées fundamentais da ordem vigente. A proposta supée a individualizagao da pessoa do in- dio, concebida segundo os crité- rios contratuais, racionais e bur- gueses da individuatizagao. E que esta sociedade ndo pode reconhe- cer como pessoa quem nao assu- me os elementos basicos da idéia do contrato social. Nesse caso, a maturidade e a emancipagdo de cada um se dé pela incorporagao dos principios que derivam de re- lagées sociais abstratas e impes- seais, fundadas na circulagdo das coisas, das mercadorias. A identi- dade da pessoa na nossa socieda- de é aquele que, como jd disse Marx, resulta do fato de que as pessoas se relacionam umas com as outras como se fossem coisas @ as coisas —- as mercadorias — se relacionam, se trocam entre si, come se fossem pessoas, dotadas de saber e de vontade. A mercado- ria é a mediadora privilegiada nes- se universo, é uma espécie de deus-coisa oculto que, entretanto, nao podemos ignorar. E emancipa- do, ou seja, 6 pessoa quem se concebe a si mesmo na perspecti- va da coisa, quem se descobre como objeto e nao como sujeito. Ora, quem tuta recusa ver-se como objete. Quem luta quer se impor como sujeite do processo social que vive. Quem luta questio- na a dominacéo e, com ela, a expropriagdo e a exploragdo que ela garante. O Estado-bonzinho propée a emancipagado do indio brasileiro exatamente no momen- to em que esse indio comega a lutar, comega a insurgir-se contra © falso grande-chefe, comega a reelaborar em bases politicas a sua identidade tribal, comega a afirmar que é diferente e quer con- tinuar a sé-lo, comega a escorra- gar do seu mundo o invasor que representa a forma de ser, de ver, de deminar configurada no Estado burgués, no fazendeiro, no grileiro, na mercadoria, no contrato. Os kaingang, os borora, os xavantes, 0S guajajara, os gavides, os xoco tem sido eloqiente na afirma- ¢&o da sua identidade. A emancipagao prometida pe- lo Estado pretende outorgar ao indio a iguaidade juridica e a cida- dania. Com isso pretende tiberta- lo da sua tutela, conceder-the maioridade, tornd-lo igual aos ou- tros cidadéos. Mas esse indio igual é por esse meio lancado num universo de relagédes sociais que instituiu uma modalidade de desi- gualdade. A igualdade juridica da compra e da venda propicia a desi- gualdade econémica do explora- dor e do explorado. E claro que a proposta de emancipagao garante ao indio o direito & terra e esse é 0 ponto principal da questdo. E que o regi- me pretende instituir formas racio- nais e contratuais de relaciona- mento entre o indio e a terra. O voto, isto 6, a dnica forma de ex- pressao da vontade individual que 0 Estado burgués conhece e reco- nhece, sera o meio para decidir o que fazer com a terra — vendé-la ou manté-la come territério social ou dividi-la como patrimGnio indivi- dual. O fato basico de que a pro- priedade coletiva da terra é o fun- damento da existéncia, sanciona- do pela tradic¢ao, ¢ descaracteriza- do pela concepgae falsa de que o coletive sé pode ser a soma do individual, de que a tribo é uma sociedade anénima. ‘A emancipagio do indio e a emancipagtio da terra do indio 75 Através da figura do indio emancipado, a ditadura introduz, subrepticiamente no universo tri- bal a figura e a realidade tragica da terra emancipada em relagao ao indio que a possui, a terra- coisa, a terra-mercadoria. Um pas- so significative nesse sentido foi dado quando da promulgagao do Estatuto do Indio. Ali a terra do indio passa a ser terra para o indio. O Estatuto desvinculou juri- dicamente o indio da terra das suas tradi¢ées tribais. A terra foi redefinida para fins politicos, eco- némicos e administrativos como mero objeto — todas as terras, de todos os lugares, passaram a ser consideradas como equivalentes: podem ser trocadas. Com base nessa pressuposi¢ao burguesa, indios tem sido removidos do seu territério tribal e alojados em sitios distintos. A ditadura militar dessa- cralizou a terra indigena, brutali- zou 0 indio. Para este a terra nao é coisa, néo é mera medida. E a terra dos seus mortos, dos seus mitos de explicagao da existéncia e de justificagao das relagées so- ciais. E a terra de cujo demorado dominio nasce a sua cultura mate- rial, as suas técnicas de sobrevi- véncia. Hé tribos que peregrinam a terra ancestral para colher as. va- ras destinadas a produgao de fle- chas. H& tribos para as quais o abandono da terra dos seus mor- tos é falta grave, 6 pecado sem remissao. A emancipagao da terra indi- gena e a forma de tazé-la entrar no circuito da troca, é a forma de torné-la cativa do capital, instru- mento de sujei¢ao de quem traba- tha. E o capital que esta sendo emancipado. E preciso remover \ as muralhas, as vontades, as for- mas de ser e pensar com que ele se defronta. A vontade e a neces- sidade de reproducao incessante do capital 6 © que o Estado bur- gués expressa. Por isso, ele se converte com facilidade de Estado a-ético em Estado anti-ético, pa- ra quem a moral é a vontade da coisa, do dinheiro, da troca. Sema troca o. capital nao se multiplica, sem a coisificagao a troca néo se consuma. Com o indio que se recu- sa a ver a si mesmo através da coisa, a coisa nao vai. E esse Estado, repressivo, di- tatoriai militarizado, que se propée como fiador da emancipagao indi- gena. A interferéncia do Estado representa nesse caso a prépria negacao da emancipacao. Neste momento, as populagées indige- nas brasileiras j4 estao empenha- das na sua emancipagao, segundo os seus préprios critérios, em ter- mos da reconstituicdo da sua iden- tidade tribal e da definigéo da sua vontade coletiva especifica. A emancipacao do indio néo depen- de de que ele se submeta ao que- rer homogeneizador, branco e bur- gués, do Estado repressivo. A emancipacgao do indio depende unicamente de que ele se descu- bra como diferente que 6, desco- brindo a natureza da dominagaéo que sofre. A partir da propria vontade do indio, da sua luta cres- cente, ¢ que se fica sabendo que o Estado brasileiro nao tem con- digdes de ser flador da emanci- pagéo — nao tem crédito, porque do ponto de vista do oprimido éum Estado subversivo. José de Souza Martins Tuca 8/11/78 O indio, sua Capacidade Juridica e suas Terras |. A CAPACIDADE JURI- DICA DO INDIO 1, Capacidade Relativa Como todos os individuos nas- cidos em territério brasileiro, o in- dio brasileiro tem a condi¢ao juri- dica de brasileiro nato, sendo, por- tanto, desde o seu nascimento, cidadao brasileiro. Entretanto, seguindo uma orientagéo que é praticamente universal, a lei brasileira estabele- ce diferentes graus de capacidade para 0 exercicio de direitos, com base no pressuposto de que al- guns individuos nao tém pleno en- tendimento de seus atos, néo tém plena consciéncia de seus pré- prios direitos e nfo podem avaliar os efeitos juridicos dos atos que praticam. Na legisla¢éo brasileira a capacidade juridica dos indivi- duos é estabelecida pelo Cédigc Civil, que prevé tras hipéteses: a. a dos incapazes, que, embo- ra tendo direitos, néo podem ex- ternar sua prépria vontade para 2 pratica de atos juridicos e devem ser representados por um respon- sdvel. Nesse caso, a deciséo quanto aos atos a serem pratica- dos em nome do incapaz é exclusi- va do representante. b. a dos relativamente capa- zes, que, embora tendo direitos, n&o podem externar sua propria vontade para a pratica de atos juridicos sem estarem assistidos por um responsavel. Eles partici- pam das decisées, mas recebendo a assisténcia necessaria de um orientador. c. a dos plenamente capazes, que podem decidir sozinhos. Os indigenas, que a lei tam: 78 bém denomina silvicolas, foram in- cluidos entre os relativamente ca- pazes, conforme consta do artigo 6°, inciso II, do Cédigo Civil. E no mesmo artigo, em paragrafo unico, dispée a lei civil que “os silvicolas ficarao sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamen- tos especiais, o qual cessara a medida que se forem adaptando & civilizagao do pais’ Desse modo, 0 silvicola, assim como ocorre com todos os brasi- leiros entre 16 e 21 anos de idade, nao tem plena capacidade para exercer seus direitos. Mas a lei estabeleceu uma situagéo espe- cial para a prote¢ao dos direitos e interesses dos silvicolas, dispon- do que eles ficarao sujeitos a um regime especial de tutela, ou seja, eles deverdo ter um tutor, que a lei nomeara e cujas atribuicées e res- ponsabilidades deverao ser igual- mente fixadas em lei especial. As caracteristicas do tutor e a forma de sua escolha ficaram por conta da legislagao especial. 2. A Tutela Especial A lei n° 6001, de 19 de dezem- bro de 1973, jpondo sobre 0 Estatuto do Indio, estabeleceu o regime especial de tutela a que fica sujeito o indio ou silvicola. Nos termos do artigo 7° dessa lei, a tutela sera exercida pela prépria Unido, através do érgéo tederal de assisténcia aos silvico- las. Esse érgao, atualmente, 6 a Fundagdo Nacional do indio (FU- NAI), vincuiada ao Ministério do Interior, estando expresso na lei que ficaraéo sujeitos ao regime tu- telar especial “os indios e as co- munidades indigenas ainda néo O Indio, sua Capacidade Juridica ¢ suas Terras integrados 4 comunhdo nacional”. Quanto a extensao da tutela, ficou estabelecido que sao nulos os atos praticados entre. o indio nao integrado @ comunhao nacional e qualquer pessoa estranha a comu- nidade indigena, quando tais atos tiverem sido praticados sem a as- sisténcia do érgao tutelar. Um ponto importante que deve ser ressaltado 6 0 que se refere a responsabilidade do tutor. No regi- me de tutela comum a nomeagao do tutor se faz com intervengao judicial e o Ministério Publico fis- caliza o exercicio da tutela, poden- do, inclusive, pedir a destituicao do tutor. No regime de tutela espe- cial estabelecido para os indios ndo ha intervengao judicial, pois a prépria lei j4 indicau o tutor, que & um 6rgao vinculado ao Poder Exe- cutivo Federal e cuja responsabili- dade também escapa ao controle judicial. Segundo os estatutos da FUNAI, esta funciona em estreito e constante refacionamento com o Ministério do Interior e todos os integrantes de seus érgdos de di- rego e fiscalizagéo sao nomea- dos pelo Presidente da Republica. Desse modo, o exercicio da tutela fica, inevitavelmente, condi- cionado a politica indigenista do Poder Executivo Federal. Se este adotar alguma providéncia contré- ria acs interesses dos indios, es- tes ficam, praticamente, sem defe- 8a, pois o tutor, a quem caberia defendé-los, é érgao do governo federal. 3. A Cessagéo da Tutela e seus Efeitos O Estatuto do indio prevé as hipéteses em que se dara a eman- cipagao do indio, isto é, em que ele 0 Indio, sua Capacidade Juridica e suas Terras ficara livre da tutela, adquirindo capacidade plena para exercer so- zinho seus direitos e para assumir obrigacées sem a assisténcia de um érgo tutelar. De modo geral, pode-se dizer que cessa a tutela quando o indio estiver integrado & comunhao na- cional. A lei permite que o préprio indio requeira ao Poder Judiciario sua liberagdo do regime tutelar especial, desde que tenha a idade minima de 21 anos, conhecga a lingua portuguesa, esteja habilita- do para o exercicio de atividade til na comunh4o nacional e, além disso tudo, demonstre razoavel compreensao dos usos e costu- mes dos demais brasileiros. Outra hipétese prevista no Es- tatuto do Indio 6 a emancipagao de comunidade indigena por de- creto do Presidente da Republica. Para tanto é preciso que a emanci- pagao seja requerida peia maioria dos membros da comunidade e sua integragéo a comunhdo nacio- nal seja comprovada pela FUNAI. Na pratica, nunca houve um processo formal de emancipacao. Os indios que se aproximam das comunidades de nao-indios fre- qientemente se integram nesta e comecam a praticar atos juridicos como qualquer outro cidadao bra- sileiro. Um dado de extrema impor- tancia, que explica, inclusive, co- mo é possivel a integragdo sem o processo formal de emancipacao, € que a legisla¢ao brasileira sé da tratamento diferente ao indio en- quanto este nao se acha integrado na comunhéo nacional. Uma vez ocorrida a integragao ele é brasi- leiro como todos os demais, nao tendo qualquer influéncia sua ori- 79 gem numa comunidade indigena. Embora quanto a etnia naéo se possa alterar as caracterisricas da origem, é rigorosamente certo que, do ponto de vista juridico, o indio deixa de ser indio quando se integra na comunidade brasileira. A partir desse momento ele é um cidadao brasileiro comum, sem nenhum privilégio e sem quaiquer protegao ou restricao especial. € interessante assinalar que em outras legislagées, como por exemplo, a norte-americana, o in- dio continua gozando de uma si- tuagao especial, ou seja, continua sendo tratado juridicamente como {ndio, mesmo depois de integrado. na comunhao nacional. Existe mesmo a previsado da preservagao da condi¢ao de indio, para efeitos legais, depois de casamentos mis- tos, para os descendentes de in- dio, chegando-se a manter privilé- gios para quem tiver 1/64 de san- gue indio. Na legislacao brasileira a anti- ga condigaéo de indio nao exerce qualquer influéncia. Desde que in- tegrado 4 comunh4o nacional o indio passa a ser um cidadao co- mum, com os mesmos direitos e obrigacées que cabem a todos os brasileiros Il. AS’ TERRAS DOS iNDIOS 1. O Direito 4 Posse e ao Usu- fruto das Terras A Constitui¢ao brasileira inclui entre os bens da Unido as terras ocupadas pelos silvicolas, vale di- zer, as terras ocupadas pelos in- dios sdo de propriedade da Unido, conforme consta do artigo 4°, inci- so IV, da Constituigdo. Entretanto, no artigo 198 diz a Constituigéo que os indios tém di- reito 4 posse permanente das ter- ras que habitam, tendo direito tam- bém ao usufruto dessas terras e a0 uso exclusivo das riquezas na- turais e de todas as utilidades existentes nas mesmas terras. E muito importante notar que esse direito a posse e ao usufruto das terras 6 assegurado aos indios e sé enquanto habitarem as terras. Esse 6, portanto, um privitégio juri- dico, que a Constitui¢éo confere aos que, do ponto de vista legal, forem qualificades como indios. Ora, como jé foi visto, o indio per- de essa condi¢ao juridica no mo- mento em que se integra na comu- nhéo nacional. A partir desse evento ele tem os mesmos direitos @ as mesmas obrigacées que a lei confere a todos os brasileiros, nao preservando qualquer vantagem ou restrigéo em decorréncia de sua etnla, A emancipagao 6 o processo formal de reconhecimento de que um indio, ou uma comunidade indi- gena, ja se integrou 4 comunhao nacional. Por outras palavras, pela emancipagao o indio deixa de ser Juridicamente indio e, em conse- quéncia, livra-se da tutela especial e perde também o direlto aos privi- légios que a fei confere aos indios, entre eles o direito 4 posse da terra. O antigo indio, quando inte- grado 4 comunhdo nacional, conti- nua etnicamente indio mas juridi- camente 6 um brasileiro igual a todos os demais. 2. A Liberagéo das Terras Indi- genas Como foi anteriormente escla- recido, as terras habitadas pelos 0 Indio, sue Capacidade Juridica e suas Tervas fndios sao de propriedade da Unido. E a Constitui¢do estabelece que a Unido nao pode nar es- sas terras, a nao ser em condigées especiais estabelecidas por lei. 0 Estatuto do indio dispde que as areas ocupadas por comunida- des indigenas deverao ser demar- cadas, para que a posse possa ser protegida, mas prevé também a Possibilidade de remogao de co- munidades indigenas para outros locais, mediante a instituig¢ao de areas reservadas para ocupagaéo. pelos indlos. Nos termos do artigo 26, o”paragrafo tinico, do Estatuto, as reas reservadas “no se con- fundem com as de posse imemo- rial das tribos Indigenas”, isto 6, a 4rea reservada néo sera aquela habitada pela comunidade indige- na por sua propria decisao, mas serd outra escolhida pela Unido. O Estatuto prevé indmeras hipéte- ses em que uma comunidade indi- gena pode ser removida das terras que ocupa, por decisdo exclusiva da Unido, transplantando-se a co- munidade para uma reserva, um Parque indigena, uma colénia agri- cola indigena ou um territério fe- deral indigena. Como todas as terras habita- das por indios sao de propriedade da Unido e como so, em principio, inalienéveis enquanto estiverem na posse dos indigenas, verifica- se que tanto na hipé6tese de eman- cipagéo de uma comunidade (quando os indios deixam de ser juridicamente Indios), como na hi- Pétese de remocao da comunida- de indigena para outro tocal, es- sas terras passam a@ posse e ao dominio pleno da Unido. Podera, entao, a Unido usar as terras para © fim que desejar, usufruir de to- 0 lio, sua Capacidade Juridica e suas Terras dos os beneficios que elas propor- clonarem (incluindo-se o solo e o subsolo, isto é, incluindo-se tam- bém as reservas minerais even- tualmente existentes nessas ter- ras), podendo ainda alienar as ter- ras, que deixam de ser inaliena- veis quando néo mais habitadas por indios. Ul, EMANCIPAGAO: UM PERIGOSO BENEFICIO Tem-se falado muito, ultima- mente, em acelerar a emanci- pagao dos indios, notando-se cla- ramente uma inversaéo nos dados do problema, pois em lugar de emancipar os efetivamente inte- grados a comunhdo nacional o que se tem como resultado das Propostas até aqui anunciadas é que se pretende emancipar para facllitar ou forgar a integracdo. A idéia de emancipar é, aparente- mente, generosa, pois significa dar capacidade plena aos que agora so apenas relativamente capazes, mas é preciso conside! se os resultados da emancipagao no poderdo ser uma negagao da generosidade. Pelo que jé se conhece quanto aos riscos e efeitos que a emanci- pagao acarreta ou pode acarretar {avaliados pela convivéncia de in- dios com n&o-indios sem cautelas adequadas) e quanto a possibili- dade de dizimagaéo das culturas indigenas e da prépria pessoa do Indio, reduzido a “boia-fria” ou a mendigo quando forgado a convi- ver com ndo-indios sem estar efe- tivamente integrado, pode-se con- cluir que a emancipacao apressa- da é, no minimo, uma imprudéncia, 381 se for lembrada a necessidade de preservar a dignidade do indio co- mo ser humano. Levando em conta os interes- ses nacionais, mas sem perder de vista os interesses das comunida- des indigenas e os aspectos hu- manitarios e culturais que estado envoividos no problema de sua integragaée a comunhdo nacional, varias medidas preliminares de- vem ser consideradas, Em primei- ro lugar, é indispensavel rever as condigées de tutela especial, so- bretudo para que o érgéo tutelar tenha mais autonomia, inclua ek mentos desvinculados da adminis- tragao federal, dé voz mais ativa aos préprios indios na solugéo dos assuntos que para eles so funda- mentais e possa, afinal, fixar uma politica indigenista que propicie a gradativa integragao dos indios & comunhao nacional, sem a des- truigéo de seus valores culturais e sem 0 risco de sua degradagao como seres humanos. A par disso, é necessdrio o exame cuidadoso do problema das terras habitadas por Indios, pois, a rigor, a Constituigaéo Ihes assegura a posse e o usufruto das terras que eles escolheram para habitar, néo havendo autorizagéo constitucional para que algum ér- g&o da administragdo publica es- colha para eles outro local e os obrigue a mudanga. Com a particl- pacao do indlo, tutelado de modo a nao ficar inteiramente subordina- do a politica de voivimento estabelecida pelo governo da Unido, é bem provdvel que se en- contrem solugdes concillatérias, que preservem a dignidade do in- dio, respeitem seus valores cultu- 82 rais e Ihes permitam integrar-se na comunidade brasileira, como be- neficlérios e como vitimas da integragao. Dalmo'de Abreu Dallari 0 Indio, sua Copacidade Juridica e suas Terras Sobre a Minuta do Decreto de Emancipagao do Indio A opiniao publica ja tomou co- nhecimento dos preparativos do Governo para decretar a regula- mentagao da Lei 6001, do Estatuto do Indio, no que se refere 4 sua emancipagao. O Secretariado do CIMI, em nota distribuida & Imprensa, no dia 6 deste, assumiu posi¢éo decidi- damente contraria ao conteudo da minuta. Nao basta, a meu ver, que antropélogos, missionarios ou ins- tituigoes isoladamente se mani- festem diante deste fato tao grave. E imprescindivel que neste Forum da 30" Reuniéo da SBPC o proble- ma seja levantado, devidamente apreciado, e, sobre ele, tomadas as providéncias ao nosso alcance. E para este objetivo que desejo chamar a atengdo dos caros ou- vintes. Procurarei nesta rapida expo- sigado apresentar as inovagdes que a referida minuta do Decreto acrescenta @ Lei do Estatuto do indio, Em segundo lugar assinaia- rei os pressupostos politicos do futuro Decreto, Por ditimo trarei a proposta do Indio, na sua propria fala. 1° As inovagées do Decreto Todos os que tém criticado esta minuta de decreto de emanci- pagao do Indio nao o fizeram pelo fato da regulamentagaéo da Lei, mas sim pelo seu caréter insélito de moditicagao do Estatuto do in- dio. Comparando o artigo 11 deste Estatuto com os artigos 3°, 4°, 5° e 8 do futuro decreto vé-se clara- mente que no Estatuto do Indio éa 84 comunidade indigena que esta in- cumbida de requerer a sua eman- cipacdo. Leiamos o artigo: “Mediante decreto do Presi- dente da Republica, podera ser declarada a emancipagao da co- munidade indigena e de seus membros, quanto ao regime tute- Jar estabelecido em lei, desde que requerida pela maioria dos mem- bros do grupo e comprovada, em inquérito realizado pelo érgao fe- . deral competente, a sua plena in- tegragdo na comunhao nacional.” Na minuta do novo decreto esta emancipagao passa a ser re- querida tamém por “iniciativa da FUNAI” (art. 4°), com verificagéo feita “por servidores notoriamente especializados, designados pelo Presidente da FUNAI” (art. 5° § 1°), por meio de formularios elabora- dos“pelos érgaos competentes da FUNAI, que também poder ouvir (sic), para esse fim, as pessoas de notério conhecimento em matéria indigenista” (Ibid. § 2°). E o processo sera examinado pelo Presidente da FUNAI que aprovara ou nado 0 relatério, "Po- dendo” (sic) valer-se, para melhor esclarecimento, e se julgar conve- niente (sic), do assessoramento de pessoas ou érgaos possuido- res de notério conhecimento em matéria indigenista”. (art. 8°)- Fica assim bem patenteada a inovagao 4 Lei: A FUNAI gragas a legisladores mais avisados do que nossos deputados e senadores, tornou-se simplesmente uma ins- tancia com igualdade ao da comu- nidade indigena para requerer a emancipagdo desta e, até com mais eficacia que a prépria comu- nidade, porque dispée do indis- Sobre a Minuta do Decreto de Emancipagéo do Indio pensavel aparato burocratico que os indios nao tém. E o processo inteiro é coerente com o sagrado principio do poder centralizado, nao condividido nem participado. Outras pessoas poderdo ser ouvi- das no caso se o Presidente do rgao o julgar conveniente. Em outras palavras, podemos, se qui- sermos, brincar de antropdélogos ou politicos, mas quem decide é um so. Outra curiosa inovagdo é o cardter individual da propriedade doada ao indio emancipado. A es- te respeito o Estatuto do indio nao quis se pronunciar por uma ques- tao, quem sabe, de respeito pela cultura indigena ou mesmo de pu- dor em nao lhe impor nossa pro- priedade individualista. Porém o artigo 12 da Minuta nao faz misté- tio algum: “A doacao (da area de terras) 4 comunidade indigena e seus membros, sera feita nos ter- mos do artigo 1178 do Cédigo Civil, passando a constituir propriedade individual (sic) do indio emancipa- do ou declarado integrado, a area que a este for doada”. Outra inovacdo que se intro- duz subreticiamente 6 a desapro- priagdo da rea indigena, proibida, alias, pelo artigo 38 do Estatuto do Indio e agora encaixada numa no- va situa¢&o que nao se enquadra bem com as excecées previstas no artigo 20 da Lei 6001. Aqui esté uma das mais gra- ves violéncias ao indio na tentati- va de transformar a terra que é parte integrante de sua personali- dade, em simples objeto de consu- mo. é a degradag¢ao de sua cultura pela destruigaéo de sua memoria e da sua ligagdo as suas raizes his- toricas que passam necessaria- ‘Sobre a Minuta do Decreto de Emancipagdo do Indio mente pela terra. Conforme a mi- nuta do decreto esta terra deixa de ser aquele vaior cultural, social e religioso para acabar sendo o lu- gar de que se trata em Morte e Vida Severina “E de bom tamanho- ,/nem largo nem fundo,/ é a parte que te cabe/ deste latifundio./ (...) Nao é cova grande/ é cova medi- da/ é a terra que querias ver divi- dida”. Qual é a responsabilidade da FUNAI com relagao aos indios de- pois de emancipados ? Vé-se pela minuta que este érgao, que vai se arrogar a iniciativa de propor, en- caminhar e executar a emancipa- Gao dos indios, j4 nao tera, com relagdo a eles, a mesma solicitude uma vez conctuida a tarefa, No artigo 17 a Minuta diz assim: “A FUNAI, quando se fizer necessario (sic) prestaré assisténcia aos in- dios mesmo depois de integrados caem no conhecido vazio, que se diré entao deste vago “quando se fizer necessario 2”. 2° Umas observagdes agora sobre os pressupostos deste futuro decreto: 1° O decreto revela mais uma vez o carater autoritario do Gover- no que centraliza em si néo s6 0 Poder, como também o Saber. Ele pode decidir sozinho nao sé por- que é 0 unico sujeito de autorida- de, mas porque é¢ 0 unico conhece- dor da realidade das coisas e das pessoas. Qualquer divergéncia deste saber é tida como contesta- Gao suspeita e perigosa merecen- do adequada repressao. 85 2° O decreto revela também a mentalidade desenvolvimentista que, como um idole, tomou conta do Sistema. O indio precisa ser emancipado para nao impedir o desenvolvimento. Impée-se, por- tanto, a“emancipagao” de suas terras para que déem lugar as grandes hidroelétricas, sobretudo as grandes. Déem lugar as gran- des empresas agropecuarias, so- bretudo as grandes. . 3° O Decreto tem relagao dire- ta coma problematica da Seguran- ga Nacional. Com efeito, o indio é encarado por varios elementos da cupula deste Governo nao mais como o bom selvagem de vida pura e maravilhosa como ainda o consideram alguns sertanistas herdeiros da filosofia de Rondon. O indio é visto como um ser politi- co. Sua for¢a esté na sua organi- zacio tribal, alimentada pela recu- peragao de sua identidade étnica e aumentada pela sua evidente capacidade de articulagdo em vis- ta de alguma federa¢ao de ambito nacional ou continental. Ele repre- senta um perigo e uma ameaca ao nosso modelo pelo fato dele ser uma altern: Apesar de sua fraqueza constitui um perigo. Por isso tem que ser destribalizado e desarticulado. Emancipado ele cairé na legislagao comum sobre- tudo na legistag¢éo penal que se tem mostrado bem eficaz, mor- mente em se tratando de marghi lizados. O Decreto em preparacao aparentemente pode se apresen- tar como zeloso servi¢o ao indio regulamentado o estatuto da emancipagao. Na realidade é uma cruel aplicagao a ele das exigén- cias do nosso modelo de desen- volvimento com seguranga. 86 3° Em tudo isto cabe a pergunta: e o ponto de vista do indio? Nao ha de ser o Governo que ira pedir o parecer do indio. Nem do indio nem do nao-indio. O indio foi sempre 0 mudo e o ausente para nossos legisladores. Nao que ele nao se tenha expressado. Nos € que fechamos os ouvidos a sua palavra, Ou quando esta chegou até nés nao acreditamos que fos- se palavra de indio, que ele tives- se capacidade de falar juntando coisa com coisa. O indio, porém tem falado e exatamente até sobre emancipa- Gao. Ele falou solenemente sobre isto na mensagem dos Kaingang, Terena, Xavante, Guarany, Kayabi, Paressi, e Apiaka reunidos no dia 19 de abril de 1977, nas ruinas de Sao Miguel, para comemorar em forma de Assembléia o Dia Nacio- nal do indio. A certa altura diz a mensagem deles: “Acaso estamos pedindo “in- tegragao” e “emancipagao” na so- ciedade dos brancos? NAO! Nos queremos apenas reconhecimen- to e respeito a nossa integridade fisica e cultural”; E na parte final do manifesto assim falaram: “Portanto, hoje, reunidos em assembiéia de carater nacional, somos porta-vozes dos grupos i digenas que nao puderam estar Ppresentes; nossos irmaos de san- gue que se espalham pelos quatro Sobre a Minuta do Decreto de Emancipacao do lndio cantos dessa imensa Nagao, com esperanga de verem seus proble- mas solucionados, principalmente © problema TERRA. Somos tam- bém porta-vozes daqueles nossos irmaos que até hoje se mantém isolados, portanto inocentes dos maleticios que a civilizagdo oci- dental pode acarretar a eles”. “Aproveitamos a oportunida- de para protestar contra qualquer ato ou intengao de manipulacdo, desprezo, imposigao, exploragado e destruicéo dos povos indigenas. Que sejamos respeitados como pessoas e como sociedades. Por- tanto, qualquer ato de imposigao e proibi¢do vai contra os nossos an- seios mais elementares. _ “N68 povos indigenas, dentro desse contexto nado nos omitimos da nossa responsabilidade de pro- curarmos, num esfor¢o unico, ao lado daquetes que do fundo do coragdo se interessam por solu- cionar os nossos problemas ¢ atin- gir nossos anseios como povos. Queremos mostrar a todos aqueles que nos oprimem que so- mos dotados de capacidade de raciocinio e que, de fato, procura- mos dentro dos meios legais, solu- cionar os problemas. “E, para finalizar, a nossa mensagem do Dia do indio, quere- mos oferecer um pouco dos nos- sos valores a essa sociedade que esté despida dos valores espiri- tuais e humanos. Esses valores vocés encontrarao na nossa forma simples de vivermos a vida”. Dom Tomas Balduino Os indios na Estrada Esse auditério todo tomado de- monstra, sem divida nenhuma, que o destino do indio constitui hoje uma preocupagao da socie- dade brasileira e isso é muito bom. © que nos retne hoje aqui é 0 problema da emancipagao. Todos aqueles que esto empenhados em defender a causa indigena sa- bem que nenhuma sociedade indi- gena neste pais esté em condi- goes de ser emancipada. Essa afirmativa nao contagiou os altos escalées dos érgdos do governo. 0 decreto sigiloso sobre a eman pagao continua a correr. Aresp to desta emancipagao ha uma coi- sa a que devemos atentar: jogar- mos seres humanos que possuem sua cultura numa outra cultura e realidade muito diferente, corren- do o risco de perder sua identida- de. Resultaré que os indios desa- parecerao. Virao para a estrada simplesmente desaparecerao. Agora pergunto: emancipa-los por que? e emancipa-los para que? No decreto que desapareceu (aquele que no recebeu aprovagao) dizia- se que o indio emancipado teria uma vinculagaéo com a terra por um tempo determinado, mas isso nao seria solugao nenhuma, por- que decorrido algum tempo os ine dios iriam engrossar as fileiras de homens sem terra desse pais. 0 que nés precisamos, na realidade, 6 de uma reformulagao total do Estatuto do indio. Uma reformuta- Gao que olhasse mais atentamen- te para a conceituacao da tutela que desse ao indio uma posi¢ao de direito, que 0 indio nao vivesse assim, sempre incomodado pelo Estado. Um Estado que, quando necessita 88 uma terra ocupada pelo indio, ele apenas remove o indio. Nao se Preocupa em indagar que ali é seu mundo de origem, onde se desen- rolou toda sua histéria. Ali é a terra dos antepassados, ali é a terra das antigas aldeias. No final dessa nossa sesso, tere- mos apenas duas alternativas. Pri- meiro: se o decreto vier a ser 05 ladios na Estrada assinado, néo cabe outra coisa Sendo uma Agao Popular (aplau- Sos). A outra é a condenacao. E deixar para a Historia e a-Histéria marcaré aqueles que naquela épo- ca (hoje) deram o primeiro passo que levaria ao desaparecimento total do indio brasileiro (aplausos). Orlando Vilas Boas Tuca, 8/11/78 Pronunciamento do Dep. Santilli Sobrinho Senhor Presidente, Senhores Deputados. Como Ministro do Interior de um Governo que se aproxima dos seus Ultimos dias, o Sr. Rangel Reis, quer, agora, depois de uma administragao que prodigalizou re- cursos ao funcionalismo em Brasi- lia e sustentou uma representagao inoperante no Estado do Rio de Janeiro, quando deveria té-la ex- tinguido desde 1970 com a mudan- ¢a da FUNAI para a Capital, patro- cinar um projeto de “Emancipa- go” dos indios brasileiros. HA menos de cinco anos o Congresso Nacional aprovou o Es- tatuto do Indio, apés discuti-lo du- rante mais de uma legislatura, desde que o St. Costa Cavalcanti confiou a tarefa de elabord-lo ao durista Brandéo Cavalcanti em 1969. Foram consultados os antro- pélogos e os indigenistas, além de uma ampla pesquisa comparativa da legisiagao dinamarquesa e dos. paises americanos onde ha rema- nescentes indigenas. Quando da tramitagao na Ca- mara e no Senado, foram convoca- dos os missionarios, os represen- tantes da Confederagao Nacional dos Bispos do Brasil e do Instituto dos Antropélogos, membros da FUNAI e da Consultoria Juridica do Ministério do Interior e, final- mente, atendidas as ponderagées de ordem doutrinaria e pratica, de técnica legistativa e de fundamen- tagao cientifica, o projeto foi apro- vado com apenas dois vetos pelo Presidente Médici. Mas, logo que assumiu a pre- sente gestao da FUNAI, o atual Ministro do Interior passou a de- tender a reformulagao do Estatuto 90 do indio que tinha entao apenas dois anos de vigéncia. Provavel- mente porque a lei aprovada pelo Congresso proibia 0 arrendamen- to das terras indigenas, estabele- cia prazos (nao cumpridos) para a demarcagao de todas as reservas e garantia a tutela, ndo no sentido primitivo de assisténcia orfanold- gica, mas no mais moderno, de preservagao dos costumes e insti- tuigées tribais, cuidando da inte- gragao lenta e cuidadosa do indio na comunidade nacional. Por outro lado, a FUNAI gasta, hoje, mais de dois milhées de cru- zeiros por ano numa inécua repre- sentacdo no Rio de Janeiro; tripli- cou o numero de seus funciond- rios em Brasilia desde 1970; e nao demarcou sequer um terco das terras do indios, quando, de acor- do com a prépria lei, esta tarefa deveria estar completamente ter- minada ainda este ano. Ao contrario, talvez para enco- brir tamanho fracasso administra- tivo, a FUNAI liberou a exibicao dos indios do Xingu como fésseis vivos para cinegrafistas, fotégra- fos e novelistas - 0 que motivou a recente e traumatica demissao do antropélogo Oiimpio Serra da di- regaéo do Parque Nacional do Xin- gu - e agora aceita, praticamente, um projeto de Decreto, elaborado exclusivamente nas entranhas do Ministério do Interior, para promo- ver a “Emancipagao” dos indios. ‘Até os chefes indigenas que tém mais facil acesso a Brasilia foram a televiséo para dizer ao Ministro Rangel Reis que nao que- rem ser emancipados; que prefe- rem a sua vida a dos muitos bran- cos miseraveis que conhecem, que desejam tao somente que se Pronuncismento do Dep. Santilli Sobrinho cumpram as promessas ja feitas, que se demarquem as suas terras e que se destinem as verbas da FUNAI para beneficios mais efeti- vos aos dos indios, ao invés de transforma-los mais rapidamente, através de uma falsa “emancipa- ¢40”, em mais um subproduto mi- seravel do nosso desenvolvimento desigual. Ja dizia o primeiro Presidente da FUNAS que a equiparagao entre os indigenas e brancos no Brasil, com o abandono dos primeiros & propria sorte, seria como enfiar hum mesmo saco, panelas de fer- ro e panelas de barro, conforme atesta 0 seu depoimento na Co- missao Parlamentar de tnquérito instaurada nesta Casa. Eis, por- tanto, o resultado desta emancipa- G40: colocar em confronto, numa economia de mercado, o indigena do Centro-Oeste e do Norte com as populacgées envolventes. Com isto, dentro de um decénio, os indios nao terao mais terras, desa- parecerao na sua maioria, sem serem integrados. De fato, 0 Projeto do Ministério do Interior trata dos seus artigos 44 e 15 de garantias aparentes de que as terras dos indigenas serao preservadas. Mas a verdade é que, embora o Governo mostre pressa em aprovar mostrou igual interesse em demarcar as terras indigenas conforme estipulava o Estatuto do indio. E mais: 0 texto legal ora pro- posto apresenta uma delicada am- bigilidade, pois, sendo uma comu- nidade qualquer emancipada, seus membros passam a viver nas mesmas condigdes dos demai: brasileiros, que nunca tiveram reito a posse da terra em que vive, Pronunciamento do Dep. Santitli Sobrinho hem oportunidades dignas de tra- balho, educagao e sade. Se o préprio brasileiro do cam- po é miseravel, ndo tem se benefi- ciado do desenvolvimento que aju- da ano apés ano a realizar, como pode o Governo garantir a sobrevi véncia das comunidades indige- nas que mesmo nae emancipadas (protegidas, portanto, pela iegisla- Gao) tém ja suas terras invadidas, ocupadas, seus filhos assassina- dos ,suas culturas destruidas? Se- 14 este projeto de fim de governo que resolvera todos estes proble- mas? Ou estard o Governo Geisel simplesmente oferecendo instru- mento juridico para que o préximo Governo chegue ao fim deste per- curso de injusti¢as e de devasta- 40, promovendo o genocidio final das comunidades indigenas do Brasil? a Srs. Deputados, este 6 0 temor dos verdadeires indigenistas, dos verdadeiros antropélogos, dos verdadeiros missionarios, bem co- mo de organizagées internacio- nais idéneas e dos brasileiros em geral que jé tograram alcancar um nivel maior de consciéncia e de militancia em favor das comunida- des indigenas nacionais. E importante lembrar que nos Estados Unidos ja houve, ha mais de um século, uma experiéncia de emancipagao deste tipo e cente- nas de tribos perderam nao ape- nas o seu territério originaria, mas também as suas crengas e costu- mes mais caros, desaparecendo, a seguir, muitas delas. Criou-se en- 140, um Departamento de Negé- cios Indigenas, a nivel de Ministé- rio, para salvar os remanescentes. Esta mesma solugao foi indicada, 92 em sua exposi¢ao de motivos ao Ministro Costa Cavalcanti, pelo Ju- ‘Trista Temistocies Cavalcanti. Mas a FUNAI permanece atrelada ao Ministério do Interior, 0 mesmo que trata da “ocupagao do territé- rio”, sempre em detrimento dos indios. A experiéncia anterior ¢ a afoi- teza governamental fazem-nos Pronunciamento de Dep. Santilli Sobrinho acreditar que esta emancipacao que se anuncia, na verdade, 6 um embuste, uma ponta de langa dos que pretendem apossar-se das terras dos indios. E 0 caminho para o genocidio final. Era o que tinhamos a dizer, senhor Presidente. Dep. Santilli Sobrinho Dep. Federal - MDB/SP . Indice Pagina Apresentagho ee eee eee eve e eae eue 3 Nota Introdut6ria oe ce cece ee 7 Histérico da Emancipagdo Carlos A, Ricardo André Toral Helena F, Ricardo Agenor P. Faria Jodo Aidar ..... Sede e nett ene erence 9 Manifesto dos Antopélogos ......... 00. cece cece 17 Carta da “Indian Rights Ass.” 20... ......000...00005 23 Depoimentos ¢ Exigéncias da Assembléia de Chefes Indigenas 27 Nog6es de Apoio ao Ato Piblico da ANCS ............ 3L Abertura do Ato Pablico da ANCS Braz José de Araujo ©... eee ce 37 Apresentagtio do Ato Puiblico da ANCS Carmem Junqueira eee cee 39 Hist6rico Eduardo Viveiros de Castro... .. 4l Projetos Desenvolvimentistas Ee 47 Indios do Sul do Brasil Silvio Coelho dos Santos 02... eee eee SI Terena Roberto Cardoso de Oliveira... 55 Nambikwara Pe. Antonio lasi .. . IE Yanomami Cliudia Andujar... 0.00 eee a Xavante M. Aracy Lopes da Silva . Pronunciamento de Nelson Xangré c Daniel Pareci ...... + ‘A Emancipaggo do Indio e a Emancipagéo da Terra do Indio José de Souza Martins . . O Indio e sua Capacidade Juridica Dalmo de Abreu Dallari. 6... eee Sobre a Minuta do Decreto de Emancipagdo do Indio D. Tomiis Balduino .. 00 ev eevee eee eee Os Indios na Estrada Orlando Villas Boas. 66... eee Pronunciamento do Dep. Santilli Sobrinno .......-...- 59 63 67 69 73 7 83 87 89 a A a fh © vid = s Cid Gi

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