You are on page 1of 15
André Martins Homero Santiago e Luis César Oliva (organizadores) As ilusdes do eu Spinoza e Nietzsche 5 SILEIRA PIVILIZAGAO BRAS CIVIL : Rio de Janciro 2011 ceruow A linguagem, nosso primeiro outro-mundo Viviane Mosé* putora em F » de Janeiro (UFRJ) [-Dontora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Jat *Doutora em Filoso Nietzsche afirma, em Assim falava Zaratustra, que ‘ - vida € vontade de Essa afirmagao vai ser, ae : como veremos, fund. projeto critico. Dizer que vida é vontade od ae . ado tipo de vida € uma guerra, uma relacao de forcas, um combate, que tem como carater intrinseco a expansao, éncia pote lamental para seu de poténcia 6 dizer qu rins © Crescimento, a supcragéo. Ao contrario de um instinto de conservagio,! reiteradamente criticado por Nietzsche, a expansao é o “modo de ser” de tudo que vive, uma expan- so que encontra resisténcias. A contraposicéo expansao-resisténcia & exatamente aquilo que caracteriza o choque, o confronto que cle chama de vontade de poténcia. E contra esse cardter eternamente mutante das coisas que, para Nietzsche, a metafisica se insurge. A marca da metafisica é a crenca na duragdo, ou, como quer Nietzsche, a “necessidade psicolégica” de permanéncia. A compreensao do mundo a partir de um principio ordenador, de um fundamento, tem o poder de aliviar e tranquilizar 0 homem diante da extrema exuberAncia das forcas plurais da vida. Nao é somente 0 tenebroso da existéncia que provoca o medo do desconhecido, mas a exuberancia, a grandeza, a pluralidade, a plasticidade, 0 excesso. A historia da metafisica pode ser pensada, entao, como a historia da Produgao e cristalizacdo da nogio de identidade. Os conceitos produzidos pelo conhecimento ao mesmo tempo sustentam e sao sustentados pela crenga em “coisas idénticas”. Esta necessidade de identidade, de unidade, de fundamento resulta de uma recusa em afirmar o carter da vida que € vontade de poténcia. Por isso, 0 alvo da genealogia nietzschiana é a idcia de verdade, o que ela busca atingir é toda qualquer crenga na identidade, na duragio. 229 — SPINOZA EMIETZ 506 gs sors 0 FY ga verdad procede, portanto, da tentativa de ¢ 6: ee pJutaga contradigae, a dor nao existam, x, “Hr Je a mutay oda forga somente pode manifestarse ¢ Menty wee gs nama dose de dor necessiria™? jy ti haem ador. A dor éconstitutiva do processo de mater; a My me alin, virarser implica das forgas- ‘A genealogia 3 de verdade encia. E comegas engoa mudanga? O ‘Ao avaliar os valore: a vida, Nietzsche apresent da cultura moderna revela que significa 0 niilismo, para Nietzsche? “que os valores mais elevados pir demo valor”. Mas este niilismo moderno, que ele chama de “morte & Deus”, est, hé muito, enraizado no pensamento humano. 0 niilism nasce com a criagio dos valores superiores, que sao desvalorizados na modernidade: 0 que fundamenta 0 niilismo é, antes de tudo, a negagio da vida em nome de uma outra vida, de um outro mundo. “Nio hi sentido em fabular acerca de um ‘outro’ mundo, a menos que um ins- tinto de cahinia, apequenamento e suspeigao da vida seja poderosoen 16s: nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de vuma vide njeaschiana éuma nova forma de avaliar, que tomo aquilo que & pela idea de vida com yon, antes de tudo por perguntar: por que a iden u melhor: por que a verdade? lide 5 modernos, a partir da relagéo estabelecida cy, a sua concep¢ao de niilismo. O diagnisin os valores humanos sao niilistas, Q gy ‘outra’, ‘melhor’.”5 Esta desvalorizagio da vida, portanto, Nietzsche percebe que not Privilégio da modernidade, da mesma forma que o “outro mundo” 0 € privilégio do Deus cristo. Mesmo a ciéncia moderna esté ma" 7 Por esta crenga: ae ee ° homem veraz, no ousado e derradeiro et naturezae d Pressupde, afirma um outro mundo que 40° v7 es Nistor; e,na medida em que afirma ess€ ao va? 0 negar a sua contrapartida, este mundo, 7055 230 A LINGUAGEM, NOSSO PRIMEIRO OUTRO-MUNDO icar 0 niilismo, Nietzsche relaciona dois momentos Ao diagnos os distintos: a modernidade cientifica filosdfica, ponto de historic’ partida da critica, ea racionalidade classica, nas figuras da filosofia cocritico-plaronica edo cristianismo. £ na racionalidade classica, com 0 nto socritico/platonico, que surge a primeira forma do niilismo. Ao identificar virtude e razao, Sécrates produz um ideal de vida marcado pela supervalorizagao do que é consciente em detrimento do instintivo, gustentando a distingo hierarquica entre pensamento e corpo, entre ser edevir. Considerando a vida indigna de ser vivida, propde substitui-la pelo conhecimento verdadeiro. O corpo, este campo de batalha de ins- tintos e de paixdes, deve ser negado pela razao. Com Platio, esta negago socratica das paixdes, e consequentemente da vida, se configura cada vez mais explicitamente. O que Nietzsche mais critica em Platao é a divisdo dos mundos: este mundo, como de- vir, como corpo, como perecimento, vai ser distinto de um outro mundo, como lugar da ideia, da alma, do pensamento. Esta divisao submeteu avida ao pensamento. Se com Sécrates a vida passa a ser julgada, com PlatZo nasce um principio absoluto de inteligibilidade, capaz de distin- guir a verdade do erro, permitindo uma ascensao em diregdo ao bem e averdade, Mais ainda, “Plato”, diz Nietzsche, “é aquela ambiguidade e fascinagao chamada de ‘deal’, que possibilitou as naturezas mais no- bres da Antiguidade entenderem mal a si proprias e tomarem a ponte 7 ensame't que levou a ‘cruz’...”+ O ctistianismo, que, para Nietzsche, esté em continuidade com 0 pensamento platénico, nao somente mantém e reproduz 0 niilismo do “outro mundo”, como dé um passo além: “O cristianismo é um plato- nismo para o povo”.* E o cristianismo que, com sua abordagem religiosa, espiritualiza e divulga, infiltra, enraiza a moral niilista platénica. O que caracteriza a modernidade, na perspectiva de Nietzsche, é © proceso de substituigao de valores decorrente da “morte de Deus’ Aqui, os valores superiores sero gubstituidos por valores humano: °s valores fundados no absoluto, na esséncia, serao substituidos pela ctenga na consciéncia, no sujeito. O que emerge na modernidade éuma Tova instancia de avaliagao: 0 julgamento divino vai ser substituido pelo 231 nes DO EU: SPINOZA ENIETZ 5c ug as use snozdaado com o naseimento de uma pa, ano dh sh. amodernid a si, fundada em uma racionalidag. eee ig, aude € 0 nascimento de ae! Te discorir, drigit. a raziocignen Bln wy Devs M s i Ka try rnold s desejos de eternidade pelos Proper, * gue mata Deus fururo. Mas 0 niilismo, Je nasce juntamente com na filosofia desde Socrates. a 3 Eaatitude negativa com relagdo a vida que Nietzsche ie como fundamento de todo niilismo. O niilismo nasce da nega mundo em nome de um “outro mundo”, primeiro pelo mundo dasia ve platao e pelo mundo divino cristo. Depois, na modernidade,c,.. negayio do mundo divino, o “outro mundo” vai ser uma Promess 4 futuro, construido pela razio humana. O que esta continuidade do niilismo, nas diferentes valorag mostrar, é que a negatividade resulta nao do contetido do valor, dig: que ele explicita, mas da atitude mesma de valorar, que determina ser; um lugar a partir do qual se avalia, o lugar do bem e da verdade, Ms o valor da vida, diz Nietzsche, nao pode ser avaliado. Toda valorasis da vida é, a principio, um sintoma. “Juizos, juizos de valor acerca & vida, contra ou a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; eles 2 valor apenas como sintomas”.? Sem inviabilizar a visio predominante em sua obra, de que 00% mundo teria nascido com o platonismo e o cristianismo, Nietzsche ap Para um momento anterior da vontade de negagao: 0 desejo de - mundo estaria presente j4 no nascimento da linguagem. Foi, xis tudo, o desejo humano de “tirar dos eixos 0 mundo restante € sero romaine er impalsionou este processo de negacio ane em designar, ele inguagem, Com os signos, 0 homem ns en aoa a Eee acreditar que sabia, e coe i ad verdade. Eests a came significativo ous wage ye? Petmitiaconstrugaa c encontrada”,!" a verdade da Le aa et coloca em questo na ° sofisticado universo conceit a wo modernidade. Com a linguagem ° como vimos, nao € privilégio da med ‘i a crenga nas Categorias da razjo, ' “ie » Pree él ind Oden 232 A LINGU. AGEM, NOSSO PRIMEIRO OUTRO MUNDO beleceu, ao lado deste, um mundo Proprio, um | 5 ug fornecer a estabilidade e a durag par firme capaz de ara sustentar a crenga deverdade. A questo trazida por artista do verbo”, nao sec eed ms como um “ar ', no se contentou coma utilidade, dada pela simplificagio e esquematizagao das palavras, e buscow desenvolver um emaranhado significativo que fosse cap de substituir as coisas, a pluralidade. 4 < I Ao necessarias Pi nas diversas manifestagdes da vontade Nietzsche é que o homem, como um “ i a Para isto ele precisou esquecer que o que fazia era criar nomes, e passou a acreditar nos nomes das coisas como em “verdades eternas”. £ a fico de correspondéncia entre as palavras e as coisas a base fundamental em que repousa a construgao de um outro mundo. O outro mundo dos signos é a primeira fic¢3o humana. A linguagem é nosso primeiro outro mund A importdncia da linguagem para o desenvolvimento da cultura esta em que nela o homem estabeleceu um mundo préprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos € nomes de coisas como em aeternae veritates [verdades eternas}, 0 homem adquiriu este orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem 0 conhecimento do mundo. O criador da linguagem nao foi modesto a ponto de crer que dava as coisas apenas denominagoes, ele imaginou, isto sim, exprimir com palavras 0 supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforgo da ciéncia. Da crenca na verdade encontrada fluiram aqui também as mais poderosas fontes de energia. Muito depois —somente agora — 0s homens comesaram a Vir que, em sua crenca na linguagem, Propagaram um erro monstnuos9- Segundo este aforismo de Humano, demasiado bumano, ere nas: cimento dos signos, na possibilidade de represents de ae a 2 pluralidade, que o homem encontra seu primeiro rel e cd oo seu “outro mundo”. Foi somente porque o homem ar dito nas palasas como em “verdades eternas” que a crenga no ar a Possivel. O “orgulho” humano, © desejo de se €! as ee Produziu a crenca de que as palavras pudessem Fr 233 2 — sobre aS Coisas, ~ Esta crenga que nasce do esquecimento, da di... £90, da ilusao, foi 6 que permitiu a construgao de um outro my & Partir dai que comega a invers! 9 mundo do dey; Pluralidade, Mas o outro mundo estavel dos signos de Comunic. che ° mundo da linguagem. E a partir destes signos que © além a Platnico-cri ‘0 vai ser construido, mas 0 proprio Universo dos si . €o0 “lugar firme”, que fornece ao homem o impulso Para a criacs, fs ficgdes de desvalorizacio da vida. * No Anticristo, Nietasche se refere a0 mundo moral e Teligiosy g ficgdes, Mostrando que todo o universo de valores que nos cer emaranhado de causas imaginarias. As causas, 0s efeitos, os Seres, Psicologia, a teleologia, as ciéncias naturais, resultam de um mung de ficces. “Todo esse mundo ficticio tem raizes no 6dio ao natura a realidade!) é a expressdo de um profundo mal-estar com 9 teal, 215 Neste fra; Bmento, Nietzsche supde que seja sempre Por uma fico que homem deprecia a vida, A vida, representada como aparéncia, se toma tao irreal que permite ser avaliada como nada. O €spago ficcional ¢9 que torna possivel a negacao, é ele que permite a produgao de valores superiores 4 vida. Portanto, a ficcdo é, em si mesma, um valor superior a vida, na medida em que permite o distanciamento a partir do quala vida pode ser julgada. A ilusao, a invencgao, a ficg4o, diz Nietzsche, sio condicdes necessiias Para a sobrevivéncia do homem, ou seja, “sem permitir a vigéncia & ficgdes ldgicas, sem medir a realidade com o mundo puramente invents do absoluto, do igual a si mesmo, o homem nao poderia viver”.*0 problema, portanto, nao esté em que existam ficgdes, mas em que we ficgdes, “ao invés de meios Para acomodar o mundo para fins cae (portanto, ‘em principio’ para uma falsificagao stil), Ca 0 ‘critério de verdade’, isto é da realidade”.6 Em vez de utilizar on como instrumento para tornar o mundo manejavel dete fildsofos Preferiram acreditar que aquelas ficcdes eram a ee gut da “verdade”, que aquele mundo de causas imagindrias er ° ids verdadeiro”, Esta inversdo somente pode ser sintoma de um jpuit® tri! 7 . az de 4 degenera. Somente 0 édio contra a vida pode ser cap: ha. nde. : no mai it C8 bun 234 A LINGUAGEM, NOSSO PRIMEINO OUTRO Mun 0 MUNLO sour nirio das ficges o valor de verdade. f« vt onitade de jo, como vontade de substituigio, que e —— std presente nahn Hos. O homem criador dos snes nad a ponto de aceitar que evar fo nascimento dos sig, cn desde modesto apenas NoMeava, ele precisow acreditar adquiria saber sobre as coisas, gue com as palav i A linguagem € nossa ficgio primeira, é ela que permite 9 universe jmagindrio que vame ch; nossa primeira experiéncia de duragio; éa duragio ficcional da palavra que fornece a crenga em um mundo duravel; por serem sempre supray- sensiveis os signos sio um tipo de Deus. Mas 0s signos sao produto de um acordo, de uma convengao. £ somente com o esquecimento do cariter ficticio dos signos, que o homem pode acreditar que os sinais correspondam as coisas. Esquecer 0 carater ficticio das representagdes foi para o homem, nao uma passividade, mas uma atitude. Mais do que isso, esquecer 0 carater ficticio e convencional dos signos foi uma necessidade para que a linguagem pudesse se consolidar, para que a comunicagao pudesse se estabelecer. E por causa de sua capacidade de esquecimento que 0 homem acredita que possui uma verdade. £ esta capacidade de esquecimento que deve ser posta em acdo para que a linguagem da comunicagao € a verdade que dela advém possam se sustentar. O problema que Nietzsche aponta, enfim, nao diz respeito @ produ- cdo de ficgSes, a questao estd em que as ficgdes sejam tomadas como verdade. A ficgao, em si mesma, assumida como invencio, é afirmagao. Ou, ainda, a ficgdo nao é uma falsificacdo, uma mentira, ja que mentira implica em verdade e a propria verdade é uma ficgao; ficcao é invencao, éarte. Ea arte, como perpétua criagdo/destruigao, ¢ propria do mundo, tanto organico quanto inorganico. Jé em 4873 Nietzsche concebe este Processo artistico, interpretativo, como fundamento do mundo, ou me- lhor, concebe a auséncia de fundamento, de identidade originaria para 0 j incipios. alvo da mundo, afirmando 0 fluxo, 0 jogo, a guerra como principios Oal é a ideia de que exista alguma ctitica nietzschiana, desde aquela época, © enca, por no coisa irredutivel, primordial, idéntica a si mesma. Es — ke vida, encontrar referéncia no que Nietzsche mais tardewane mar “mundo verdadeire”. Os signos sav a 235 AS ILUSOES DO FU: SPINOZA E NIETZSCHE termina por se sustentar no mundo . + de poténci como vontade de pot ficcig, nal da linguagem. O problema da verdade remete a linguagem; melhy dizendo, remete a uma determinada re Gio que o homem Cstabeleces com a linguagem. A ficgao dos signos foi con struida Para aumentay dominio do homem, para fortalecé-lo. Ja a ideia de verdade nasce mento deliberado da origem ficticia dos signos, dos valores i invengdes. Sea fiegio € propria da vida, a verdade é propria da Vonade de negagio da vida. A verdade é um tipo de arte que se sustenta em negar as condigées de scu nascimento. A linguagem, sustentada na ver- dade da palavra 6, com isso, feita de ficgdes mortas, de metaforas que perderam 0 cunho e valem apenas como metal.!” Sao estas mMetdforas que, no entanto, sustentam a crenga em uma identidade originaria das coisas. Mas a linguagem nao pode revelar o ser das coisas, nao somente porque é um actimulo de metdforas mortas, mas porque nao hd ser nem coisas, sendo na linguagem. As coisas como identidades, como unidades, somente existem na lin- guagem. A palavra nao mantém uma relagao de correspondéncia coma coisa que designa, a linguagem nao é a representa¢ao do objeto. Mesmo os objetos nao existem sendo em fungao da palavra que as nomeia, que as identifica, as constréi.!* A impossibilidade de correspondéncia entre as palavras e as coisas nao resulta, portanto, apenas do processo de reducao e ficcdio que marca os signos. A questao fundamental é que nao hé um sentido nas coisas a ser representado no objeto. Ou melhor, nao ha sentido, apenas perspectivas, produtos de uma correlagdo sempre movel de forgas- O mundo, diz Nietzsche, “é diversamente interpretdvel, ele nao temum sentido que lhe seja proprio, mas sentidos inimeros, ‘perspectivismo”.” O signo é apenas uma disposi¢ao, uma abertura, uma moldura vazada, capaz de configurar uma diversidade de possibilidades, uma luta- Este | €0 aspecto afirmativo do signo: a afirmagao de sua impossibilidadss | 0u seja, o signo destituido de identidade e verdade, pode ser u™ oa Lafirmativo, Como diz o aforismo 54 de A gaia ciéncia “o homen os conhecimento é um recurso para prolongar a danga terrestre”- ae ‘a 7 ; st diz, continuo sonhando, mas agora sabendo que estou sonhando. F* = sim afirmagao, transposta para a linguagem, poderia ser formulada 45 esqueci 236 A LINGUAGEM, NOSSO PRIMEIRO OUTRO. MUNDO continuo falando, mas agora sem acreditar na identidade subjacente go que € dito, agora estou sabendo do caos de sentidos que perm sneee em cada palavra. O signo perspectivado, vazado, esvaziado de sentido everdade nao pode ser, em absoluto, reduto da vontade de negagio, a vontade de verdade. Mas nao foi esta a relagio que o homem esta ; com os signos. A critica nietzschiana da linguagem parte, portanto, segundo nos. parece, da consideragao de que a linguagem, desde seu nascimento, responde aquilo que a estrutura racional, nascida com a filosofia socr4- tico/plat6nica, vai ter como fundamento: a vontade de produzir duracdo como forma de se contrapor 4 multiplicidade mével que é a vida. E esta vontade de dura¢ao, atribufda ao pensamento ocidental desde Platio, | que Nietzsche percebe presente, também, no nascimento da linguagem. _ £.coma criago dos signos de comunicagao que o homem produz sua primeira experiéncia de duragio, e é esta experiéncia que vai sustentar acrenca na verdade, fundamento da racionalidade classica. O que bus- camos argumentar é que a critica nietzschiana da linguagem remete nao somente ao problema da gramatica, mas, fundamentalmente ao problema dos signos. A gramatica, como 0 conjunto de leis da linguagem, resulta de uma relacio especifica que os homens estabeleceram com as palavras. Nio é a linguagem metafisica, a raz4o e suas categorias, 0 alvo final da critica de Nietzsche, mas a relacio metafisica que o homem estabeleceu coma linguagem, mesmo antes do surgimento destas categorias. Se esta telagdo nao existisse previamente na linguagem, é provavel que o plato- nismo ¢ 0 cristianismo nao tivessem como se sustentar. Ena relagao de correspondéncia entre as palavras e as coisas que reside o fundamento da vontade de negac4o, a vontade de verdade. Esta relacao remete, nao somente ao platonismo e ao cristianismo, mas, antes, a gregariedade. Ecoma palavra que o homem tema primeira experiéncia de duragao. Mas a vontade de negagao da pluralidade e da mudanga, presente desde Onascimento dos signos, vai estar, a principio, a servigo de uma arma Sao, ou seja, a simplificagao da linguagem nao deixa de ser um i rose instrumento de expansao. A fragilidade fisica do homem, diante da i ivéncia, € exuberdncia plural da natureza, colocava em risco sua sobrevivél beleceu 237 AS ILUSOES DO EU: SPINOZA E NIETZ5¢y¢ foi a linguagem, na medida em que permitiu 0 “8rupamente, te que possibilitou sua afirmagao como espécie, We garantiy sua ni, tuagio. Mas é exatamente esta experiéncia de 'Srupamenty que Pethe, anecessidade de identidade, de verdade. A identidade é um, : nee da comunicagio. A palavra torna-se Conceito na medida em Sidady belece como signo de comunicaga z ° Signo Bregario quando 0 € para todos. Sao as designagdes Sociais q . primeira vez as leis da verdade. As Palavras sao designacdes uniter a mente validas e obrigatérias. A linguagem é 0 signo da Comunicacs, i rebanho. “O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, 9 homer ce vez mais consciente de si; apenas como animal social ohomem apren, a tomar consciéncia de si.” A vinculagao entre linguagem e Conscién, cia, feita por Nietzsche neste aforismo, traduz 0 Mecanismo grepériy que cada vez mais vai aprisionar a linguagem e o Pensamento, 0 que marca a gregariedade é 0 nivelamento, a vulgarizacio, a identidadee Consequente negacao das diferencas, das singularidades, A consciéncia €a internalizacdo deste mecanismo gregério. “O desenvolvimento da linguagem eo desenvolvimento da consciéncia” diz Nietzsche, “andan lado a lado”! Ou seja, a linguagem ja nasce Produzindo e, ao mesmo tempo, sendo produzida por este mecanismo de simplificacaoe redugio, de diminuigo, A linguagem se confunde com a consciéncia. £ esta trama de ferro que Nietzsche ch ama de metafisica, esta vontade de duracao e verdade que se identifica com a propria cultura. Anegacio da pluralidade que Os signos permitiram, poderia, porta” e se, € Somente ¢ 7 ita. Im sj Jue Cstabelece "Bin to, A a ida mpés como negacao da plu » a linguagem nao se afirmou como o que poss! cone ento da capacidade de vencer 0 obstaculo, mass ci : . 4s da fics Com0 a negacio do Proprio obstaculo, levada a efeito através dete” de negacao da plu; ; ‘ a d ralidade e da mudanga. Foi em fungao de a Minada telacio com og Signos, mais especificamente, do esque 238 A LINGUAGEM, NOSSO PRIMEIRO OUTRO MUNDO. or metaforico ¢ afirmativo, que o homem deu inicio ao proceso, seu carat jue culties 20 niilismo reativo da modernidade. “Ha uma mitolosia atafca escondida na ingaragen que volta a ieromper a toda instante, cautelosos que sejamos normalmente.”” E a filosofia é, para porn nietzsches ge sustentou 1a verdade da linguagem; é a identidade da palavra que yai fundamentar, segundo Nietzsche, a argumentacio filosdfica desde parménides. Ea ideia de ser, nascida com Parménides, que vai sustentar a érbita em torno da qual circula o discurso filoséfico. Tanto 0 ser de Parménides, como veremos, quanto 0 principio de identidade e de nao contradigao em Arist6teles, vao ser definidos pela identidade da pala- yra. Mesmo Descartes, diz Nietzsche, se viu enredado nestas mesmas_ jeias, quando concluiu a substancialidade do sujeito a partir da subs- tancialidade da linguagem. O que a filosofia fez foi produzir esquemas de comunicagao, centrada em uma linguagem gregaria cada vez mais estruturada pelas leis da gramitica. Sao as fungoes gramaticais que vo definir 0 pensamento. O edificio conceitual que marca 0 pensamento moderno é uma sobreposi¢ao de camadas que foram se condensando no decorrer da historia. A crenga na correspondéncia entre palavras e coisas; o ser como identidade, como sentido; Deus como unidade, cau- salidade, verdade; 0 sujeito como Deu: sdo algumas das sustentagdes destas camadas conceituais que a genealogia procura explicitar. A autoimplicagdo dos valores, que caracteriza a malha conceitual do pensamento moderno enreda o pensamento a tal ponto, que parece nao A identidade é considerada um fato, Ese a identidade € um produto deste investimento. A filosofia, desde seu nascimento, ser possivel fugir destas categorias. na medida em que é impossivel pensar sem ela. fato, também o é a verdade, 0 sujeito e assim sucessivamente. “A com) nicagao 6 necessaria: para que a comunicagao seja possivel, impde-se que | algo seja fixo, simplificado, preciso, (sobretudo no que chamamosocaso | idéntico).”® Somos capazes de duvidar de tudo, como o fez Descartes, | ™as nos mantemos fiéis a crenga na identidade, na causalidade, enfim, a gramatica. Nao basta, portanto, desautorizar 0s valores, € preciso desfazer as conexdes que foram sendo produzidas entre os yalores, é Preciso desfazer esta malha auténoma que reproduz, na medida em 239 as 11ysOes DO EU: SPINOZA E NIETZSCHE otidianamente, a identidade, 2 Sujcito, a Substanciaty a verdade, Desautorizar valores 6, a pees desautorizar a aM dos conceitos, mas quando a genealogia coloca em questig ay for ~ conceituais da linguagem, ela atinge a estrutura destes yay." produzir identidade. E preciso, portanto, cole. gue impoe, rds ie s i a maquina de re questo, no somente 0 ¢ identidade da palavra. : E preciso, portanto, por a claro este sistema de crencas, fun ad, desde sempre, em uma légica da identidade; uma gramitica onde, palavra, ser, a verdade, 0 sujeito so uma autoridade incondicionada, Desconstruir 0 edificio conceitual, 0 emaranhado de valores morais quea modernidade sustenta, implica, no fim das contas, em uma desconstrusiy da pedra, do material com que tal edificio foi construido, e este material éa linguagem. Nao somente a linguagem metafisica, mas a metafisica da linguagem, ou seja, a vontade de duragao presente em toda palavra, Sti at ardter moral da gramatica, mas a cy 7 ena ng Notas 1. “Contra o instinto de conservagao enquanto instinto radical, trata-se muito ms de o ser vivo querer dar livre curso & sua forca [...]: a conservagao € apenas fe consequéncia.” Fragmento péstumo 26[277], outono de 1884-outono de 185 (grifos do autor). 2. Fragmento péstumo 11[77], novembro de 1887-margo de 1888. . Fragmento péstumo 9[35], outono de 1887. 4. Cf. Roberto Machado, “Deus, Homem, Super-Homem”, R 89, UFMG, 1994, 5. Creptisculo dos idolos, “A ‘razao’ na filosofia”, §6 (tradugao de Pa Souza, Sao Paulo, Companhia das Letras, 2006). 6. A gaia ciéncia, §344 (tradugao de Paulo César de Souza, Sao Paulos das Letras, 2001). 7. Crepiisculo dos idolos, “O que devo aos antigos”, §2 (grifos 40 aut cet a 8. Além do bem e do mal, “Prologo” (Utilizamos a traducao d¢ PY” at Souza: Além do bem e do mal, Sio Paulo, Companhia das Letrass 177" referida como Além do bem e do mal.) » evista Kriteriom ® alo cesar Compsthit 240 ALINGUAGEM, NOSSO PRIMEIRO OUTRO.M UNDO seuto dos idolos, "© problema de Sdcrates”, §2 reps ret" masiado humano (vol. 1), §11 (tradugao de Paulo Cé ‘aulo César de Souza, 9 mano. AO 10. aie ‘Companhia das Letras, 2000). 1. bide gu. 12. ieee §15 (tradugao de Paulo César de So " 5 04007) . uza, $40 Paulo, Companhia das r Nietzsche e a filosofia, cap. Vr §1- Gilles Del je " a OF, 1962 (ed. brasileira: Rio de nae et la Philosophie. 15, Além do bem edo mal, $4. 16, Fragment postumo 14[153], outono de 1887-marco de 1888. 17. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, §1 (tradugao de Rubens Rodri- gues Torres Filho, in: F- Nietzsche, Obras incompletas, 2° ed., $a0 Paulo, Abril Cultural, 1978, colegao Os Pensadores.) ° 18. of Crepiisculo dos idolos, “A ‘tazao’ na filosofia”. 49, Fragmento postumo 7[60], final de 1886-primavera de 1887. 20. A gaia ciéncia, $354. 21, Ibidem. 22, Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra, §11 (tradusao de Paulo César de Souza, Sao Paulo, Companhia das Letras, 2008.) 23, Fragmento postumo, 9[60], outono de 1887. 2at

You might also like