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Pedro Paulo A. Funari ANTIGUIDADE CLASSICA A HISTORIA E A CULTURA A PARTIR DOS DOCUMENTOS Fs caratceAricnEUB0RAD4 PLA ‘Binuoreeh Gawraat Da Unc una, Pedro Paulo Abreu P9G2e —_Antghldade Cissca: 4 Hiss e culm a parte dos documentos / Fedo Paula A. Pinar. = 2! ed = Campinas, SP: Fltors cla Unix, 2003, 2. Grecia ~ Culture popular~ Histria, 2, Roma Cultura populse ~ Hier. 1, Tilo, ISBN 85.268.0634-3, cpp 3012 Indices para catilogo sistematico: 1. Grécla ~ Cutuen popular ~ Hisoria 301.2 2. Roma ~ Cultura popular ~ Historia 301.2 Copyright © 2008 by Edtors ds Unease Nenhuma parte desta publicaglo pode ser gravida, anmzenacia em sistent eletaico, fotocopiads, reproduzida por melos mecinias ot ‘outros quaisquer sem aulorizagio previ do edi. meu SUMARIO Iyrropucio. 7 ae eee 1 — Dociatenros: ANAQSE-TUDICIONAL E ERDAEXEUCA coNrEMHORANEA 13 Introducio ass 13 Aanilise tradicional do documento E 7 14 © passado e 0 presente: a Hist6ria ¢ a hermen@utica contemporaine’ oa 15 Atividades encaminhadas eee ae snes a Atividades propostas. ams 23 2 — AMAuse DOCUMENTAL # ANTIGUIDADE CLASSICA ono -non - 25 Os documentos € Sua 812620 enn ie tas: Andlise documental ¢ sua diversidade.... = =H 26 Especificidades do estudo da Antiguidade Ciéssica : 7 29 Periodizagdes teadicionais da hist6ria, literatura ¢ cultura cléssicas ‘ 31 Atividades encaminhadas Hs ee 32 Atividades propostas. i ot 34 3 — Menénuas ae 7 a 7 37 Asriano, A Batalha de fssus, 2, 10-11 (333 8.6) ooo somse ennai 37 Marmore de Paros (264 a.C.), Batatha de fssus ie on 38 Saldstio, A Guerra de Jugurta, capitulo 4 7 au 40 Decreto da Segunda Liga Maritima Ateniense (378-7 a.C.), Sylloge Inscriptionum Graecarum 1472, "Alianga politica? oe = 42 Plutarco, Moralia, 11, 857,12-13, "Sobre a malicia de Het6d0t0" poxco et) Varro, Sobre a lingua latina, 5,80-2, “Sobre os nomes dos magistrados 44 Inscrigio comemorativa de Liicio Fabio Cilo, Corpus Inseriptionum Latinarurn Vi 1408 (Inseriptiones Latinae Selectae 1141), “Uma carteira militar”... 44 Atividades encaminhadas ee ca - 45 Atividades propostas sass 4 4-— Praricas oe ieee 49 ‘Tres documentos epigriticos provenientes de Aquae Stlis, Bath, Inglaterra 51 Apologia de Sélon pelo proprio, citado por Aristoteles, Constituigo de Atenas, 12,6 sun 54 Plutarco, Diélogo sobre os oréculos da Pitia, 24, "Como a prosa substitutu, 405 poucos, a poesia, em particular nos oréculos" E 55 Arriano (século Il d.C.), Manual CEncheiridion), 32, colegao de aforismos de Epiteto (século 1. d.c.) a 56 Lei de Gortina (ca, 480-460 a.C.), Creta, *Estruturas sociais ¢ familiares” 56 Isaios, A sucessio de Pirro (ca. 360-350 a.C.), “Estruturas familiares ftieas™ oo ST Plinio, o velho, Histéria natural, 38, 20-22, “Remédios da mulher” a ST Cato, Sobre as coisas do campo, 5, “Os deveres do capataz”... Atividades encaminhadas ee ee een 59 Atividades propostas 7 60 5 SexTMeNT08 a 63 Plutarco, Moralia, 5, 680C, Questao 7, "Sobre aqueles que se diz, Jogarem 0 mau-olhado” or 66 Pindaro, (Pyth.8,73; Olymp.12,6; Pyth.2,49;3,59;8,88), “Sobre a sabedoria® 67 Decreto dos sacerdotes egipcios homenageando Ptolomeu Uli Evergeta ¢ sua familia, Decreto de Canope, (259-8 a.C.), OGIS, 56, “O poder helenistico e a religiosidade” 68 Apuleio, O asno de ouro, 2, 16-17, "Romance com uma escrava” oo 69 Seneca, Cartas a Lucilio, 1,7, 3-4, “Sensagdes de um esperaculo” 7 70 Séneca, Sobre a brevidade da vida, 16,1-5, “Sobre a vida” -70 Atividades encaminhadas fu - 71 Atividades propostas. ooo 7 ete 6 — Rerexors. 7 7 75 Aristoteles, Retorica, 1, 13540 — _-75 Aulo Gélio, Noites aticas, 10, 23 (século Il d.C.) 7 77 Platdo, Timeo, 47 a-e, “A fungdo da visio € da audigio” 7 79 Isdcrates, Sobre a troca (Peri antidléseos), 266-271, "Uma definigao da Filosofia” (354 a.c.) 7 7 oo 79 Cicero, Sobre a natureza dos deuses, 1,1, "Reflexdes sobre os deuses” --80 Vitravio, Sobre a Arquitetura, 2,1, "A origem da construgao” cee 81 -Atividades encaminhadas TECH 81 Auividades propostas 7 ae ee 7 — Exvntssoes: eeeseseseas 1] Lei Ateniense contra a Tirania, 337-6 a.C. Estela de mrmore, com um relevo representando a Democracia a0 coroar 0 Povo de Atenas 90 Inseriptiones Graecae, 1, 1100, “Lei de Adriano sobre 0 azeite 90 Carta de Plinio, © mogo, a0 imperador Trajano, de 112 d.C. (Cartas 10,96), “Processo contra cristaos" Hoe an Resposta do imperador Trajano a Plinio (Cartas 10,97)... 92 Texto atributdo a Plutarco, Sobre a monarquia, democracia e oligarquia, 24, “Sobre 0 governo" as ree ete 92 Atividades encaminhadas it 93 Atividades propostas ee aa ny 8 — Poperes 7 97 Fragmentos poéticos de Safo. et : 97 Institutas, 1, Trechos sobre o patrio poder (cerca de 161 d.C.) .-nunanmnsonen 99 Lisias, Discursos, 2, 17-19, oragio finebre (ca. 390 a.C.), “Sobre a let a. 101 Xenofonte, A constituipao Lacedeménica, 6-7 ee e 102 Quintiliano, Sobre a instituicao oratéria, 5,4;7, “Alguns modos de testemunhar” 102 Filo, Sobre a criagao, 26, 7-8, “A criagao" 7 z 103 Atividades encaminhadas eH pe LOE Atividades propostas. = et 105 9 — Esracos 7 Contrato de matrimonio, Papiro egipcio de 311 a.C...-— 107 Dois grafites pompeianos uote 108 Xenofonte, Econdmico, IV, 1- 11 Deméstenes, Discusso contra Afobos (363 2.0, 4 Patrimonio de um ateniense abastado do inicio do século WV a.C.* 7 112 Estrabiio, Geografia, 17,1, 6-7, “Alexandria” 13, Plotino, Eneade, 1,6,1, “Sobre o Belo’ = Vitsiivio, Sobre a Arquitetura, 6,5, "Os diferentes tipos de edificios e as classes sociais" PetrOnio, Satiricon, 29, “A entrada de uma casa confortivel” z Atividades encaminhadas oa 7 Atividades propostas ee 10 — Expeniesros Poema "O Ovo", atribuido a Simias de Rodes (ca. 300 a.€.) = Catulo, Poema 84 : Luciano de Samosata, A dupla acusagao, capitulo 1 7 Carta de Alexandre aos habitantes de Quios, RIG 33, “A nova realidade citadina’ Papiro Egipcio (259-8 a.C.), trechos entre col.47 e col.52, “Aspectos comerciais do monopélio de leo no Egito” - a Epigramas, Antologit Palatina, 14, “Diversos enigmas” = Maretal, Epigramas eee Sueténio, A vida dos doze Césares, Vicla de Jilio César, 40-43, *Reformas” Atividades encarninhadas 7 Atividades propostas ADREVIATURAS USUAIS B EXPIUSSOES CONSAGRAPAS. AUtoRes oREGos i Aurones LariNos, i i Docuatestacio auqueo.oarca 7 7 ta. INSCRICOES & PAPIROS GREGOS. oe Inscuicoes exresas. oo Auroues MopruNios crranos, M4 115 as 116 418 12 11 124 127 128 128 129 130 131 132 134 -137 139 141 InTRoDUCAO Este livro destina-se a alunos de graduagdo dos cursos superiores de ciéncias humanas, podendo ser utilizado, também, por professores de primeiro e segundo graus e pelo piblico em geral. Esta colettnea de documentos sobre a Antiguida- de Classica responde a uma demanda, ha muito sentida em nosso meio, de um livro que apresentasse um conjunto significative de fontes antigas, ndo apenas escritas como materiais € artisticas. Os documentos escritos foram, em geral, tra- duzidos das linguas originais; em alguns casos especificos, utilizaram-se verses ja existentes em portugués, em particular as transcrigdes poéticas, Procurou-se diversificar, ao maximo, as categorias documentais ¢ os temas abrangidos, visan- do introduzir o leitor 4 grande variedade de abordagens do mundo antigo O livro inicia-se com dois capitulos sobre a anélise documental, seus funda mentos € caracteristicas. Os outros capitulos recolhem documentos, divididos por eixos teméticos, ¢ comentados de maneira mais ou menos aprofundada. Os restan- tes sd seguidos, ao final de cada capitulo, por atividades resolvidas ¢ a resolver. Estas apresentam niveis de complexidade variével, permitindo ao leitor familiari- zar-se com as miiltiplas questdes relativas aos documentos antigos, Um pequeno vocabulario de expressdes classicas.mais usuais encontra-se, a seguir, de maneira a fornecer um pequeno manancial de termos correntes nos estudos cléssicos. Ao final, as obras citadas no decorrer do livro encontram-se listadas em ordem alfabétic: Esta obra ndo teria sido possivel sem a colaboracdo de colegas e de alu nos. Estes tltimos leram diversos capitulos e forneceram importantes sugestdes que, na medida do possivel, foram incorporadas na versio definitiva, Dentre os colegas, caberia destacar as intimeras contribuiges de Martin Bernal, Robin Birley, Maria Beatriz Borba Florenzano, Norberto Luiz Guarinello, Tony Hackens, Joao Angelo Oliva Neto, Charles E. Orser Jr., Jodo Quartim de Moraes, José Remesal, Emilio Rodriguez-Almeida, Roger Tomlin, Bruce G. Trigger ¢ Ellen Meiksins Wood. Em- bora as idéias expostas sejam de exclusiva responsabilidade do autor, as criticas, comentérios e sugestdes foram extremamente titeis, seja na diversificagdo de do- cumentos ¢ interpretagdes, seja para alertar-me de imprecisdes ¢ ambigiiidades a serem evitadas. Diversos apoios institucionais devem ser, ainda, mencionados Assim, diversos documentos s6 foram acessiveis em instituigdes estrangeiras, em particular, no Institute of Classical Studies (Londres) e na Universidade de Barce- lona, A estada em solo europeu para efetuar tais consultas foi financiada, em Nota: Os autores antigos sto citados & maneira usual nos estudos cléssicos: nome do autor; nome da obra, abreviada de forma convencional; livro, capitulo e versicules citadlos, no caso de prosa; ver- 0 citado, no caso de poesia, Assim, Varrdo, RR, 1,1,1 indica a obra “De Re Rustica” (Sobre a Agri- cultura), livro primeiso, capitulo primeiro, versiculo primeiro. ul 2 momentos diferentes, pela Fapese, CNPq, Carss e British Council. Todo este esforco nao se concretizaria, contudo, sem a iniciativa, por parte da Editora da UNicamp & de sua Pro-Reitoria de Graduagdo de propor a criag4o de uma colecao de livros texto destinados aos estudantes universitarios brasileiros. Por fim, este livro foi lido por meu pai, Jodo Funari Neto, e os comentirios e apoio da minha esposa, Raquel, foram valiosos e indispensaveis para sua concretizagao. 1 Documentos: ANALISE TRADICIONAL E HERMENEUTICA CONTEMPORANEA. Introdugdo. © filésofo inglés Bertrand Russel (1957.9), a0 escrever um livro sobre O entendimento da Histéria, lembrava seus leitores que “nas universidades os his- toriadores profissionais dao aulas de dois tipos: cursos gerais, que s4o lembrados apenas o bastante para assegurar a obtengio dos créditos, e cursos topicos espe- cificos para aqueles que se dedicarao, por todas as suas vidas, a0 ensino da His- toria, Aqueles que, por sua vez, ensinarao Hist6ria a outros tantos... O meu objeto, neste trabalho, € a Histéria como um prazer, como um meio agradével e til de usar 0 tempo livre”. A preocupacdo com a fruigdo da Histéria nao deve, efetiva- mente, ser subestimada pois, um dos fundamentos da atividade intelectual con- siste no prazer derivado do conhecimento. Este livro, 4 semelhanga daquele de Bertrand Russel, busca levar o leitor a fruic#o da Antiguidade Classica por meio da apresentacao € andlise de documentos. O piiblico a que se destina esta obra nao se restringe aos graduandos em Historia, mas engloba professores universitérios e alunos de Histéria, Letras, Ci@ncias Sociais, Filosofia, Politica, Arqueologia, assim como professores de primeira e segundo graus € todos os interessados em geral Henri Jrénee Marrou (1965:1538) ressaltava que “seria necessario, também, escrever livros de boa vulgarizacio, veridicos mas que estejam ao alcance do homem co- mum, para alimentar a cultura geral sob a forma mais ampla”. Pretende-se, portanto, que o pitblico deste livro seja bastante amplo e hete- rogéneo. Isso significa que os niveis de anilise e interpretagdo dos documentos selecionados deverio, necessariamente, adequar-se 0s diferentes leitores. Este livro, como um instrumento de trabalho, também, para professores de letras clas- sicas, ndo pode dispensar a apresentacdo, a titulo de exemplo, de textos no original latino ou grego, seguidos de comentarios de carater filolégico, assim como nao pode deixar de apresentar textos traduzidos ao verndculo, para uso da maioria de leitores que no domina aquelas linguas. Nao se espera que todos os leitores acompanhem todos os comentarios, nem que as énfases historicas, arqueolégicas ¢ filologicas, entre outras, das andlises especificas sejam reproduziveis por todos os'leitores. Nao seria natural supor que pessoas, com interesses e conhecimentos diversos, fossem capazes, ou estivessem interessadas em estudar os documentos da mesma forma que os diferentes especialistas: ainda menos se deve exigir do leitor atraido, principalmente, pelo deleite da leitura dos textos! No entanto, os textos aqui selecionados podem ser lidos, com facilidade, por todos ¢ os comen- trios, embora de profundidade variada, permitem aos leitores de campos ¢ interes- ses vizinhos observar como trabalham os diferentes especialistas 8 “ Esta introdugdo visa apresentar algumas das principais questées subjacentes aos documentos, sua andlise e as premissas que regeram a selegao de temas abordados. A anilise tradicional do documento © documento foi definido tradicionalmente como um texto escrito a dis- posigao do historiador. Fustel de Coulanges (1888:29;33) afirmava que “a habilida~ de do historiador consiste em retirar dos documentos o que contém e nada acres- centar... A leitura dos documentos de nada serviria se fosse feita com idéias precon- cebidas". A partir deste pressuposto, dois procedimentos basicos deveriam ser adotados, denominados, convencionalmente, de critica externa e critica interna. A busca da veracidade do relato, implicita nesta abordagem, deveria ser levada a cabo, em primeiro lugar, por um estudo dos aspectos externos do documento. A materialidade do texto deveria ser questionada e posta a prova: haveria incom- patibilidade entre a data escrita no texto e sua composi¢ao fisica? Por exemplo, um texto datilografado nao pode ser anterior a invengao da maquina de escrever, nem 0 uso da imprensa pode preceder Gutemberg. Caso um texto datilografado apresente uma assinatura de Jilio César (primeiro século a.C.) pode concluir-se, pela critica externa, material, do documento que este ¢ falso. Um texto escrito apresenta, também, uma série de informagdes que podem ajudar a caracterizar 0 documento como verdadeiro ou falso. A critica interna visa verificar se h4 motivos para duvidar da sua autenticidade devido a informagoes inverossimeis. Um tipo de inverossimilhanga muito comum € 0 anacronismo. Se um documento afirma que dom Pedro I, quando subia a Serra do Mar para pro- clamar a Indepedéncia do Brasil, utilizou-se da Via Anchieta, pode constatar-se que o documento é falso, pois nao havia, em 1822, essa rodovia. E provavel que ambos os casos apresentados para ilustrar as criticas externa e interna parecam por demais Sbvios ¢ improvaveis e realmente o sao. Na pratica, apenas um co- nhecimento aprofundado das condigdes materiais ¢ historicas de insercdo do documento permite levar a cabo as criticas externa e interna Também o estudo das fontes disponiveis para 0 autor antigo e seu acesso a elas (Quellenforschung) apresenta-se como um trabalho arduo. As vezes, a re- feréncia textual a uma fonte € explicita, como o faz Aristételes em sua Constitui- ¢do de Atenas: “Os membros da comissio escreveram e deram a piblico o seguinte: a boulé (senado) consistira de membros de mais de trinta anos de idade, tendo exercido um cargo anual e sem receber remuneragao; dentre estes, os generais, 08 nove arcontes, os secretirios sagrados, os comandantes, os cavaleiros, os chefes das tribos, 08 oficiais da guarda, os magistrados tesoureiros dos bens sacros da Deusa Atena, 0s dez tesoureiros dos outros deuses...” (Arist6teles, Athenaion Politeia, 30, 1-2) Nem sempre ha uma citagio clara e direta de documentos. De qualquer forma, no entanto, esta hermenéutica, surgida como uma reagao 4 falsificaco de 15 documentos levada a cabo, amplamente, durante a Idade Média (Lozano 1987:69) partia da nogao de que seria possivel “mostrar as coisas tal como, realmente, aconte- ceram” (wie es eigeintlich gewesen), nas palavras de Leopold von Ranke (1824: Vil; of. Marrou 1966:43; Marwick 1976:34-40). Pode mesmo afirmar-se que este positivismo fundou a moderna ciéncia histérica. Nao € A toa que outro grande propugnador da critica documental tenha sido Barthold Georg Niebuhr (1811), estudioso da Antiguidade Classica, pois a erudi¢ao filolégica constituiu um pilar indispensavel para a andlise textual. De fato, apenas © conhecimento aprofundado da linguagem utilizada nos documentos permite a execucio de uma sélida critica interna. Hoje nao é dificil saber que 0 uso da palavra avido por Pedro Alvares Cabral nao seria possivel e, portanto, que um documento que a colocasse em sua boca deveria ser posterior a Cabral, o mesmo nao se passa com documentos mais antigos. Apenas uma grande erudi¢ao, um dominio exaustivo das linguas grega e latina, permite julgar se termos especificos deveriam ser conside- rados verdadeiros ou espirios. © uso de termos anacrOnicos permite questionar a veracidade das afirmagdes de um documento. Assim, Cassio Dio, escrevendo no século terceiro da era crista, relata os acontecimentos do final da repiiblica romana (44 a.C.) a partir de conceitos da sua propria época: “Os assassinos de César declararam-se, 20 mesmo tempo, como responsaveis pela sua eliminacdo e como libertadores do povo: na verdade, entretanto, fizeram uma conjuragao impiedosa e langaram a cidade na desordem quando se iniciava a ter um governo estivel. A Democracia, de fato, parece ter um nome justo e, pot meio da isonomia, parece trazer a todos direitos iguais: suas conseqléncias, entre- tanto, n4o condizem com seu nome. A Monarquia, por sua parte, soa mal, mas garante, de maneira pratica, a melhor administragdo. Afinal, é mais facil encon- trar um Gnico homem excelente do que muitos” (Dio, Historia, 44,2). A monarquia tratada por Cassio Dio refere-se ao governo imperial de inicios do século terceiro, sob a dinastia dos Severos, época em que 0 proprio Dio serviu como cénsul (229 d.C.). © imperador, chamado, envio, de dominus (senhor), era, efetivamente, um monarca. No entanto, 0 uso desses termos € conceitos para tratat do assassinato de Jtilio César nao reflete nem a terminologia nem as posicdes politicas em jogo no periodo da narrativa, Logo, o texto de Dio Cassio reflete mais sua propria época do que a do inicio do principado. A moderna ciéncia hist6rica, baseada na critica factual do documento es- crito, surgiu, justamente, como resultado da a¢ao de classicistas e estabeleceu os termos da andlise textual tradicional. © passado e o presente: a Historia e a hermenéutica contemporanea A Historia continua sendo 0 conhecimento por meio dos documentos (Carrard 1986:49) mas redefiniram-se os conceitos de Histéria e de documento. 16 Laurent Stern (1990:562) recorda a distingao entre “os eventos que ocorreram (res gestae) € nosso relato a seu respeito (historla rerum gestarum). De acordo com a boa intuicao, os eventos passados ndo podem mudar, mas nossa compreensdo destes eventos muda” (grifo acrescentado). De fato, ndo se deve confundir passado e re- lato do passado, acontecimentos objetivos intangiveis e a narrativa historica, O pensador francés Raymond Aron (s/d:11) ressaltava que “a mesma palavra refere- se & realidade hist6rica e a0 conhecimento dela derivado. Historia designa, 2 um 36 tempo, o passado ¢ a ciéncia que os homens esforgam-se em elaborar a partir desse passado”. Nas linguas modernas apenas o alem%o conserva uma diferenga clara entre Historia objetiva, 0 Passado, que passou e nio volta mais (die Geschichte, einmaliges Geschehen) e a Historia como narrativa, criagéo sempre no e do pre- sente (die Historie; cf. Stierle 1975). Os romanos talvez tenham melhor oposto os acontecimentos (res gestae) sua recriagdo na meméria, numa narrativa (memoria rerum gestarum). A meméria, por definic4o, € uma recriagdo constante no presen- te, do passado enquanto representacdo, enquanto imagem impressa na mente. A relagdo entre a representagao na meméria ¢ a realidade € mediada, sutil e indireta: Utcumque erit, iuuabit tamen rerum gestarum memoriae principis terrarum populi pro uirili parte et ipsum consuluisse... Quae ante conditam condendamve urbem poeticis magis decora fabulis quam incorruptis rerum gestarum monumentis traduntur, ea nec adfirmare nec refellere in animo est (Tito Livio, Ab urbe con dita 1, 3;6). “Como quer que seja, seré agradavel relatar, da melhor maneira possivel, 0s feitos do mais importante dos povos... Aquilo que se refere ao periodo antes da fundagao ou do proprio plano de criagdo da cidade foi transmitido mais pelo encanto da poesia do que por monumentos integros dos acontecimentos. Nao se pretende, aqui, nem confirmar nem negar tais relatos.” Tito Livio (59 a.C. — 17 d.C.) descreve, de maneira admiravel, a subjetivi- dade inevitavel do relato histérico. As palavras utilizadas tornam claras as quest6es centrais do discurso historico: 0 relato dos acontecimentos (memoria rerum gestarum) nada pode confirmar (adfirmare), mostrando firmeza (firmitas), nem demonstrar ser enganoso (refellere), por ter escapado da meméria, O relato que convém (decet), de bela aparéncia, condiz com 0 decoro da tradigao oral (deco- 1a fabulis tradundur). A fébula, a historia tradicional, opde-se aos fatos, “das fa- bulas cabe chegar aos fatos”, como jé propunha Cicero (a fabulis ad facta uenire, Cie. Rep. 2,3 fin). Tito Livio refere-se aos feitos como “monumentos integros dos acontecimentos”, portanto, também como “lembrangas” (monumenta) e sua dis- tingdo das fébulas d4-se Ulo-somente no fato de terem sido potencialmente, “trazidas sem adulteragio” na meméria (traduntur incorruptis monumentis). A meméria deixa muito escapar (fallere) ¢ nao é facil demonstrar a firmeza (firmitas) das diversas afirmagdes (adfirmace). 0 Tito Livio no pretendia chegar a descrever o passado tal qual teria ocor- rido (wie es eingentlich gewesen), pois, como os pensadores tém ressaltado, isto € algo impossivel ¢ irrelevante. Impossivel, na medida em que nao se possuem sendo fragmentos minimos do passado mas, impossivel também, porque tudo des- crever, ainda que fosse factivel, acabaria por nada explicar, esvaziando de sentido © relato. Inrelevante, pois o presente sé se interessa pelo passado em fungao de si prdprio e do futuro, Bruce G. Trigger (1989:778) constatou, recentemente, que “hé um apoio crescente para a idéia que nao € possivel uma compreensao objetiva da hist6ria ou do comportamento humanos”. A subjetividade subjacente a toda compreensio hist6rica, explicitada tantas vezes pelos pensadores antigos, tem sido ressaltada pelo moderno pensamento historico (Fox 1993:47). Na verdade, j4 0 poeta alemao Goethe reconhecia que ‘toda aco é, imediatamente, teoria”, to- dos 08 atos, inclusive os relatos, sdo resultados de modelos de interpretac4o (Maier 1984:86), A propria razdo, a maneira de compreender ¢ interpretar a sociedade ¢ 0 mundo, seja estaticamente, seja nas suas transformacoes, é historicamente deter- minada (Koppenberg 1989:1011). David Lowental (1985:412) resume bem a relati- vidade do discurso hist6rico ao afirmar que “é muito melhor considerar que o passado sempre tem sido alterado do que pretender que sempre foi o mesmo. nao podemos evitar a refaccdo constante do nosso patrimdnio, pois cada ato de reconhecimento altera 0 que sobrevive". A oposig2o entre fatos e interpretacdes, na base do positivismo oitocentista em busca das “evidéncias” histéricas, tem sido, igualmente desmantelada, O uso do termo evidéncia pelos anglo-saxdes para referir-se aos fatos, acontecimentos ou dados objetivos parece particularmente significativo. A evidéncia, enquanto “aquilo que é visivel”, nao se confunde com a realidade, sendo, antes, algo a ser decifrado, visto (Partner 1986:105). Evidéncias, nada evidentes no sentido corriqueiro da palavra, nao podem fundar as interpretagdes mas, 20 contrario, sio estas que criam as evidencias e os fatos (Somekawa & Smith 1988:152). A oposigdo entre fatos e teorias mostra-se, nesta perspectiva, artificial e enganosa (Tabaczynsky 1984:21). Até mesmo a dife- renca entre historia ¢ mito tem sido posta em questo. O presidente da Associagao Americana de Historiadores William H. McNeill (1986:8-9) chegou ao ponto de pedir aos seus colegas norte-americanos que reconhecessem que nao produziam “verdades eternas e universais”, mas uma “historia mitica” (mythistory): As raizes da explicag&o histérica encontram-se sempre, no presente, nas sociedades e cul- turas de determinados periodos, nas quais se insere o historiador (Burguiere 1982:427). P. Furet (1967), por exemplo, € seu estudo sobre “os intelectuais fran- ceses e 0 estruturalismo” nao seriam possiveis no século passado, assim como nao poderia haver uma interpretagao marxista da Histéria no século XVIII! A aceitag&o da subjetividade da Hist6ria deve ser ligada a dois processos da vida intelectual do século XX. Em primeiro lugar, ao influxo da Filosofia deve ser creditada a difusao da propria nogao de subjetividade. Todo conhecimento, nao apenas, nem especificamente, 0 conhecimento do passado, mas toda a com- 18 preensio (verstehen) resulta de sujeitos do conhecimento, As fisicas de Newton e de Einstein centram-se em torno de sujeitos especificos (Newton e Einstein), cujas teorias explicativas, subjetivas portanto, propéem explicagées a partir de pontos de vista diversos. O filésofo italiano Benedetto Croce pode ser citado como um dos introdutores, no estudo da Historia, do sujeito (Davis 1983:19) € 0 arqued- logo britinico R. Collinwood (1965:54), de grande influéncia no mundo anglo- saxo gracas ao seu livro A idéia da Histria (Oxford, 1946), explicitava que “cada historiador vé a Historia desde sua propria perspectiva € 0 proprio ponto de vista do historiador nao é constante”. Embora outros tenham sido os cami- nhos em paises de fala francesa e alema, também af a aceitacdo da subjetividade foi introduzida no discurso histérico desde as primeiras décadas deste século (cf. Koselleck 1979). Georges Duby (1980:44;49) descreve, de mancira quase poéti- ca, a delicada posigao do historiador: Je suis persuadé de l'inévitable subjectivité du discours historique... J'en suis persuadé, ’histoire, c'est au fond le réve d’un historien — et ce réve est tres fortement conditionné par le milieu dans lequel baigne en effet cet historien Pe “Estou convencido da inevitavel subjetividade do discurso historico... Estou convencido: a Hist6ria é, no fundo, o sonho de um historiador — € este sonho é grandemente condicionado pelo meio no qual se insere este historiador”. Palavras fortes que déo bem a nocdo do caminho percorrido pela historia cientifica, neste século, em direcZo aos condicionamentos contempordneos da interpretagdo do passado (Shanks & Tilley 1987:1 et passim). Paralelamente @ filo- sofia, a lingiiistica e a semidtica viriam influenciar, decisivamente, o estudo de todas as ciéncias, em particular as humanas. A no¢do de que todo conhecimento ex- pressa-se, necessariamente, como um discurso implicou o reconhecimento da importancia de sua autoria e de seu piiblico, assim como da forma e contetdo desse discurso. A aceitagao da nogao de subjetividade, por si mesma, nio responde A questo central: por que diferentes historiadores tém diferentes pontos de vista? A autoria do discurso histérico, entretanto, significa que o produtor do texto, a partir dos seus interesses individuais e coletivos, visa fazer crescer, no seu piblico, sentimentos e sensagdes: auctor, o autor, nada mais € do que aquele que faz cres- cer (augere). “Historiadores especificos interpretam o passado diferentemente por causa dos pontos de vista pessoais ¢ dos interesses de classe que trazem consigo” (Trigger 1989:778). A narrativa, 0 relato como construgao discursiva, passa a0 centro das refle- xdes. Os termos empregados para referir-se ao discurso hist6rico conduzem-nos a diegesis dos gregos: detalhamento, descrigao (Platdo, Reptblica, 392d.). Assim, Franz Goerg Maier (1984:89) afirmava que “o texto histérico ndo € mimesis, mas diegesis": no recria, como imitagao, a realidade, mas consiste em um trabalho de jungao de acdes esparsas, por parte do historiador. Os alemaes utilizam-se da 19 expresso Erzachlung (relato) para referit-se ao discurso hist6rico e fazem-no muito apropriadamente pois o termo compée-se de zaehlen (contar) e do prefixo er (para fora): Erzaehlung representa uma narrativa, um conto (cf, tale, em inglés), ficticio ou veridico. A importancia do cardter narrativo da Hist6ria ultrapassa a constatac4o da estruturacdo logica da narrativa (Kocka & Nipperdey 1979:11) e atinge a propria definicao ontolégica da disciplina. “A pesquisa hist6rica e 0 texto do historiador ligam-se pela estrutura da narrativa; a narrativa, como forma de organizagio his- t6rica, é a base, o principio estruturador e o objetivo da Hist6ria, adquirindo um sentido transcendental” (Baumgartner 1979:289). A narrativa historica requer, portanto, habilidades de exposigio, explicagao € persuasio através do uso das palavras (Elton 1967:106). Tradicionalmente, a oposicio entre est6ria (res fictae) ¢ Historia (res factae) permitia separar a litera- tura ficcional da Historia (Mommsen 1984:68). Mas ciéncia ¢ arte, outrora tao opostas, constituem, nas ciéncias humanas contempordneas, aspectos interligados do discurso (Strasburger 1966:55). A.L. Rowse (1946:55) chegava a afirmar que “a Hist6ria esté muito mais perto da Poesia do que, em geral, se admite; na ver- dade, penso que, na esséncia, so iguais”. Essa aproximagio entre a ficc4o e a Historia deriva, justamente, da dificuldade de distinguir, enquanto construgdes discursivas, relatos histéricos e ficcionais (White 1976:22). H4 quem nao hesite em renomear a Hist6ria: est6ria (story, Elton 1970:5), antes de mais nada um gé- nero literario (un genre litiéraire par excellence, Cizek 1991:136) Nao seria 0 caso de dissolver, completamente, as diferencas entre a ficgao € a ciéncia, pois o discurso cientifico tem, sempre, que manter uma relagdo entre sua criagdo estética e os documentos. “Contrariamente a ficga0, os fatos esto su- jeitos a verificacao documental e, diversamente do realismo magico, por exem- plo, a Historia tem de respeitar regras de infer€ncia conformes 3 légica” (Bonifacio 1993:629). No entanto, 0 carater poético, estilistico e retérico do discurso cienti- fico constitui um elemento central da hermenéutica contempordnea. As palavras escolhidas, a maneira de apresenté-las, a estrutura est€tica da argumentacio for- mam o nécleo de qualquer discurso. Michel Foucault (1984:13) pode servir como exemplo desta estética: Je ne suis ni helléniste ni latiniste, Mais il m'a semblé qu’a la condition d'y mettre assez de soin, de patiente, de modestie et d’attention, il était possible dacquérir, avec les texts de I’Antiquité grecque et romaine, une familiarité suffisante; je veux dire une familiarité qui permette, selon une pratique sans doute constitutive de la philosophie occidentale, d'interroger 4 la fois la différence qui nous tient a distance d’une pensée ou nous reconnaissons lorigine de la nétre et la proximité qui demeure en dépit de cet éloignement que nous creusons sans cesse. “Nao sou helenista ou latinista. Mas me pareceu que, com a condigao de dedicar muito esforco, paciéncia, modéstia e atengao, era possivel adquirir, com 08 textos da Antiguidade grega e romana, uma familiaridade suficiente; quero dizer 20 uma familiaridade que permita, segundo uma pratica sem diivida constitutiva da filosofia ocidental, interrogar, ao mesmo tempo, a diferenga que nos distancia de um pensamento que reconhecemos na origem do nosso ¢ a proximidade que permanece, a despeito deste distanciamento que estabelecemos continuamente.” (cf. Foucault 1985:12, com traducdo ligeiramente diferente), A pequena nota visa dissipar possiveis objecdes quanto a capacidade do filésofo de dominar a documentagao greco-romana sobre o tema tratado, neste caso a Historia da sexualidade, O autor comega, estrategicamente, reconhecendo ndo ser especialista na Antiguidade Classica. Esse.reconhecimento sincero visa granjear a simpatia do leitor e induzi-lo a aceitar a proposta das frases seguintes: 0 esforco teria permitido ao autor conhecer o suficiente as fontes antigas. Juntam- se, em um mesmo nivel, dois elementos dispares, 0 trabalho (‘cuidado, paciéncia, atendo") e 0 reconhecimento da “modéstia”, da falta de pretensao do discurso que sera proposto. Portanto, 0 leitor conta com duas assertivas que buscam Ihe assegurar a confiabilidade do discurso: esforgo e modéstia. A seguir, o autor re- forca a autoridade do seu discurso recorrendo a sua insergao na tradicao do tra balho filos6fico ocidental, © trecho termina com um excurso sobre distancias e proximidades entre o pensamento antigo € moderno que, a rigor, nao diz respeito 4 questao das qualificagdes do autor para atar dos autores antigos. Funciona, portanto, como bela reflexio filos6fica a fim de convencer o leitor de que a questéo do dominio da documentagao, proposta no inicio da nota, foi resolvida E claro que havera quem note que “Michel Foucault negligencia a evidéncia de inGmeros textos antigos, altamente relevantes” (Hallett 1993:48). No entanto, a eficdcia argumentativa do autor tem conseguido larga aceitag4o gragas, em gran- de parte, a sua poética, a bela construcao discursiva (Carroll 1993). Na verdade, todos os textos, sejam antigos ou modernos, de historiadores, politicos, filésofos ou romancistas, devem ser considerados como discursos, estruturados por autores especificos para piiblicos determinados, visando objetivos concretos bem delinea- dos (Rigney 1988). Sua expressao implica, sempre, uma estética persuasiva. Ade- mais, “o discurso histérica que quer provar que o que diz € verdade apresentara © efeito verdade” (Lozano 1987:210, grifo acrescentado). Esse efeito verdade con- siste, justamente, na pretensao discursiva de descrever a realidade tal qual € con: titui um dos principais elementos de diferenciacao do discurso cientifico em relagao a ficco. Um exemplo permite avaliar 0 alcance do efeito verdade: “Fora de Atenas, a luta de classes politica, no quarto século a.C., tornou-se, muitas vezes acutissima, Ricos € pobres encaravam-se com um 6dio amargo e quando a revolugao acontecia havia execugdes em massa € exilios, confiscos de propriedade, ao menos dos lideres dos partidos opostos” (de Ste Croix 1983: 298), © autor “descreve” alguns acontecimentos do século IV a.C. como se ape- nas relatasse verdades Obvias. De fato, contudo, utiliza-se de um arcabougo interpretativo muito especifico, nao compartilhado por inémeros especialistas (cf. Wood 1989:64-73). Ha quem considere que nao havia classes na Antiguidade, a outros negam a validade de conceitos como “uta de classes” ou “revolugao” para © periodo; h4 quem considere o uso de express6es como “6dio amargo” inade- quado. De qualquer forma, esse discurso pretende ser uma simples descricdo da realidade, A analise do discurso permite, justamente, estudar qualquer documento como construgdo complexa, estruturada, com autoria, piblicos e objetivos espe- cificos. Esta, talvez, a maior aquisi¢o da moderna semidtica para o estudo da Historia. O estudo do discurso hist6rico ¢, contudo, particularmente complexo. A inter- penetracdo entre a interpretaco e os acontecimentos objetivos impossibilita a execucao de uma descricao dos fatos: retornando ao exemplo citado acima, como descrever assassinatos politicos e revolugdes sem recorrer a conceitos? Os aconte- cimentos, as mortes ¢ as alteragdes politicas, descritos nos documentos, 86 $40 inteligiveis em um discurso légico, com uma seqiiéncia de argumentos. Separar “fatos” de interpretagdes torna-se uma tarefa intitil. Ao contrario, 0 estudo dos relatos como construcdes discursivas permite uma visao critica dos motivos e ob- jetivos subjacentes a todos 0s discursos. Atividades encaminhadas 1, Caracterize 0 surgimento da ciéncia histrica no contexto da hist6ria in- telectual do século XIX. Ohistoricismo de Ranke surgiu nto contexto de uma reagdo ao racionalismo fran- és do lluminiomo, ao considerar falsas as teorias abstratas do conhecimento. Ranke, segundo Draus (1985:120 et passim), considerava que a verdadeira teoria clentifica procura compreender 0 sentido profundo ¢ Individual dos acontecimentos histéricos, Opunha-se, igualmente, a filosofia idealista da histéria de Hegel, ao considerar a his téria universal como uma totalidade global composta de intimeras histérias espectfi- cae, cada uma delas com identidade prépria e intranspontvel, For exceléncia, as hiotorias nacionais conetitulam os centros de atengo do historiador. Em termos metodolégicos, buscava-se 0 conhecimento exato ¢ preciso dos acontecimentos, deixando de lado a especulagao filoséfica. Na medida em que 08 acontecimentos tenham acorrido objeti- vamente, na realidade, haveria apenas uma verdade histérica, a ser, simpleemente, des- coberta pelo historiador. 2, Caracterize o papel da erudigao filolégica na critica documental tradicional, Os documentos eseritos devem ser analisados filologicamente em trés sentido: quanto ao vocabulério, & morfologia ¢ & eintaxe. O eetudo de todas ae palavras utiliza~ das, em particular sua etimologia, polissemia € contextos de utilizagdlo, conetitul a primeira fase da andlise, |seo permitiré estabelecer, entre outras coleae, o nivel de ve~ 2 racidade do documento ¢ as sutilezae de significag#o. A morfologia permite observar 0 sentido exato das frases e, até mesmo, as classes socials refletidas na linguagem (\in- gquagem culta, vulgar, urbana, camponesa etc.). 0 uso de certas formas verbais, por exemplo, ¢ a coordenagio dos tempos (consecutio temporum) conetituem etapas da andlise morfoldgica. A andlise sintAtica permite observar 0 uso articulado das frases @ a6 divereas nuangas de sentido. 3, Caracterize a relacdo entre ficcao e relato hist6rico. A oposigHo entre ficcdo e Histéria fol caracterizada, de maneira explicita e clara, por Aristételes (Fostica, 1451b): “nio diferem o hietorlador e poeta por escreverem vereo ou prova... diferem em que um diz as coisas que sucederam e 0 outro a6 que poderiam suceder. For isso, a poesia é algo mais filoséfico ¢ mais sério do que a Histéria, pois refere-ce aquela, principalmente, ao univereal, ¢ esta ao particular: For ‘referir-se 20 universal’ entendo atribuir a um individuo de determinada natureza pensamentos & agBes que, por liame de necessidade e verossimilhanga, convém a tal natureza; € ao universal, assim entendido, viea a poesia, ainda que dé nomes ds suas personagens; particular, pelo contrério, é 0 que fez Alcibiades ou o que Ihe aconteceu.” (Tradugio de Eudoro de Souza, com pequenas alveragBes.) A Historia refere-se ao que s¢ fez (praxis) ¢ a0 que fomos submetidos objetiva- mente (pathein), segundo Arietételes. A partir da oposig&o entre acontecimentos re- ais ¢ imagindrios, 0 positiviemo contrapds a verdade & falsidade, o relato verdadeiro ao inventado. Nos Uiltimos anos, cortudo, tem-6e resealtado a subjetividade inevitAvel do observador, tornando dificil chegar & verdade absoluta e objetiva, ¢ a Impoosibilidade de descrig&o absolutamente neutra. JA 0 historiador judeu, escrevendo em época romana, em grego, Flavio Josefo (primeiro eéculo a.C.) admivia que iria “descrever os fatos com preciedo ¢ imparcialidade. Ao mesmo tempo, a linguagem:com que registro 0s acon- tecimentos refletiré meus proprios sentimentos e emogdes” (A guerra judaica, prefa- clo 4). A narrativa histériea, portanto, n&o pode deixar de possuir a subjetividade das emogées refletida na linguagem, na forma do discurso (cf. Funari 1992:29 et pageim), 4, A moderna semidtica tem tratado do discurso cientifico, em geral. Reflita sobre os usos do estudo da narrativa para a compreensdo do discurso hist6rico. Uma das principals contribuigdes da semidtica para a andlise do discurso cien- titico consiste na constatagdo da inexisténcia do relato sem narrador (Lozano 1987:196-210). Mikhail Bakhtin (1979) prop6s que o cientista execute um conhecimento dialégico, uma compreensio criativa, incluindo a época, cultura ¢ idiossincrasia do au- ‘tor do texto. Torna-6e, assim, cada vez mals neceseArio indluir tanto 0 documento como 0 estudioso nos seus contextos historicos, socials ¢ intelectuais. A especificidade da ciéncia, contudo, reside na relagao entre os autores e suas interpretagdes € um con- junto de dados de base, as “evidéncias". Estas so construldae pelo cientieta, a partir de euas proprias concepedee ¢ Interesses, mas guardam uma relago com as informa~ Bes objetivas. Para assegurar que 0s dados sejam verdadeiros, no sentido de niio se~ rem falsificagdes ou invengdes do proprio pesquisador, é necessério incluir a ética. Apenas 0 compromisso subjetivo, moral, de utilizar-se de evidéncias verdadeiras ga- rante a validade de uma interpretag%o, por parte do clentista, e permite que ee|a con- ‘treiposta a outras interpretagdes. A Deontologia, portanto, consiste no estudo dos compromizeos éticos do pesquisador ¢, por conseqiiéncia, do eeu discurso. A semidtica, ao enfatizar esses aepectos subjetivos da andlise de diecurso, permite chegar aos objetivos dos textos e constitui um instrumento analitico muito Util para o estudo de qualquer documento, antigo ou moderno, escrito ou material, Atividades propostas 1. Reflita sobre as técnicas de veridicgao, ou busca da veracidade, na critica documental tradicional. 2. Reflita sobre as técnicas de estudo das fontes disponiveis para 0 autor de um documento escrito. Procure,em obras sobre a pesquisa historica, as caracte- risticas e transformacdes da Quellenforschung (estudo das fontes). 3. Busque, na historiografia contemporanea, identificar o cardter narrativo da Hist6ria e suas implicagdes para o estudo do passado. 4, Alguns historiadores tm questionado a propria cientificidade do discurso hist6rico, a partir de diferentes pontos de vista. Pesquise a relacao entre mito e historia no pensamento greco-romano e na moderna historiografia, em particular no que se refere aos autores que defendem a historica mitica (mythistory). 5. Contraste a subjetividade do historiador, tal como proposta por Collinwood € pela historiografia de lingua inglesa, e a subjetividade tal como concebida pe- Jos historiadores franceses, desde a Escola dos Annales até a Nova Historia. 6. Os estudos literarios € lingilisticos tém sido fundamentais para as ciénci- as humanas e sociais contemporaneas. Busque identificar as origens e caracteris- ticas dessas influéncias e quais suas conseqiiéncias, 7. Procure localizar, em textos sobre a Antiguidade Classica, 0 uso de ter- mos modernos para descrever a sociedade antiga (e.g. imperialismo, luta de classes, revolugao, partidos, homossexualidade). Procure analisar como a utilizaco dessa terminologia, que inevitavelmente reflete o universo conceitual contemporaneo 20 pesquisador, poe problemas e questionamentos ao estudioso da Antiguidade 2 ANALISE DOCUMENTAL E ANTIGUIDADE CLASSICA Os documentos e sua selecdo A tradigao historiogrifica considerava como documento hist6rico textos escritos, em particular referentes a histria politica stricto sensu, Ainda hoje, nos cursos de letras classicas, paralelamente aos cursos dle Hist6ria, costuma-se ignorar toda produgao literaria ndo-classica. Judith P. Hallett (1993:49) cita o exemplo de Valério Maximo como paradigmatico. Considerado, no inicio do século passado, por Niebuhr como importantissimo, devido ao uso da sua obra Facta et Dicta Memorabilia na Idade Média e no Renascimento, foi relegado, a partir de meados do século XIX, ao esquecimento, sefa nos curriculos, seja nas colecdes de autores antigos. O mesmo poderia ser estendido a uma imensidao de autores antigos. Desta forma, centrando-se em acontecimentos politicos da elite € nos poucos autores considerados “classicos’, exclui-se a maior parte da historia e da cultura antigas das nossas reflexées. No entanto, a tendéncia das ciéncias humanas tem sido pri- vilegiar a multiplicagdo de objetos, de abordagens e, conseqiientemente, de fontes de informacao (Iggers 1984:195;201 et passim), orientagao que sera seguida nes- ta coletanea. Esta colegdo de documentos destina-se, a um s6 tempo, a uma gama de leitores que compreende historiadores, classicistas, arquedlogos, antropdlogos, arquitetos, historiadores da arte, filsofos, cientistas politicos e 0 piiblico em geral Por isso serao incluidos, entre os tipos de documentos, escritos diversos, como poesias, ficco, historias, inscrigdes, reflexdes filos6ficas, politicas; sera apresen- tada, ainda, a cultura material: vasos cerimicos, pinturas parietais. Todos esses documentos serio interpretados como discursos a serem lidos como resultados da elaboracao humana, evitando falsas oposicoes entre diferentes tipos de evidéncias, materiais e textuais (Sherratt 1990:821): s4o todos, igualmente, produtos da cultura A selecdo de documentos procurou evitar a reprodugao da nogdo de “principais” eventos, autores ou monumentos “superiores’. Esie 0 principal risco de uma cole- tanea induzir o leitor a considerar que ali est reproduzido “aquilo que é mais importante’. J4 foram discutidas, nesta introdugao, a subjetividade e parcialidade inevitaveis do trabalho cientifico ¢ nao caberia reforcar uma falsa nocdo de obje- tividade e exaustividade induzindo o leitor a crer que aqui estariam os documen- tos indispensaveis Ao contriirio, a selegao procurow abranger um grande espectro de temas, de tipos diversos de documentos, analisados a partir das diferentes ciéncias hu. manas. Sem descuidar do erudito € do grandioso, incluiram-se o corriqueiro € 0 comezinho (the recovery of the everyday or the mundane, nas palavras de Giddens 25 26 1987:65). O trivial revela, em nivel do detalhe, constancias e permanéncias dificil- mente acessiveis pelo estudo exclusivo dos “grandes textos” (Burke 1989:4). Seria, talvez, desnecessario frisar que no € possivel estudar 0 corriqueiro sem o gran- dioso, o popular sem o erudito, pois a interacao entre as chamadas “alta” e “baixa” culturas esta no cerne mesmo de qualquer producdo intelectual (Strauss 1993:217). ‘A valorizagao do popular e do trivial, surgida como contraposigao a uma concen- tragdo exclusiva nas elites (Beik 1993:210;212), embora busque resgatar a especificidade das culturas erudita e popular utilizando-se de um modelo bipolar de andlise (Ginsburg 1986:108), nao pode ignorar a interagao constante entre ambas (Funari 1991:19). ‘Os documentos procuram abranger diferentes categorias documentais: textos transmitidos pela tradicao textual, epigrafes, restos arqueologicos. Diversas, também, as abordagens: textos filos6ficos, poesias, documentos oficiais, leis, Isso permitira a0 leitor familiarizar-se com a variedade de documentos disponiveis e com as dife- rengas de andlise que cada categoria documental impde aos pesquisadores. Andlise documental e sua diversidade Os documentos podem ser analisados de mUltiplas maneiras tendo em vista, em particular, os niveis de profundidade do estudo, as diferentes disciplinas e os diferentes paradigmas ou modelos hermenéuticos. A profundidade de uma andlise varia segundo a especializagao do estudioso e a expectativa do piiblico. Este livro, ao voltat-se para um publico heterogéneo, composto de professores universitérios, estudantes ¢ leigos, apresentard andlises, referentes a diferentes documentos, que satisfacam estes trés niveis de pro-fundidade. Isso ndo apenas, nem principalmente, para satisfazer os diferentes pitblicos, mas para servir como exemplo e modelo de anilises aprofundadas e exeqiliveis. O mesmo pode ser estendido, mutatis mutandis, para as abordagens das diferentes disciplinas: historia, filologia, arqueologia. Ha muitos modelos de andlise documental. Referindo-se a textos escritos e voltando-se para estudantes, alguns procedimentos tém sido ressaltados por dife- rentes autores. Alguns conselhos praticos e bastante simples séo lembrados em manuais de amplo uso e merecem ser citados (cf. Nouschi 1980:4-9): leituras suces- sivas do texto devem ser seguidas pela constituigdo de uma bibliografia pritica e precisa. Cada pardgrafo deve ser resumido no seu contetido substancial. O comen- trio deve incluir detalhes sobre o autor e as circunstancias histéricas. Outros pro- poem um roteiro mais detalhado (cf. Lozano & Mitre 1978:128-131); 1, Aspectos externos, com estudo da tipologia de fontes (texto de ficcao, legislativo, epistolar etc.), lugar de origem e datagdo do texto, estilo e caracteristicas lingUisticas; 2, Resumo, consistindo em uma sinopse do texto; 3. Contexto histéri- co, inserindo © texto em quadros cronol6gicos, geograficos ¢ tematicos (e.g. eco- nomia, cultura, politica, guerra) especificos; 4. Explicac4o detalhada do documento, envolvendo um estudo minucioso dos termos utilizados em seu context a toria, inserindo 0 autor nas circunstancias e no meio cultural; 6. Conclusao, in- cluindo 0 texto no contexto das abordagens historiograficas sobre o tema e 0 periodo; 7. Bibliografia consultada. Especialistas, contudo, levam a cabo um estudo mais aprofundado, que inclui, no caso dos documentos classicos, a chamada critica textual (Marichal 1961) Esta visa 0 estabelecimento do texto a partir dos manuscritos originais, cabendo localizar os etros dos copistas, as interpolagdes posteriores, o estabelecimento da genealogia das cOpias disponiveis, a critica da proveniéncia, fixagao da data, iden- tificagdo da origem, busca das fontes (Quellenforschung). A esta critica externa, material, do texto, segue-se a critica interna, a partir da linguagem empregada e dos costumes sociais citados. Por fim, a critica da sinceridade, exatidao e a deter- minagio dos fatos especificos citados deve ser feita. A critica filolégica textual também possui suas particularidades: morfologi sintaxe, diacrénica e sincronicamente estudadas, formam a base do comentario lingiiistico erudito. Apenas para dar o sabor da critica filolégica, um exemplo do proprio vernaculo bastara: “Mas empero direi vos ua rem”, frase do Cancioneiro D. Dinis (23), seria traduzida, na moderna norma culta do portugués por “Mas, contudo, dir-vos-ei uma coisa”; na linguagem falada, teriamos algo como “mas vou dizer uma coisa a voces”, Certas palavras cairam em desuso, com a latina rem (“coisa”), enquanto a colocacao pronominal enclitica erudita do verbo no futuro Cdir-vos-ei") coexiste, agora, com © uso coloquial do verbo ir, no presente, unido ao infinitivo (“vou dizer”). Apenas © estudo filolégico detalhado permite, portanto, a compreensao do texto (Ali 1966:115;143) Até aqui, tratou-se do documento enquanto texto escrito, Na verdade, também 08 vestigios materiais e as artes, por exemplo, constituem documentos. Os critérios analiticos descritos acima, portanto, titeis para os textos escritos, nao podem ser apli- cados, diretamente, a outras formas, ndo-verbais, de documentagao. No entanto, hé algumas consideragdes de cardter geral, aplicaveis a todos os documentos, € que servirio pata nortear os comentarios tecidos, em diferentes niveis, nesta coletanea. Em primeiro lugar, consideram-se todos os documentos, escritos ou nao, como dis~ cursos. Enquanto discursos, possuem, necessariamente, autoria e piblico e, como todo discurso, tém estruturas superficiais e profundas, A autoria pode ser individual ou coletiva, material ou intelectual. Um edificio pode ter sido construido, materialmente, por diversos operdrios a partir de uma planta de autoria individual de certo arquiteto, © piiblico pode ser individual ou coletivo, homogéneo ou heterogéneo. Uma carta de Cicero a um amigo podia ser destinada, originalmente, a um Unico individuo mas, ao ter sido publicada, voltou-se para um piblico amplo e variado. A estrutura de superficie de um discurso corresponde & sua sequiéncia ex- plicita de elementos constitutivos. Paragrafos sucessivos de um texto apresentam idéias concatenadas, enquanto um edificio apresenta uma planta, funcionalmen- te ordenada, de seus aposentos. Esses so os aspectos visiveis da organizacao de um discurso. Sua estrutura profunda, de acesso indireto, mediado pelo raciocinio 28 do proprio observador, liga-se aos interesses e objetivos do autor e do public. A reconstrugao desses interesses, inevitavelmente subjetiva, variara segundo os pontos de vista, interesses ¢ conhecimentos do proprio analista, Essas observacées, de carater geral, aplicam-se a todo tipo de documento, escrito ou nao. Em termos praticos, caberia explicitar alguns procedimentos tteis € de cardter geral para andlise de documentos escritos e materiais. Um texto deve ser lido e entendido em sua totalidade. As palavras ndo compreendidas devem ser pro- curadas em diciondrios, assim como as informagdes € os conceitos desconhecidos. Mesmo termos como “liberdade”, “escravidao* ou “democracia”, em geral jé conhe- cidos pelo leitor, devem ser estudados no seu contexto para evitar a confusio entre conceitos modernos ¢ antigos (Momigliano 1984:484). A liberdade de ir ao cinema nao éa mesma liberdade de nao ser escravo! Para aqueles que Iéem o documento na lingua original, latim ou grego, cabe observar até mesmo as nuangas derivadas das palavras utilizadas e da propria construgio da frase. Uma frase famosa de Plato, no Banquete (196E) mostra bem a importéncia desta andlise detalhada: Poietes ho theos sophos houtos hoste kai allon poiesai (Deus € um poeta tao habil que é capaz de produzir um outro poeta) © uso do infinitive aoristo poiesai expressa a idéia de possibilidade de caréter geral, como uma necessidade légica: Deus € um criador (poietes, “poeta”) tao sébio que produz um outro criador, o homem (poiein, criar, produzir, Humbert 1954:226). Assim, apenas 0 conhecimento desse uso do infinitivo permitiria uma correta interpretagao da frase. Juntamente com esse estudo das palavras, deve proceder-se a um estudo dos conceitos: no caso citado, cabe investigar as diversas conotagées do “poeta” (poietes) e da “sabedoria” (sophia) citados no documento. Apés a compreensio total do texto, cabe identificar as idéias centrais de cada parigrafo e orden4-las em uma seqiléncia. Paralelamente, cabe estudar 0 autor do texto e 0 piiblico a que se destina. © autor deve ser estudado em suas caracteris- ticas individuais (idade, sexo, formacdo intelectual etc.) e coletivas (€poca em que viveu, local, classe social etc.) O piiblico pode ser determinado pela forma e pelo contetido do texto: palavras Faceis ¢ frases coordenadas indicam um puiblico geral, enquanto um vocabulario técnico, rebuscado e frases subordinadas revelam um piiblico mais especifico. Um texto de contetido religioso, como um catecismo, pode voltar-se para um publico de fiéis, enquanto um tratado filos6fico pode dirigir-se para eruditos interessados em reflexdes te6ricas. Ao final, sera possivel chegar aos interesses e objetivos, tio-somente implicitos, do texto, Um objeto arqueolégico exigira uma exegese propria. Em particular, o estudo pormenorizado da constitui¢o material do artefato implica a andlise da sua compo- sigdo fisica: ceramica, vidro, madeira etc. A estrutura superficial do artefato, sua constitui¢éo como objeto arqueolégico, impde uma andlise da sua funcionalidade. Assim, uma casa possui aposentos que se articulam, explicitamente, de maneira funcional. Essas funcdes, contudo, encobrem uma estrutura profunda, os objetivos apenas implicitos nas fungées: a existéncia de aposentos para os escravos, por exemplo, e sua exata localizacdo em uma habitagio especifica revelam intengdes 29 dos construtores (isolamento, controle do movimento etc.). © ptiblico, ou seja, 0 consumidor ou usuario, de um artefato material também deve ser estudado: um anel de ouro destinava-se a certos grupos abastados, enquanto uma anfora de vinho barato era consumida por extratos sociais mais amplos Os documentos, de diversas categorias, que serio comentados no decorrer desta obra, representam uma grande variedade de discursos. Dentre os textos escritos, alguns serao apresentados no original, permitindo que a andlise filolégica seja aprofundada. A maioria, no entanto, sera apresentada apenas na forma de tradugdes € os comentirios referentes a estes documentos restringit-se-Ao a versio, em verndculo, apresentada. A maior parte dos textos foi traduzida pelo organizador desta obra, mas algumas versdes de autoria alheia foram introduzidas, em parti- cular, quando uma recriag4o poética, em portugués, jé foi publicada. Os docu- mentos materiais (artefatos, pinturas) sao apresentados pela primeira vez em por- tugués e os comentarios mesclam anilises publicadas, em linguas estrangeiras ¢ em obras especializadas de dificil acesso, com a interpretagdo do organizador desta coletinea. Aos documentos comentados seguem-se diversos outros a serem utili- zados pelos leitores, completados por exercicios de andlise resolvidos ea resolver. Especificidades do estudo da Antiguidade Classica Georges Duby (198044) lembrava que “cada época constr6i, mentalmente, sua propria representagao do passado, sua propria Roma e sua propria Atenas” Os estudiosos da Antiguidade Greco-Romana tém sido considerados pouco pro- pensos A interpretacdo (McDonald 1991:830), voltados, muitas vezes, para uma erudigao estéril e conservadora (Rabinowitz 1993:3 et passim). Nao ha diivida de que 0 racismo (Haley 1993), o machismo (Rabinowitz & Richlin 1993) e até mesmo © fascismo aberto tém caracterizado uma parcela dos estudos classicos. A inter- pretacdo ariana da Antiguidade Classica, surgida no século XIX, viria a marcar definitivamente a disciplina (Bernal 1987; cf. Ampolo 1993). Romle Visser (1992:6;8;10) descreveu, em seu artigo sobre “A doutrina fascista ¢ 0 culto da romanidade”, com muita propriedade, um caso concreto dessa simbiose entre o estudo da cultura antiga e a justificag4o racista de uma ditadura “O culto da romanidade foi muito util para apoiar a pretensdo de que os fascistas estavam fazendo a historia, Comparando a Marcha de Mussolini sobre Roma com os golpes de estado de Sila e de Julio César, a propaganda fascista queria fazer crer que a Itilia fascista havia cruzado seu Rubicdo em direcdo ao dominio mundial A romanidade fazia parte integral da concepao de mundo dos Italians educados € a Historia Romana classica era, em geral, considerada como Histéria Nacional Ita- liana... B 6bvio que uma tal perspectiva ideologica da Hist6ria Romana, que impli- cava, a0 menos, algum contato de primeira mao com a cultura e historia classicas, no poderia existir sem a ajuda de académicos classicistas... Em nivel nacional e politico, estudiosos da Antiguidade, oriundos ou atuantes na Universidade, eram 30 os principais formadores de opinio... Estes estudiosos da Antiguidade tiveram um papel preponderante neste processo. Sem seus esforcos, um culto fascista mais ou menos coerente da romanidade nao seria possivel.” No entanto, o estudo da Antiguidade Classica nao precisa reforgar precon- ceitos nem constituir-se em elemento de opress4o, mas, para tanto, é necessario dominar o rigor e a erudi¢ao da Altertumswissenschaft (Bernal 1993:674). Esta obra, como muitas outras, parte de pressupostos diversos: 0 dominio da cultura classica tem como principal objetivo “promover uma reflexdo constante sobre as condicbes humanas ¢€ sociais que conduza a critica social contemporanea” (Nordblach 1989:28). Se nao € possivel encarar o passado € o presente sine ira et studio, sem engajamento (Holzer 1985:23), a superacdo da Historia “como instrumento de poder dos vencedores”, nas palavras de Edgar de Decca (1992:133), depende, em primeiro lugar, do conhecimento aprofundado da Antiguidade, Apenas 0 conheci- mento de primeira mao fundamenta a visdo critica e, nesse sentido, a leitura de Aristételes, assim como de outros autores classicos, permanece indispensdvel para pensar-se tanto o mundo antigo como 0 contemporaneo (Gianotti 1994:13) Em segundo lugar, cabe alargar 0 universo de temas ¢ abordagens da An- tiguidade. Devem ser incluidos os camponeses e as mulheres (Ginsburg 1991:205), 2 familia e os rituais (Friedman 1989:53), 08 gestos € os monumentos (Wallace~ Hadrill 1990:147 et passim), a dominagio € a resisténcia (Leone 1986-431). Esses € outros temas devem ser apresentados no contexto de uma pluralidade de inter pretagdes (Ankersmit 1986:26) € um dos critérios aqui utilizados para a selegao da documentagao consistiu, precisamente, no potencial de proposicao de diferentes abordagens e significados. © leitor seré incentivado a tratar tanto de assuntos comuns como de questées pouco usuais, a confrontar opinides divergentes sobre uum mesmo documento ¢ a formar sua propria interpretagao, Nao se buscar refor~ cat, acriticamente, os modelos € paradigmas vigentes, mas ao contrério, “encorajar a proliferagao critica” de interpretagdes (Tucker 1993:653). Os textos da tradigao textual tém sido publicados em diversas colegdes dis: poniveis no Brasil. As editoras Teubner ¢ Oxford publicam os textos no original grego ¢ latino, enquanto edigSes bilingties de grande uso séo publicadas nas colegdes Belles Lettres e Loeb, com tradugdes em francés € inglés. As inscrigbes tém sido publicadas em revistas e foram coligidas pela Academia de Ciéncias de Berlim, desde 0 século passado, nas séries Corpus Inscriptionum Graecarum, Corpus Inscriptionum Latinarum € Inscriptiones Graecae. A cultura material, incluindo escavacées arqueologicas, tem resultado na publicagdo de intmeros trabalhos em revistas como Revue Archéologique, Antike Kunst e American Journal of ‘Archaeology. Importantes colecdes de monografias compoem as séries das Escolas Francesas de Atenas e de Roma. Dicionérios enciclopédicos encontraveis no Brasil sio 0 Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines (Ch. Daremberg, E. Saglio, E, Pottier) e Real-Encyclopaedie der klassichen Altertumswissenchaft (A. Pauly € G. Wissowa), em francés ¢ alemdo. As referéncias completas € localizacao nas principais bibliotecas da cidade de $40 Paulo encontram-se recolhidas por Jonatas 31 Batista Neto ¢ Maria Luiza Corassin (1987), em importante iniciativa da Universidade de Sao Paulo (cf. Dias 1990:139). Jaime Pinsky publicou 100 textos de Historia Antiga (S20 Paulo, Hucitec, 1972) que, embora sem comentarios, continua util. Manuais classicos sobre a Antiguidade Classica, em muitos volumes, incluern a Cambridge Ancient History, Histoire Ancienne (diregao de Gustav Glotz), assim como diversos tomos das colegées Evolution de l'Humanité, Clio, Nouvelle Clio, Fischer, La vie quotidienne; estas cinco Gltimas so disponiveis em tradugoes para © portugués ou para o espanhol. Diversos dicionarios de latim e grego, tanto estran- geiros (e.g. Oxford Companion to the Greek Language, Thesaurus Linguae Latinae), como em portugues (diciondrios do MEC) sao disponiveis. Gramaticas classicas de autores como A. Meillet, J. Humbert e A. Ernout nao sao dificeis de encontrar nas bibliotecas especializadas e manuais brasileiros diversos, destinados 4 escola média e superior, sdo de facil acesso (e.g. Jacyntho Lins Brandio e Napoledo Mendes de Almeida). Para facilitar a leitura desta coletanea, foram incluidos apéndices, de uso pratico, destinados a apresentar 0 significado de abreviaturas ¢ expressdes de uso corrente nos estudos cléssicos. Nao se pretendeu, com isso, esgotar 0 uni- verso de termos utilizados nos diversos campos de estudo da Antiguidade Clas- sica, mas fornecer exemplos extrapoliveis pelos proprios leitores, cujos interesses € niveis de especializacao variados exigirdo ulteriores aprofundamentos. Periodizagées tradicionais da hist6ria, literatura e cultura classicas As periodizagées tradicionais devem ser entendidas como divisées artificiais. Diferentes pontos de vista, a partir de varias metodologias, disciplinas académicas € ideologias, resultam em divisdes alternativas. O objetivo da apresentaco das compartimentagdes usais resume-se a instrumentalizagao dos leitores e, de maneira alguma, implica a aceitagao dos seus pressupostos, O caso paradigmatico refere- 8¢ a0 uso do termo “cl4ssico” para definir periodos da historia politica, literdria ¢ artistica. © prOptio uso do termo Antiguidade Classica, no titulo deste livro, resulta de um compromisso: convencionalmente, as civilizagbes grega e romana da Anti- guidade sio chamadas “classicas”. O termo, quando se refere a essas duas cultu- ras antigas, possui, contudo, conotagSes ambiguas ao considerar essa Antiguida- de como um modelo — 0 clissico a ser imitado pelos modernos — e ao restringit sua abrangéncia aos homens cultos da elite, por oposicao as mulheres, aos “incul- tos” € aos pobres (Brown 1993:247 et passim). O uso do termo Antiguidade Clis- sica, neste livro, nao implica, contudo, a aceitacdo dessas conotagdes e & usado para designar a cultura greco-romana nas suas mais variadas manifestacoes. A determinacio de periodos “cléssicos”, em qualquer periodizacao hist6rica, por sua parte, depende de um juizo de valor, da transformagao de uma determi- nada producao intelectual em modelo. A Hist6ria, neste caso, torna-se segmentada em uma progressdo em direcao ao padrao classico, sucedido pela degeneracao ou 32 decadéncia, correspondente ao afastamento em relagio ao modelo. Esse uso do termo “classico” embute uma concepcao ciclica da Historia: ascenso, apogeu, deca- déncia, seguidos de novas ascensées, apogeus e decadéncias. O problema surge, naturalmente, quando diferentes autores, a partir de paradigmas interpretativos € de objetos de pesquisa variados, propdem diferentes 4pices. £ comum que especia- listas em petiodos diversos localizem esses apogeus ...exatamente naqueles que s40 © centro de suas atengdes! Tudo isso significa que nao é recomendivel encarar as periodizagdes senao como instrumentos analiticos que sao Siteis para 0 conhecimento. Assim, por exemplo, a Pré-Hist6ria da Grécia costuma ser dividida em periodos arqueolégicos (Rachet 1975; Treuil et al. 1989), enquanto a utilizacao da escrita difunde-se apenas com a civilizacdo micénica (séculos XII-XIV a.C.). Seguem-se os periodos protogeométrico (ca, 1100-900), geométrico (900-750), arcaico ou pré-classico (ca. 750-500), classico (ca, 500-336 a.C.), helenistico (336-196), romano (196 a.C. em diante). Essa divistio privilegia a hist6ria politica de Atenas, bem como sua producdo intelectual. A litera~ tura homérica (século IX a.C.) € sucedida por Hesfodo (século VIID, autores arcaicos (e.g. Safo), filésofos pré-socriticos, tragédlias € comédias classicas (Euripides, Séfocles € Arist6fanes), Histria (Herédoto, Tucidides), Platao, oradores do século IV a.C., Arisi6teles, poesia helenistica, literatura de época romana (cientifica, filoséfica, ficcionista, histérica) (ef. The Cambridge History of Classical Literature). A arte grega tem sido dividida em periodo de formacao (1000-650 a.C.), arcaico e se- vero (650-450 a.C.), classic (450-326 a.C.) € helenistico (325-31 a.C.), cada um deles subdividido em estilos geométricos (até 750 a.C.), protocorintio € proto- Atico (750-680 a.C.), dedalico (680-610 a.C.), arcaico (610-530 a.C.), arcaico tardio (530-480 a.C.), severo (480-450 a.C.), fidiaco € pos-fidiaco (450-400 a.C.), do quarto século, do alto helenismo (325-230 a.C.), helenismo médio (230-170 a.C.) e tardio (170-30 a.C.; cf. Bandinelli 1984:4-5 er passim). A historia romana tem sido dividida, seja segundo a evolugio politica de Roma, seja por sua expansdo militar (Bornecque & Mornet 1976:5-18). As divises politicas sZo particularmente claras: Monarquia (séculos VITI-VI a.C.), Repiiblica Patricia (séculos V-IV a.C.), Repiiblica Oligatquica (séculos MII a.C.}, Guerras Civis (até 30 2.C.), Principado (30 a.C.-193 d.C.), Dominado (193 d.C. em diante). Este ultimo pode ser dividido no periodo da crise do século III (235-268 d.C.), seguido do periodo do Império Cristéo (séculos IV-V) (cf. Piganiol 1976). A literatura latina divide-se, normalmente, em quatro fases (Cardoso 1989:10-11): primitiva (século VII - 250 a.C.), helenistica (250-81 a.C.), classica (republicana de 81 a 43 a.C,; augustiana, de 43 a.C. a 14 d.C. e Jlio-Claudia, de 14 d.C. a 68 d.C.), e pos-classica. Atividades encaminhadas 1, Reflita sobre a predominAncia, no discurso hist6rico tradicional, do relato politico-militar e, no campo dos estudos classicos, dos chamados “grandes” autores. 33 AHistéria, desde a Antiguidade Classica ¢ até o século XX, concentrou-se nos grandes eventos militares ¢ politicos. Alguns autores ponderam que isso refletia o domtnio da cultura masculina, militar, patriarcal e autoritéria, do diecurso sobre o passado. Tam- bém no estudo da literatura cldesica, a valorizagdo de alguns autores, em detrimento da maior parte dos escritos antigos, tem sido uma constante desde meados do século XIX. Aeeim, toda a literatura grega posterior a0 quarto século a.C., bem como a literatura latina posterior ao segundo século d.C., apesar de volumosas e criativas, eram, costumeiramente descartadas. A concentragdo, tanto nas batalhas como nos autores “cldesicos”, acabava por limitar 0 observador. 2. Reflita sobre a significagao da interdisciplinaridade e sua importincia para © estudo da Antiguidade Classica. De certo ponto de vista, a histéria da Antiquidade Cldesica ee utilizaria, para reconstrulr a sociedade antiga e suas traneformagées, de fontes fornecidas pelas dieci- plinas “auxiliares": arqueologia forneceria 09 dados materiale; a numiomAtica, “auxlliares” as moedas; a literatura, as obras ficcionais; € assim por diante. Alguns especialistas nessas dreas especificas, como 0 arquedlogo Leo Klein (1993:729), partem do pressu- posto de que hd disciplinas que produzem ¢ estudam fontes, enquanto a Histéria inte- graria a todas elas em um discurso explicativo articulado, Essa abordagem, contudo, a um 96 tempo deavaloriza e desarticula as disciplinas e o conhecimento derivado da especificidade de cada dieciplina. A divis&o entre “produgdo de documentos” e “elabo- rago de umn discuréo holietico interpretativo” separa praticas indissoliveis. Cade disciplina tem sua especificidade, seja de objeto, eeja de erudi¢&o. A histéria da arte ea arqueologia utilizami-se de uma pletora de téonicas de obtengao e andlise documenta! que exigem um conhecimento aprofundado particular. No entanto, ndo se limitam a produzir fatos para a Histéria, For outro lado, a interdisciplinaridade no ee reoume a jung&o de fontes de natureza diverea, mas consiste na articulacdo das di- versae abordagens em um discurso tinico e coerente, O estudo do uso de arcos do triunfo pelos romanos, por exemplo, envolve a conjungao das metodologias, simultaneamente, da arqueologia, linglfstica, literatura, histéria da arte ¢ hitéria stricto sensu: nfo se trata de somar“fontes”, mas de coordenar ¢ articular abordagens (Wallace-Hadrill 1990), 3. Reflita sobre as relagdes entre as informagdes textuais e materiais A oposigdo entre evidéncias materiais ¢ literdrias tem servido, tanto a arqued- logos como a historiadores da Antiguidade, como uma maneira de evitar a necesséria articulagdo desses dole aepectos indissociéveis da cultura. O recurso a idéia de oposi- do entre vestigios arqueolégicos e textos antigos encobre, na verdade, a falta de in- teresse pelo conjunto das evidéncias. Até mesmo 0 caso espinhoso da chamada “ques- ‘tao homérica”, em geral tratada, de maneira estanque, por literatos, historiadores ¢ arquedlogos, tem muito a ganhar com a jungio de dados e abordagens. Sherratt (1990:821) ponderou, hd pouco, que “esta reconstrugdo da histéria da épica homérica 34 sugere que ela tem um desenvolvimento paralelo aos padrées de mudanga material ¢ cultural manifestada no registro arqueolégico ¢ que os dois textos — literdrio e arqueo~ légico — podem ger lidos conjuntamente” 4. Reflita sobre a relagao entre o erudito e€ 0 grandioso, por um lado, e 0 trivial e corriqueiro, por outro € quais as premissas da énfase no estudo destes ltimos. Erudito ¢ popular, grandioso ¢ corriqueiro oo partes de um todo. A busca do trivial, dos grupos subalternos, das culturas excluldas dos registros dominantes liga- 9¢ A deontologia da ciéncia moderna. Arnaldo Mommigliano (198.4:461) bem ressaltava que “os pesquieadoree contemporanieos que se preocupam com 0 estudo das mulheres, criangae, escravos ¢ gente de cor... visam... una sociedade melhor, emergente de uma Sociedade inferior que explorava as mulheres ¢ humilhava 0 escravos, Mas a coneciéncia moral que leva o historiador a pesquisar tendo em vista uma sociedade melhor deve ser capaz de resistir & afirmagdo de que 05 seus valores s%o tao historicamente condi- clonados quanto 0 edo 08 valores de um dono de escravos cruel, adulto, branco e homem. O que seria cocrever Histéria sem preconceltoe morals, parece-me dificil imaginar, porque nunca o vi" (grifo acrescentado) 5. Reflita sobre os preconceitos, muitas vezes inconscientes, subjacentes aos estudos da Antiguidade Classica Uma série de preconceitos, inconscientemente aceltos, obscurece a compreenedo das sociedades antigas. Uma suposta superioridade cultural grega, seja sobre 08 ro- manos seja sobre outras civilizagdee, acaba sendo introduzida como elemento explicativo que dispensa comprovagBes, “As maneiras gregas sto encaradas como algo que outras socledades iraio adquirir por simples contato — como se fosse sarampol” (Whitehouse & Wilkins 1969:102). Conservadores, autoritérios ¢ patriarcais, os clasvicistas identi- ficam, nos documentos antigos, justamente estes valores (Rose 1992:213; Paseman 1993:185). Multos estudiosos, até recentemente, eram treinados para ser adminis- tradores militares nas coléniae (Hallett 1993:51) e no deve eurpreender o uso de con- ceitos conservadores. Cabe ao estudioge, por meio de uma critica interna, encontrar 88 condigdes de produgao histérica dos textos antigos e modernoe, sua intencionalidade inconsciente (Le Goff 1984:103). Atividades propostas 1, Determine as principais caracteristicas da critica textual a partir de pre- ceitos em livros diversos sobre a andlise documental. 35 2. Investigue os passos do estabelecimento de textos em livros especializados © compare as propostas de diferentes autores. 3, Procure elencar as principais colegdes de textos bilingties (originais grego ou latino e tradugao para idioma modermo) e observar o papel do aparato critico nestas séries. 4, Faga um levantamento das principais obras de referéncia sobre a Anti- guidade Clissica, suas caracteristicas e utilidades (diciondrios, enciclopédias etc.) 5. Procure fazer uma pesquisa bibliografica dos manuais sobre a Antigui- dade Classica nas diversas categorias: livros paradidaticos, manuais estrangeiros, livros de colegdes hist6ricas, literdrias, arqueolégicas, artisticas etc, Note a especificidade das colegdes ¢ as insira no seu contexto hist6rico ¢ literario. 6. Compare as periodizagdes de diferentes autores sobre a Antiguidade Clés- sica, no que se refere & hist6ria politica, literaria, artistica, filoséfica etc. Analise as implicagées teéricas de cada periodizacao, 3 MEMORIAS Arriano, A Batalha de fssus, 2, 10-11 (333 a.C.) © exército persa estava bem visivel. Mesmo assim, Alexandre avangou, em formagao, com passo firme, evitando que um avango muito rapido pudes- se afetar a linha de ataque, deixando flancos em aberto. Quando misseis ini- migos j4 podiam atingir a tropa, Alexandre, a frente de suas tropas, no flanco direito, correu, colocando toda a atengao na velocidade de ataque. Um assalto decisivo iria destruir o inimigo e, 0 quanto antes comegasse 0 combate corpo a corpo, mais répido se livrariam da artilharia dos arqueiros persas. A estra~ tégia de Alexandre mostrou-se acertada, pois o flanco esquerdo persa entrou em desordem, Esse foi um grande éxito para as tropas sob seu comando dire- to. No entanto, no centro a situagao nao era tio favoravel, pois ali as tropas haviam permitido que se abrisse uma cunha na linha ofensiva e, 4 diferenga do ataque de Alexandre que, rapidamente cruzara a linha inimiga e combatia corpo a corpo, fazendo a ala esquerda persa recuar, o centro dos macedénios avangava com muita lentidao. A ala direita vitoriosa sob 0 comando pessoal de Alexandre, ao verificar que os persas j4 fugiam, voltou-se para a esquerda, em diregao ao centro pres- sionado pelos gregos de Dario, Forgou-nos para tras e superando o flanco es- querdo, ja em debandada, atacou os mercenérios, destruindo-os imediatamente. A cavalaria persa, diante dos tessalios de Alexandre, iniciada a batalha, decide atacar violentamente os tessdlios. A cavalaria atacava com grande furor e os persas foram superados quando souberam que os mercendrios gregos estavam sendo destrogados pela infantaria macedénica e que o proprio Dario estava em de- bandada. Este foi o sinal para a fuga generalizada e aberta. Os cavalos com equi- pamento pesado sofreram particularmente e os milhares de homens que fugiam em panico, desordenados, buscando a fuga nas trilhas e nas elevacées locais, morreram pela agZo do inimigo e dos aliados em fuga... Quando o flanco esquerdo persa foi destrogado sob a lideranga de Ale- xandre, Dario, em seu carro de guerra, percebeu o que acontecera e fugiu em desabalada carreira. Mantendo-se no carro enquanto 0 solo o permitia, viu-se constrangido a abandon4-lo quando o relevo passou a impedir seu progresso. Deixou, entdo, seu escudo e suas vestes de guerra 38 M4rmore de Paros (264 a.C.), Batalha de Issus <334-3 a.C.> Desde a época em que Alexandre passou Asia e a batalha de Granico, e desde a batalha que Alexandre lutou contra Dario, em {ssus, 70 anos, quando o arconte, em Atenas, era Ktésikles. Mosaico da casa do Fauno, em Pompéia, final do século Tl a.C,, baseado em pintura helenistica da época de Alexandre, Batalha de Issus (figura 1). Comentérios ‘Trés relatos, de natureza diversa, sobre uma batalha que se constituiria em um emblema de toda uma época, 0 periodo helenistico (ca.340 a.C.146 a.C). Flavio Atriano Xenofonte, nascido provavelmente nos anos 90 d.C. em Nicomédia, na Bitinia Romana, exerceu diversos cargos ptiblicos € militares romanos até tornar-se cidadao ateniense € magistrado e membro da boulé em Atenas. Sua obra Anabasis Alexandri, sobre as campanhas de Alexandre retoma as diversas fontes disponiveis sobre o tema. O segundo documento consiste em uma inscri¢ao, descoberta na Ilha de Paros, em 1627, com uma tébua cronolgica desde Cecrops até 0 arcontado de Diognetus, em Atenas. A datacio dé-se pelos arcontes atenienses. O terceiro documento, um mosaico pompeiano, representa a Batalha de {ssus entre Alexandre e Dario Ill € teproduz uma pintura mais ou menos contempordnea a batalha As trés reconstrugées da Batalha demonstram a importancia atribuida a vité- ria de Alexandre sobre os persas desde o periodo helenistico (marmore de Paros), passando pela reptiblica romana tardia (Casa do Fauno, Pompéia) e chegando ao 39 periodo antonino do Principado (meados do século Il d.C.). © relato de Arriano, um militar acostumado com a estratégia e a pritica da guerra, chama a atencZo pelo destaque concedido ao combate pessoal do general e 4 sua coordenacao da batalha, A guerra, na Antiguidade, exigia uma participagdo pessoal dos coman- dantes € os autores antigos s40 unanimes ao ressaltarem que a decisdo dos des- tinos dos combates dava-se, muitas vezes, na disputa entre os generais O destaque dado a Alexandre no texto de Arriano, contudo, nao deve ser atribuido, tao-somente, ao papel desempenhado pelo comandante em campo. Na verdade, Alexandre passou a simbolizar, ainda em vida e desde entao até o final da Antiguidade, as virtudes do comandante militar, tanto em campo de batalha como na vida piblica. As cidades independentes gregas foram incorporadas a0 estado imperial pela monarquia macedénica e Alexandre simbolizava a quintes- séncia do novo regime social, baseado no dominio militar. Nesse sentido, 0 texto opde nao tanto Alexandre, o bom estrategista, a Dario, o mau general, mas a fir- meza € coordenacio do general por oposicao a falta de unidade da massa de infantes. O ‘grande ntimero” (plethos), tanto na vida militar como na vida publica, apenas torna-se forte pela ago de comando e ordenagao do general. A palavra- chave, neste contexto, € taxis, a’ um s6 tempo a “unidade” militar e o principio que permite o funcionamento, seja'do exército, seja da sociedade: “ordem’. © segundo documento, muito breve, apresenta a concisdo tipica das epigrafes, A propria datacao da batalha est4 incorreta, tendo ocorrido, na verda- de, no outono de 333 a.C. (Harding 1985:5), e nao no mesmo ano que a Batalha de Granico (334 a.C.). O mosaico pompeiano parece derivar de uma pintura de Filoxeno ou de Aristides de Tebas, ambos alunos do artista Nicémaco (cf. Plinio, N.H. 35, 98-9;110). © mosaico, descoberto em 1831 e conservado no Museu de Napoles, mede 5.50m por 2.42m e apresenta Alexandre a cavalo e sem capacete liderando o ataque ao rei persa. Dario, cercado pelos seus cavaleiros, esta no seu carro € seu condutor esta usando do chicote para agoitar os cavalos para a fuga Imediatamente sua frente, um persa tenta segurar um cavalo, representado, com criatividade, desproporcionalmente pequeno, a fim de liberar a visto do rei persa. Um cavaleiro persa, tendo tentado, em vao, deter a carga de Alexandre contra 0 rei, e, tendo seu cavalo caido, € apresentado atingido pela langa do macedOnico. Dario, com a mao direita estendida, e o cavaleiro que tenta segurar seu cavalo olham a cena catastrofica com grande preocupacao. © mosaico pompeiano deve ter sido executado antes de 100 a.C. ¢ as fra~ turas devem ter sido causadas pelo terremoto de 63 d.C. “O uso cuidadoso de pequenas tesserae reproduz, com sensibilidade, as transicdes pict6ricas de luz € sombra dentro de uma modesta gama de cores, ¢ 0 resultado reproduz, convin- centemente, o protétipo perdido” (Wheeler 1989:174). Nao ha davida, contudo, de que a pintura original helenistica utilizava-se de recursos intransponiveis 20 mosaico, em particular no uso das cores. De qualquer forma, o tema do confronto entre Alexandre e Dario, entre a civilizagdo helénica e 0 mundo oriental, con- substanciava-se extraordinariamente nesta representacao, “O helenismo conquistou 40 © oriente pelas armas da Maced6nia e por suas proprias instituigdes... nao ha duvida de que a civilizagao ocidental se apéia na concepedo grega e que ela seja constituida pelo livre jogo das iniciativas individuais. Ao tempo de Alexandre, ela ja bavia provado sua superioridade”, palavras fortes do grande helenista Pierre Jouguet (1972:391;395), escritas mais de vinte séculos apés os feitos de Alexandre, em 1926, As analogias entre o imperialismo francés e o macedénico seguramente nao estavam longe das preocupagdes de Jouguet, A memoria desses feitos herdicos, a invengao de Alexandre como chefe militar teriam efeitos duradouros e seriam fundamentais para a sustentacdo tanto dos regimes helenisticos como, posterior- mente, do Império Romano. Nao a toa que Jilio César, ainda jovem nas campanhas da Espanha, 20 atingir 33 anos, idade com que morrera Alexandre, tenha se posto a chorar e, quando perguntado o que se passava, respondeu: “nao parece que deva lamentar-me pois Alexandre, com a minha idade, j4 havia con- quistado tantos reinos, enquanto eu, até agora nao levei a cabo feitos ilustres!” (Plutarco, Vida de Jalio César, 11) Salastio, A Guerra de Jugurta, capitulo 4 Dentre as outras atividades exercidas pelo espirito, em primeiro lugar € til relatar os acontecimentos passados. Sobre a virtude de tal arte, no preciso deter- me, pois muitos jé se referiram a isso e, também, para que ndo pensem que eu queira, por vaidade, ressaltar por demais o meu pr6prio trabalho e dedicacao. Ainda mais, creio que, por ter decidido afastar-me:da vida piblica, alguns dario a pecha de inércia ao trabalho tao importante e Gitil ao qual me dedico. Certa- mente, f4-lo-20 aqueles que consideram sua maior tarefa curvar-se diante da plebe € obter suas boas gracas, por meio do patrocinio de banquetes. Se estes examinas- sem, com maior cuidado, a época em que obtive magistraturas e quais homens nao puderam obté-las e, depois, que espécie de gente chegou ao Senado, sem divida concluiriam que minhas opinides mudaram mais por mérito que por falta de iniciativa e que ha de vir mais beneficio de meu 6cio que das atividades dos outros para a Republica Muitas vezes, ouvi dizer que Quinto Maximo e PGblio Cipiao, além de outros homens ilustres de nossa patria, costumavam afirmar que, a0 contemplarem as imagens de cera de seus antepassados, sentiam um enorme estimulo em direcao a virtude. £ de se supor que nem a cera, nem os retratos, tivessem, em si mesmos, tanta forga, mas que, ao contrario, o relato dos feitos passados fizesse crescer, no peito dos homens egrégios, esta chama que nao se extinguiria senao ao iguala- rem sua virtude a fama e a gloria daqueles. Por outro lado, com os costumes atuais, todos querem rivalizar com 08 antepassados, nao em probidade e zelo, mas sim em riqueza e fausto. Também os homens novos, que outrora costumavam superar a nobreza pela virtude, esforcavam-se para obter comandos militares e honrarias, furtivamente antes com violéncia que com honestidade, como se a pretura, 0 a consulado € as outras magistraturas fossem ilustres e tivessem valor em si mesmas € nfo que sua virtude adviesse daqueles que as ocupam (outra traducdo, do pro- fessor Ant6nio da Silveira Mendonga, pode ser consultada em Séneca 1990). Comentarios © pequeno trecho acima, sobre a importéncia do trabalho do historiador, exige uma atencao especial, pelas referéncias a conceitos contextos hist6ricos antigos especificos. Caio Salistio Crispo nasceu na Sabinia, em Amiterno, em 86 a.C. Em $2 a.C, foi tribuno na plebe e, como partidario de Jalio César, atuou no exército contra 0s pompeianos, tendo sido nomeado procénsul da provincia Africa Nova em 46 a.C. Ap6s 0 assassinato de César, em 44 a.C., retirou-se da vida publica e escre- veu monografias de Historia até sua morte em 35 a.C, A Guerra de Jugurta, sua maior obra, trata da guerra contra Jugurta, entre 111 e 106 a.C., na Numidia (Norte da Africa). Saldstio comega sua justificativa da monografia propondo que a memoria rerum gestarum (“a meméria dos acontecimentos”) constitui a mais atil atividade do engenho humano Cingenium). O relato do passado é, portanto, um trabalho intelectual derivado do desejo, da vontade de estudar (studium, derivado de studere, “ter vontade, gostar"). Salistio define a escrita da historia em termos ativos, como negotium (negocio, n&o-6cio, atividade), oposto a inércia (inertia). Utilizando-se de uma aparente aporia, Saldstio caracteriza 0 trabalho do historiador como atividade (negotium) e como écio (otium): em realidade, é um trabalho intelectual, portanto, dependente da paz € da tranqtiilidade da inac4o mas, a0 mesmo tempo, induz a aco e constitui-se como uma atividade (negotium). Na verdade, Saltistio, em toda a sua obra, utiliza-se destas aparentes contradicdes (inconcinnitates) para des realidades ou conceitos, complexos € contradit6rios. No segundo paragrafo, Saltistio demonstra como o relato hist6rico constitui uma forca (uis) que impulsiona os homens em direcdo a fama e a gloria. Fama, “aquilo que se fala, que se propaga pela tradic4o oral’, assim como gloria constituem a esséncia mesma da meméria, do relato hist6rico. Essa lembranca impulsiona a aco. Saliistio, no entanto, lembra que, em sua época, a busca da fama nao se dava mais em termos de cortecdo moral e trabalho duro (probitate, industria), mas no que se refere a riqueza ¢ a prodigalidade. As boas maneiras foram substituidas pelo roubo € pelo latrocinio (furtim et per latrocinia), mesmo nos homens novos, aqueles que nao pertenciam a nobreza e que, anteriormente, usavam-se da virtude para igua- lar-se a nobreza de sangue (nobilitas). Na interpretacao da Historia do seu periodo, Saliistio parte do pressuposto de que a virtude individual, outrora tio importante, degrada-se e transforma-se em ambigdo, processo que ocorre com os diversos personagens histéricos da sua narra- tiva Jugurta, Escauro, Mario, inter alios). Relaciona esse processo a um momento determinado da historia romana: a consolidacao da supremacia romana no Medi- crever commen eee i a terraneo, apés a destruicaio de Cartago em 146 a.C, (Funari 1992). Seu relato, além disso, utiliza-se de diversos recursos estilisticos a fim de torné-lo mais original instigante para o leitor. Além da jungdo de termos contradit6rios, como ao definir a Historia, sucessivamente, como negécio e écio, procura chocar o leitor com 0 uso de expressdes incomuns. Assim, em vez de usar dois advérbios, prefere a estranhe- za do uso de um advérbio seguido de uma preposicdo e substantivo, na frase “fur- tivamente, e com violéncia” (furtim et per latrocinia). Autores classicos, como Cicero, a quem Sallistio se opunha, utilizariam dois advérbios, “furtiva e violentamente” Saltistio, neste trecho, permite observar o carater retérico, exortativo e lite- ririo do relato do historiador. Sua interpretagdo do passado, além disso, € expli- cita. Nao pretende descrever a verdade, ou os fatos tal como ocorreram, mas contar uma hist6ria, a partir de um ponto de vista explicito, visando induzir seus leitores a um posicionamento politico claro (Earl 1961). © engajamento do autor ndo se encontra oculto, nem os recursos semanticos de persuasio obscurecidos ¢ a lin- guagem poética aflora a cada momento, Decreto da Segunda Liga Maritima Ateniense (378-7 a.C.), Sylloge Inscriptionum Graecarum 147a, “Alianga politica” Nausinico sendo arconte, Calibio, filho de Cefisofonte, de Paénia, estabe- leceu os termos deste documento. Sob a sétima pritania, da tribo Hipoténtida. Resolucao do Conselho e do Povo. Carino de Atménia era epistato. Arist6teles propés: pela boa sorte dos atenienses e dos seus aliados, para que os lacedeménios deixem os gregos, livres e senhores das suas leis, manter, com plena seguranga € garantia, seus territOrios... foi decretado pelo Povo: se alguém, grego ou barbaro, habitando no continente ou nas ilhas auténomas, deseja aliar-se aos atenienses € seus confederados, que seja autorizado, mantendo-se livre e senhor das suas leis, organizando-se no contexto politico que queira, sem receber guarnig4o militar, sem ter de aceitar magistrado , sem ter de pagar tributo, nas mesmas condigdes dos cidadios de Quios ¢ de Tebas e outros aliados Para aqueles que se aliarem aos Atenienses e confederados, o Povo cede todas as propriedades, mesmo se forem numerosas, privadas ou estatais, que se encontrem no territ6rio dos novos aliados. O Povo compromete sua boa fé nesta determinagio. Se, por acaso, nas cidades que se aliarem aos atenienses, forem mantidos limites de propriedade contrarios aos direitos de atenienses, 0 Conselho em exercicio podera aboli-los. A partir do arcontado de Nausico, nao sera permitido a nenhum cidadao ateniense, ou ao Estado, adquirir propriedades nas cidades aliadas, sejam casas ou terras, mesmo que tenha sido por compra, hipoteca ou qualquer outro meio, Se alguém compra, adquire ou toma uma hipoteca, por qual- quer meio, os aliados podem denunci4-lo ao Consetho dos Aliados. Este Conselho designaré a metade das somas exigidas ao denunciador, a outra metade sera partilhada pelos aliados. 3 Se alguém entrar em luta contra uma cidade aliada, em terra ou no mar, os Atenienses ¢ confederados socorrerao a cidade ameagada, em terra ou no mar, com toda sua forca € na medida do possivel. Se alguém, magistrado ou privado, pro- puser algo contrério a este decreto, visando anular alguma das suas disposigdes, seré punido com a atimia, seus bens serao entregues ao Estado, um décimo caben- do a Deusa Atena, Além disso, sera julgado pelos Atenienses ¢ confederados por atentado a alianga. Sera condenado 4 morte ou ao exilio, em toda drea sob juris- dic&o de Atenienses e aliados. Se for condenado 4 morte, ndo sera sepultado na Atica nem ngs tertit6rios confederados. O secretério do Conselho inscreveré este decreto em uma estela de pedra, que sera colocada junto a Zeus Eleutério € o di- nheiro necessario para executar a epigrafe — ou seja, sessenta dracmas retirado de dez talentos — seré fornecido pelos tesoureiros da Deusa Atena, Na estela estara inscrito o nome das cidades aliadas e das que se aliarem, A inscrigdo concluida, 0 povo designar4, imediatamente, trés enviados a Tebas. Plutarco, Moralia, 11, 857,12-13, “Sobre a malicia de Herédoto” 12. Herédoto é, também, to filobérbaro que isenta Busiris da respon- sabilidade pelo sacrificio humano € pelo assassinato de estrangeiros, Testemunha a piedade ¢ justiga absolutas de todos os egipcios ¢ acusa, destes crimes, justa- mente os helenos. Seu relato, no segundo livro, diz que Menelau, tendo resgata- do Helena de Proteu e recebendo ricos dons, comportou-se como o mais terrivel criminoso. Impedide de zarpar por causa das intempéries, “planejou um ato sa- crilego, tomando dois rapazes nativos, oferecendo-os como vitimas de sacrificio. Para escapar do édio levantado contra si, fugiu de seus atacantes viajando para a Libia”, Nao sei que Egipcio possa ter-lhe contado tal estoria, mas, na verdade, esta em contradig4o com as grandes honras prestadas, ainda hoje, no Egito, tanto a Helena quanto a Menelau. 13. Continua nessa linha, afirmando que os persas aprenderam a pederastia dos gregos. Mas, como é possivel que os persas tenham aprendido esta pritica sexual dos gregos quando todos admitem que castravam meninos muito antes de chegar ao Mar Helénico? Afirma que os gregos aprenderam a realizar procisses e ceriménias religiosas com os egipcios, bem como a adoracae dos Doze Deuses. O proprio nome Dionisos, diz, foi aprendido dos egipcios por Melampo, tendo este ensinado aos outros helenos. Também os mistérios e rituais secretos ligados a Deméter foram tra- zidos do Egito pelas filhas de Danaus. Diz que os egfpcios batem nos peitos e la- mentam, mas nao diz 0 nome do Deus que invocam pois “no quebrar4 o silencio. nas coisas sagradas’. Contudo, quando trata de Héracles € Dioniso nao tem nenhuma restricdo desse tipo. Apresenta Héracles e Dioniso, adorados pelos egipcios, como deuses antigos enquanto seus homdlogos helenos seriam apenas homens que env Theceram como humanos. Diz, entretanto, que o Héracles egipcio fazia parte do mane crescent 4 segundo grupo de deuses e Dioniso do terceiro, de forma que tinham um inicio de sua existéncia ¢ ndo teriam existido desde sempre. Mesmo nessas circunstancias, considera-os deuses, enquanto aos outros considera mais apropriado “fazer oferendas’, como se faz com mortais tornados heréis, do que “sactificar® como se faz com os deuses. Disse 0 mesmo sobre Pan, usando relatos egipcios sem nexo para por abaixo as verdades mais solenes ¢ sagradas da religiao grega. Varrao, Sobre a lingua latina, 5,80-2, “Sobre os nomes dos magistrados” 80... Comegarel com os cargos piblicos. © cdnsul foi assim chamado, pois é quem consulta (consulere) 0 povo e 0 senado; a nao ser que a seja como diz Acio no seu Brutus: “Aquele que sabe as medidas corretas (recte consulat), seja este 0 cénsul.” O pretor (praetor) & aquele que vai 3 frente (pracire) da justiga e do exér- cito; dai a frase de Luctlio: “Os pretores vio 4 frente e no comando (ante et praeire).” 81. O censor é aquele que decide (censio), ou seja, arbitra 0 que 0 povo apresenta no censo (censeretur). Edil (aedilis) € aquele que controla os edificios Gaedes) sacros e privados, Os questores (quaestores), nome derivado de quaerere (buscar), so aqueles que buscam os recursos ptiblicos (conquirereni) e que buscam descobrir as fraudes, agora fungao dos triumuiri capitales (trés encarregados de questdes criminais). Em seguida, os magistrados encarregados de processos judicia- rios (quaestionum iudicia) foram chamados quaesitores (juizes). Os tribunos mili- tares (tribuni militum) tém esse nome porque, antigamente, eram trés enviados militares, um (termi) para cada uma das trés (tres) tribos (tribus), Ramnes, Luceres ¢ Tities. Os tribunos da plebe (tribuni plebei) tém esse nome porque os primeiros tribunos da plebe, encarregados da defesa da plebe (plebs), foram escolhidos entre 08 tribunos militares, quando da secessao ao Crustumério, 82. O ditador (dictator) é assim chamado porque o cOnsul dizia (dicere) que todos deviam obedecer as suas ordens (dicta). © chefe da cavalaria (magister equitum) deriva seu nome do poder absoluto sobre os cavaleiros (equites) e tropas auxiliares, tal como o ditador tem poder absoluto sobre © povo, pelo que € chamado, também, magister populi ou “mestre do povo”. Como todos esto sob a autoridade dos mestres (magistri, sto chamados “magistrados” (magistratus)... Inscrigdo comemorativa de Licio Fabio Cilo, Corpus Inscriptionum Latinarum VI, 1408 (Inscriptiones Latinae Selectae 1141), “Uma carreira militar” Para Liicio Fabio, filho de Marco, da tribo Galéria, Cilo Septimio Catinio Acilia- no Lépido Fulcianiano, cOnsul, colega do imperador Ltcio Septimio Severo Piedoso 45 Pertinax Augusto, Arabe, Adiabénico, pai da patria; membro da confraria em honra de Adriano, decuriado menor; legado de Augusto, propretor para as provincias da Pan@nia e da Mésia superiores, Bitinia e Ponto; comandante das legides do impe- rador Severo Piedoso Pertinax ¢ de Marco Aurélio Antonino Augusto, atuando na Itélia; comandante dos destacamentos em a¢do na regido de Perinto; legado pro- pretor de Augusto para a provincia da Galicia, prefeito do tesouro militar, procénsul da provincia Narbonesa; legado de Augusto da décima sexta legido Flavia Firma; pretor urbano, legado propretor da Provincia Narbonesa; tribuno da plebe, questor da provincia de Creta e Cirenaica; tribuno militar da décima primeira legiao Claudia, membro da comissao de dez magistrados encarregados de julgar litigios; curador das reptblicas da Nicomédia, de Interama e de Gravisca, Tibério Ambreliano, centuriao da quinta legiao macedé6nica, por seus méritos. Atividades encaminhadas 1, Caracterize a importancia do documento epigeafico referente a Segunda Liga Maritima Ateniense (378-7 a.C.) Esse documento epigréfico, formalmente, é um decreto da assembléia popular ateniense por proposicio de Aristételes. Conservou-e em marmore pentélico e é um dos mais importantes da histéria grega do século IV a.C. (Bengtaan 1972:200-3). Aos gregos ¢ bérbaros dispostos a entrar na alianga garantiam-se liberdade e autonomia e assegurava-se aesieténcia militar. Atacam-se 0s espartanos, logo no Inicio, pedindo respeito a koind eirene (paz geral). Apesar da hegemonia ateniense, criou-se um con- selho (synedrion), 6r@do federal doe aliados. As deciades deviam ser aprovadae pelo conselho e pelo demos de Atenas, garantindo um direito de veto ace atenienses. Tra~ ‘tou-se de um tipo Unico de organizagao federal relativamente eqllanime (sobre o impe- rialiomo ateniense no eéculo V a.C., veja-6e Guarinello 1987) 2. Reflita sobre a caracterizagao, por parte de Plutarco, de Herédoto como um autor filobarbaro. Herédoto, considerado na Antiguidade como o primeiro historiador, tornou-6e, em nosea época, “o fundador do estudo dos sistemas cultural” (Auzias 1978113). Pode ser considerado 0 primeiro antropdlogo justamente por seu Interesse pelos costumes dos diferentes povos e por no olhar as outras culturas sob o prisma de uma suposta superioridade helénica. Ao contrdrio, Herédoto, dando continuidade as mais antigas tradigBee gregae, vinculava a religiio ¢ 05 costumes helenicos 4s civilizagdes orientais (para uma andlise devathada do tema, veja-se Bernal 1987). Plutarco, por outro lado, como um platénico preocupado com os ensinamentos morais da Histéria, busca, no passado, nfo tanto a verdade quanto a beleza ética. Esta consubstancia-se na descrigo 46 da euperioridade moral grega ¢, particularmente, dos seus herdis. E interessante ob- servar que a historiografia moderna, a partir do século XIX, acabou por adotar pontos de vista semelhantes aqueles propostos por Plutarco, em especial ao rechagar as li- gages entre a cultura grega ¢ as culturas orientais ¢ ao preseupor uma natural ou- perioridade na cultura helénica, 3, Reflita sobre a importincia da etimotogia popular para a constituigao de uma meméria politica, a partir do texto de Varrao. iéncia filolégica moderna, a partir do eéculo XIX, buscou, com o estudo da etimologia nas \inguas indo-européias, a origem das palavras e, portanto, das insti- tuigdee sociais, No entanto, na propria Antiguidade Classica, a etimologia popular costu- mava fundar a9 concepgées correntes sobre o funcionamento das suas sociedades. Varrfio, ao escrever seu livro sobre a Iingua latina, procurou sistematizar uma eérie de idéias correntes. Utilizou-se, em profusdo, da tradig&o oral, com destaque para as frases feitas ¢ provérbios, Neste trecho, cita dois casos: qui recte consulat, consul flat (“quem decide corretamente, seja feito 0 que decide”) ¢ ergo praetorum est ante e pracire (“ca- racteriza o que vai na frente ir adiante e comandar"). Como 6e observa pelas traducées, nao é possivel preservar, no vernaculo, os trocadilhos originais. No entanto, Umberto Eco (1978:18) tem razdio ao afirmar que ae etimologias baseadas no jogo de palavras, “ndo cientifica", flogdfica e popular, possuem grande importAncia justamente devido & sua facil aceitagdo. Nesse sentido, a obra de Varro constitui um fértil manancial de expressbes correntes. 4. Reflita sobre a carreira de Licio Fabio Cilo, tal como apresentada na ins- crigao de um centuriao. Um centuriaio legionérlo, pertencente & quinta legi#o macedénica, criada na Macedénia durante ae Guerras Civie por Brutus, encontrava-se, no final do século 6e- gundo 4.C., na Mésia, Essa legido pertencia aos contigentes danubianos do exército romano que levaram Septimio Severo ao poder. A ineorigdo relata o inicio da carreira de Cilo, dividida em quatro tipos de atividades: 1. consulado, titulos honorfficos ¢ eacer- décios; 2. cargos ¢ postos militares 4 época de Septimio Severo; 3. carreira anterior a Septimio Severo; 4. cargos municipais. Sabe-se, pela Histdria Augusta (Vida de Cimo- do, 20), que Cilo foi cénzul em 192-3 4.C. Antes disso, Jovem membro da ordem sena~ torial, Cilo comegou sua Carreira, exerceu magistraturas menores, serviu como tribuno ha quinta legido Claudia, na Mésia. Cilo deve ter nascido antes de 160 4.C., 6eu vigintivirato em 178 a.C. A carreira desse personagem demonstra as miltiplas atividades civie, religiosas, militares ¢ locaie da arietocracia Imperial romana. 9 Atividades propostas 1. Identifique, no decreto da Segunda Liga Maritima Ateniense, os termos técnicos empregados e procure, em dicionarios ¢ enciclopédias, seu sentido (e.g. arconte, pritania, epistato). 2. Com auxilio de obras sobre a historia da Grécia, procure mostrar como se diferenciavam a Primeira e a Segunda Liga Maritima Ateniense 3. Procure, em obras sobre as mitologias antigas, as caracteristicas dos per- sonagens citados por Plutarco, em seu texto: Busiris, Menelau, Helena, Proteu, Dioniso, Héracles, Pan. 4, Com o auxilio de bibliografia suplementar, reflita sobre a diferenca, na religido grega, entre herdis ¢ deuses. 5. Consulte outras passagens da obra de Varrao sobre a lingua latina e trans- creva alguns dos ditados populares utilizados pelo autor. 6. Alguns dos termos utilizados por Varro no trecho citado continuam em uso, como cénsul, edil, plebe, magistrados, Reflita sobre as transformagdes de sentido dessas palavras ¢ quais suas implicagdes socioculturais. 7. Procure, em obras especificas, os sentidos dos cargos citados na insc: sao de Cilo: decuriao, legado de Augusto, propretor, prefeito do tesouro militar, pretor urbano. 8. Reflita sobre a relagao estreita entre carreira civil € militar no Império Romano, a partir da inscrigao de Cilo. 4 PRATICAS Moeda ateniense, datada de cerca 520 a.C, (Florenzano 1992: pr.16) (figura 2) Comentarios O estudo das moedas constitui uma especialidade, a numismitica. A moe da, na Antiguidade Classica, nao se limitava a servir como medida de valor ou como instrumento de troca comercial, mas cumpria igualmente fungées politicas (lorenzano 1992:1). O uso de metais em barra para efetuar transagdes comerciais, era ja conhecido dos povos médio-orientais, como os egipcios, babilénicos e fenicios. As primeiras moedas nada mais eram que pequenas quantidades de metal cujas vantagens sobre as barras eram mviltiplas: facilidade de transporte; possibi- lidade de diferenciagao entre diversos pesos e dimensdes, e, portanto, de valores; finalmente, as moedas podiam ser cunhadas e,'assim, receber marcas de controle oficial do seu valor por parte de autoridades municipais. O surgimento das moedas liga-se, desta forma, a trés transformagées culturais notaveis da Grécia nos idos do século VII a.C. Em primeiro lugar, é 0 desenvolvimento da pélis (cidade aut noma) e da vida politica que permitira, a médio prazo, a organizagao de cunha- gens oficiais de moedas (Will 1975:233). Em segundo lugar, a complexificagdo crescente das trocas comerciais exigia a introdugao de meios praticos e confiaveis de troca. Esse fator foi ressaltado pelos prOprios autores antigos, como Arist6teles (Pol.1257 a-b), e estava na base da sofisticag4o métrica que as moedas logo so- freram. Em terceiro lugar, um fator crucial na popularizagdo do uso da moeda foi a alfabetizaco (Havelock 1982:185 et passim). 49 Os metais mais usados para as moedas eram © ouro, a prata, 0 cobre, o bronze € 0 eletro (liga de ouro e prata). A mineragao teve, como resultado, seu desenvol- vimento acelerado (White 1984:113-126) ¢ as moedas, para serem cunhadas, deviam ser aquecidas para que o cunho pudesse imprimir a inscrigao e os desenhos (Fowler & Wheeler 1909:355). As moedas deviam seguir padrdes monetérios especificos, com pesos estandardizados e de dominio piiblico. Os sistemas de divisdo monetaria eram variados. Em Atenas, por exemplo, a unidade de valor era o dracma, dividido em seis bulos. As cunhagens seguiam estas divisdes, com moedas de 10,4,2 ¢ uma dracma, € outras de 5,4,3,2,1 € meio, 1, 3/4,1/2,3/8,1/4 dbulos. Normalmente nao se adicionavam numerais que explicitassem 0 ntimero de dracmas ou 6bulos. Era comum, a0 contririo, a referéncia a cidade emissora da moeda, na forma do nome do povo no genitivo. Bsse € 0 caso da moeda ateniense aqui apresentada: as letras gregas athe esto a indicar 0 genitivo athenaion, “dos atenienses” A iconografia monetiria variava, também, de acordo com a cidade e a €poca, Essa moeda ateniense apresenta os dois simbolos comuns nas emissdes atenienses: no anverso, a Deusa Atena €, no reverso, seu atributo principal, a coruja. Isso ressalta os aspectos nao estritamente econdmicos da moeda grega, em particular em Atenas. A cidade, durante o regime democritico (séculos V e IV a.C.), incenti- vava a circulacdo de dinheiro entré os grupos sociais superiores e inferiores por meio de diversos mecanismos. O pagamento para o exercicio de funcdes piiblicas (misthof), 0s soldos militares, os salérios piblicos € as liturgias (financiamento privado a atividades como coros, equipes atléticas etc.) eram formas de redis- tribuigao politica de renda facilitadas pelo uso da moeda. O carter social e poli- tico dos empréstimos hipotecdrios também deve ser ressaltado: financiavam-se dotes de meninas, funerais e outras atividades nao diretamente econdmicas. O desenvolvimento artistico das moedas gregas pode ser dividido em, ao menos, sete periodos: 1. Periodo arcaico, das origens ao recuo dos persas em 479 a.C.; 2, Periodo transitério, coincidindo com a Guerra do Peloponeso (479-404 a.C.); 3. Periodo de apogeu das cidades independentes, até a morte de Felipe da Macedénia (404-336 a.C.); 4. Periodo helenistico inicial (336-280 a.C.); 5. Pesiodo helenistico tardio, até a destruig’o de Corinto (280-146 a.C.); 6. Periodo romano inicial (146-27 a.C.); 6. Periodo romano imperial, até Galieno (27 a.C.-268 d.C.), quando terminam as cunhagens das cidades gregas. A partir do periodo helenistico, as moedas passam a ser utilizadas pelos monarcas como instrumento de propaganda, prdtica que sera adotada e expandida pelos romanos durante o Principado. © estudo das moedas envolve uma série de temas, desde as técnicas de fa- bricagao (Hackens 1975), passando pela metrologia (Naster 1975), pelas ligas me- talicas (Condamin 1975), tipos ¢ legendas monetirias (Lacroix 1975; Gauthier 1975), ateliés produtores ¢ circulagao. Sua importancia para o conhecimento da vida eco- némica, social, cultural e politica antiga ndo pode ser subestimada. Como outros objetos arqueolégicos, contudo, sua andlise envolve ndo tanto o exemplar individual, uma moeda especifica, mas um conjunto numeroso de documentos. As séries mo- netirias, na yerdade, constituem o objeto de estudo do numismata, pois apenas um 51 grande namero de moedas permite estudar a metrologia e as diferentes cunha- gens. Trés documentos epigraficos provenientes de Aquae Stlis, Bath, Inglaterra (Tomlin 1988: 150-1; 198-9; 226-7) 1. Carta referente a roubo de roupas (figura3) ‘Transcrigao: deaesuliminiruesoli/ nusdononuminituoma/ iestatipaxsabaearemet/ Jeumn<>ermitta<>mnum/ necsan..tem,eiquimihifru/ dem, ecitsiuirsifemi<.> siseruus/ s<.>l..emissi..eretegensistas/ s.eciesad..mplumtuumdetulerit/ ..beriesuiue Ison sua.equi/ deg/ eiquoque xe/ mnumne/ m n.. alul.um/ etrelinqu<.>.snissiad, <.>mplumtu/ umistasresretulerint. Tradugo: “De Solino para a deusa Stlis Minerva. Dou para tua divindade € majestade minha tinica de banho e meu casaco. Nao deixa dormir, ou ter sati- de, aquele que me fez mal, seja homem ou mulher, escravo ou livre, a menos que se apresente e traga estas coisas para o téu templo... seus filhos ou seus... €.. aquele... para ele também... sono ou ... casaco e o restante, a menos que tragam estas coisas para teu templo.” Placa de liga metilica, de 78 por 91 mm, originalmente dobrada em qua- tro; nfimero de inventario 616; provavelmente, datada do século III d.C. (antes de 275 d.C). Sameera tea NES Us; a ul te hyo Oe ANAS SIAN AVI I 2. Roubo de um manto (figura 4) ‘Transcrigo: minerue/ desulidonaui/ furemqui/ caracallam/ meaminuo/ lauitsiseras/ siliberiba/ rosimulier/ hocdonumnon/ redematnessi/ sangun.suo. ‘Tradugao: “Para Minerva, 2 deusa Silis, dou o ladrao que roubou meu casaco, seja escravo ou livre, homem ou mulher. Nao reaverd esta doacdo a nao ser com seu proprio sangue.” Placa de liga metalica, de 50 por 88 mm; ntimero de inventario 671; ca. 250- 300 d.c {7 WP) Aryl raya PaUyZr po PX Lorn Pr zreypnnng uj Wr Guy? ta laprry bu HOA 19 NTI JOH MNadiguanrn au comune Lurnyipla br Gry hyum EAguiLfUaK wD, (sara rr 3. Punigio 20 peririo ou falso testemunho (figura 5) 53 Transcrigdo:uricalusdo. ilosaux..sua/docilisfiliussuusetdocilina/ decentinusfratersuusalogiosa/nominaaeorumquiiurauerunt/ quiiuraueruntadfontemdeaesuli/prideidusaprilesquicumqueillicper/ jurauerritdeaesulifaciaillum/ sanguinesuoilludsatifacere. ‘Tradugao: “Uricalo, Docilosa sua mulher, Décilis seu filho ¢ Doci Decéntino seu irmao, Alogiosa: os nomes destes que juraram , na fonte da deusa Stilis, no dia 12 de abril. Aquele que cometer um perjtirio, faca com que pague com o proprio sangue a deusa Stlis.” ina, Placa de liga metalica, de 75 por 55 mm; ntimero de inventario 618; final do século III ou século IV d.C. Comentarios No sudoeste da Inglaterra, uma fonte natural de Agua morna (46,5 graus centi- grados) deu origem a um assentamento romano, a partir de meados do primeiro século d.C. Johnston 1983:17). No local, um templo foi dedicado a Silis Minerva, divindade sincrética: Minerva, deusa romana da sabedoria e protetora do povo romano, foi associada a deusa nativa SGlis. Uma série de placas votivas foram encon- tradas, recentemente, depositadas e enderecadas a deusa (Cunliffe 1988). Conhe- cidas pelo termo latino defixiones, consistem em maldicdes de pessoas que come- teram ofensas, cuja reparacdo é pedida a um deus. Freqiientemente, os bens rou- bados ¢ reivindicados ou os proprios ladrdes sao ofertados a divindade, justificando © uso do termo donatio (‘doagio”) usado para referir-se as placas. Os textos aqui apresentados utilizam-se de dois tipos de letras cursivas di- versas: a primeira placa utiliza-se da chamada escrita romana cursiva antiga, usada até cerca de 275 d.C.; a terceira esti escrita em cursiva romana nova, introduzida no tiltimo quartel do terceiro século d.C., enquanto a segunda mescla os dois tipos de letras. A datagao apresentada acima deriva, na auséncia de datagao mais pre- cisa, da utilizagdo das cursivas antigas ou novas. As placas nao eram feitas em série, mas individualmente, e entre as 130 placas provenientes de Bath nao h4, até o momento, casos de dois ou mais textos escritos por uma mesma pessoa, po- dendo-se inferir que nao sdo o resultado do trabalho de escribas profissionais e que, portanto, um considerével ntimero de pessoas sabia ler e escrever no santuatio (Tomlin 1988:99). © uso de um latim repleto de vulgarismos, bem como a refe- réncia ao roubo de objetos baratos, indica que as placas refletem os ambientes mais populares da sociedade provincial romano-britanica. © texto de Solin permite observar o carter legal, fortemente juridico, do linguajar utilizado nestas maldigdes: si uir, si femina, si seruus, si liber, “seja homem ‘ou mulher, escravo ou livre”. Esse tipo de formulagao procura evitar a burla por parte de quem quer que seja ¢ calca-se na linguagem: legal. O uso de palavras j4 54 em desuso, como uir, equivalente ao vulgar baro ou mascel, ou femina, substituin- do 0 comunissimo mulier (cf. “mulher”, em portugués) s6 pode derivar do apego a formulas juridicas arcaizantes. Isso torna-se mais claro quando confrontamos esses termos eruditos com os miltiplos vulgarismos do texto: por exemplo, minerue por mineruae ou panxa por pexam tunicam (“tinica pregueada”). Na verdade, 0 proprio estabelecimento do texto apresenta uma série de problemas, Algumas linhas estéo com lacunas e sua interpretacdo nao € inequivoca: li>beri sui uel son sua pode ser lido liberi sui uel sponsa sua (‘seu filho ou sua esposa”) ou liberi sui vel sponte sua (“seu filho ou por sua propria vontade”). Sentidos muito diferentes mas de di- ficil escolha a partir dos vestigios disponiveis. O segundo texto, mais recente, apresenta as mesmas caracteristicas juridicas € vulgares, O roubo de uma caracalla, um tipo de tinica gaulesa, demonstra, também nesse caso, a simplicidade do autor do texto, enquanto o uso da palavra baro para referir-se a *homem” — substituindo o classico ui) — parece indicar forte influéncia provincial, sendo essa palavra, provavelmente, de origem celta, A terceira placa constitui exemplo Gnico, até o momento, de um texto contra 0 falso testemunho. Acreditava-se que fontes d’4gua podiam punir o perjtirio e, aqui, membros de uma familia provincial celto-romana associam-se na dedicagao da placa. Alguns nomes préprios so celtas, como Uricalus, outros latinos, como Decentinus, Docilis, Doc ilosa e Docilina, enquanto Alogius parece ser de origem grega. A mescla étnica, atestada por esses nomes, reflete uma cultura popular provincial romanizada. A tradicao de associar 4guas termais a punico do perjirio remonta a antiqilissimas concepges indo-européias. O Pseudo-Aristételes (Mirabilia 57) afirmava, assim, que 0 juramento devia ser escrito em uma placa € jogado 4gua: se flutuasse era verdadeiro. Apologia de Sélon pelo préprio, citado por Aristételes, Constituigao de Atenas, 12,4 Dentre os objetivos que me levaram a reunir 0 povo, ha algum que nto tenha concluido antes de me retirar? Quem poderia servir de testemunha, melhor do que ninguém, perante o tribunal do tempo, sendo a grande Mae dos Olimpicos, a Terra negra, da qual tirei, um dia, as cercas, em milhares de lugares, essa Terra outrora escrava e, agora livre. Repatriei a Atenas, sua patria fundada pelos deuses, muitos homens que haviam sido vendidos, ilegalmente ou nao, outros, ainda, que foram levados ao exilio e que nem mais falavam a lingua Atica, como acontece quando vagamos por meio mundo. Outros, enfim, que aqui mesmo, viviam na escravidao infame, sofrendo os caprichos dos seus senhores, alforriei. Isso tudo © fiz pela forga da lei, unindo a forca bruta 3 justiga. Fui até o fim, como havia prometido, Além disso, proclamei leis, tanto para os maus como para os bons, aplicando para cada qual a reta justia, Se alguém estivesse no meu lugar, alguém malvado e arrogante, no teria mantido © apoio popular. Se quisesse fazer o que 35 agradava aos seus inimigos, ou, ao contrario, o que os adversarios do povo trama- vam contra aqueles, a cidade estaria, logo, vidva de um grande ntimero dos seus Por isso, juntando todas as minhas forcas, combati como um lobo diante de uma matilha de caes Plutarco, Didlogo sobre os ordculos da Pitia, 24, “Como a prosa substituiu, aos poucos, a poesia, em particular nos oraculos” uso da lingua assemelha-se 4 circulagdo monetaria: € 0 uso costumeiro e familiar que a consagra e seu valor difere em diversas épocas. Houve tempo em que tinha circulagao, em termos de moedas de linguagem, 0 verso, os ritmos e os cantos, A Historia e a Filosofia, integralmente, na verdade toda expressdo de sen- timentos e ages que exigiam um estilo mais solene, expressavam-se na poesia € na musica, Hoje, poucos sdo os que conhecem e praticam a versificacao, Outrora, contudo, todos, “pastores, camponeses € passarinheiros”, como diz Pindaro, escu- tavam os versos com encanto, Gracas a essa capacidade poética, usavam-se a lira € 0 canto para admoestar, expressar opinides, exortacdes, apdlogos, maximas. Hinos, preces, oragdes em honra dos deuses eram compostos em versos ¢ em mti- sica, gracas a um talento natural ou ao habito adquirido, Apolo nao recusou a adivinhacdo esses ornamentos e gragas e, longe de descartar daqui e do seu tripé uma Musa honrada, foi-Ihe favoravel instigando ¢ fazendo aflorar as predisposigdes naturais 4 poesia. Ele fornecia material para a imaginagao ¢ encorajava, a0 mesmo tempo, 0 estilo eloqiiente e sublime, conside- rado apropriado e digno de admiracdo. Mas os acontecimentos e o temperamento humano modificaram, completamente, 0 modo de vida, Comegou-se a afastar 0 supérfluo, suprimindo os penteados com adornos de ouro ¢ as roupas longas e vistosas. Foi ele também, sem duvida, que pés limites as cabeleiras demasiada- mente ousadas, assim como as barbas. Adquiriu-se 0. s4bio costume, quanto elegancia, de ndo rivalizar com o luxo senao pela simplicidade ¢ de considerar a auséncia de rebuscamento € de afetacdo, como um ornamento superior ao fasto © a0 refinamento. A linguagem sofreu uma semelhante transformacdo e o mesmo despojamento: a Hist6ria desceu da poesia como se baixasse de um carro e, gragas 4 prosa, andando a pé, pade separar a verdade da lenda. A Filosofia, hoje, prefere esclarecer e instruir mais do que obscurecer, investigando o mundo em prosa. Entao, o deus Apolo preferiu que a Pitia deixasse de chamar seus concidadaos “queima fogo”, os esparciatas “comedores de serpentes”, os homens “moradores das alturas” € 0s rios “bebedores das montanhas” 56 Arriano (século II d.C.), Manual (Encheiridion), 32, colegdo de aforismos de Epiteto (século I d.C.) Todas as vezes que recorra 4 adivinhagao, lembre-se de que ignora 0 acon- tecimento que ocorrera e que esti ali para sabé-lo pelo adivinho. Qual é sua natu- reza, saberd ao chegar, se for um fildsofo. Se for algo que nao depende de nos, nao sera nem boa nem m4, Nao se aproxime do adivinho, conseqiientemente, nem com expectativa nem com aflicao, e o faga sem tremer, com a convicgao de que o que quer que ocorra é indiferente e nao Ihe afeta. Lembre-se de que, em todo caso, poderd fazer um bom uso, ninguém pode impedi-lo. Assim, va confiando nos deuses, como se fossem conselheiros. Nao consulte 0 ordculo, como queria Sécrates, a ndo ser no caso em que sua questo se refira exclusivamente a0 resultado final e que nem o raciocinio, nem arte alguma possam Ihe fornecer os dados necessérios para resolver seu pro- blema, Conseqientemente, quando se tratar de compartithar os perigos de um amigo ou da patria, ndo pergunte ao adivinho se deve fazé-lo. Isso porque, se 0 adivinho concluir que as vitimas dao pressagios negativos, anunciando que vocé morreri, ser exilado ou ferido, deve seguir a razo ¢, mesmo com esses agouros, ajudar seu amigo e compartilhar o perigo da pitria. Creia, portanto, no maior dos adivinhos, Apolo Pitico, que expulsou de seu templo 0 infeliz que no socorreu um amigo que foi assassinado. Lei de Gortina (ca. 480-460 a.C.), Creta, “Estruturas sociais e familiares” 1V\1.23 Que o pai tenha poder sobre seus filhos € sobre os bens para divi- di-los entre eles. Enquanto estiverem vivos, nao ser4o obrigados a dividir os bens. Se um dos filhos for condenado , que se Ihe dé sua parte ao filho condenado, como est4 escrito. Se um homem morre, que sua casa, na cidade, ¢ tudo que se encontra nas suas casas, com excegao dos lugares onde reside um escravo que, normalmente, vive no campo, e, ainda, o pequeno e grande gado que nao seja de um escravo, sera dos filhos. Todos os outros bens devem ser di- vididos corretamente, ¢ os filhos, quantos quer que sejam, tenham duas partes. As filhas, quantas forem, terdo uma parte, Quanto aos bens maternos, apés 0 fale- cimento da mae, serao dividos da mesma maneira, Se nao h4 outros bens, além da casa, as filhas receberao sua parte como foi descrito. Se o pai deseja dar, ainda vivo, um dote para o casamento de sua filha, deve fazé-lo até o limite acima pres- crito, ndo mais. A filha que jA tiver recebido do pai o dote, manté-lo-4, sem nada acrescentar, quando da partilha da heranga. r 97 Isaios, A sucess4o de Pirro (ca. 360-350 a.C.), “Estruturas familiares aticas” 64. Vé-se 0 caso de filhas que, casadas por seu pai e vivendo j4 com seu marido — e quem, melhor que o pai, poderia decidir sua situag&o? — e que, entre- tanto, casadas, nessas condigées, se seu pai morre sem deixar irmaos legitimos, segundo os termos da lei, sao atribuidas ao parente mais préximo. Muitos maridos, vivendo com suas esposas, foram, desta forma, separados, 65. Assim, as filhas casadas pelo pai sao, pelas nuangas da lei, necessariamente submetidas a reivindicagao. 68. A lei declara, explicitamente, que se pode dispor, com liberdade, de seus bens, na auséncia de filhos legitimos do sexo masculino. Se ha filhas, deve dis- por-se delas ao mesmo tempo. Para decidir-se sobre o destino das filhas, pode doar-se ¢ legar-se seus bens. Nao se pode, contudo, sem dispor as filhas legitimas, adotar e legar nenhuma parte de seus bens. Plinio, o velho, Hist6ria natural, 38, 20-22, “Remédios da mulher” 20. Alguns produtos dos corpos femininos devem ser acrescentados a este tipo de maravilhas, para nao falarmos do desmembramento criminoso de criancas abortadas, a prevencao de encantamentos pelo fluido menstrual ¢ outros relatos ndo tanto de parteiras como de meretrizes. Por exemplo, a crenga que o odor do cabelo feminino queimado afasta as serpentes; ou que esta fumaca possa restabe- lecer os sentidos para mulheres em transe; essa mesma cinza, na verdade, de cabelo queimado em um pote ou com espuma de prata, cura coceira nos olhos, assim como verrugas e feridas infantis; com mel, cura, ainda, feridas na cabega e ulee- tagdes variadas, com mel ¢ incenso, feridas superficiais e artrite; com toucinho, cura erisipela ¢ evita hemorragia, combatendo, também, formigacdes no corpo. 21, No que se refere ao leite femminino, acredita-se que seja o doce mais delicado de todos, muito util para febres persistentes ¢ doencas estomacais, especialmente o leite de uma mulher que ja tiver desmamado o pequeno. Para enjdos estomacais ¢ dores de estémago, é considerado o remédio mais eficaz, também com incenso. & muito bom pasa um olho ferido por uma pancada, dolorido ou lacrimejante, se recebe leite diretamente ou, ainda melhor, caso se adicione mel € suco de narciso, ou incenso em pé. Para qualquer fim, 0 leite feminino € muito mais eficaz se tiver dado a luz a um menino, ainda melhor se forem dois meninos gémeos e se ela nao bebe vinho e comidas 4cidas. Misturado com claras de ovos e aplicados a fronte em uma la embebida na mistura, evita o lacrimejar. Se uma ra tiver salivado no olho, sera um 6timo remédio. Se tiver sido mordido por uma ra, deve beber o leite e pingd-lo no 58 local. Diz-se que se alguém esfregar uma mistura de leite de uma mae e de sua filha, ndo teré com que se preocupar, quanto aos seus olhos, pelo resto da vida Dores de ouvido so, também, bem tratadas com uma mistura de leite € azeite ou, se é uma dor resultante de uma batida, deve acrescentar leite a gordura quente de ganso, Se ha um odor fétido no ouvido, como acontece com doengas dura- douras, deve pér-se la, embebida em leite e mel. Quando a ictericia deixar mar- cas nos olhos, leite com elatério dever ser mesclado e pingado, Um trago de leite feminino é particularmente eficaz contra o veneno do ledo-marinho 22. A saliva de uma mulher em jejum € considerada um remédio poderoso para feridas nos olhos, para lagrimas copiosas, se as céreas inflamadas so molhadas com a sua saliva. Se no tiver comido e bebido vinho, no dia anterior, 0 efeito serd pontencializado. Percebo que 0 uso de sutias amarrados na cabeca alivia as nevralgias. Cataéo, Sobre as coisas do campo, 5, “Os deveres do capataz” Estes so os deveres do capataz. Dever ter disciplina; observard os dias fes- tivos, respeitard a propriedade alheia e cuidaré da sua. Mediara nas disputas entre seus subordinados. Se alguém cometer delito, a punigao ses4 na justa medida. Cuidar para que sejam bem tratados, nao tenham fome ou sede e que ndo prejudicarao nem roubardo ninguém. Qualquer infragdo cometida sera responsabilidade do ca- pataz, que sera punido, nesse caso, pelo senhor. Devera reconhecer os beneficios que recebe, para que estimule os outros a fazer o mesmo. O capataz no dever’ perambular; ficar4 sempre sObrio, nao participara de banquetes. Tera a escravaria sob controle, devendo cumprir suas ordens, Nao queira saber mais do que o seu senhor. Tratara os amigos do senhor como seus amigos, Dé atengao a quem for ordenado. Suas praticas religiosas devem limitar-se aos cruzamentos e a sua propria casa. Sem ordem do senhor, nao empreste a ninguém. © que o senhor tiver em- prestado, exija de volta. Nao dé, a ninguém, sementes, alimentos, gros, vinho ou azeite, Terd relagdes apenas com duas ou trés fazendas, para que possa dar e rece- ber o devido; com mais ninguém tratara. Prestard contas ao senhor com freqlién- cia, Nao retera, contra 0 estipulado, os trabalhadores, diaristas e vinhateiros, Nao comprar ou recolherd nada sem 2 autorizacao do senhor. Nao admitira parasitas. Nao consultaré araspice, augirio, adivinho ou astrélogo. Nao retera sementes, pois isso & uma m4 economia. Cuide de todos os trabalhos, para que saiba como execut- los e, sem descanso, pague pessoalmente. Assim, saberd da dedicagao de cada um, tornando-os mais interessados. Se assim fizer, perambulara menos mas tera melhor satide € sono. Sera 0 primeiro a sair e 0 Ultimo a voltar para a cama: antes disso, certificar-se-d de que as portas estdo fechadas, cada qual dormindo no seu devido lugar, ¢ 0s animais deverdo estar no estabulo. Cuidara, especialmente, dos boiadeiros, para que mantenham bem o gado. ee aeeerte 59 Atividades encaminhadas 1, Procure explicar a preocupacdo de Plutarco com passagem dos versos para a prosa, Plutarco, sempre com preocupagées de caréter moral, procura responder as crf- ieas ¢ objegBes ao fato de, em sua época, 0 ordculos no serem mais versificados, mas em prosa. Apolo, deus da poesia, segundo estes criticos, teria, portanto, deixado de ins- pitar a profetiea. No entanto, Plutarco argumenta que o ordculo adaptou-se, simples~ mente, & evolugao geral da literatura. A comparagdo entre a linguagem e ae trocas mo- netdrias revela que Plutarco explicava ae expresses eatéticas antes pelas circunetAn- clas hietéricas que por imanéncias. A critica moderna viria a relacionar o domtnio da poe- ia com o predominio primitive da oralidade enquanto, com a difustio do uso da escrita, a necessidade de memorizagdio poética foi endo, gradativamente, superada pela leltura da prosa. Plutarco niio toca nessa quest&o mas refere-ee A passagem do mito (Mythos) ou lenda para a investigago (historia) ou Histéria. A poesia, aseociével & tradigo oral mitica, opbe-se a investigagao da verdade (aletheia), expresoa, com preciefio documental, em prosa. A linguagem religiosa, portanto, deveria adaptar-se 208 novos tempos ¢ aban- donar a linguagem poética. Entrevéem-ee, no argumento de Plutarco, ao mesmo tempo uma justificativa da prética corrente, em sua época, e uma tentativa de coadunar religiio (¢ tradligio oral) e filosofia (e expressdio escrita em prosa), 2, Reflita sobre a relagao pensamento filos6fico e pratica religiosa a partir das consideragdes sobre a adivinhagao de Epiteto. Aadivinhagaio consiste num dos fundamentos no apenas da religido como de toda a vida pilblica ¢ privada de gregos e romans. Dentre ae correntes floséficas, talvez a mais critica, em relago a adivinhagdo, tenha sido a epicurista. Sécrates, como diz o tre- cho citado, coneultava o ordculo de Apolo e aconselhava-o a seus arigos. Os estéicos concordavam com Sécrates, a quem coneideravam o maior edbio, ao afirmarem que a adivinhag&o era insepardvel da crenga na Providencia e 0 éxito das predigdes da divindade apenas provava sua existéncia. No entanto, consideravam que a lugar da adivinhagao, na vida do estéico, devia levar em conta que a maioria dos acontecimentos nao deve preocu- par 0 edbio. Neste sentido, 0 texto mostra como, embora verdadelros, 08 ordculos deve estar submetides A racionalidade ética daquele que vai a seu encalge. O logos, orientado pela fidelidade & patria ¢ A amizade, deve, sempre, estar em primeiro lugar. 3. Segundo a lei de Gortina, caracterize as relagdes familiares na Grécia antiga 0 texto da lei de Gortina descreve uma sociedade patriarcal, Ae mulheres 9&0 apresentadas, invariavelmente, como disponiveis pelos homens da fanflia. O proprio dove 60 das filhas estava limitado a representar, no maximo, uma terga parte dos bens a serem herdados pelos filhos. 4, Uma série de praticas curativas séo associadas 4 mulher por Plinio. Dis- serte sobre suas principais caracteristicas. Ae préticas curativas descritas por Fiinio associam a sexualidade e fertilidade femininas & cura de diversas doengas. Particular atengao é dada, justamente, ao leite materno cuja evidente ligago com a procriagao no precisa ser resealtada. Enigmdtica, mas diretamente ligada & sexualidade, é a afirmagdo de Plinio de que, segundo ele, eutias amarrados & cabega aliviam nevralgias: inuenio et fascia mulieris alligato capite doleres minui, De qualquer forma, toda essa paseagem, embora claramenite escrita por um hortem ¢ refletindo sua admiragao com 0 poder associado ao corpo da mulher, demonstra que 08 homens romanos admiravam-se com 0 poder sobrenatural advindo da feminilidade. 5. Caracterize as preocupacées do senhor em relacdo ao seu capataz. 0 capataz ou uillicus, eecravo a frente da escravaria, representa um elemento- chave na socledade escravieta antiga. Possul os tragos ambiguos da eua posi¢lo: es- cravo, deve obedecer e pertencer ao senhor, como todos 0 escravos. Enquanto capataz, contudo, deve administrar a fazenda ¢ mandar nos escravos eubalternios. Nao & toa, Catao utiliza-se da expresedio disciplina bona utatur, “terd boa disciplina”. A disciplina encontra-se na base de ua administragdo econdmica da empresa, no respeito ao pa- tro, na distancia com relagdo as crengas populares. O capataz antigo, eacravo e ad- minlstrador a uma #6 vez, concentra as contradigBes tipicas da sociedade escravista: governa para outrem, 6 obedecido e obedece. Atividades -propostas 1. Procure, utilizando-se de obras sobre a religido grega, investigar o papel inhagdo na cultura antiga da a 2. Reflita sobre a relagdo entre tra: curso em prosa, por outro, ico oral € poesia, por um lado, e dis- 3. Reflita sobre a moderagao dos sentimentos a que devia estar submetido © est6ico € quais suas conseqiiéncias priticas. 4, Considere as relagdes entre priticas religiosas e pensamento filoséfico a luz do texto de Epiteto. 61 5. Reflita sobre a estrutura familiar tal como descrita na lei de Gortina 6. A partir da lei de Gortina e do texto de Plinio reflita sobre as semelhan- cas € diferengas entre gregos € romanos no que se refere ao trato dos homens com as mulheres, 7. No texto de Catdo, citam-se diversas praticas religiosas, em especial a consulta aos arlispices, augirios, adivinhos e astrOlogos. Utilizando-se de obras. auxiliares, reflita sobre as caracteristicas dessas priticas. 8, Catdo adverte seu capataz que nao deve querer saber mais que seu senhor. Reflita sobre as implicagdes culturais dessa afirmacdo. 5 SENTIMENTOS “Trono Ludovisi (figura 6) Descrigao: escultura em marmore, conservada no Museo Nazionale Romano, sob os néimeros de inventdrio 8570 e 8670; dimensoes: altura, 1,04m, largura, 1,44m, profundidade, 0,72m. Descoberto em 1887 e publicado, pela primeira vez, por C.L. Visconti no Bulletino Communale, XV, 1887. Bibliografia sumétia recolhida por Enrico Paribeni (1953:12-14), Pega datada, em geral, em torno dos anos 460-450 a.C. 6 64 Comentarios © monumento foi encontrado, em Roma, na Villa Ludovisi, em 1887, en- tre as ruas Piemonte e Abruzzi. A incerteza quanto 4 fungao do artefato levou diferentes autores a usarem termos gerais, como Marmorwerk ou obra de mar- more (W. Amelung), ou a proporem utilizagdes mais concretas, caracterizando- © como base de altar ou trono, nome que ganhou aceitacao. A descrico dos relevos depende da interpretacdo dada as figuras. Na face exterior da parte de rds, representa-se uma jovem levantando-se da 4gua, coberta com um véu muito fino e com apenas meio corpo exposto. Com um leve sorriso nos labios, levanta os dois bragos para as duas garotas que estao as margens do veio d’4gua, com 0s pés apoiados em cascalhos e areia. Ajudam-na a levantar-se com duas maos, enquanto as outras duas seguram uma tela, pregueada, que encobre a parte inferior da deusa. Do lado direito do trono, outra jovem, envolta em um manto que lhe cobre a cabeca, mas no impede a vista de seu delicado rosto, esta sentada em uma almofada. Retira, com cuidado, de uma caixinha que segura com a mao esquerda alguns griios de incenso e prepara-se para deposité-los em um braseiro a sua frente, No outro lado, outra jovem, inteiramente despida, € representada sentada em uma almofada, com as pernas graciosamente cruzadas, tocando uma flauta dupla. A conservacdo do monumento deixa a desejar em pontos especificos: na figura principal, toda a parte superior est4 prejudicada, em especial 0 braco de uma das mocas que ajudam a alcar a deusa; a flautista tem fraturas na perna, nas maos € num dos pés; a ofertante teve sua mio direita totalmente obliterada e 0 pé do braseiro esta danificado. Ao menos parte dessas mutilagdes deve-se 4 conser- vacdo moderna. Alguns autores propdem que esse trono, adornado com acess6- rios de metal, tenha servido de base para uma imagem de Afrodite de Erynx, trazida a Roma em 181 a.C. A interpretagdo do monumento depende de uma anélise exegética da imagistica helénica. A deusa que aparece pela metade foi interpretada como Hera Teléia, Perséfone, Tétis, Réa e Afrodite. Esta Gltima identificagdo tem sido, muitas vezes, aceita, As representacdes de Afrodite saindo das Aguas, na ceramica atica recolhida por Beazley (1942:588;603), apresentam, contudo, um clima de alegria ausente no monumento de Villa Ludovisi. O relevo central desse trono, a0 con trério, aparece como um mistério, uma representacdo de cardter sagrado e mis- tico. Esse efeito € ressaltado pela atmosfera exclusivamente feminina, a estreiteza do registro, avolumando figuras e tecidos, e o paraielismo exato das duas ajudantes Isso condiz. com os pinakes de Locri, também marcados pela presenca feminina, cerimOnias de procissdes com mantos estendidos, carregados de misticismo. O clima de mistério religioso e a linguagem ionizante parecem relacionar-se 4 Magna Grécia e a deusa Perséfone (Paribeni 1953:13) Outras interpretagdes, contudo, tentam relacionar as trés faces do monumen- to, Interpretando a deusa como Afrodite, ajudada no relevo central por duas ninfas, 65 ela seria reapresentada, nos dois painéis laterais, na forma de suas duas mani- | festages: esposa e hetaira (cortesa). Dessa forma, a deusa do Amor apareceria sob a forma da esposa modesta, cuja dedicacio doméstica aos filhos e ao mari- do encontra-se representada, magistralmente, no recato € na contengao da figura I ofertante. Por outro lado, o amor sensual da hetaira, a mulher cuja beleza e ou- sadia constituem objeto de desejo do homem, apresenta-se na volipia das formas i expostas pela nudez da flautista (Aurigemma 1968:82-3). | Qualquer das duas interpretagdes, de toda forma, abre espago para dis- | cutir a relacdo entre as duas personagens laterais, cujo carater complementar ' parece claro. Sio duas personificagdes do feminino: devogao subordinada e ‘ introspectiva, por um lado, sensualidade ¢ autonomia, por outro, £ possivel supor que 0 piblico masculino identificasse as duas imagens como protétipos opostos ¢ inconciliaveis da condigdo feminina: esposa e amante, dissociadas e incon- fundiveis. No entanto, nada impede que fossem manifestagdes complementares da mulher, em particular do ponto de vista feminino (Skinner 1993), mas, talvez, para os prdprios homens. Tina Passman (1993:181) ressalta que a defini¢ao dos atributos masculinos e femininos talvez possa ser mais bem compreendida por meio da articulagao de caracteristicas aparentemente contradit6rias. Esposa e hetaira talvez ndo precisassem ser opostas, mas pudessem ser unificadas por uma divindade feminina Um outro aspecto a ser lembrado refere-se a0 uso romano das obras de arte gregas. Apenas o dominio romano permitiu 0 saque ¢ a aquisicao de obras helénicas. Cicero (Verrinas, IL,IV,6) descreve como “C. Claudio, cuja atuagéo como edil foi Uo generosa, usou 0 Cupido quan- do decorou o Férum em honra dos deuses imortais e do povo romano...”. Sem negar que a arte grega tenha exercido uma influéncia dominante no gosto, em especial das elites urbanas latinas ou romanizadas, deve reconhecer-se que 0s usos dessas pecas artisticas serviam propésitos diversos dos originais (cf. Ling 1991:11 et passim): serviam como lembranca do poder romano, verdadeiros monumentos (“memorial”). No caso especifico desse trono, insere-se na tendéncia de transferir esculturas gregas, ligadas ao culto, para templos na cidade de Roma, sendo a estatua de Artemis de Timéteo (escultor grego do quarto século a.C.) a mais famosa, ao lado das imagens de Atena de Eufranor, do Apolo de Célamis. As pecas antigas nao eram tratadas como reliquias a serem preservadas, a ma~ neira da moderna Arqueologia. Inseriam-se no quotidiano de tal forma que al- teragdes eram efetuadas sem qualquer inquietagdo, Tal despreocupacao apre- senta-se clara, por exemplo, em uma passagem de Plinio, o velho (NH 36,32): “Ha uma Diana de Timoteo em Roma, no Palatino, no santudrio de Apolo, cuja estétua teve a cabeca reposta por Aviano Evandro.” O uso e conotagées especificas do trono Ludovisi, no entanto, néo podem ser determi nadas com exatidao, 66 Plutarco, Moralia, 5, 680C, Quest4o 7, “Sobre aqueles que se diz jogarem o mau-olhado” Conversam Méstrio Floro, Plutarco, Patrécleas, Soclaro e Gaio. 1. Em uma refeicdo surgiu a discussdo sobre as pessoas que se diz langarem maldigdes e mau-olhado, Todos consideraram o tema completamente absurdo e derris6rio, com a excegio de Méstrio Floro, nosso anfitrido, ao dizer que os fatos dio um admiravel apoio a essa crenga generalizada. Contudo, tais fatos sdo fre- qiientemente rejeitados porque se buscam as causas; isso no € correto, considerando 08 milhares de outros casos indiscutiveis cuja causa l6gica se nos escapa em geral”, continuou, “aquele que pergunta pela logica de tudo destréi a maravilha das coisas. Sempre que a causa l6gica se nos escapa, ai comeca a aporia e, como conseqiiéncia, a Filosofia. Assim, destr6i-se a Filosofia 0 abandonar-se a admiracdo. O correto”, ele disse, “consiste em buscar a razdo dos fatos, toman- do-os segundo seu registro hist6rico. Na Histéria h4 muitos casos. Sabemos, por exemplo, que pessoas feriram, gravemente, criancas pelo simples olhar, enfraque- cendo-as por sua natureza fragil, embora fossem incapazes de afetar a satide mais sOlida de adultos...” : “Na verdade”, respondi, “descobriste a causa, quanto chegaste aos eflavios do corpo... Sendo a vista suave e dotada de um espirito que Ihe da brilho, possui um poder admirdvel, Desta maneira, os homens recebem e emitem muitas forgas pelos olhos. & influenciado pela dor e pelo prazer conforme o que vé...” Disseste corretamente”, disse Patrécleas, “no que se refere aos aspecios fi- sicos. No que se refere a0 psicolégico, como pode o mau-olhado prejudicar pelo simples olhar?” Repondi: “Nao sabes que o corpo é afetado, pela simpatia, quan- do a mente esté influenciada? Pensamentos amorosos excitam os 6rgdos sexuais...”. Comentarios Plutarco nasceu em Queronea, na Bedcia, tendo vivido entre 46 e 120 d.C., aproximadamente. Escreveu as famosas “Vidas paralelas” de ilustres gregos e r0- manos € uma colegio de 83 tratados sobre questdes de conduta, fisica, literatura, historia, ética, entre outros temas, sob o titulo Syngrammata ethika ou moralia Pouco se sabe sobre sua vida, mas parece ter lecionado filosofia, em Roma, sob Domiciano (81-96 d.C.), tendo exercido cargos publicos durante os principados de Trajano (98-117 4.C.) e Adriano (117-138 d.C.), Retornou 4 sua cidade natal, tendo atuado como magistrado e sacerdote Essa discussdo sobre 0 mau-olhado apresenta-se na forma de uma conversa, a mesa, entre diversos convivas. Enfeitigar (baskaino) era uma pratica comum, popular, mas oposta, como no trecho inicial citado, por pensadores como algo oposto 4 logica. Opde-se a causa légica (ho tes aitias logos) & falta de l6gica ou aporia. A causalidade, esséncia mesma da explicagdo, tanto metafisica quanto histOrica, liga- se ao logos, a razo tal como apresentada por um relato ou discurso coerente, Méstrio Floro, nao por acaso um romano, associa o mau-olhado a Hist6ria Empiricamente, afirma que € necessario aceitar os fatos “tal como aparecem no relato hist6rico” (historia). S40 os fatos que atestam 0 poder das maldicdes. O exemplo do olhar sobre a crianga, eficaz no seu poder maléfico, mas incapaz de afetar o adulto, nao se confina 4 légica ou 4 hipdtese, mas € apresentado como fato muitas vezes constatado. J4 Plutarco atribui ao espirito, pneuma, presente no ollho, sua forca, Responde a Patrécleas que a importancia da vista advém da rela- do de correspondéncia entre 0 corpo e a alma (he psykhe to soma syndiatithesin) Plutarco atribui a Méstrio Floro, seu amigo romano, um pensamento bastan- te pratico, histrico no sentido de que a realidade deve preceder de teoria. Floro retoma algumas consideragGes de Platéo (Theaetetus, 155 D) e Arist6teles (Metafisica 982 b 12) sobre a importdncia da admiracao ou assombro para a Filosofia. De fato, thaumadzo, “admirar-se, ficar espantado” podia ligar-se tanto ao sagrado como a0 humano, mas sempre em oposiga0 a0 esperado, racionalmente previsivel. Busca- se, portanto, uma conciliacao entre a explicacdo da causalidade logica e a imprevi- sibilidade dos acontecimentos objetivos. Esta tiltima pode, desta forma, ser apresen- tada como prova do poder efetivo da’ maldigao, Assim, ainda que, de inicio, a questo tenha sido considerada sem importincia, 0 romano Floro, ao introduzir a Historia € 0 inexplicavel, obrigou uma reflexdo dos seus colegas. A resisténcia dos pensa- dores ao tema, contudo, contrasta com a aceitacio popular da eficécia das maldices (cf. capitulo 4, maldigbes de Aquae Silis) Pindaro, (Pyth.8,73; Olymp.12,6; Pyth.2,4 “Sobre a sabedoria” 59;8,88), 1. Aquele que adquiriu bens sem grande esforgo passa, para muita gente, por set um s&bio que, entre os insensatos, pratica uma vida prudente. Mas a felicidade ndo depende dos homens, A divindade né-la da, elevando uns e rebaixando outros 2. £ Deus quem, segundo seus designios, leva tudo a cabo, Deus que alcanca a guia, mesmo em véo, ultrapassa o delfim no mar, curva a testa do mortal soberbo e, para outros, da-lhes a gloria eterna 3. A nenhum terrestre os deuses permitiram descobrir o indicio dos acon- tecimentos futuros € nossos pensamentos sobre 0 amanha sto cegos, Muitas vezes, os homens véem suas previsbes desfeitas pelos acontecimentos, sua alegria destruida. Ou, entio, ao contratio, as desgragas sio transformadas em grandes alegrias, 68 4, Devemos perguntar aos deuses 0 que convém aos nossos coragées mor- tais e, mirando nossos proprios pés, reconheceremos nossa condicao. Nao alme- je, alma minha, uma vida imortal, mas esgote todas as suas potencialidades. 5. Aquele a quem o destino acaba de conceder grande éxito, muita felicida- de, voa, cheio de esperanga, com as asas do seu valor e pensa naquilo que trans- cende a riqueza. Em pouco tempo, a felicidade dos mortais aumenta, para em se~ guida acabar-se, sob os golpes de uma vontade inflexivel. Seres de um Gnico dia, ‘© que somos? O que nao somos? O sonho de uma sombra, este é 0 homem. Mas quando Deus Ihe envia um raio de luz, um brilho fulgurante se lhe apossa e sua vida adoga-se como o mel. Decreto dos sacerdotes egipcios homenageando Ptolomeu Il Evergeta e sua familia, Decreto de Canope, (239-8 a.C.), OGIS, 56, “O poder helenistico e a religiosidade” Sob o reino de Ptolomeu, filho de Ptolomeu e Arsinoe, deuses Adelfos, no ano nono , Apolénida, filho de Mésquio, sacerdote de Alexandre e dos deuses Adelfos e dos deuses Evergetas, Menecrateia, filha de Filamon, canéfora de Arsinoe Filadelfa, dia sete do més Apélaio e dia dezessete do més egipcio Tibi. Decreto: Os grandes sacerdotes ¢ os profetas, e aqueles que penetram no santuario para vestir os deuses e 03 pteroforos, hierogramatas, ¢ os outros sacer- dotes que, vindos dos templos de todo o pais, reuniram-se, no quinto dia de Dios, dia natalicio do rei e vigésimo quinto dia do mesmo més, dia que recebeu a dig. nidade real do seu pai, deliberaram em comum, nesse dia, no templo dos deuses Evergetas e disseram: Vendo que o rei Ptolomeu, filho de Ptolomeu e Arsinoe, deuses Adelfos, a rainha Berenice, sua irma e esposa, deuses Evergetas, favorecem, constantemente, com benfeitorias, muitos templos importantes, aumentando, cada vez mais, as honrarias aos deuses, cuidando, sempre, de Apis, Mnévis e outros animais sa- grados, com grandes gastos. O rei, apés uma expedicao, trouxe de volta e restituiu aos templos estatuas sagradas retiradas do Egito pelos persas, Manteve o pais na paz, combatendo contra povos e governantes estrangeiros. Os soberanos tém administrado a justiga a todos os habitantes do pais ¢ todos aqueles sob sua respon- sabilidade. Tendo o Nilo, em certa ocasifo, tido uma cheia pouco abundante, lembrando-se da catastrofe ocorrida em reinados anteriores — quando se sofreu com a seca — demonstraram grande atengao para com os agregados aos templos ea populacdo em geral, tomando providéncias, doando parte de suas rendas, para salvar muita gente, fazendo vir trigo da Siria, Fenicia, Chipre e de outros lugares, salvando os habitantes do Egito e deixando um testemunho imortal de sua bela 6 conduta ¢ a meméria de sua virtude, aos contemporaneos ¢ a posteridade, Como recompensa, os deuses deram-lhes seguranga no governo, assim como tudo o mais. A Boa Fortuna!: pareceu justo aos sacerdotes do pais que as honrarias pres- tadas, anteriormente, nos templos, ao rei Ptolomeu ¢ a rainha Berenice, deuses Evergetas, ea seu pais, deuses Adelfos, ¢ aos seus ancestrais, deuses Salvadores, sejam aumentadas. Os sacerdotes, em cada templo do pais, serio chamadbs, igual- mente, sacerdotes dos deuses Evergetas, e serdo inscritos nos atos como deuses, assim como nos anéis dos sacerdotes. Além das quatro tribos existentes, atualmente, nos consilios de sacerdotes, em cada templo, sera instituida uma quinta tribo, dos deuses Evergetas... Apuleio, O asno de ouro, 2, 16-17, “Romance com uma escrava” 16, Deitara-me, ¢ eis que a minha Fotis, tendo sua patroa ido ao leito, apro- ximou-se de mim risonha, portando uma guirlanda de rosas, bem como rosas soltas, junto de si, Beija-me carinhosamente, coroa-me e espalha flores sobre mim. Pega uma taga de vinho e, vertendo agua morna, me da de beber. Antes que pudesse tomar tudo, retira-a, suavemente, ¢ sorve, olhando-me, gota a gota. Se- guem-se copos sucessivos. Sob 0 efeito do vinho, inquieto nao apenas no espf- rito, mas no proprio corpo, nao pude mais me conter: levantei minha veste e mostrei a Fotis 0 ardor do meu desejo e Ihe disse: — Tenha dé € venha rpido! Como vé, espero impaciente para travar esta batalha que vocé iniciou sem a ajuda do fecial. Tao logo a flecha do cruel Cupido atingiu 0 fundo do meu coracao, estendi meu arco, com forca, ¢ agora temo que © nervo, de tdo teso, se rompa. Mas se quiser satisfazer-me ainda mais, deixe os cabelos livres e soltos e me abrace 17. Sem demora, retira todos aqueles pratos de iguarias, tira toda a roupa, solta os cabelos com fina sensualidade, como Vénus quando surge das vagas marinhas e, como ela, protegia, com sua mAozinha résea, sua suave pubis, antes com malicia que com recato: — Combata, disse, e combata com forga, nao cederei nem darei as costas; se for macho, ataque, lute € mate quem h4 de morrer. Na luta de hoje ndo hé escapat6ria. Assim tendo falado, subiu na cama, cavalgou-me, mexendo as costas com movimentos rapidos, em mavimentos sensuais, deu-me, como num balango, os gozos de Vénus, até que, esgotados, os membros exauridos, ficamos, ambos, abracados a nos acariciar. Ficamos nestas batalhas, até quase 0 amanhecer, reanimados, diversas vezes, pelo vinho, estimulante de nossos desejos ¢ renova- dor dos nossos prazeres. A esta noite acrescentaram-se inumerdveis outras do mesmo tipo. 70 Séneca, Cartas a Lucilio, 1,7, 3-4, “Sensagdes de um espetaculo” Encontrei-me, por acaso, em um espetdculo de meio-dia; esperavam jogos € divertimentos, um espeticulo agradavel aos olhos, cansados de ver o sangue humano, mas foi o contrario. Os combates antigos eram misericordiosos mas, agora, deixam-se esses detalhes, e ocorrem verdadeiros assassinatos, Nada tém para usar como defesa. Seus corpos expostos aos golpes, no h4 combate sem morte A massa prefere isso aos pares normais ou aos pares de favoritos. Por que nao prefeririam? Nao h4 escudo, nem capacete para conter os golpes. Servem apenas para retardar a morte, Pela manha, homens so opostos aos ledes € 0s ursos, 20 meio-dia, 20s seus espectadores. Ordenam que os que acabaram de matar sejam expostos aos seus matadores, preservando o vencedor para nove massacre. O nico fim do combate é a morte. Trata-se a ferro e fogo. Essa € a atmosfera quando a arena é livre para fazer 0 que quiser. Séneca, Sobre a brevidade da vida, 16,1-5, “Sobre a vida” (tradugdo de William Li) E extremamente breve e agitada a vida dos que esquecem o passado, ne- gligenciam o presente e receiam 0 futuro; quando chegam ao termo de suas exis- téncias, os pobres coitados compreendem, tardiamente, que estiveram, por longo tempo, ocupados em nada fazer. E, pelo fato de fazerem freqiientes apelos a morte, nao h4 por que pensar que fica provado que eles tenham usufruido duma longa existéncia. Sua cegueira os atormenta com emogoes incertas e que os faz incidir nas proprias coisas que temem: desejam, entdo, muitas vezes a morte, porque os atetroriza, Nao ha, ainda, razdo para se pensar que isso também seja uma prova de uma vida longa: — 0 fato de, muitas vezes, os dias Ihes parecerem longos, ou porque se queixam de as horas custarem a passar até que chegue o momento de jantar; pois, se porventura as ocupagdes os abandonam, sentem-se desertados ¢ inquietam-se mesmo no lazer, nem sabem como dispor dele ou maté-lo. Portanto, anseiam por uma ocupagao qualquer, € todo intervalo de tempo entre duas ocu- pacdes Ihes € um fardo, E — por Hércules — tal € 0 que acontece quando se fixa a data dos combates de gladiadores, ou quando se aguarda o dia de um outro género qualquer de espetaculo ou divertimento: desejam saltar os dias interme- didrios! A espera de qualquer coisa por que anseiam Ihes € penosa, mas aquele instante que lhes € grato corre breve e répido e torna-se muito mais breve por sua propria culpa, pois passam de um prazer a outro e nao podem permanecer fixos num sé desejo. Seus dias no so longos, mas detestdveis, e, por outro lado, quao curtas ndo lhes parecem as noites que passam nos bracos de prostitutas ou entregues ao vinho! 7a Atividades encaminhadas. 1, Reflita sobre as consideragées de Pindaro sobre a sabedoria 0 poeta rico Pindaro apresenta uma eabedoria de inopiragio nitidamente reli- giosa. O homem quae nada pode fazer para sua prépria Felicidade, pois estd nae mos dos deuses (1), mais rdpidos que a Aguia no ar ou o delfim na Agua (2). 0 homem ignora © futuro, a partir da sua prépria capacidade de raciocinio, embora possa adivinhd-lo por inspiragao divina (3). Deve lembrar-se, sempre, de que & mortal e que seus projetos so como 0 sonho de uma eombra (4-5). Pindaro retoma motivos ¢ ldéias tradicionais na Grécia: 0 “conhece-te a ti mesmo” délfico, o reconhecer as limitagdes dos mortais, estd na base desta poesia. A expressiio skias onar, “sonho de uma sombra” resume bem a pequenez atribuida ao hamem. 2. A relagio entre as monarquias helenisticas e os sacerdotes tradicionais encontra-se, no decreto homenageando Ptolomeu III, bem explicitada. Disserte sobre suas ambigitidades. Os governantes helenisticos aliaram-se a elites dirigentes tradicionais ¢, parti- cularmente no Oriente, aos templos locals. Esse decreto dos sacerdotes egipcioe presta apoio, na forma de culto real, aos dirigentes que, por seu lado, efo elogiados justa- mente por suas “benfeitorias" aos templos. A monarquia helentetica, de direito divino, aliava-se nao apenas as elites como & massa, por meio da sua incluso no pantesio local. 3. O trecho de Apuleio apresenta uma escrava como parceira amorosa de um homem livre. Reflita sobre as implicagées da descrigdo da sua relacao. A escrava é apresentada, nessa passagem, como personagem que domina 0 homem, que 6¢ deecontrola diante do prazer. A iniciativa cabe, sempre, & serva, que 6e dirige & cama, se despe. Oferece-Ihe 0 vinho, deita-se, cavalga-o, devafia-o, em termos vulgares, comparando sua relago a uma luta na arena, Os termos empregados pela escrava eaem dos mais baixos meios: sf uir es... occide moriturus, hodierna pugna non habet missionem, “se for macho... mate o que hd de morrer, a luta hoje néo ter quem seja poupado”. Expresses dos miserdveis espectadores do anfiteatro, “macho”, “o que hd de morrer” (note-se, rio masculino, embora, nesse cao, ee refira A escrava), “no serd poupado”, H4, em todo o trecho, uma forte an¢3o moral ao dominio exercido por uma mulher, ainda mais escrava, sobre o homem. Até mesmo a movimentagao sexual era comandada pela mulher! (“mexendo as costas com movimentos répidos... deu-me... 06 gozos de Vénus..."). Embora Apuleio, ao descrever essa cena, esteja, claramente, condenando moralmente essa “submiss&o” masculina, no deixa de ser significative que 8¢ pudeose propor que o homem ficaose & merce das “ordens” e desejos femininos. 4, Seneca descreve os espetaculos gladiatorios de maneira bastante negativa. Reflita sobre seus argumentos e qual seu significado. Séneca apresenta, neste trecho, alguns dos arqumertos mais utilizados pela elite romana para deplorar 0 Jogos nos anfiteatros. A massa apenas quer o sangue. O combate de um gladiador armado contra outro desarmado serve de pretexto para Séneca deplorar a efusdio de eangue. Na verdade, contudo, nao hé sequer meng&o ao que faria a massa querer tanto sangue. 0 filésofo romano apresenta essa crueldade como algo imanente 20 povinho, “& arena livre”. Seria 0 caso, no entanto, de resealtar que era a prépria escraviddo que permitia o sacrificio de vidas humanas na arena. A morte em praga piblica tinha, ainda, conotagdes claramente religiosas, na medida em que, além dos deuses a quem se dedicava a luta, havia a condenagdo dos {mpios, cuja morte ritual visava restabelecer a pax deorum, a tranqlilidade ¢ a calma dos deuses. As lutas de gladiadores ¢ as cagadas (venationes) apenae virlam a declinar em popu- laridade com o fim da Antiguidade, quando o crietianlamo Iria combater eseas ativida- des no anfiteatro, Além disso, 0 sacrificio de Jesus, ha forma da héstia, representando 0 corpo ¢ 0 sangue da vitima, viria a oubstituir o sacrificio dos homens na arena, Como em tantos outros casos, 0 cristianismo nao acabava, mas dava uma aparéncia crist& a prAticas e sentimentos de origem antigtifesima, 5. Séneca deplora as lamentagdes dos insensatos. Reflita sobre 0 piblico a que se destina seu discurso. Séneca dirige-se A classe dirigente que, segundo sua critica, se perde ao nBo sa- ber moderar-se no uso do écio. Em cortradig#o com sua carta a Luctlio, 0s jogos gladiatérios aparece como atraentes também para a elite, ainda que criticada pelo auton. Atividades propostas 1. Pindaro refere-se a Deus € deuses, no seu poema. Com 0 auxilio de biblio- grafia suplementar, reflita sobre a maneira de encarar as divindades na religido grega 2. Reflita sobre os sentimentos humanos em relacao aos deuses, segundo Pindaro, 3, O decreto em homenagem a Ptolomeu III apresenta uma série de termos técnicos, como evergeta, canéfora, pteroforos, hierogrématas. Com a ajuda de bibliografia auxiliar, procure estabelecer 0 sentido desses temos. B 4, Reflita sobre as virtudes reais explicitadas no decreto em homenagem a Ptolomeu Ill e sua significagao. 5. A partir da citagao de Apuleio, reflita sobre a relacao entre livres ¢ escravos. 6. Apuleio descreve, com sutileza, os desejos dos personagens, no trecho reportado, Reflita sobre a descrigao e sua significagao no discurso literério amoroso. 7. A partir do texto de Séneca, utilize bibliografia auxiliar para descrever os diferentes sentimentos gerados pelas lutas de gladiadores. 8, Procure, com a ajuda de outros textos, descrever os diferentes tipos de lutas nos anfiteatros romanos. 9. Reflita sobre 0 conceito de écio e uso do tempo para § neca, 6 REFLEXOES Aristoteles, Retérica, 1, 1354a A Ret6rica € 0 ouiro lado da Dialética. Ambas tratam das coisas que estao ao alcance de todos e nao pertencem a uma ciéncia definida. Assim, todos usam- nas, mais ou menos, jé que, até certo nivel, todos tentam discutir os enunciados, sustenté-los, defendendo-se € atacando os outros. As pessoas comuns fazem-no a0 acaso, ou pela pritica e pelo costume. Sendo as duas maneiras possiveis, pode- se estudar esse assunto sistematicamente, pois € possivel investigar por que alguns oradores tém éxito, gragas a pratica e outros espontaneamente. Todos concordam, também, que tal estudo é justamente o trabalho da técnica. Agora, os tratados a respeito nao constituem sendo uma pequena parte dessa técnica. Os modos de persuas&o so os Ginicos elementos verdadeiramente constituintes da técnica, todo © resto é secundario. Os autores nada dizem sobre a enthymema (“arte dos argu- mentos”) que estd na raiz da persuasao ret6rica, tratando de questdes acessérias. © preconceito, a pena, a raiva e emogdes semelhantes nada tém a ver com os fatos essenciais, sendo apenas apelos aos sentimentos dos que julgam um caso. Conseqitentemente, se as regras dos julgamentos que vigoram em certas cida- des — principalmente nos Estados bem governados — fossem aplicadas em outros lugares, nada teriam a dizer. Todos, é verdade, pensam que as leis deveriam invalidar tais regras, mas alguns, como no Are6pago, tornam efetivas essas idéias € protbem que se fale sobre coisas inessenciais. Essa é uma lei e um costume lou- vavel. Nao € correto induzir 0 juiz a raiva, a inveja ou a piedade: seria como empenar a régua de um carpinteiro antes do seu uso. Assim, a parte interessada nada deve fazer que nao seja mostrar que 0 fato em questdo ocorreu, ou nao. No que se refere & importancia e justica do caso, o juiz deve, seguramente, recu- sar-se a seguir as partes interessadas: deve decidir por si mesmo aquilo que a legis- lacao nao defini a priori 1355a A Ret6rica, stricto sensu, trata dos modos de persuasao. Essa € um tipo de demonstracao, j4 que estamos quase totalmente persuadidos quando algo foi demonstrado, A demonstracao do orador é uma enthymeme, e este é, em geral, © mais efetivo meio de persuasio. A enthymeme é um tipo de silogismo, os silogismos de toda espécie, sem exce¢io, so tratados pela Dialética, seja no todo seja por um de seus ramos. 1355b E absurdo dizer que alguém deveria envergonhar-se de ndo ser ca- paz de defender-se com seus membros, mas que nao deveria sé-lo por nao saber defender-se pelo dominio da fala e da raz4o, j4 que o uso do discurso légico é mais tipico do ser humano do que 0 uso dos membros. 5 Comentarios Aristételes, nascido em Stagira em 384 a.C,, mudou-se para Atenas em 367 a.C., tornando-se membro da Academia seguidor de Plato. Apés a sua morte, Arist6teles mudou-se, em 347 a.C., para Assos, retornando em 336 2.C., em seguida a ascensao de Alexandre o Grande, e fundando 0 Liceu, escola que seria conhe- cida pelo nome de Peripatética. De 342 a 336 serviu como preceptor de Alexandre na Corte Macedénica. Produziu estudos sobre 0s mais variados temas: metafisica, psicologia, biologia, l6gica, ética, politica, literatura. Suas obras, caracterizadas pela observagio légica e racional do mundo fisico e espiritual, serviram de fundamento para pensadores posteriores, na propria Antiguidade, na Idade Média (S.Tomas de Aquino), e no mundo moderno. A argacia de suas reflexes induziu Marx a afirmar que Arist6teles quase chegara 4 definigdo de valor da economia moderna, Darwin a entrever a evolugdo em suas obras e até mesmo Freud a considerar seu tratado sobre os sonhos “o primeiro trabalho de psicologia” a esse respeito (Freud 1900: 2). Sua obra sobre a Ret6rica reveste-se de particular significacdo, no final do século XX, devido 4 importancia crescente dos paradigmas cientificos derivados da linguistica. Todas as ciéncias, assim como todos os meios de expresso, da imprensa ao cinema, da informatica a arquitetura, passaram a ser consideradas enquanto discursos, enunciados persuasivos prenhes de sentido. A Arte da Ret6- rica de Aristoteles pode, portanto, ser considerada como precursora da moderna semidtica. Os trechos selecionados acima empregam uma série de conceitos de dificilima tradugdo, a comecar pelo titulo do livro: tekhne rhetorike, a técnica do discurso oral, A palavra tekhne significa, a um s6 tempo, arte, técnica, tratado. Pelo seu carater instrumental, optou-se, na tradueao apresentada, pelo uso do termo “técnica”, conjunto articulado de métodos, menos ambiguo que “arte”, nogdo demasiadamente abstrata subjetiva no vernaculo. Ret6rica e Dialética seriam traduzidas, em termos cientificos modernos, por “expressao oral” “discussao légica”. Relacionam-se intimamente e Aristételes de- fine a Ret6rica como “antistrophos para a Dialética”, em uma analogia com a movimeniagao dos coros nas apresentacdes de odes corais em diregdes opostas: strophé @ 0 movimento em uma direedo, antistrophé 0 contramovimento. Cicero, referindo-se a frase inicial de Aristoteles, definiu a Ret6rica como “corresponden- te a outra parte da Dialética” (Cicero Orat. 27,114). Sao, portanto, dois opostos coordenados ou interdependentes. Dependem da confiabilidade (pistis), pelo que ndo sdo uma ciéncia exata (episteme). Podem ser estudadas de maneira sistema tica ou, literalmente, “pelo caminho correto”, com método. O uso da expresso hodoi poien, segundo alguns manuscritos, ou hodopoien, segundo outros, signi- fica “abrir caminho”, “fazer uma estrada”, e assemelha-se muito ao mais usual methodos (método). A Ret6rica compée-se, basicamente, da persuasio, no sentido, oposto 4 demonstracao, de modos de crenga (pistis) subjetiva derivada da conviccao. Em

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