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Programa de Pos"Graguacao em Ciéncias da Comunicacao uv Centro de Ciéncias da Comunicac UNISINOS Corpo e Processos de Comunicacgao Christine Greiner* Helena Katz** 0 objetivo desta comunicagio é tornar-se uma aplicagio do entendimento do corpo ‘como midia e apontar para as mudangas necessirias na concepgio de cultura, a partir dos estudos intertedricos que dio suporte a essa proposta de tratamento do corpo, No cruzamento de disciplinas como Filosofia, Psicologia, Biologia, Semidtica fe algumas vertentes das chamadas Ciéncias Cognitivas, a rclagio entre corpo ambiente ganha uma nova configuragio, onde a énfase esta nas questes dos pro- ‘cessos de cognigio que tenha como prioridade o trato da questo da informagio. Revé e sugere novas possibilidades de estudo da cultura como um proceso comple- x0, onde nao se distingue de forma dual c absoluta interna ¢ externamente, cultura € o-cultura, sujeitos ¢ objetos. Nesse mundo, o corpo se constitui como a midia dos processos em curso. The sim of this work is to apply the Gndestnding ofthe body a med and Concept of culture from the perspective of tmuiisgptnry sues whack sopport Cas proposal of trement ofthe boty. Inthe Intcnecion of such declines s Philosophy, Pojchology, Biology, Semiodce and some branches of the so-eaed Copive Sciences the relationship between body and environment acqures a new confguraion, in vhich emphasis given vo the ss of Communicative processes A rnlecipinay investigation of the body and the copie froceats which ges ploy todeang with sgn pola of cadpng cue fs tcomplcs process which dos not allow foc dualistic disincsons beeen internal nd teeral ements wells clare and not Caltr ubjcs and objets: In such word the body present ie as he median of corrent processes El bie ote eomemtente wrod ‘pleaida tne obat el epoca ‘meio de comuniacon apanter hacia for aeberaratara (etl canon aie parr Coke ent itr ea ‘ifort a tie ropa de tate del Caer dl eased ages lle (aun Flare, Seal, Bild, Semitic Sebtnes crn dfs modes Ces agtines le rei nie ere ome fetipi dae hem confgraclnca gored (oft ud on ee protats de comancrat, ester la el ad rp enisea aos emeinastete kegs Dribrdad ol rats do ta enstly de To Inormaion dy egre ness pubes ee saat x eae eae teapi eel gv tle tigi de fore ely beleive a0 anos sn : seule tminiontb tes pati * Prof Dr* do PPG em Comunicagio e Semiética ~ PUC/SP. ** Prof" Dr* do PPG em Comunicagio e Semiética ~ PUC/SP. Christine Greiner @ Helena Katz O objetivo desta comunicacio é apontar para mudangas na concepeio de cultura a partir de certos estudos inter-tedricos sobre o corpo, realizados sobretudo nos iltimos vinte anos. No cruzamento de disciplinas como a Filo- sofia, a Psicologia, a Biologia, a Semiética c algumas vertentes das chamadas, Siéncias Cognitivas, a relacio entre corpo ¢ ambiente ganha uma nova confi- guragio. A nossa hipétese principal é a de que uma investigacio inter-tedrica do corpo dos processos de cognicio revé e sugere novas possibilidades de estudo da cultura como um processo complexo, em que nio se distinguem, de forma dual e absoluta, interno e externo, cultura e nao-cultura, sujeitos ¢ ob- jetos. Para tal consideramos necessitio rever alguns momentos nos quais fo- ram ptoduzidos verdadeiros saltos epistemolégicos na cultura contempor’- No consultério vienense de Sigmund Freud ¢, um pouco antes, em Salpettiere, na clinica parisiense de Jean-Martin Charcot, em meados do sécu- lo 19, certas paralisias, algumas modalidades de afonia e de distirbios de visio, entre outros sintomas, passaram a ser entendidos como histéricos. Descritos como sendo de natureza histérica, ou seja, nem fisica nem mental, tais sinto- mas inauguravam um entendimento do corpo que abalroava a conviccao de que ele era “uma coisa que pensa”. Quando formulou a base para seu hoje abusivamente citado dualismo, Descartes buscava um caminho fora da légica aristotélica e da teologia cat ca que dominavam seu tempo. Antes de publicar as Meditades, devorou qua- se sete anos ao estudo do corpo, um corpo que se desvendava pelos conheci- mentos trazidos de algumas ciéncias naturais. Nao poderia supor que, trés séculos depois, o corpo que estaria exposto nos espacos pibblicos ecoaria a sua nogio de substincia estendida (tes extensa). Com as ciéncias matemiticas e naturais sendo consideradas os dominios da preciso no século 17, a filosofia buscou parimetros de equivaléncia a esse estatuto, Para livrat-se da légica especulativa dos novos aristotélicos € dos tedlogos da igreja catélica, Descartes propés a cognicao como sendo auto- referencia, nao dependente de nada que nio dela mesma. O seu apoio no pensamento como legislador daquilo que existe (cogito ergo sum) merece ser ‘entendido como uma forma de aproximar a cognicio dos objetos da matemi- tica. Por reduzir a verdade a0 que pudesse ser apreendido pela mente de for- ma clara e distinta, fez da matematica a linguagem da verdade no mundo, pois seus objetos resultam de regras claras e distintas, e que, portanto, nfo preci- sam se apoiat no mundo empirico para retirarem de li a explicacio de sua existéncia. Assim, seu cogito ego sum colaborou para consolidar a compreensio, que ainda guia a muitos, de que existe uma esséncia humana e ela se localiza numa mente (ou alma, ou espftito) separada do corpo. Com Descartes, o entendimento dessa mente ganhou uma desericio de contoros mais especificos, pois virias das fungées até entio atribuidas a ela ganharam explicacdes mecinicas no corpo, entre as quais, a digestio, a circu- lacio € © movimento (motion). O corpo passou a ser entendido como aquilo que tem extensio temporal e espacial (res extensa), Transformado em objeto, © corpo e suas verdades passaram a depender de ciéncias capazes de desvenda- 66 Vol. IIIN22-Dezembro de 2001 revista Fronteiras - estudos midiaticos Corpo e Proceso de Comunicagao Jos, enquanto a mente (res cogitans), apoiada no critério das idéias claras e distintas, apresentava-se como auto-evidente. Dois séculos depois, Hegel, Marx, Freud, Kierkegaard e Nietzsche viriam a propor modos de entender 6 corpo fora do dualismo das substincias estabe~ lecido por Descartes. Essas formulacdes seriam continuadas nas feno- menologias de Husserl, Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty, bem como no seu desenvolvimento via psicanilise (Lacan), hist6ria social (Foucault), teoria da Jinguagem (Kristeva) ou teoria dos géneros (Irigaray). O corpo enquanto midia A razao da abertura de laboratdrios experimentais no final do século 19 (© de Wilheim Wundt, em Leipzig, em 1879, aparece como o primeito deles) serve para ilustrar as relagdes entre cultura e pensamento que comecavam a se estabelecer. Diferenciando-se dos antropélogos, os psicdlogos dedicavam-se a decifrar 0 que acontece a um individuo quando ele esta pensando. Uma vez que tais processos nao se mostravam observaveis, razo pela qual recebiam a denominacao de “psicol6gicos”, foi necessirio esperar pelo dominio da eletri- cidade para que se construissem maquinas apropriadas para investigé-los. A psicofisica se desenvolveu nessa época, apoiada pelos inventos dedicados a tornar a mente observavel A divisio de tarefas proposta, mais tarde, por D’Andrade (1981), base- ada no visivel (antropélogos) e nio visivel (psicélogos), acabou fragilizada pela interdisciplinaridade. No entanto, a proliferagio das praticas laboratoriais, que havia marcado a separacao entre antropélogos ¢ psicélogos, também ha- via trazido o homem para uma situacio de eventos controlados. A idéia de um corpo controlado ¢/ou construido remete a Foucault que descreve 0 corpo como 0 sitio onde os discursos se inserevem, como um ponto nodal das relagdes produtivas de poder. Em varios textos, Foucault duvidou da existéncia material e separada de um corpo fora de sua existéncia social. No volume 1 da sua Historia da Sexualidade, declarava nao ser possivel 0 corpo existir antes da lei, ¢ que a sexualidade dependia das relacdes de poder. Caso 0 corpo resistisse & cultura, revelaria a falha da construcio cultu- ral, Foucalt vai estudar constelacdes diferentes de poder (hospital, regimes politicos, escolas, prisdes etc) como nexos fundamentais 20 entendimento das configuracdes do corpo. Sua concepeio de corpo enraiza-se em Nietzsche, mas leva, via Merleau-Ponty, & proposta do corpo como carne. Em Merleau- Ponty, a carne significa uma interligacio de estruturas e forcas que interagem sem dominancia entre clas e sem existéncia de um centro controlador. Na histéria da filosofia, o entendimento da nossa existéncia como en- carnada passou por uma longa trajet6ria. Em 1913, Husserl desenvolve a no- io de Leib (corpo vivo) em oposigio a kérper, que seria a descricio fisica do corpo (publicada em 1912 — Ideias II). Em 1928, Heidegger desenvolve tal fenomenologia em uma espécie de ontologia, substituindo a nocio de subjeti- Vol. Il N°2- Dezembro de 2001 revista Fronteiras - estudos midiaticos 67 Christine Greiner e Helena Katz vidade e de mundo, por dasein ou existéncia humana. E ele quem desloca a questo do corpo para a da incorporacio. “Nio temos um corpo, mas somos incorporados”. Quem fari uma sintese entre esses dois pensamentos seri o proprio Merleau-Ponty nos seus escritos de 1945, 1962 ¢ 1964. O conceito de corpo (Leib) de Hussezl, iluminado por Heidegger (especialmente a nogio de ser- ‘no-mundo) vai clarear a conexio entre corpo, ages e percepsio ja 184 estu- dada anteriormente por Descartes. F assim que, a0 invés do conceito de ser de Heidegger, Ponty introduz a nocao de carne. Sea perversio do dualismo cartesiano que propunha a separacio entre corpo ¢ mente jé havia sido exercitada por Hegel, Marx, Kierkegaard e Nietzsche, é com a fenomenologia do século 20 que se conquistam novos modos de descri¢io, nos quais pelo menos um aspecto permanecia sem uma explicagao satisfatéria: como se dava o trinsito entre as informacées do mun- do eas informacdes residentes no corpo? Alguns semioticistas da cultura (VV Ivanov, Lotman, Pjatigorskij, Toporov e Uspenskij, 1973) j& haviam apontado © mecanismo da cultura como um sistema capaz de transformar a esfera e tetna em interna, a entropia em informacio, ¢ assim por diante. A cultura no seria uma oposigao entre o externo ¢ o interno, mas uma possibilidade de passagem de um mbito a outro. Mas como se di esse trinsito? “Tais questdes e inquietacdes surgem também em outras esferas tedricas € nelas também recebe acolhida. Logo no comeco do desenvolvimento das chamadas Ciéncias Cognitivas ou Ciéncias da Cognigio, cultura, histéria, con- texto ¢ emosio foram colocados de lado como questdes a serem estudadas em um segundo momento. O que interessava, em primeira instancia, era a cognicio individual e a critica ao chamado behaviorismo (condicionamento clissico proposto por Pavlov e condicionamento operante testado por Skinner). Antropélogos e etndlogos que compreendiam a cultura como “uma colecio de coisas” colaboraram, de certa forma, com a proposicao do estudo do indi- viduo, seja examinando a cultura como um complexo de habilidades (conhe- cimento, crengas, moral ¢ costumes), seja indicando a cultura como um com- portamento apropriado aos papéis assumidos na sociedade (¢.g.: Taiylor 1871, Goodenough 1957). Em ambos os casos, ignoravam os aspectos materiais da cultura. Edwin Hutchins (1995), por exemplo, em sua tripla formagio de antro- pélogo, navegador e cientista, buscou novas pontes para compreender 0 que chamou de “cognition in the wild” ou a cogni¢io humana em seu habitat natural, no apenas analisada a partir de seus artefatos, nem tampouco aprisi- conada em laboratorios, mas sim, inserida na atividade humana. Cultura seria um proceso cognitivo que teria lugar dentro e fora das mentes das pessoas. Seria 0 processo através do qual as priticas do cotidiano cultural emergem, Para Hutchins, 0 maior componenie da cultura € © proceso cognitivo ¢ a cognicao seria, por si mesma, um processo cultural. Nesse sentido, todas as coisas que aparecem em uma lista de definigées de cultura seriam residuos desse processo ~ um processo adaptativo, acumulando solucdes parciais para problemas freqiientemente encontrados. Liane Gabora (1997) explica que © 68 Vol. III N°2- Dezembro de 2001 revista Fronteiras - estudos midiaticos Corpo e Processo de Comunicagao que esti no mundo sio informagdes implementadas que, em algum momen- to, ja tiveram existéncia apenas como um padrio mental. Uma vez no mundo, tais informagdes no param de agir, transformando-se novamente em novos padrdes mentais e assim por diante. Numa época como a que vivemos, em que as discusses sobre 0 corpo véem, tangenciando cada vez mais a Biologia, icada A condicio de ciéncia-centro dos anos 90, a velha polémica entre influ- éncias do meio ou da hereditariedade; e a conhecida questio entre inato/ adquirido ganha outros contornos. Sabe-se hoje que 0 corpo porta certas ha- bilidades motoras que sao inseparveis de outras competéncias suas, tais como as de raciocinar, emocionar-se, desenvolver linguagem etc. Varios cientistas da robética, neurociéncias, lingtiistica, filosofia e ciéncias cognitivas tém con- vergido seus interesses para entender a cogni¢io como encarnada, carnificada (embodied, embedded), entre os quais estio Varela et al. 1991, Sheets- Jonhstone, 1990, Lakoff & Johnson 1999, Damasio 1994, 1999, Clark 1997, 1999 etc. Tal modo de enunciar encontra sintonia nos escritos do etdlogo Richard Dawkins, que propde 0 meme como sendo a unidade da cultura. Residente no cérebro, o meme, esta unidade de informagio, estende-se em fenstipos diver- sos criando uma conexio singular entre corpo ¢ ambiente, assim como entre corpo ¢ artefatos ¢ entre corpo ¢ cultura. A principio, a Memética de Dawkins suscitou um forte antagonismo em fungio das possiveis relagdes com a genética ¢ a evolucio biolégica. No entanto, hoje, se sabe que nada é puramente determinado pela genética ou pelo ambiente, e que somos, como todas as outras criaturas, um produto com- plexo de ambos. Como explica o psicslogo canadense Merlin Donald (1991,1993), 0 cérebro humano, a cultura ¢ a cogniclo co-evoluem e passam por trés transicdes: tarefa mimética, invengio léxica ¢ externalizagio da me- meéria (arte simbdlica, tecnologia etc). A cultura simbélica, completa Terrence Deacon (1997), é uma resposta para um problema reprodutivo que s6 os sim- bolos poderiam resolver ¢ representam uma espécie de contrato social. A imitacio tem sido apontada como uma habilidade importante no que se refere aos estudos da cultura e vem sendo tratada como um aspecto funda- mental para a compreensio do transito entre as informagdes que estio no mundo ea sua possibilidade de internalizacio. Blackmore (1999) explica que a imitacio envolve: 1. Decisio sobre o que imitar. O que conta como sendo o mesmo ou similat. 2. Transformagdes complexas de um ponto de vista para outro. 3. A produgio de acdes corporais. Quando copiamos uns aos outros, algo aparentemente intangivel pas do. Essa seria uma chave importante para a organizacio cultural e esse “algo” 2 ser transmitido, um aspecto importante da questio. HA problemas relativos 20 processamento desses mecanismos, Nao sabemos, de fato, como algo copiado e nem tampouco 0 que é copiado (se o produto, se as suas instrugées). Vol. Ill N° 2 - Dezembro de 2001 revista Fronteiras - estudos mididticos 69 Christine Greiner e Helena Katz psicdlogo Edward Lee Thorndike (1898) definiu pela primeira vez a imitagio como o aprender a fazer um ato através de vé-lo feito. Essa proposta era muito préxima da idéia de visualidade, mas, ainda assim, importante para diferenciar-se da contaminacio e do aprendizado social. Segundo Blackmore (1999), contigio € diferente de imitacio. No meio de uma multidio que ri ou tosse e vocé comega a rir ou tossir, vocé nio esté imitando para aprender a rir. Riré inato, assim como tossir. Vocé faz isso como uma resposta de comporta- mento a um modelo detector de estimulo, H4 muitas outras diferengas ¢ a mais dificil de explicar € entre imitacio e aprendizado social. Imitacio € aprender algo sobre a forma de comportamento através da imitagio de outros, enquan- to 0 aprendizado social refere-se a aprender sobre o ambiente através da ob- servacio de outros. Assim, os primatas, por exemplo, sabem como ficar apa- vorados, s6 precisam aprender o que temer. O passaro aprende a cantar imi- tando outros passaros €, neste caso, hé intimeros protocolos experimentais indicando que, de fato, trata-se de imitagio, ou seja, de produgio de cultura. Quest6es que se espalham no tempo Edmund Husserl (Ideas II, 1912) propunha a existéncia, mas nio expli- cava o relacionamento entre entre corpo-vivo (leib) e corpo estritamente fisi- co (Kérper). Desde entio, a fenomenologia seguiu sem dar aten¢ao & neurofisiologia ¢ ao inconsciente. Somente um século depois, quando William James props uma psicologia baseada na experiéncia, a concepcao de que os, processos de conhecimento se dao a partir de interagdes entre corpo € ambi- ente ganhou uma nova forca. Trezentos anos depois de Descartes, a filosofia da mente, essa area de conhecimento recém-estabelecida, em que a tradicio filos6fica encontra-se com a cientifica, se dedicara a explicar que olhar, planejar, alcangar ¢ lembrar constituem-se como aces acopladas dinamicamente para que os processos de comunicacio se estabelegam num corpo. Evidentemente, para tratar agdes orginicas como processos de comunica- (lo, precisam ser arrebanhados conceitos como informacio, signo, midia, repre- sentacio, evolugio, entre outros, numa espécie de coquetel cientifico distante dos uusos metaféricos dessa terminologia. E. com cles pensar 0 corpo como sendo um continuo entre o mental, o neuronal, o carnal ¢ © ambiental. Como pensar em corpo sem ambiente se ambos so desenvolvidos em co-dependéncia? A prépria palavra ambiente resulta de uma montagem entre amphi (que significa em torno de, e que passou para o latim significando ambos), com os sufixo ente, que vem de ant indo-europeu, lingua pré-histérica hi muito desa- parecida (nela, queria dizer sopro). Ambiente, entio, significa tudo 0 que com- poe uma coisa, inclusive o sopro em torno (Pimenta, 1999:16). Curiosamente, cultura possui um sentido etimolégico semelhante ao de ambiente, pois cultu- ra vem do indo-europeu kwol, que significava uma idéia de andar em torno de alguma coisa, como 0 sentido do grego amphi (Pimenta, 1999:16). 70 Vol. IIIN°2~ Dezembro de 2001 revista Fronteiras - estudos midiéticos Corpo e Processo de Comunicagao és, setes humanos, somos resultado de 0,6 a 1,2 bilhdes de anos de evolucio metazosria (organismos unicelulares nao esto sendo contabilizados nessas cifras, apesar da sua singular rede quimica). Evidentemente, um tempo tio longo produz um sem nimero de adaptagdes , isto &, de negociagdes entre corpos e ambientes, Se 0 sopro em torno também compde a coisa, a cultura (cntendida como produto do meio, do em torno) encarna no corpo. O que esta fora adentra e as nogdes de dentro ¢ fora deixam de designar espacos nio conectos para identificar situagdes geogrificas propicias ao intercimbio de informacao. As informacdes do meio se instalam no corpo; corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, © que o leva a propor novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam perma- nentemente num fluxo inestancivel de transformacdes € mudancas. ‘As nogdes de dentro e fora que ficam desestabilizadas sio as que pro- vém do espaco da perspectiva, inventado na Florenca do século 15, 0 mesmo que vai desaguar na metafisica cartesiana, cerca de duzentos anos depois. O entendimento dessa relacio ajuda a explicar a forca do pensamento de Des- cartes. O que Filippo Brunelleschi pintou em 1425, e que dez anos mais tarde foi codificado como sendo a regra da perspectiva linear por Leon Battista Alberti, no seu De Pictura, passou a ser tratado como uma geometria inata de nossos olhos. Uma convencio cultural que horizontaliza a representacio ver- tical e sagrada do mundo fechado medieval foi trocada pela horizontalizacio através do ponto de fuga. O ponto de fuga instaura o horizonte como infinito, Nesse espaco cor- tado pelo horizonte, estamos de um dos lados da janela, iméveis, observando tudo. Sujeito como espectador € natureza como espeticulo a ser observado. Marca também a democratizacio do espaco, mas de um espago entendido como 0 que contém coisas (newtoniano). No espago potencialmente infinito, observador e objetos parecem obedecer a0 mesmo plano horizontal, inde- pendente da natureza especifica de cada qual, todos diminuindo a medida em que se aproximam desse horizonte. Tudo fica reduzido a0 mesmo plano. In- dependente da sua diferenciacio, todos os corpos obedecem 4 mesma pro- porcio com movimentos regeados pelas mesmas leis. A perspectiva linear tor- nou-se simultaneamente um habito € uma disposicio psicol6gica. O corpo, no entanto, passa a ser um obsticulo para o exercicio desse self inventado no século 15, que observa o mundo através da janela rapidamente se torna uma coisa a ser observada. [5 a propria idéia de que o homem observa a natureza de fora que entra em colapso. Em 1543, para apresentar a Terra como uma esfera que se move no espaco, Copérnico precisou tomar uma perspectiva que o instalasse fora da Terra, como um observador que a visse do espago. Nao 4 toa, Romanysshy: apresenta Copérnico como nosso primeiro astronauta (1992). Iya Prigogine, quimico que reccbeu o Prémio Nobel em 1967, explica «que a ciéncia clissica entende a descricio cientifica como sendo aquela produzi- da por um observador independente das coagdes fisicas, alguém que contempla ‘o mundo fisico do exterior, condicio postulada como indispensavel para a obje- tividade da sua observagio. Objetos descritos sem tragos de quem o descreve. Vol. Ill N® 2 - Dezembro de 2001 revista Fronteiras-estudos miditicos 71 Christine Greiner @ Helena Katz Como tais tracos, em termos evolutivos, estio tanto no mundo como em seus habitantes, ambos resultados de processos continuos de co-evolucio, de sopros em todas as diregdes, 0 corpo humano torna-se um lugar privilegi- ado para a investigacio da natureza desses processos. No corpo humano ¢s- tio as evidéncias da inevitabilidade de ser contaminado e contaminar. Curio- samente, no mesmo ano em que Copérnico descreveu a Terra em movimen- to, 1543, Vesalius colocou o corpo sobre uma mesa de dissecagio. Ao mesmo: tempo em que a Terra deixava de ser 0 centro, 0 corpo evidenciava-se como um coletivo de constituidores que se relacionavam. Corpo: modelo de comunicagao. entre natureza e cultura A ciéncia moderna (entendida aqui como a que sucedeu & publicagio, em 1687, do Pincipia Mathematica, de Isaac Newton (1642-1727), inspirou 0 desejo de “cientificizar” algumas areas de investigacio. David Hume, por exemplo, cerca de 50 anos depois, argumentava em favor de uma psicologia em que as leis matematicas governatiam o mental, no modelo da relacko das leis de Newton com 0 mundo material. Assim como os corpos se atraem na proporcio das suas massas, as idéias se atrairiam na proporgio de sua simi- laridade. Para cumprir 0 seu objetivo, que é 0 de tratar 0 corpo como um proces- so-modelo de comunicagio, o fato de se recorrer a uma confluéncia de ciénci as interessadas no fenémeno da cognigio deve escapar da seducio das met foras que brotam da importacio trivial de informagdes. O sentido maior de tratar 0 mesmo objeto em distintas molduras tedricas esté no aumento de recursos para o esclarecimento de suas zonas nebulosas. FE nesse sentido que, para se entender como 0 movimento se aloja no corpo, por exemplo, as cién- cias que tratam do movimento devem ser consultadas. Com elas podemos compreender 0 que acontece no corpo enquanto processa as informacdes necessirias 4 sua sobrevivéncia, adaptacio ¢ reproducio. E, entio, descobrir como o movimento se especializa a ponto de se transformar em representa- ao teatral, gesto musical, danca, acrobacia, performance, miisica, ou seja, nas suas agdes no mundo na forma de arte. Corpo, comunicacao, cultura © corpo adentrou cedo na histéria. Eles descobriram que estavam nus, registra o Génesis (3.7). O préprio corpo resulta de continuas negociagdes de informacdes com © ambiente ¢ carrega esse seu modo de existir para outras instincias de seu funcionamento. Ou seja, a a¢io criativa de um corpo no mundo reproduz os 72 Vol. Il N°2-Dezembro de 2001 revista Fronteiras - estudos midiaticos Corpo e Proceso de Comunicagao procedimentos que o engendraram como uma porta de vaivém, responsavel POF promover ¢ romper contatos. Cada tipo de aprendizado traz ao corpo uma rede particular de cone- xdes. Quando se aprende um movimento, aprende-se junto o que ver antes € que vem depois dele. O corpo se habitua a conecti-los. A presenca de um anuncia a possibilidade de presenga dos outros. Os processos de troca de informagio entre corpo € ambiente atuam, por exemplo, na aquisi¢io de vocabulitio ¢ no estabelecimento das redes de conexio, Hé algumas evidéncias em teoria de sistemas dindmicos de que 0 ato de aprender um movimento implica um acoplamento entre sistemas de refe- réncia que vio mudando gradualmente de molduta. Tendo a estutura de fluxo, o movimento irriga para frente e para tris plugando 0 corpo a cadeias cada vez mais gerais. Nesse aspecto, vé-se instala- da no corpo a prépria condigao de estar vivo e ela se apdia basicamente no sucesso da transferéncia permanente de informacio. Quando essa informagio habita redes distributivas, poderosas como os meios de divulgacio de massa (televisio, ridio, jornal, net, etc), a primeira conseqiiéncia € a sua proliferagio ripida. Sendo o corpo ele mesmo uma es- pécie de midia, a informacio que passa por ele colabora com o seu design, pois desenha simultaneamente as familias de suas interfaces. A idéia de cultura aqui adotada é a de um sistema aberto, apto a conta- minar 0 corpo ea ser por ele contaminado ¢ nao a influencid-lo ou ser a causa de mudancas visualmente perceptiveis nele. Na base dessas propostas, inscre- ve-se Darwin € a sua teoria da evolucao. © final do século XX deu a Darwin um tratamento semelhante ao que j@ havia dado a Freud: popularizou-o a ponto do conceito de evolugio haver perdido a extraordindria originalidade de seu sentido. Trata-se de uma idéia que pode ser resumida no fato de que os mais capazes de sobreviver € repto- duzir transmitem as caracteristicas que os permitem assim funcionar a seus descendentes, ¢ isso provoca a evolucio dos tragos (€ no dos seres, como muitos pensam) que mais beneficiam o organismo a poder continuar operan- do dessa maneira. © conceito darwiniano de evolueio apéia-se na selecao natural ¢ no mecanismo da hereditariedade. A reprodugio de modelos, ou scja, 0 modo como estruturas conseguem ser replicadas a partir de um simples ovo, como é © caso da vida, depende, numa instincia bastante bisica, da possibilidade de armazenagem, transmissio e interpretacio de informacio. Nesse caso, de uma informacio que da forma. Para que a vida fosse se tornando mais complexa, os modos de armaze- nar, transmitire interpretar informacio precisaram ir se transformando. Quando se olha para 0 corpo humano, percebe-se que se trata de um exemplo privile- giado para deixar explicito 0 tipo de relacionamento existente entre natureza€ cultura. Nao hé outro tio apto a demonstrar-se como um meio para que a evolucio ocorra. O objetivo de apresentar 0 corpo como midia passa pelo entendimento dele como sendo o resultado provisério de acordos continuos Vol. Ill N22 - Dezembro de 2001. revista Fronteiras- estudos midiéticos 73 Christine Greiner e Helena Katz entre mecanismo de producio, armazenamento, transformacio ¢ distribuic: de informacio. Trata-se de instrumento capaz de ajudar a combater 0 antropocentrismo que distorce algumas descrigdes do corpo, da natureza e da cultura, De maneira muito abreviada, podemos lembrar que tudo 0 que surge no mundo, luta para permanecer, € que a chave para tal se encontra na sua capacidade de produzir uma continuidade. No final do século de Darwin, 0 filésofo Charles Sanders Peirce falava em semiose - nome com 0 qual descre~ via a acio permanente que um signo tem de produzir outro a partir de si mesmo, de modo que o novo signo produzido seja capaz de portar a mesma propriedade de produzir outro a partir de si mesmo, mostrando tal proprieda- de - a semiose - como 0 mecanismo que necesita da produgio de signos para se perpetuar. O desejo de permanecer, que leva 4 necessidade de fazer outro a partir de si mesmo, pode se realizar porque, no mundo onde vivemos, as in- formagGes tendem a operar dentro de um processo permanente de comuni- cacio €, nesse movimento de trocas constantes, enquanto se modificam, as informacées vao também transformando 0 meio. Caso a vida funcione, de fato, de acordo com uma estrutura como esta aqui descrita, com o passar do tempo, as trocas permanentes de informagio tenderiam, quase que como uma consequéncia natural, a borrar as suas pré- prias delimitagdes produzindo, entio, uma plasticidade de fronteiras no con- trolivel. Assim, o fato de as fronteiras estarem muito méveis hoje, tanto na ciéncia quanto na arte, nfo passa de um trago evolutivo. A compreensio da vida como produto € produtora de uma rede inestancével de troca de infor- mages, marca uma diferenga basica. Nela, a idéia do corpo como midia ocu- pa posigao central As informacdes esto no mundo, agindo, contaminando ¢ sendo conta~ minadas. A natureza nfo respeita operacdes entre parénteses por muito tempo. Referéncias bibliograficas BLACKMORE, Susan (1999). The Mee Machine. Oxford: Oxford University Press CHURCHLAND, Paul Me Patricia S. Churehland (1995). Intertheortc reducon: a neuroscintst 1 field guide. 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