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COLEGAO PENSAMENTO SOCIAL LATINO-AMERICANO FILOSOFIA DA PRAXIS ADOLFO SANCHEZ VAZQUEZ a exPEeosag EC POPULAR ‘Sasha Vingu, Alo lool da rea Buenos As Consea Lainamaricana Cine Soils CLACSO; So Paulo: reso Papua, ras 2007, 8, 2816 em, (Pensa socal 'i-americr dig por mir Sater) ‘tatu pr: ala Eearracsin Moya ISBN 978 97-1168-71-5 +L osoiasPbtias, 2. Manisme. 2. pbb. 1, Moya Marla ncaa, ed. Tuo ‘son att ras pals have seo pla oer Vital de LACS: Fost Pale / Manian Pus / Eisenia / Luda ‘Win Fi Hegel al Mae / Van ich lana inf rz Classes Sais A CONCEPGAO DA PRAXIS EM Marx COM MARX, o problema da préxis como atividade humana transfor madora da natureza e da sociedade passa para o primeiro plano. A filo- sofia se toma consciéncia, fundamento teérico e seu instrumento, Arelacdo entre teoria e praxis ¢ para Marx te6rica e pratica; pré- tica, na medida em que a teoria, como guia da aco, molda a atividade do homem, particularmente a atividade revolucionatia; teérica, na me- ida em que esta relagao é consciente. NECESSIDADE TEORICA E PRATICA DE UMA FILOSCFIA DA PRAXIS A filosofia anterior teve, em maior ou menor grau., conseqténcias pré- ticas, independentemente das intengdes dos filésofos; nesse sentido, a relagio entre teoria e pritica, mesmo possuindo um carter pratico, nio é te6rica, j4 que sua plasmacao efetiva e suas consegiiéncias na vida real no $6 nfo sto desejadas e reconhecidas, como sfo, inclusive, repelidas. Dessa perspectiva, a pritica é vista com receio, pois s6 viria a empanar a pureza da teoria (atitude dos gregos e, de modo geral, da filosofia idealista pré-hegeliana). S6 uma teoria que veja seu proprio mbito como um limite que deve ser transcendido mediante sua vineu- lacao consciente com a prética pode estabelecer suas relagées com esta atendendo a uma dupla - e indissolivel ~ exigéncia teérica e pratica. 109 Frosoria pa pads © mais alto grau de consciéncia da prévcs ~ antes de Marx ~é en- contrado, como vimos, na flosofia idealista alema e, particularmente, em. Hegel. Como ja assinalamos,’ o idealismo aleriio é contemporineo do movimento revolucionério francés que dé a burzuesia sua plena hegemo- nia no terreno politico e social. © proprio Hegel reconheceria a existén- cia de uma vinculagao entre a filosofia e a realidade revolucionéria de seu tempo, mas foi Marx quem mostrou claramente a relago entre a filosofia, idealista e a pratica revolucionéria de sua épocal'com a particularidade de que via essa relagao a luz das condigées peculiares de um pats como a ‘Alemanha, que, por seu anacronismo histérico, nao estava em condigbes reais de dar um paso semelhante ao que ja se dera na Franca. Mas, ob- serva Marx, 0 que os alemes nao podem fazer, eles o pensam: isto é, 0 fazem no terreno do pensamento.! Hegel também dissera, & certo, que 2 revolucao desencadeada na realidade efetiva pelos franceses estava pre- sente entre os alemaes sob a forma de pensamento. Mas uma revolucio ‘que nfo ultrapassa esse marco deixa intacta, necessariamente, a realida- de efctiva ¢, com iss0, nfo faz mais do que sancioné-la. Assim, portanto, ainda que Hegel formule o problema das relagbes entre filosotia e reali- ‘dade, sew idealismo absoluto aspira a deixar o mundo como ele é, pois, & seu ver, a misao da filosofia é dar razao do existente, e nao tragar cami- mhos para a transformacao do real. Ou, nas préprias palavras de Hegel em suas Ligdes sobre a historia da filosofia: “O fim iltimo e o interesse da filosofia € conciliar 0 pensamento, 0 coneeito, com a realidade” Pode ocorrer também que a relagdo entre teoria e préxis seja cons- ciente, sem que por isso tenha conseqiiéncias priticas revolucionatias. E ‘que vemos no caso dos filésofos critcos neo-hegelianos, que pretendem transformar a realidade efetiva por meio do mero exercicio da critica, da pura atividade do pensamento. 4 atividade pritica real dissolve-se, assim, em uma simples atividade tedrica. Mas esse teoricismo absoluto ¢ insepa- rével de um idealismo tio ou mais absoluto que o do proprio Hegel E certo que, como jé assinalamos, Hegel concebe a préxis com um contetido rico e profundo (como trabalho humano na Fenomenolo- sia do espirito, ou como Tdéia pritica na Cigneia da Iégica). E t8o rico esse contetido que, uma vez desmistificado, rermitiré que tanto Marx (nos Manuscritos econdmico-filosoficos de 1844) como Lénin (em seus Cadernos filosoficos), descubram nele novas riquezas. Mas, sem diivi- da, em Hegel 0 pritico nao se sustenta por simesmo, mas sim, como ‘um momento do autoconhecimento do Espirito e integrado, portanto, ‘como degrau teérico para o fim na teoria do Absoluto. 1 Vero cap. 1 desta primeira parte 2 "Em politica, os alemtes pensaram o que outs povos relizaram, A Alemanha era si ‘onseidncia tedrica”(C. Marx, En tomo ata ctiea de la sofa de derecho, de Hegel, Tntro- ‘duccion, em C. Mar eF Engels, La Sagrada Familia y ones escrito lossces. endo ‘de W. Roces, México, Grjlbo, 1958, p9) no. A coNcEPGRO Da pails EM Mans Mas essa teorizacdo absoluta ~e, portanto, fechada ~ acaba por imobilizar a propria realidade. O sistema afoga o método. Tal € a con- tradigéo que os jovens hegelianos néo deixarao de apontar ~ e que mais tarde Engels enfatizara — entre um Espirito que se move e se desdobra, ‘mas que ao mesmo tempo se fecha sobre si mesmo eacaba por aceitar'a realidade como ela é. E claro que para Hegel nfo havia tal contradigao, pois a verdade apenas se dé como totalidade; e essa totalidade, se 0 ¢ verdadeiramente, tem de ser fechada, O espirito € o que deve ser. O ser esta dado com todas as suas determinagées. Os caminhos ja estdo per corridos. As inadequagbes s6 se manifestam no conhecimento que o Es- pirito tem de si mesmo, de sta realidade que é a reaidade inteira. Quer se trate dafilosofia, da historia ou das relagdes econimicas e sociais, as cartas jéestao langadas. A missa0 do fl6sofo ~ portador do Espirito - ¢ compreender ~¢ justificar ~ 0 que é. Ou, como diz Hegel sem rodeios: “A.coruja de Minerva s6 alga seu voo ao crepasculo’ ‘filosofia de Hegel, em substancia, ¢ incompativel com uma verdadeira filosofia da praxis, da agao, da transformagao revolucions- via do real. Daf resulta que, sendo 0 idealismo alemao uma filosofia da ativi- dade, entendida esta tiltima como atividade da consciéncia, a filosofia de Hegel, por levar essa atividade — como saber ~ ao plano do absoluto, €a filosofia da acao absoluta no terreno do pensamento e, por isso, da conciliagao absoluta com a realidade. A-esquerda hegeliana quis romper com este principio conciliador. Pretendeu que a filosofia fosse pratica no sentido de contribuir para a transformacao do mundo, da realidade e, particularmente, de realidade de seu pais naquela época. Os dois pilares em que se assenta a sociedade lem ~a Igreja eo Estado ~longe de serem aceitos, inspiram o desejo de transformé-los. Nao é casual, por isso, que os problemas da religizo, com Davia Strauss ¢ Bruno Bauer, ¢ os politicos, sobretudo com Arnold Ruge ‘ocupem 0 cenério filoséfico dos anos que sucedem a morte de Hegel As reflexdes sobre a religiao e a politica na Alemanha daquela época tém um interesse prético. Sao a expressio Jo anseio de trans- 3 F Engel, Lacwig Feerback » effin dela flosofacsicaalemanse, em C. Marx eF Engels, (Obras axcogidas, dois tomor, edigso expanola, Moscot, 1952, pp. 338 ¢ 380, 4 Nesse aforiamo do préloge de sua Filsofa do direito, Hegel sume lpidarmente toda sua flosofia come mera compreensso do munde, 5 Sobre o movimento da esquerda hegeiana, suas tendéncias errincipals representantes, assim como sobre o ambiente ieolégieo e histériea em que se desenvolv, ver sbretuda tomo da excelente obra de Augusto Comy, Kar! Mars et Fredric Engels, tons 1 I 1, Paris, PUF, 1955,10938, 1962: versao espanhola, em um volume, Buenes Altes, ed. Pstina feed. Stlcogral, 1965. Pode-se consular tamioém, de forma proveioen, © lvro LA crise ‘do primeiro hegcianismo slemo (1818-1844) do primeiro tomo da obra de Mario Koss, Mars lndatticahegoiana, em dis volumes, Roma, Eator Rani, 1963. FILosoFIA ba PRAXIS formagio da realidade que Hegel desejava debiar intacta. Essa fungao pritica da filosofia assume a forma de uma critica dos elementos it racionais da realidade, critica incessante e profunda das instituigdes petrficadas, irracionais ~ seja a religiso crist& ou 0 Estado prussiano = que detém o desenvolvimento infinito do Espirito, quando este 36 transitoriamente podia plasmar-se ou encarnarse em uma realidade histarica, concrera Acenfrentar 0 real eo racional, ea0 desvendar os elementos irra- cionais da realidade, por meio da critica, os jovens hegelianos pensam que 0 movimento do Espirito esta salvo. ‘Aexigéncia, portanto, de que a filosofia seja pritica, ¢ entendida por essa capacidade atribuida A filosofia eritica de transformar por si mesina, pelo poder das idéias, o préprio mundo, Se se fala aqui de ati vidade transformadora, trata-se, sem divida, de uma atividade te6rica, que por si mesma poderia mudara realidade, E a prépria realidade politica ~ 0 Estado prussiano ~ que com seus atos reais, efetivos, explicit a inoperdincia ¢ a inatividade desta pritica teérica Justamente essa limitagao e essa impotéacia da atividade teérica = tanto mais evidente quanto mais se confia em: sua onipoténcia — é que apresentam como um problema a resolver a necessidade de passar de uma atividade te6rica, que na verdade nunca deixa de ser teoria e ja- mais é praxis verdedeira, a uma atividade prtica # nesse horizonte problemético da escuerda hegeliana que se deve situar a evolugao do pensamento dle Mars, que culminaré ma cria- cho de uma filosofia da prixis, entendida esta no como préis tedrica, ‘mas sim, como atividade real, transformadora do mundo.* Jé no se trata da teoria que se vé a si mesma como prixis, enquanto erftica do real que por si s6 transforma o real, nem como filosofia da a¢ao, en- tendida como uma teoria que traga os fins que a prética deve aplicar (flosofa da agao de Cieszkowski e Hess, que nio passava, na realidade, de uma nova forma de utopismo). Assim, portanto, a passagem dessas falsas concepeSes da trans- formagao do mundo para uma verdadeirafilosofia da prixis correspon- dia a uma necessidade prética: transformar a realidade. Por outro lado, a concep¢io de que o mundo real s6 podia ser transformado pratica- ‘mente sé poderia surgir quando aatividade teérica, elevada ao plano do absoluto pelos jovens hegelianos, mostrava sua limitagaio e impoténcia. Assim, pois, a elaboragio de uma verdadeira filosofia da préxis era um 6 Sobre as relagSes de Marx com a exquerda, consulta a chra cada de A. Corns. tae ‘bem importante a esse respelto todo o ap. 1 do lio I, de obra antes eltads da M. Ross, Mars era dialtion hegeliona, Ver também o esuco de Emile Botigli, “Kael Marx ot 8 sacha hegelienne", Anal 1963, Instituto G. Feltrnell, Milo, 1964, pp. 9-32, A cONcEPGaG DA pruists Em Mae. problema que correspondia a necessidades préticas, mas que s6 podia ser resolvido em uma intima conjugagio de fatotes teéricos e priticos. Os fatores tedricos eram: a flosofia da praxis, ainda que marcasse wma ruptura radical com a filosofia especulativa, s6 podia surgir sobre uma base teérica determinada, como herdeira da filosofia que dera ao ho- mem consciéneia de seu poder criador, transformador, ainda que sob forma idealista; isto é, sobre a base do idealismo clemao. Os fatores praticos eram representados pela atividade humana produtiva e politi- co-social que punha a prova 0 valor e 0 alcance da p:épria teoria, A elaboracio, por parte de Marx, da categoria de préxis, como categoria central de sua filosofia, desde as “Teses sobre Feuerbach” , ‘por Sua ver, ium processo te6rico e pratico. ‘Como hegeliano que era, Marx partiu de uma concepeao especu- lativa do mundo, e depois movimentou-se pelo horizonte problematico da esquerda hegeliana, para desembocar finalmente em uma filosofia da praxis. Trata-se de um processo no qual se alternam os fatores te6ri- cos: critica e assimilacio de outras teorias (filosofia de Hegel - vista por meio dos jovens hegelianos ¢ de Feuerbach; teorias dos economistas ingleses e doutrinas socialistas e comunistas ut6pices) e os fatores pré- ticos (realidade econémica capitalista, situacao dos operarios ingleses e experiéncia viva da luta politica e revolucionéria) assimilados teorica- mente em grande parte através dos estudos de Engels.” ‘Quando podemos considerar que o marxismo j& comeca a afir ‘mar-se propriamente como tal, isto é, como uma teoria que esclarece a ppréxis e fundamenta e orienta a transformagio pratica, revolucionsria? Para alguns, esse momento capital se encontra na Critica da filosofia do direito, de Hegel, de 1843, na qual Marx ressalta a mistificagao nao s6 da filosofia politica hegetiana, como de seu idealismo em geral, ou ento na Introdugao a essa critica, escrita pouco depois, na qual se formula a alianga entre a filosofia e 0 proletariado e traca-se, pela primeira vez, a miso hist6rico-universal deste; para outros esse momento capital se dé nos Manuscritos econémico-filoséficas de 1844, nos quais Marx des- cobre o trabalho humano como dimensdo essencial do homem, ainda que na sociedade burguesa s6 exista sob a forma de trabalho alienado; outros, ainda, assinalam que a certidao de nascimento do marxismo coincide, por assim dizer, com A ideologia alema, ce 1845, onde Marx {i descobre a lei de correspondncia entre as forgas produtivas e as re- lagdes de produsio — que sera formulada com toda preciso em seu fa- ‘moso prélogo de 1859 & Contribuigdo a critica da economia politica; lei 70 primeizo trabalho de Engels sobre questées econdmicas "Esbogo de exten da eco ‘nomia politics, publicado em 1844 em Os Anais Franco-lemdes,exerceu uma profands {nfludneia na formagao do pensamenta de Mars, é que contribuiu em grande parte pars ‘que se intevessesse pels problemas da economia. ns Fixosoria pa pais ‘com a qual a praxis produtiva material revela sua plena dimensao hist6- rico-social e se torna possivel uma concepeao materialista da histéria; outros pesquisadores ressaltam, sobretudo, qve o marxismo inicia seu. caminho préprio com as “Teses sobre Feuerbach”, formuladas quase ao mesmo tempo que A ideologia alerad, e nas quais se langa o principio da transformaggo do mundo como tarefa funcamental para a filosofia Nao faltam, enfim, os que descobrem a virada radical na formagao do marxismo no Manifesto do Partido Comunista, onde se traga clara e ex pressamente a teoria da aco revolucionétia dos proletérios que devem_ levar a cabo essa transformacao.* Em nossa opinifo, no se poderia descartar um trabalho em re ago a outro, realizando-se um corte radical entre eles, mas sim con- siderélos como fases de um processo, simultaneamente continuo ¢ descontinuo, do qual fazem parte, e que, a nosso ver, ja amadurece no Manifesto do Partido Comunista, obra em que se fundamenta 0 encon- tro do pensamento e da agao. S6 depois de te- chegado ao Manifesto & que se pode dizer que existe o marxismo como filosofia da praxis; de modo algum como filosofia acabada, pois sendo a praxis, por esséncia, infinita e incessant, jamais poder fechar-se o processo de seu esclare- 8.0 problema de determinar em que obra ou perfodo de seu pensamento Mars rompe om a ilosofia anterior prestupze, antes de tudo, uma tomada de posieso com respelto to ponio os terreno ean que se opera esta ruptura, Se ae conidera que rompe, fundamen {almente, com filsofa idealists hegeiana enquentoflocoie mistiicadara que, com ss ‘istfcagéo, eeamatein a falidade que ha de ser transfermada, o lugar ds ruptura ser 1 Blosofia do direltoe do Estado, e, nesse sentido, a critica s que Marx submete o idealis- tno hegellano em 1843 em sun Crea da flosofa do die’, de Heel, ganha o relevo que ‘Galvano Della Volpe the det (ef. seu Rousseau y Marx, Bustos Ares, Patina, 1963). Marx ‘tira a os veus idealists que ocultam a verdadeirareallade: as condicbes materiais de ‘sta, Sus critea coloca diane de nds reaidade, mas tata-se~ como ele diré mais, tarde ~€ de transformar no uma ta false, istficadra sobre a realidad, mas sima re- tlidade que engendra esta ida, A ruprura de Marx com = flosofia anterior poranto, no ‘ainda radical. Ainda ne dobre o cabo que te permit avistar a terra firme da filosofia ‘como tris © guia de agSo. Sendo assim, se se pensa que Mars rompe com a ideologia para Saborar a teoris elentfica de socialism, un raptra signiiearé a subscituiczo de tte pensamentoideolégica~ isto, irs, alo, usério em virtde de sou eondicions mento de clase -por outro dentiio, e, ent2o, se consideraré nie sem razdo que as obras Enferores# A ideologa ale (1845) esto impregnndas de elementos deologices e que lms verdadeira concepgéo cienifiea da sociedade, bseada na descobera da contradiio entre forgas produtvare relagdes de produgio, sé se dara partir dessa obra na qual awe Sscentem os prncipios fundamentals da concepséo materialist da histéria. Tudo isso & ‘cert, noentanto, o decisive na formagso de marsama ra ¢ uma mudanga de conceit, fem que isso exchin, de modo aleum, sin necessidade: essa mudanga € necessria pars {Ques teori cums a funeso de instrumento da transfornagao do real A rptura no se ‘pe, portanto, exclusivemente no nivel da teorin, mas sim em relagzo com uma prea ‘steitamente vineulada sels enguanto s gerae,s0 mesno tempo, encarna-a, A regio do maraismo s uma rudanga de conceitos, de tear, embora esta mudanga seve na pas sagem da deologie (ou da wtopia) cima, signifies recair em wna concepgao cleatiiea fo neopositivisa, jf que se aguece que © mamdlsmo surgu como teoria~ cient, por ‘serio da prise revoluciondeia do prolotariado, m4 A conCERCKODA Paésis EM MARX. cimento te6rico. Por isso, seria mais exato dizer que com 0 Manifesto, ‘0 marxismo se constitui como filosofia da praxis ¢ se micia um processo ‘que nao pode ter fim. No Manifesto se unem os fios dos elementos que foram dando um perfil definido a essa flosofia da prixis. E a eles nos dedicaremos em nossa exposic&o. Vejamos, portanto, como Marx formula, em suas primeiras obras, o problema das relagdes entre teoria e pratica, e quando comega a esbogarse como categoria flosofica a categoria de praxis, FILOSOFIA & AGAO Marx formula esse problema, antes de tudo, como problema das rela- cbes entre a flosofia e a apao, isto é,justamente no marco problemético tracado pelos jovens hegelianos. Se a realidade deve ser mudada, a filo- sofia nao pode ser um instrumento te6rico de conservaca0 ou justifica- 80 da realidade, mas sim, de sua transformagio, Tal éa conchusao a que haviam chegado os jovens hegelianos: a filosofia deveria ser, por isso, sobretudo critica da realidade para garantir essa traasformagao. Dessa maneira, se sua critica nao conseguia transformar a realidade, era preci- so estabelecer outro tipo de vinculacao entre a filosofia e a realidade, ou melhor, entre o pensamento e a aco, que obrigaria, por sua vez, a mu- dar a missao eo préprio contetido da filosofia. A filosofia por si mesma, como critica do real, no muda a realidade. Para mudé-la, aflosofia tem de realizarse. Sendo assim, essa realizacto da filosolia é sua supressio. Tal €0 ponto de vista de Marx nos anos 40, ¢ sua formulago mais preci- sa é encontrada no trabalho que escreveu para os Anais Franco-alemdes como introdugdo a sua Critica da filosofia do direito, de Hegel ‘Mas como se cumpre essa realizacao da filosofia? Quem a reali- za? Em que sentido cla representa a unidade da teoria e da pratica? O ‘que é propriamente essa praxis tdo intimamente vinculada a filosofia? ‘Marx fixa sua concepcao das relacdes entre filosofia e realidade ‘mareando, em primeiro lugar, sua oposico a duas falsas concepgbes dessa relagao, vigentes em seu tempo, ¢ que cle chama de partido poli- tico pratico e o partido politico teérico.’ Trata-se de duas expresses te6ricas do liberalismo alemao da época; 0 primeiro corresponde a0 movimento romantico-liberal que procede da “Jovem Alemanha"! e o segundo é precisamente a esquerda hegeliana. Os representantes do partido politico prético, impelidos pelo desejo de transformar de um modo direto e imediato a realidade presente, negam a filosofia, com 0 9.C. Marx, En tome a la entica de l filosofia del derecho, de Heys, Yntrodusetén, em C. Marxe F Eages, La Sagrada Falla, opi. p89. 10 0 movimento da “Jovem Alemanha representou entre 1831 ¢ 1835 wm protesto, so bretudo no plano itso, contra 0 romantiame ressionsrio e © Estado prussiano, Sua figura mats Gestacads fo o grande poeta Heine us FiLosorta DA Pants: que Marx esté de acordo; mas esquecem que a filosofia nao pode ser ne- gada, como mera filosofia, como filosofia especulativa, sem realizar-se. Isto 6, dio tudo a pratica, e nada a teoria. Entendem a negacio da filo- sofia como uma subtragao absoluta da teoria em beneficio da praxis, ‘A outra corrente, o partido politico teérico (ou seja, os jovens hegelianos) nega a prética em nome da filosofia, ou mais exatamente, pensam que a teoria é praxis per se e desse modo, dio tudo a teoria, e nada & pratica. Acreditam que a teoria pode realizarse, ser pratica, sem negar-se como mera filosofia, sem eliminé-la. Enquanto a filosofia 6 mera especulacio e ndo negada como tal, a filosofia nao sai de si mesma e, portanto, no se realiza. Em ambos os casos, falta a relagao entre filosofia e mundo; no primeiro, o mundo muda sem filesofia; no segundo, a filosofia pretende mudé-lo, mas o mundo permanece como esti, pois a filosofia nao se comunica com ele; falta esse laco entre a filosofia e a realidade que é a praxis. Por mefo da praxis, a filosofia se realiza, se torna pratica, e se nega, portanto, como filosofia pura, ao mesmo tempo em que a realida- de se torna tedrica no sentido de que se deixa impregnar pela filosofia. Portanto, a passagem da filosofia & realidade requer a mediago da praxis. Nas condigdes peculiares da Alemarha dos anos 40 do século XIX, a filosofia ¢ particularmente politica, ou critica politica, critica da filosofia especulativa do direito e do Estado, que alcanga, por sua vez, a realidade politica da Alemanha daquele tempo. Sendo assim, se, ao contrério do que pensam os jovens hegelia- ros, a critica per se, sem a mediagao da pratica, deixa intacta a realida- de, quando a critica abandona esse plano puramente te6rico ea teoria se torna pratica, isto é, se converte em uma forca que abala a realidade? Esse problema é formulado por Marx pela primeira vez em 1843, e eis, aqui sua resposta: "A arma da critica nao pode substituir a critica das armas ... a teoria se converte em poder material tao logo se apodera das massas .. quando se torna radical’. Isto é, a teoria que por si s6 nfo transforma o mundo real torne-se pritica quando penetra na conscién- cia dos homens. Desse modo, siio apontados seus limites e a condicio necesséria para que s¢ torne pratica: por si sé é inoperante e ndo pode substituira ago, mas se torna uma forga efetiva ~ um “poder material” ~ quando é aceita pelos homens. A REVOLUCAO E A MISSAO HISTORICA DO PROLETARIADO A passagem da filosofia a realidade requer a mediagao dos homens, mas até agora Marx s6 falou de suas consciéncias. A aceitacao pelos homens 11.6. Mars, Bx tomo a I etic del losfia del derecho, de Hegel, Introd, em C Maree. Bagels, Za Sagrada familie, op. elt, pp. 910. 6 pane A concnrgs0 ba passa xt MARX. de uma teoria é condigao essencial de uma praxis verdadeira, mas nfo é ainda a prépria atividade transformadora, preciso determinar, em primeiro lugar, o tipo de teoria que ha de ser aceitae que hé de passar para a prépria realidade; € preciso, também, deterninar 0 tipo de ho- mens concretos que, uma vez que fazem sua a critica, a convertem em ago, em préxis revolucionéria. Primeira determinajao: a critica ha de ser radical, Segunda: os homens chamados a realizar a filosofia, como mediadores entre ela e a realidade, so, em virtude de uma situacao particular, os proletarios. Para que a critica vingue, tem de ser radical. “Ser radical ~ diz Marx ~ € atacar 0 problema pela raiz. Ea raiz para o homem € 0 pr6- prio homem’. Critica radical ¢ critica que tem como centro, como raiz, 0 homem; critica que responde a uma necessidade radical. “Em ‘um povo, a teoria 6 se realiza na medida em que é a realizacéo de suias necessidades”."* E 0 que € essa critica radical que tem 0 homem como eixo? A critica radical comecou com Feuerbach; gracas a ele, o homem ganbou uma verdadeira consciéncia de si mesmo. Mas a critica da religiéio — “premissa de toda critica”, como reconhece Marx ~""é critica radical no plano tedrico. A passagem da critica radical do plano tedrico ao pratico é justamente a revolucao. Como critica radical, é ‘pritica ... altura dos principios’,!® a uma altura humana. A praxis é, portanto, a revolucao, ou critica radical que, corres- pondendo a necessidades radicais, humanas, passa do plano tebrico, 20 pratico, ‘Ao chegar a esse ponto, e antes de passar a determinago do tipo de homens que servem de mediadores entre a critica te6rica e pratica, devemos resumir o que Marx disse até agora sobre as relacdes entre a teoria e a praxis: a) por si propria, a teoria é inoperante, ou seja, no se realiza; b) sua eficdcia é condicionada pela existéncia de uma neces- sidade radical que se expressa como critica radical e que, por sua vez, torna possivel sua aceitacao. ‘Assim, portanto, a necessidade radical fundamenta tanto a teoria ‘que é sua expresso teGrica, quanto a necessidade da passagem da teo- ria & pritica, entendida esta como praxis & altura dos principios, isto é, como Revolugo, ou emancipacao total do homem. Sendo assim, a passagem da teoria A prética, ou da critica radical a praxis radical, € condicionada por uma situagao histérica determi- 12.C. Marx, Ei torso a la evtiea de a filosfie det derecho, de Hey, op itp 10. 13 Ibi, pA U4 Mbid, p38 15 Bid. p. 9, m7 Frosoria pa paoas nada: a que vive a Alemanha de seu tempo, isto é, um pais que por seu anacronismo politico ~ por nao ter percorride a fase de emancipagio, politica j4 percorrida por outros povos ~ encontra-se diante da neces sidade histérica de superar néo apenas seus préprios limites, como os de outros povos, mediante uma revolugae radizal."* Dada essa situagio anacrénica— diz-nos Marx ~o ut6pico nao é essa revolugio radical, mas sim, a meramente politica."” Ou, em outros termos mais adequados 20 ‘Marx posterior: a tinica revolucdo possivel na Alemanha nao é a revolu- ‘cdo burguesa, mas a revolucao proletéria, socialista. ‘A passagem da teoria a préxis revoluciondria é determinada, por sua vez, pela existéncia de uma classe social ~ 0 proletariado ~ que s6 pode libertar a si mesmo libertando a humanidade inteira. Trata-se de uma missAo histérico-universal, mas nao fundada “a priori” ou pro- ‘videncialmente (“os proletarios nao sto deuses", esclarecem Marx ¢ Engels na Sagrada Famitia),”* e sim em fungio da situagao concreta que ocupa dentro da producao na sociedade burguesa. O proletariado cesté destinado historicamente a libertar-se por meio de uma revolugao radical que implique a negacdo e supressao de si mesmo como classe particular ea afirmaco do universal humano. Situado 0 probléma no marco especifico que agora nos interessa, © que Marx nos diz é que o proletariado nao pode emancipar-se sem passar da teoria a praxis. Nem a teoria por si mesma pode emancipé-lo, rem sta existéncia social garante por si s6 suz liberagao, E preciso que proletariado adquira consciéncia de sua situagao, de suas necessida- des radicais e da necessidade condigoes de sua libertagao. Essa cons- ciéncia é justamente a filosofia; mais exatamente, sua filosofia. Filosofia, ¢ proletariado se encontram em unidade indssolavel, “Assim como a flosofia encontra no proletariado suas armas materiais, 0 proletaria- do tem na filosofia suas armas espirituais .."."” Sem o proletariado, a filosofia nio sai de si mesma ¢ gracas a ele, realiza-se; cle é seu instru- mento, o meio, a arma material que Ihe permite vingar na realidade. 0 proletariado, por sua vez, nao poderia emenciparse sem a filosofia; ela é 0 instrumento, a arma espiritual e te6rica de sua libertagao. Mas, nessa relago, os dois termos se condicionan mutuamente; a realizagio de um ¢ a aboli¢ao do outro. “A filosofia ~ diz Marx - no pode chegar a realizar-se sem a aboligso do proletariado, e o proletariado nao pode chegar a realizarse sem & abolicio da filosofia’.** 16.C. Marx, it tno ln etic del flosofa del derecho, de Hegel, Introduccn, op. et pall 17 Bid, p. 12 18.6, Marx eF Engel, Le Sagrada Fania, op. cit. pp. 11-102. 19. Marx, En torn ale eta de a filosofia de derecho, de Hegel. op cit pS. 20 1. A cONCHPGAO DA PALAIS EM MARX. Marx ainda nao esta em condigbes (em 1843) de ir mais além na fundamentagio da missao do proletariado, pois para isso ser preciso ‘que penetre mais a fundo na estrutura econémica e social da sociedade burguesa e que evidencie quais séo as verdadeiras condigdes e forcas motrizes do desenvolvimento histérico, Sob a forma da unidade da fi- Iosofia e do proletariado, considerados em sua vineulagao e realizagéo ‘mdtuas, Marx formulou pela primeira vez a unidade da teoria (como filosofia) e da pratica (como atividade revoluciondrie do proletariado). Mas so evidentes as limitagdes dessa concepgio da praxis. Seus con- ceitos-chave ~ emancipagao ou “recuperagao total do homem”,” neces- sidade radical e revolugio radical ~ nao se libertaram por completo de certo antropologismo feuerbachiano. 0 proletirio aparece sobretudo como a negago do humano, e no em relagao com certo desenvolvi- mento ou nivel da sociedade. Falta elaborar um verdadeiro conceito cientifico do proletariado, que s6 podera ser construido a partir da ané- lise das relagoes de produgao capitalistas. Para Marx, nesse perfodo, a issio hist6rico-universal do proletariado nao derive tanto de sua posi- io econémica e social no seio da sociedade burguese, mas de uma con- cepcao filoséfica (proletério = negagao e encarnagae do universalismo humano) e da situago especifiea ~ anacronica ~ da Alemanha de sua época. Fazendo da necessidade virtude, sustenta que é precisamente 0 atraso alemio que cria as condig6es favordveis para que ele cumpra a miss que no cumpre nos paises altamente ceservolvidos do ponto de vista econémico e social. Em suma, Marx justificaa missao do prole- tariado filosoficamente, assim como de um ponte de vista hist6rico es- treito, e nao de uma posicéo hist6rico-cientffica, objetiva, ja que ainda desconhece a lei que rege a produco material capitalista, as relacdes de classe na sociedade burguesa, a natureza e fungao verdadeiras do Esta- do burgués. Falta-Ihe, particularmente, uma concepsio da histéria que Ihe permita fundamentar a necessidade da revolugao do proletariado. Contudo, ainda que com uma fundamentacao insufciente e com a imprecistio conceitual e terminol6gica dela proveniente, Marx ja con- cebe a praxis como uma atividade humana real, eletiva e transformado- ra que, em sua forma radical, é justamente a revoluzdo. Ve essa praxis, na relaglo indissoltivel com a teoria, entendida esta mais como filosofia ou expressio teérica de uma necessidade radical do que como conheci- mento de uma realidade, e vé também o papel da forca social que com sua consciéncia e sua agao estabelece a unidade da teoria e da prética Desse modo, para que 0 contetide da préxis social revolucionaria se enriquega e, com isso, o conceito do proletariado como sew suijeito, sera preciso que Marx chegue & descoberta de uma présis original e ainda ‘mais raclical, uma préxis que enriqueca 0 conceito do proletario, Essa 21 Bid, p14 ng FILosoria pa riers préxis original ¢ justamente a producdo material, o trabalho humano. Essa descoberta & capital para uma filosofia da praxis porque & luz dele se esclarece nao 86 a praxis social, assim como outras formas de pro- dugdo néio material, mas também o que € zinda mais importante, a histéria como produgao do homem por si mesmo. A praxis revolcionéria, como transformagio consciente e radi cal da sociedade burguesa pelo proletariado, ha de passar necessaria- mente pela consciéncia dessa praxis material produtiva O Lucan pa praxis Nos Manuscriros pe 1844 ‘Marx nao teria conseguido avangar muito em sua concepsao da praxis se nao Ihe tivesse dado 0 novo ¢ rico contetido com que aparece nos Manuscritos econdmico-filosdficos de 1844, B, como veremos, ndo s6 Ihe imprime um novo contetido ~ considerada como praxis produtiva ou trabalho humano como também a luz desse novo enfoque se enti- guece igualmente o contetido da praxis social. ‘A praxis revolucionéria, na andlise imediatamente anterior aos Menuscritos de 1844, mostra-se em estreita alianga com a filosofia e tendo por sujeito o proletariado como a classe destinada a revolucio- nar a sociedade existente. Vemos af 0 proletariado como a expresso concentrada dos sofrimentos que sio infligidos ao homem, ¢ impelido a libertar-se, em uma libertagao que implica, enquanto tal, sua abolicao © a libertagao da humanidade inteira. Mas Marx nao consegue, ain- da, fundamentar as condigoes € possibilidades para essa libertagio. E 1ndo 0 consegue porque o proletério nao ¢ visio ainda em sua existencia propriamente proletiria, isto & como produtor que participa de rela- 62s econ6micas e sociais determinadas. O proletario nos ¢ apresen- tado, até agora, como ser que sofie, destinado a libertarse e, portanto, como sujeito de uma praxis revoluciondria. Trata-se do conceito um tanto especulativo e antropolégico do proletario como ser que encarna © sofrimento humano e nio do conceito cientifico a que chegaré Marx posteriormente, sobretudo em 0 capital, como membro de uma classe social que carece de todo meio de producao ¢ que, forgado a vender como mercadoria sua forca de trabalho, produz. mais-valia. Marx vé até agora o proletario como um revoluciondrio que luta em virtude do carter universal humano de seu sofrimento. Mas 0 pro- letario, objetiva e originariamente, e antes de desenvolver uma ativida- de revolucionéria, é, como Marx veré os Manuscritos de 1844, um ser ativo que produz objetos e que, como tal, contrai certas relagbes com ‘outros homens, no ambito das quais seu tratalho nao deixa de ter con- seatiéncias vitais para sua existéncia. [Até agora o proletirio se apresentara « Marx como a negagio da esséncia humana, e ndo como agente da produc. Marx via nessa nega- A.coNcEPGRC ba praxis EN MARK fio a necessidade e a possibilidade de sua emancipacéo. Mas ¢ justamen- te a necessidade de fumdamentar mais firmemente essa emancipacio, assim como as condigées da praxis revolueiondria correspondente, que o Jeva a analisar as condigBes do proletdrio enquanto operiio, pois a exis- téncia do proletariado se define, acima de tudo, como existéncia no tra- balho, na produgao, que €, como poderia ter dito o jovem Marx em 1843, 6 lugar do seu sofrimento humano, Essa é a razao pela qual, depois de ‘mostrar o proletario como sujeito da prxis revoluciondria, Marx passa a analisar sua situacdo como sujeito da préxis produtiva. Nas condicbes suliares e concretas em que situa sua andlise, ha rma profunda e in- ima conexao entre uma praxis e outra, Sao as condigdes especificas em que se dae opressao do trabalhador em uma Alcmanha atrasada, com um baixo desenvolvimento da produgfo, as que determinam que Marx veja 0 operdrio antes como revolucionério do que como produtor. No centanto, é justamente a necessidade de esclarecer e fundamentar a prixis revolucionaria que leva Marx a examinar a atividade prética, material, do ‘operdrio no processo de produsio como trabalho alienado. A PRAXIS PRODUTIVA COMO TRABALHO ALIENADO Dos economistas ingleses do século XVII, Marx aprendeu que o trabalho humano é a fonte de todo valor, de toda riqueza. Essa fonte é, portanto, subjetiva e, por isso, Engels, que é propriamente quem o introduz no ter- reno da economia politica, tem raziio — e Marx 0 reconhece— quando afir- ma que Adam Smith ¢ o Lutero da economia,” ja que passou da consi- deracao da riqueza em sua forma objetiva, exterior ao homem, & riqueza subjetiva, como produto do trabalho humano. Cabe, entao, perguntar (e € essa a pergunta radical que Marx se faz, nos Manuscritos de 1844) por que, se 0 trabalho é a fonte de toda riqueza, 0 sujeito dessa atividade ~ 0 ‘operiirio ~ se encontra em uma situacao tao desigual e desvantajosa com respeito a0 capitalista. A pergunta carece de sentido para a economia burguesa, pois 0 operério apenas Ihe interessa enquanto trabalhador, en- quanto meio ou instrumento produtivo, ou fonte de riqueza, € no pro- priamente como ser humano. Sendo assim, a pergunta de Marx aponta justamente para a esséncia humana do operério, negada ou mutilada na producao. Desse modo, o principio de que o trabalho humano ¢ fonte de todo valor e riqueza, que, aparentemente, implica um reconhecimento do homem, deixa-o, ao operdiio como ser humano, fora do processo de produc. Por isso, Mans pode dizer: "... Sob a aparéncia de um reco- nhecimento do homem, a Economia politica que tem como principio 0 wabalho, € precisamente apenas a aplicac3o conseqtente da negacio do 22 Engels, Esbozo de ero de la economia politica, em C. Marx e F. Engels, Esvitas cconemicos varias, op. itp. 7: C. Marx, Mavuscites econdinicofiosoices de 1844, iid, p. 77-78 (A seguir etaremos da seguinte forma: Manuscries de 1844.) PILosOFIA DA PROS homem....2 A economia politica reconhece, com uma franqueza que ia 0 cinismo - como sublinha Marx -, que essa desumanidade existe, mas 0 trabalho humano s6 Ihe interessa como producao de bens com vistas ao lucro. As consegiiéncias negativas que 0 trabalho tem para 0 homem Ihe aparecem como algo natural que nao requer explicacao e, portanto, as condigdes de existéncia humana - ou mais exatamente de- sumana ~ do operdrio na producao, justifican-se como condicdes insu- periveis, O trabalho, para a economia politica burguesa, uma categoria ‘meramente econémica: trabalhar é produzir mercadorias, riquezas. Po- 1rém, se o trabalho afeta negativamente o homem —e se, por outro lado, 0 afeta vitalmente ~ isso quer dizer que tem uma dimensso mais profunda que a meramente econémica (a produgao de riquezas). Posto que afeta radicalmente 0 operério em sua condigao humana, nao € uma categoria econémica pura e simples. Marx examina, por isso, essa atividade huma- na que se baseia na produgo de urn tipo peculiar de objetos dos quais se apropria 0 ndo-operdirio, isto €, 0 capitalista, 0 trabalho humano, ou seja, a atividade prética material pela ‘qual o operario transforma a natureza ¢ faz emergir um mundo de pro- dutos, mostra-se para Marx como uma atividade alienada, com os tra- {908 que jé vimos ao caracterizar a alienagao em Feuerbach: criagio de lum objeto no qual 0 sujeito ndo se reconhecs, ¢ que se Ihe apresenta como algo alheio e independente e, ao mesmo tempo, como algo dota- do de certo poder ~ de um poder que nao tem por si proprio ~ que se volta contra ele.” E claro que aqui nao se trata, diferentemente de Feu- erbach, da alienagio como processo que se opera apenas na esfera da consciéncia, entre ela e seus produtos, mas sim de uma alienagao real, cfetiva, que tem lugar no processo real, efetivo, da producao material. Aalienacao do trabalhador em seu produto, por sua vez, € considerada, por Marx em outras formas (no ato da producao e com respeito & na- tureza, a sua vida genérica e a outros homens). Finalmente, Marx fala, também de uma forma peculiar de alienagao que tem como sujeito nao mais 0 operdrio, mas sim 0 ndo-operério, isto é, o homem que sem par ticipar diretamente no processo de producao se apropria do produto do operdrio, Na medida em que o ndo-operério vé o operario, sua atividade ou trabalho e seu produto a margem do processo de objetivagaio de for- ‘gas essenciais humanas, sua relagdo com cada um desses elementos da produgao ¢ puramente exterior. Desse modo, tanto a relagao ativa como 2 passiva com os objetos, tanto a relagio tedrica como a pritica com a producao, determinam uma alienagao do horiem. 23 Manuscritos de 1844, p. 78 24 Chem os Manuscritos de 1544 9 manuserit que leva como titulo "E! abajo enajena- do", pp 62-72 da edigdo expanbolscltada, 25 Manuscitos de 1844, pp, 65-56. A concHPGAODA Prous eM Mane A andlise da situaco do trabalhador como sujeito da praxis pro- utiva, material, que Marx realiza nos Manuscritos de 1844, leva-o & conclusio de que o trabalho é a nega¢ao do humanc. O ponto de par tida é aqui a esséncia humana, A qual se opée e nega a existéncia real, efetiva do trabalhador. Assim, pois, a atividade prodetiva é uma praxis que, por um lado, cria um mundo de objetos humanos ou humaniza- dos, mas, ao mesmo tempo, produz. um mundo de objetos nos quais 0 homem nao se reconhece e que, inclusive, se voltam contra ele. Nesse sentido é alienante. Dessa maneira, para Marx, essa praxis nao s6 impli- ca uma relagio peculiar entre o operdrio e os produtos de seu trabalho © uma relacao do operdrio consigo mesmo (alienagio com respeito a sua atividade, na medida em que nao se reconhece nela), mas também ‘uma peculiar relago entre os homens (alienacao em relagao a outros homens), em virtude da qual 0 operdrio e 0 nao-operirio (o capitalista) se encontram em uma relago oposta, mas insepardvel, no processo de producio.* Isto 6, a alienagao nao s6 se d como relagao entre sujeito € objeto, mas também como relagio entre o operario € os outros ho- ‘mens. Ou seja, 86 hé alienagao entre seres humanos. 0 trabalho nao s6 produz objetos nos quais © homem no se reconhece, como também ‘um tipo peculiar de relacées entre os homens, em que estes se situam hostilmente em virtde de sua oposicao no proceso de producio. "Me- diante 0 trabalho alienado ~ diz Marx - 0 homem nao s6 engendra sua relagio com respeito ao objeto ¢ a0 ato de producéo como poténcias alheias e hostis a ele, como engendra, além disso, a relagao em que ou- twos homens se mantém com respeito a sua produca0 e a seu produto, € 1 que ele mesmo mantém com respeito a outros homens.” Esse tipo de relagées, entendidas como relagdes sociais - nao intersubjetivas ~ so as que Marx denominaré mais tarde relagdes de producao. A produgio nfo s6 cria objetos como cria relagdes humanas, sociais. A produgio material de objetos se revela, assim, como produgao social. ‘A andlise da prixis como atividade humana rrodutiva deixa um saldo negativo, j& que implica uma alienacdo do homem em relagio 0s produtos de seu trabalho, & sua atividade produtiva e em relagio 0s outros homens. Em suma, trata-se de uma relacéo alienada entre sujeito © objeto, assim como entre os homens. O corceito de alienacdo, sendo de origem feuerbachiano, mostra aqui sua fecundidade no pro- cesso de formagao do pensamento de Marx, jé que abre caminho a uma ‘concepcao posterior mais importante sobre o papel da produgao ¢ das relag6es contraidas entre os homens no processo de producdo (relagoes de producao). 26 Bi, p68. 27 Ibi. p. 70. a Fisoria Da PRéxIS Em grande parte dos Manuscritos de 1844, Marx insiste nessa oposigdo entre trabalho alienado e 0 homem, entre o trabalhador e sua. esséncia humana, O trabalho humano ~ afirma - é a negactio do ho- mem; faz. essa afirmagio sobretudo com relagio & producao material capitalista, mas nao acreditamos ser infiéis a0 espirito do pensamento de Marx se dissermos que ele estende esse carter da praxis material, enquanto atividade alienada, a toda a histéria. Nesse sentido, poderi- amos afirmar ~ por nossa conta, mas com a pretensao de interpretar Marx fielmente — que, até o comunismo, a hist6ria humana no passa da hist6ria da alienagao do ser humano no trabalho. Essa alienago no 86 é 0 fato fundamental da existéncia humana na sociedade capitalist, como também historicamente. O homem vive e viveu constantemente alienado, o que equivale a dizer: em constante negacao de si mesmo, de sua esséncia. E, como essa negagio surge originariamente como traba- Iho alienado, isso significaria considerar o trabalho por seu lado negati- vo, mas com uma negatividlade universal, corsiderada historicamente, ©, portanto, absoluta, A TRANSFORMACAO DO MUNDO E DO HOMEM Mas como isso se compatibiliza com a afirmago de Hegel, destacada © aprovada por Mars, de que o homem € o produto de seu proprio tra- balho?* 0 trabalho nao s6 produz objetos e relagées sociais, com um cardter alienante em ambos os casos, como também produz o proprio homem. Portanto, o trabalho que, por um lado, nega o homem, por outro o afirma, na medida em que 0 produz como tal. Se o trabalho humano fosse marcado por uma negatividade absoluta ~ perda total do humano, degradagéo em um sentido total ao nivel de animal ou de coisa ~, néio poderiamos conceber 0 modo como pode produzir 0 homem enquanto homem. Poder-se-d objetar que Marx fala justamente da perda do humano, entendida como ani- malizagao da existéncia ~ transformagao do humano em animal -, ‘mas essas expresses devem ser tomadas no sentido de um descenso a0 nivel mais infimo do humano, nao no sentido de que o homem te- nha literalmente o estatuto ontolégico do an:mal ou da coisa. Mesmo estando alienado, o homem continua sendo sam ser consciente, ativo; se bem que consciente nao no sentido humano ~ propriamente cria- dor de sua atividade. Ainda que em um plano impréprio, alienado, ainda que em um nivel fntimo, esta do lado do humano. $6.0 homem, se aliena, e apenas ele, porque € 0 produto de seu préprio fazer, de seu trabalho; justamente porque ele faz 0 seu ser ~ em poucas palavras, 28 °O mais impertante da Fonomtenologie de Hegel [6]. que cape, portanto,« exstncia do trabathoe cance o homem objetivad e verdadero, por ero homem real, como results do de seu proprio wabalho".(Manscrito de 1884, op. et, p. 113). 124 oe A CONCERGRODA PRAXIS BMI Manx por ser um ente histérico -, o homem se encontra em um processo de produgao de si mesmo, isto é, de humanizagao, dentro do qual pode encontrar-se em nfveis humanos tao infimas como 0 do homem alie- nado ou coisificado. Mas voltemos a Marx. © trabalho nega © homem e, a0 mesmo tempo, afirma-o. Nao se deve entender isso ~ a nosso ver Marx nao 0 entendia assim ~ no sentido de que 0 trabalho seja pura negagao, ou ‘melhor, pura afirmacéo. ‘Marx reprova o fato de Hegel nao ter percebido 0 aspecto nega- tivo do trabalho ~ sua alienago -, mas essa reprovagio pressupde a concepgao hegetiana do trabalho, exposta na Fenomenologia do espirito esublinhada por Marx ao aprovar a tese de Hegel de que o homem ¢ 0 produto de seu proprio trabalho. Para resolver essa contradigao, deve-se ter presente a distingzio fundamental que Marx faz entre objetivacdo e alienagdo, ao mesmo tempo em que estabelece uma relacao entre elas, em: virtude de que @ primeira torna possivel a segunda, © comportamento real, ativo, do homem diante de si como ser ge- nérico, ova manifestagao de si mesmo como um ser genético, out a manifestacio de si mesmo como um ser genérico veal, isto é, coma ser humano, s6 possivel pelo fato de que ele eria e exterioriza re- almente todas as suas forcas genéricas ~ 0 que, por stta vez, 96 € possivel mediante a atuagao conjunta dos homens, somente como resultado da histéria ~ e se comporta diante delas como diante de objetos, o que, por sua vez, torna possivel, somente e acima de tudo, a forma da alienagio.”” essa passasem, podemos extrait o seguinte: o homem s6 se manifesta ‘como ser humano na medida em que objetiva suas forgas essenciats, ge néricas, mas essa objetivagao ~ praxis material, trabalho humano ~ 36 € possivel quando o homem entra em relago com os outros ~ “mediante a atuacio conjunta dos homens". Desse modo, o comportamento dos hhomens diante dessas Forgas objetivadas como abjetes, como se fossem algo alheio ou estranho, torna possivel a alienagao. O homem, para ser homem, nao pode se manter em sua subjeti- Vidade; tem de objetivarse. Mas, nessa objetivagao, cle se faz presente como ser social A objetivagao aparece como uma necessidade da qual © homem nao pode esquivarse, a0 fazerse ou produzitse como homem, ¢ man- ter-se em seu estatuto humano. O homem leva a cabo essa objetivacao. mediante o trabalho e acarreta, em principio, uma objetivacao de seu 29 Mauscritos de 1844, pp, 113-114 135 Fiosoria pa pricas proprio ser, de suas forcas essenciais. Como ji assinalava Hegel, na Fe- nomenologia, o homem, pelo trabalho, humaniza a natureza e humani- za-se a si mesmo, na medida em que se eleva como ser consciente sobre sna prépria natureza.** Nesse sentido a objetivacio material ~ isto é, a produgio ~ é essencial para o homem. ‘A partir dos Maruscritos de 1844, a produgio comega a ganhar ‘uma dimensio essencial para Marx. Mas essa dimensio é determinada no s6 por seu contetido meramente econdmico ~ produgao de objetos liteis que satisfazem necessidades humanas~ mas fundamentalmente por seu contetido filoséfico, na medida em que a produgdo é, para Marx, autoprodueao do homem. O papel da producao, que nos Manuscritos comeca a esbagarse sob 0 conceito econdmico-filoséfico de trabalho alienado, se revelaré ja claramente como premissa fundamental de toda a histéria humana e, desse modo, os Manuscritos constituem uma con- tribuigéo decisiva a formago do pensamento de Marx. Essa contribui- G0 s6 pode ser observada se 0 processo formativo desse pensamento é visto como um processo no qual a descontinuidade entre o Marx dos Manuseritos ¢ 0 Marx posterior nao € concebida como uma desconti- nuidade radical, absoluta, e sim como uma descontinuidade gue impli- ca necessariamente certa continuidade ou unidade. A descontinuidade radical s6 pode ocorrer se eliminarmos do Marx dos Manuscritos os elementos que podem assegurar essa unidad: ¢ se reduzirmos sua pro- blematica a uma problemética antropol6gica feuerbachiana, vendo-se nessa obra juvenil uma simples extensao da teoria da “natureza hu- mana” de Feuerbach & economia politica, problematica com que Marx somente romperia definitiva e conscientemente em A ideologia alema..* Destroem:se, assim, as pontes entre as duas obras, sem que, por outro lado, se diga como foi possfvel passar (ou, mais exatamente, saltar) da problematica feuerbachiana, especulativa ou ideolégica dos Manuseri- tos & problemética nova, cientifica do texto de 1845, A descontinuidade radical entre o Marx de 1844 e 0 de 1845 sb pode ser estabelecida se subestimarmos ou ignorarmos a contribuigio dos Manuseritos para 0 conceito capital de producao. No entanto, j4 nessa obra de juventu- de, Marx se aproxima de sua posterior fundamentacao materialista da historia, que pressupée necessariamente sua concepcao imediatamente anterior do homem como ser pratico que, inclusive em sua alienacio, se faz asi mesmo com seu préprio trabalho, isto é, se autocriaem e pela produgao, Cornu afirmou claramente a continuidade do pensamento de ‘Marx ao explicitar 0 papel da teoria da alienagdo na formagao do con- 30.Ck Fenomenologia del esprit op. et, pp. 113121 31. Althusser Pour Mars, op et, pp. 38-43 126 A CONCEPGRO Da PRAXIS EM MARX. ceito de praxis e ulteriormente de uma nova concepgio da historia.” A tese fundamental dos Manuscritos ~ a transformagao do homem e do mundo pelo trabalho ~ mostra-se fundamental para o desenvolvimento uterior do pensamento de Marx a partir de A ideotogia alema, isto para a formagio de sua concepcao da histéria humana como obra do desenvolvimento dialético das foreas produtivas e das relagées sociais que os homens contraem na producao, A producao relaciona-se, em primeiro lugar, com as necessida- des. © homem tem necessidades e, justamente por isso, produz para satisfazé-tas. Também 0 animal tem necessidades ¢, de certo modo, também produz. Mas o modo de se relacionar a necessidade e a produ- 40 modifica os termos dessa relagao. No animal como enfatiza Marx ~é direta, imediata e unilateral; além disso, o primeito termo determi na o segundo, pois o animal s6 produz sob o império da necessidade. No homem, essa relacao € mediata, jé que s6 satisfaz-a necessidade na medida em que esta perdeu seu cardter fisico, imediato, Para que o ho- mem satisfaga propriamente suas necessidades, tem de libertanse delas superando-as, isto é, fazendo com que percam seu cerdter meramente natural, instintivo, ¢ se tornem especificamente humanas."' Isso quer dizer que a necessidade propriamente humana tem de ser inventada ou criada. © homem, portanio, nao tem apenas necessidades, mas € 0 ser que inventa ou cria suas préprias necessidades. A produgio € criagao de um mundo objetivo, mas s6 0 homem pode dar'a si mesmo o estimulo da produgao, na forma de necessidades {que se vo criando em um processo sem fim. E na medida em que o ho- 32 Ver, também, 9 apreciagio de Comm dos resultados gerais dos Manusovtes de acor do com a génese do materiallsino historia em A ideologia olen nos Monuseritas ~ diz wars superava o pensamento bargués mais avangado representado pela Filosofia de Feuerbach e extabelecis or principios do matetaliamo histérico, undamento do pense- ‘mento revolueiondrie proleario” (A. Com, “Le materialise histrique dans ‘ideologie Allemande™, Annal! 1963, Milan, Fesineli, 1964, p. 58) Diante ds tendéncis abrir am Bbismo insondavel entre o Marx dos Marascrites eo Marx postercy, sobre a base da ads- {igso dos primeiror a um periodo ideolopico,roage também Maro Rossi, que, sem de Sot de reconthcer neles elementos tradicionss de Sdeologin, v8 também 2 superacte dos Timites desta, “Apenas ima leitura ro stent e superficial poda interpreta os Manuscrtas ‘como o documento de um perdarsvelideologismo do jovem Marz" (M. Rossi, Mars ela ddalatica hegeliana, 2, Roma, Riuniti, 1963, p. $87). Rejeltanda fambeé a descontinul- dade radical entre os hamutcritos de 1844 e suas obras modiataente posterior, T. (zerman aprecia, assim, esa obra juvenll dentro de evoluco do pensamento de Marc “0s Manuscrtos ecandmico-floscios, apesar da infuéncia do antropologismo de Fev ‘ebach, carscterisic deles, © apessr don velhos elementos de conceppdes que superar Posterismente, sasim como o uma teminelogia que nto corresponde a fea cuntetido Eonstiuem, no fundamental, formulagso de tex bsiens do sraterialismo dialético © histrio, CT. Oinerman, Forninvani filosofs muarksisma [A formacao da filosofia do arxsmo], Moses, 1982, p. 304) 33 Maruscritas econsiico flosifices de 1844, 0p. cit pp. 67-8. ey Fizosomia DA prix mem cria suas préprias necessidades se cria o1 produz.a si mesmo. Mas essa producao do homem passou pelo tipo particular de produgao que é a produgio alienada; isto ¢, a objetivacao revestiu-se historicamente da forma de uma objetivaco alienada, sem que por isso 0 homem, como ser social, tenha deixado de afirmar-se, de produzir-se a si mesmo." 0 trabalho ~ a produgo —é 0 que eleva o homem sobre a nature- za exterior ¢ sobre sua propria natureza, ¢ € nessa superacdo de scu ser natural que consiste propriamente sua autoproducao, Mas, historica- mente ~e isso é 0 que faz.com que a objetivardo acarrete, por sua vez, a negatividade propria do trabalho alienado - 0 homem s6 pode objeti- vvar-e, dominar a natureza, caindo em uma dependéncia com respeito 0s outros. Nesse sentido, podemos dizer que, para Marx, a alienago ‘aparece como uma fase necessaria do processo de objetivacao, mas Juma fase que © homem ha de superar, quando se derem as condigoes, necessérias, a fim de que possa desdobrar sua verdadeira esséncia.” ‘Assim, pois, a praxis material produtiva exige que se ponham em relagio e, por sua vez, que se distingam, objetivacao e alienacao. 0 homem s6 existe como tal e se autop-oduz. como ser que se ob- jetiva e produz um mundo humano. Mas essa objetivacao reveste-se ne- cessfria, mas nfo essencialmente, de um caréter alienado. Precisamen- te por isso, a alienagao pode ser superada; mesmo nao ocorre com a objetivacio que ¢, pademos dizer, constitutiva, essencial para o home. Por isso, diziamos anteriormente, a producso é essencial e fundamental nna vida social. A praxis material, entendida sobretudo como atividade produtiva, jé desde os Manuscritos, passa a ocupar o lugar central no pensamento de Marx. O problema das relagies entre sujeito e objeto, no s6 em um sentido ontol6gico como também gnoseolégico, tem de ser examinada a luz dela. O HOMEM E A NATUREZA. CARATER ANTROPOLOGICO DAS CIENCIAS NATURAIS problema sujeito-objeto é formulado nos Manuscritos ao serem es- tudadas as relagdes entre o homem ¢ a natureza, Nas “Teses sobre Feuerbach", é abordado propriamente como problema das relacGes su- Jjeito-objeto. Tanto em um como noutro plaio, Marx chega & mesma ‘conclusao: 0 segundo termo da relagao ~ natureza, nos Manuscritos; objeto, nas “Teses sobre Feuerbach” ~ nao Ihe interessa a margem de sua atividade prética e, portanto, tem para ele um carater antropolé- gico. Esse carater antropol6gico da natureza e do objeto ~ caréter que recebem er e pela pratica ~ determina, por sua vez, 0 carter antropol6- 34 bid, 88 35 Pid, yp. 82-85, ra A concEP¢Aa pa privas Em Manx gico do conhecimento, Vejamos, portanto, qual é 0 estatuto da natureza exterior e do objeto, respectivamente, de acordo como lugar central da préxis nos textos anteriormente citados de Marx, que complementare- ‘mos, também, com algumas referéncias a A ideologia aera. Dissemos anteriormente que © homem, de acordo com 0 pensa- ‘mento de Marx, é por esséncia um ser que necesita objetivarse de um ‘modo pratico, material, produzindo, assim, um munéo humano. Produ- zir é, por um lado, objetivar-se no mundo dos objetos produzidos por seu trabalho; produzir é, do mesmo modo, integrar a nattreza no mundo do hhomem, fazer com que a natureza perca seu estado de pura natureza, em si, para converterse em natureza humanizada, cu natureza para 0 homem. Como a natureza per se nao tem um caréter antropoligico, © ho- mem tem de ajusté-la a seu mundo humano, median a transformagéo aquea submete com seu trabalho. "A indiistria € a relagao hist6rica real entre a natureza ¢, portanto, as ciéncias naturais e o homem”.® Através da indiistria, a produgao ou o trabalho, a natureza seadapta ao homem, pois “nem a natureza ~ objetivamente ~ nem a natureza subjetivamente, existem de um modo imediatamente adequado ao ser hnonano”.* A natu. reza em si, exterior ao homem, se converte em natursza humanizada e, nesse sentido, Marx diz também que “a indiistria ¢ 0 livro aberto das for- «as essenciais do homem”. Livro escrito, poderfamos dizer; com carac- teres humanos. B o desenvolvimento da producéo, da praxis produtiva, no passa de uma crescente humanizago da natureza. © que 6, entfo, a natureza & margem do homem, fora de sua relagio com ele? “A natureza, considerada abstratamente, em si, separada do ho- mem, é nada para este". Como interpretar essa passagem de Marx? ‘Tata-se de uma nova versao idealista do “nao ha objeto sem sujeito”? Estaremos diante de uma nova forma de idealismo: o “idealismo da préxis”? © homem s6 existe na relago prética com a natureza. Na medida em que esta —e nio pode deixar de estar ~ nessa relacio ativa, produtiva, com ela, a natureza Ihe ¢ oferecida como objeto ou matéria de sua ativi- dade, ou como resultado desta, isto 6, como natureza humanizada Dado que a natureza apenas se apresenta era unidade indisso- level com sua atividade, consideré-la por si mesma, & margem do ho- ‘mem, éconsideré-la abstratamente. A natureza 6, entdo, a natureza ser sta marea; ou seja, & 0 vazio do humano, ou a presenca de um mundo nig humanizado. Sé se da essa natureza em si porque falta o humano. 36 Marnscrivos de 1844, p. 88 37 bid, p17 38 bid,» 128 nag Purosorta pa praxis Mas isso s6 pode se dar em uma relagdo exterior, abstrata, ja que o ho- mem, como ser ativo, pratico, s6 existe para ele no momento em que deixa de ser pura natureza, na medida em que a transforma e humaniza com set trabalho. Fora dessa relago, a natureza é nada para ele. Nada, Posto que, para o homem enquanto tal, s6 existe como objeto de sua ‘aco ott como produto de sua atividade. A margem de toda relagaio com ‘co homem, a natureza é 0 imediato, o mediado pelo homem, a realidade zndo integracla em seu mundo mediante sua atividade. Com esse carater de imediaticidade, Marx admite sua existéncia, e inclusive sua priori- dade.” Mas, para ele, a natureza real &a que € objeto ou produto de sua atividade, de sew trabalho. “A natureza tal como se forma na histéria humana ~ certidao de nascimento da sociedade humana ~é a natureza real do homem; dai que a natureza, ao ser Formada pela indiistria, ainda ‘que seja na forma alienada, & a verdadeira natureza antropolégica.®° ‘A natureza nao formada, ndo tocada pelo homem, é para ele nada. Mas fesse nada que é a natureza pura original s6 € tal enquanto o homem go a integrar em seu mundo. O que ontem era nada para ele (nada para o homem) acaba por adquirir um sentido humano. A partir desse sentido humano, revela-se sua prioridade on‘oldgica, mas a natureza que o homem conhece nao é mais uma natursza em si, pura, original, mas sim, integrada em seu mundo através da prética, como natureza jé humanizada, isto é, como produto de seu trabalho ou em vias de huma- nizagio, como objeto de sta ago. O conhecimento que o homem tem dessa natureza é, portanto, um conhecimento antropologico.** Para Marx, as ciéncias da natureza nao passam, definitivamente, de cigncias humanas, Como entender essa tese de Marx nos Manuseri- tos de 18442 E preciso partir, primeiro, do fundamento antropolégico da in- distria, da praxis produtiva, Enfatiza, por isso, que ".. a hist6ria da indiistria ¢ a existéncia objetiva da industria, jé fetta realidade, € 0 livro aberto das forgas essenciais hnumanas ...* Acrescenta que a indiistria 86 foi considerada por sua utilidade exterior e nao pelo que ha nela de realidade dessas forgas essenciais. Buscou-se essa realidade fora da inddstria: na politica, na literatura ou na ate. Mas, inclusive sob a. forma da alienagao, o homem se desenvolve nesse mundo de objetos 39 A prloridade ontolipica da naturers, do objeto da aividade pratice do home com respelto su atvidade erislora, @enfatzeda er mais de uma ocasiao por Marx. CE. fre respritor"O tabalhador no pode riar nadia sem anatureza, sem o mundo exterior enue, Esta €4 materia sobre a qual se realiza seu trabalho, sobre a qual este aus, hase por meiocda qual otrabalhador produ" (Manuseros do 1844, p. 64.) 80 hid, p. 88. 41 bi, pp. 88-89, 42 ti, p87. 130 siteis, A indastria, portanto, tem de ser posta em relazio com o homem, Sendo assim, em que relacao com ele esta 0 conhecimento cientifico da natureza? Em uma relacdo também hist6rica, real, na medida em que esto a seu servigo justamente por meio da inckistria, Nao hé um fundamento para a industria ~ diz Marx - e outro para a ciéneia. Nao se trata de dois mundos: um pratico e outro meramente contemplative. As ciéneias naturais influem praticamente na vida humana por meio da industria e, como no caso da praxis material produtiva, apresentam uma dupla face: humanizam-no (emancipam-no) e desumanizam-no (vém complementar sua alienacdo). Tal € o sentido da seguinte passa- gem de Marx: “Tanto mais praticamente as ciéncias naturais, por meio da indistria, influiram na vida humana e a transformaram, preparan- do assim a emancipacio do homem, ainda que isso, diretamente, vies- se forgosamente completar a desumanizacao” ** Portanto, as cléncias da natureza, por estarem a servigo do ho- mem, por sua influencia pritica na vida humana e sua contribuigio & emancipacao humana, passam a ter um cardter antropolégico. O hhomem conhece para transformar a natureza de acordo com necessi- dades humanas. Mas Marx nao se limita a assinalar o cariter antro- polégico das ciéncias naturais pela fungao prética que cumprem, mas iambém por scu objeto. A natureza é, certamente 0 objeto das cién- clas naturais, mas nao a natureza em si que existe com uma priorida- de ontolégica com respeito ao homem, e sim a natureza integrada ou em vias de integrar-se no mundo humano. Hé unidade do homem e da natureza: @) na medida em que a natureza é homem (natureza huma- nizada) ¢ b) na medida em que, como ser natural Fumano, é também natureza. Nesse sentido, Marx diz que o homem é 0 objeto imediato das ciéncias naturais enquanto que a natureza é 0 objeto imediato do hhomem. Se a ciéncia da natureza é ciéncia do homem, esta, por sua vez, € ciéncia natural, Nem a natureza é separdve! do homem, e por isso, Marx fala da “realidade social da natureza”, nem as ciéncias na- turais podem ser separadas da ciéncia do homem. Ambas tenderdo a fundir-se, por seu caréter antropel6gico comum, mas isso s6 ocorrera no futuro, “As ciéncias naturais se converterso com 0 tempo na cién- cia do homem, do mesmo modo que a ciéncia de homem englobaré as ciencias naturais e somente haveré, ento, wma cinci ‘O que se quer dizer com isso é que o processo pelo qual o homem adquire sua natureza real, elevando-se sobre a natureza exterior e inte- 43 Ibid. p88 44 Bata tese do carer antropoléico das citnciasnsturais por eeu objeto ser abandona- da posteriormente por Marx quando eaborn, a parr de A ideaogin ale sun outing dd superestratura ideolégica, dentro da qual no inci ns ciéncis da natureza, 45 Marsertos de 1844, 9.88 as Friosoria pa prtas rior e, ao mesmo tempo, 0 processo pelo qual a natureza original ad- ‘quire um cardter antropolégico, é um process histérico que se realiza gragas A praxis material, produtiva; do mesmo modo, o processo pelo qual as ciéncias naturais se convertem em ciéncias humanas também se realiza no tempo, justamente na medida en que o homem adquire consciéncia de que a natureza, que era objeto das ciéncias, nfo é senao ‘uma natureza humanizada, Enquanto a indlstria nao fizesse da nature- ‘2a em si uma natureza antropol6gica, nao se poderia pér em evidéncia, tanto por sua funco como por seu objeto, 0 carater antropolégico das ‘iéncias naturais. Com 6 tempo, a crescente humanizacio da natureza fara com que se apague a linha diviséria entr: as ciéncias naturais e a ciéncia do homem. ‘No entanto, caberia acrescentar que, iaclusive nos tempos mo- demos, quando jé 0 progresso da indtistria e da técnica humanizou em alto grau a natureza, a divisio entre ciéncias naturais e antropolégicas, se mantém, apesar de seu caréter antropol6gico comum. Marx assina- Ta essa divisio que contradiz esse caréter comum, mas nfo esclarece ‘explicitamente suas raizes. No entanto, podemos encontrar implicita- mente a explicacao em Marx, levando em conta que o trabalho alienado também se apresenta para ele sob a forma de uma relagao alienada do ser humano com respeito 4 natureza, em virtude da qual, longe de ser cla um meio de afirmagao e objetivacdo de suas forgas essenciais, é para © homem ~ como para o animal - um simples meio de subsisténci algo estranho ou alheio. Quando a natureza néo tem para ele um cara ter antropol6gico, seu conhecimento necessariamente também no 0 tem. 0 homem, ausente na natureza, deixa de estar presente na ciéncia natural. A divisfo ou cisio entre o homem e anatureza, na relagio alie- nada do primeiro com respeito a segunda, determina a divisio ou cisto| entre as ciéneias naturais e humanas. S6 quando a relacdo pratica entre © homem e a natureza assumir um caréter verdladeiramente humano ~ como praxis produtiva criadora, nao alienada — surgirao as condigbes para unir as ciéncias naturais ¢ a ciéncia do homem sobre uma base comum antropolégica. A praxis aparece nos Manuscritos de 1844 como atividade produ- tiva, concretamente como trabalho alienado, ou como transformacao humana da natureza inclusive na relaco alienada do homem e da na- ‘tureza, Mas, antecipando uma concep¢ao mais profunda da praxis que comegaré a se esbocar tanto em suas “Teses sobre Feuerbach” coro em A ideologia alema, j@ nos Manuscritos encontramos referéncias & atividade prética revohiciondria como atividede necessaria para trans- formar néo mais uma idéia, mas sim a realidade. “Para superar a idéia da propriedade privada, é plenamente suficiente a idéia do comunismo. Mas, para superar a propriedade privada real, falta a ago real do co- 132 A concrrgRo ps pniixis ent Manx munismo."** Mart também se refere ao papel decisivo da pratica na so- Jugao dos problemas teéricos: "Vemos como a mesma solucao das con- tradigbes tedricas 86 € possivel de um modo pritico, através da energia pratica do homem, razio pela qual sua solucio nao pode ser apenas, de modo algum, um problema de conhecimento, mas uma tarela real, de vida, que a filosofia nao poderia resolver, precisamente porque somente aenfocava como uma tarefa te6rica."?” A ELABORACAO DO CONCEITO DE PRAXIS EM A SAGPADA FAMILIA Em A Sagrada Familia, obra escrita por Marx em colatoragao com En- gels em setembro ¢ novembro de 1844, e publicada em fevereiro de 1845, temos uma contribuigao importante para a elaboracao do concei- to de praxis. Com essa obra, propunham-se a respondera alguns artigos da revista de Bruno Bauet, a Gazeta Geral Literdvia, érgto dos jovens hegelianos, no quais se atacava 0 comunismo e se tragava © programa da “Critica critica”. As exig€ncias da luta ideoldgico-politica na Alemanha da época convertiam em uma tarefa politica importante a critica dessa filosofia especuilativa que concedia tudo a erftica, isto é, agaodo pensamento, enada & acao politica real. Para desenvolver uma atividade revolucio- néria efetiva era preciso ajustar contas com as ilusées especulativas tecidas pelos jovens hegelianos e reivindicar a atividade prética poli- tica, 0 que obrigava, por sua vez, a desenvolver 0 conceito de praxis. ‘Ao se ocupar agora da agio real e da forga historica fundamental, das massas, do proletariado, Marx e Engels descobrem na agio histérica, dos homens uma peculiar relacao do subjetivo e do objetivo, jé ob- servada nos Manuscritos de 1844 com respeito ao trabalho, & pratica produtiva. ‘Ao enfrentar criticamente 0 idealismo ¢ o elitismo dos jovens hegelianos, Marx ¢ Engels abordam em A Sagrada Fernilia trés ques- tes fundamentais que afetam vitalmente a elaborazio do conceito de praxis. Primeira: qual € o elemento ativo da histéria que permite transformar a realidade? Para os filésofos “eriticos” é a critica, a ati- vidade tedrica, € nao aco real dos homens. Segunda: quem s20 os sujeitos dessa transformacao, ou seja, da mudanga histérica? Para os neohegelianos € 0 filsofo “critico” que, A margem da massa “acriti- ca", desenvolve sua atividade intelectual. Terceira: como se exerce essa atividade “critica”? Pensam Bauer ¢ consortes: como uma ‘critica ab- soluta”, prescindindo de todo interesse e fora de toda relagio com a asi real, com a prética. 46 Manuseritos de 1844, p. 96 AT bid, p87. 133 Frrpsoria pa retcts Nos trés casos a praxis é negada: 1) ao se reduzir a pritica & teo- ria, & “critica”; 2) a0 se desconhecer o papel do sujeito verdadeiramente tivo: a massa, o povo; e 3) a0 separar a “critica” da atividade real das rmassas, ou seja, ao cindir a teoria da prética ¢, portanto, ao negar est. ‘Em sua luta contra 0 idealismo especulativo (“eriticas da critica critica”), Feuerbach oferece ainda uma ajude que Marx e Engels apro- veitam fecundamente, Com efeito, ao denunciar a mistificagao neohe- geliana, aplicam o método de Feuerbach em A esséncia do cristianismo {restabelecimento das verdadeiras relagdes entre sujelto e predicado) e, com esse motivo, sublinham que a “eritica” éconvertida por seus fil6so- fos de predicado do homem em sujeito autérome.# Embora a flosofia feverbachiana combata a abstragao hegeliana (o Espirito) em nome do Homem (outra abstracao), ela ¢ proveitosa para Marx e Engels na tare- fa A qual se propuseram: dissipar a iusto especulativa de que ohomem sua atividade s2o predicados do Espirito, 0 alvo em que mira, sobre- tudo A Sagrada Farnilia, é a filosofia baueriana da “Autoconsciéncia” Na querela de Bruno com Strauss que, definitivamente, era uma que- rela de familia entre duas variantes do idealismo especulativo, Bauer acabou sobrepondo-se a seu oponente. Ao enfatizar frente a Strauss 0 ponto de vista da Autoconsciéncia e fazer dela o tinico sujeito, a tinica realidade, Bauer mostra-se como um hegeliano mais conseqiiente, mas, ao converter a substAncia em Autoconsciéncia, faz de uma propriedade humana ~a Critica —o sujeito absoluto.* Desa maneira, no escapa a Marx o fato de que Hegel oferece de forma especulativa, abstrata, uma descrigio de relagées humanas, reais, enquanto que em Bauer perde-se essa riqueza humana efetiva e, desse modo, em sua flosofia da Autoconsciéncia se transforma em uma caricatura sem contetido. Sea Fenomenologia de Hegel, apesar de seu pecado original especu- lativo, oferece em muitos pontos os elementos de uma caracteristica real das relagées humanas, o senhor Brno e consortes apenas nos entregam, inversamente, uma caricatura que se contenta em arran- car de um produto espiritual ou, inclusive, das relagées e dos movi- mentos reais uma determinabilidade, convertendo logo depois essa determinabilidade em uma determinabilidade do pensamento, em uma categoria, ¢ fazendo esta categoria passar pelo ponto de vista do produto, cla relagao e do movimento e, a seguir, com a velha e sisuda sabedoria do ponto de vista da abstracio, da categoria geral, da au- 48C, Maree F. Engels, La Segre Fania, tadisao DeW. Races, México, Grislbo, 1958, 86, [Huma tadueo posterior, de Pedro Scaron, en OME 6 La Sagiada Fania. La Siuacion dla clase obvra en Inglaterra, Barcelona Cre, 1978.) 49 bid 9 257 136 A-CONCEPGRO ba PRAS Bor MARE toconsciéneia geral, poder olhar triunfalmente po- cima do ombro essa determinabilidade.*® Ao absolutizar assim a Autoconsciéncia, esta, isto & “o espirito”, é 0 todo, Fora dele “nao hé nada”, o mundo exterior ¢ s6 aparéncia. Marx e Engels explicitam a inconsisténcia desse idealismo subjetivo ao afirmar que sequer passa pela cabeca do “critico critica” que exista “um mundo que continua em pé do mesmo modo que antes ainda que eu supri- ma simplesmente sua exist€ncia intelectiva...”" Mas no se limitam a xiticar essa redugaio do mundo exterior “a minha propria consciéncia subjetiva’, como também assinalam o lado conservador dessa operacao especulativa que leva a declarar nulas tanto as instituicdes, como o Es- tado e a propriedade privada. Quando Bauer faz da autoconsciéncia o sujeito absoluta, 0 obje- tivo ~ como se sublinha em A Sagrada Familia — torna-se pura aparén- cia. Sendo assim, com esta relagao do subjetivo € do objetivo se corre- lacionam, por sua vez, necessariamente, 0 modo de entender da relacao ‘eoria-pratica. Ali, onde desaparece a distingéo de consciéneia e ser, também nao hé lugar para distingao de teoria e pratica Por isso, a especulativa identidade mistica de ser © pensamento se repete, na Critica, como a mesma identidade mistica da prdtica e da woria. Daf seu enfurecimento contra a prética que pretende ser algo. distinto da teoria ¢ contra a teoria que aspira a ser algo distinto da dissolugao de uma determinada categoria na “ilimitada generalidade da Autaconsciéncia” Na verdade, Marx e Engels estao, aqui, enfatizando a distingao de teo- ria e pritica e no sua unidade real, que apenas sera destacada mais tarde. Mas a distingo se torna necesséria para escapar do idealismo subjetivo baueriano que, ao reduzir o ser ao pensamento, reduz com issoa prética & teoria. Quanto a funeso social, conservadora, desse idea- lismo ao explicar a nulidade do existente por sua oposigao & Autocons- cigncia, Marx e Engels propdem que “O que € preciso demonstrar, pelo contrario, é como o Estado, a propriedade privada, eic., convertem os homens em abstragdes ou os tornam produtos do homem abstrato, em vvez de ser a realidade do homem individual e concreto" * Assim, pois, a teoria na qual se dissolve a pratica como uma aparéncia limita-se a explicar o existente, ou seja, 0 que é preciso transformar efetivamente, como uma nulidade. 50 bid. p. 258. St Ibid. 152 Le Sagrada Pail, op et p. 258. 53 bid. 135 Fivosoria ba pris Eliminado, portanto, o mundo objetivo (Estado, propriedade privada, etc.) em favor da subjetividade, e reduzida a pratica & teoria, apenas fica para a Critica o plano do pensamento, como aquele no qual hago de se operar as verdadeiras transformagées. Marx e Engels enfren- tam abertamente as conseqdéncias dessa dupla reducio, em virtude da qual a Critica "se apoderou de toda realidade sob a forma de categorias ¢ dissolveu toda a atividade humana na dialé:ica especulativa’ ** No que diz respeito aos trabalhadores, trata-se de suprimir e su- petar objetos reais nfo s6 no pensamento como na vida real. A distin- ¢¢ho anterior se torna vital. ‘Sabem [os trabalhadores] que a proprieiiade, o capital, o dinheiro, «© trabalho assalariado, etc, nfo séo precisamente quimeras ideais de seus cérebros, mas criag6es muito priticas e muito materials de ‘sua auto-alienagio, que apenas poderso ser superadas de um modo prético e material, para que homem seconverta em homem no s6 no pensamento, na consciéncia, mas no ser real, na vida.** Ao eliminar a pritica, ressalta 0 conservadorismo desse idealismo es- ppeculativo, ja que deixa intacta a existéncia seal ao modificé-la apenas no pensamento, A Critica erftica tenta fazé-los crer que podem chegar a eliminar 0 ‘capital real com tio-somente dominar a categoria de capital no pen~ samento, que se transformarao realments, para se converter em ho- ‘mens reais, ao transformar na consciéncia seu "eu abstrato” e afas- tar como uma operacio isenta de critica toda transformagao real de sua existéncia real, das condicdes reais de sua existéncia e também, portanto, de seu eu real Em estreita relagio com tudo isso est 0 problema do elemento ativo da histéria. Os filésofos “criticos” contrapéem Espirito © massa; 0 Es- Pirito, a Critica, é 0 elemento ativo; a massa, carente de espirito, é 0 elemento passivo. A hist6ria, por conseguinte, ¢ feita pelos individuos eleitos, portadores do Espirito, enquanto que a massa, afanada com ‘seus interesses materiais, encontra-se condenada a passividade. Novas contraposicées: Espirito-massa, idéia-interesse, criacdo-passividade slo acrescentadas, assim, as jé assinaladas. 0 exame da contraposieo neohegeliana de idéia e interesse per mite a Marx e Engels adiantar uma tese fundamental do materialismo histérico: 0 condicionamento material das idéias e seu verdadeiro pa- ‘54 Bid, p. 119 55 id. p18 56 bid. 138 A.concercie na pads Bat Marx pel no desenvolvimento histérico. Os jovens hegelianos acreditam que 2 idéias so a forga motriz da histéria e que cumpcem esse papel na medida em que se desprendem dos interesses materiais da massa. Ao abordar essa questo, tanto os filésofos “crfticos" quanto Marx e Engels, fem sua réplica referem-se & Revolugao francesa: os primeiros eriticam ‘suas idéias porque “ndo levaram além do estado de coisas que essa re- vyolugao queria destruir pela violéncia”:” os segundos, em sua respos- ‘a, antecipam uma tese fundamental do materialismo hist6rico: que as idéias apenas podem levar para além das idéias de um velho estado universal de coisas. ‘Quanto ao papel das idéias na histéria, consequientes com sua distingfo de pensamento e ser, ou de teoria e pritica, acrescentam: “As jdéias nao podem nunca executar nada. Para a execugao das idéias, fal- tam os homens que ponham em aco uma forga pritica’.* Isto €, por si 86s, as idéias ndo mudam a realidade; requer-se para isso a prética [As idéias, por sua vez, expressam necessidades e interesses reais; justa- mente 0s filésofos “eriticos” negam essa relacao, jé que identificam tais necessidades ¢ interesses com 0 egofsmo.” (0s fildsofos “criticos” pensam que os limites e 0 fracasso da Re- volugso francesa deveram-se a que suas idéias relletiam o interesse ‘material da burguesia, ja que a massa estava “interessada” por elas. Sendo assim, Marx e Engels sustentam, pelo contrétio, que nao se pode divorciar idéias e interesses. “A ‘idéia’ ficou sempre em situagao ridicul quando parecia divorciada do ‘interesse”.* Nao ha, portanto, "idé pura". E.as limitagées da Revolugéo francesa, como as de todas as gran- des agbes histéricas, nfo se deveram a que “a massa havia se interessado e-cntusiasmedo” por suas idéias. Marx esclarece tude isso estabelecendo ‘uma justa relagdo entre idéia ¢ interesse tanto pars a burguesia como pera a massa. Em primeiro lugar, o fato de que a Revolusao francesa no realizasse as idéias “paras” de igualdade, liberdade e fraternidade no significa que fosse um fracasso como revolucae burguese. Se cabe falar de fracasso nfo é para a burguesia que “ganhou" tudo, mas apenas ppara as massas ao nao coincidir 0 interesse da burguesia com o interes- se real da massa popular Nao é, portanto, a idéia divorciada do interesse a que promove ‘uma grande apo histérica, mas sim, o interesse real. Por isso, também se diz em A Sagrada Femifia com respeito & massa cul interesse nao se expressava na idéia burguesa: 57 bid, p18. 8 mi. 59 bid, p16. 60 Bi, p. 147 aa Friosoria pa Praxis Nao porque a massa se "entusiasmasse” e se “interessasse” pela re volugto, mas porque a parte mais numerosa dela, aquela distinta da burguesia, nfio possufa no principio da revolugio seu interesse real, seu préprio e peculiar principio revoluciondrio, mas apenas uma “idéia’, isto é, apenas um objeto de momentineo entusiasmo e uma cexaltago meramente aparente.** Enquanto os jovens hegelianos véem na participactio da massa a causa do fracasso das grandes ag6es hist6ricas, Marx e Engels consideram que ‘volume da aco da massa aumenta “com a profundidade da acéo hist6- rica"® O que quer dizer, por sua vez, quea aceleracdo e profundidade do desenvolvimento hist6rico estio vinculadas ao papel crescente das mas- sas populares, jé que constituem a principal forca motriz da hist6ria. Ao assinalar o papel ativo das massas populares, Marx ¢ Engels ‘também apontam — ainda que de forma muito embriondria - a influeén- cia dos fatores objetivos na agao hist6rica, Jé sua tese da idéia como ex- ppressdo de um interesse real situa este no terreno objetivo, visto que tal interesse é inseparavel de determinado nivel de desenvolvimento hist6- rico-social. A emancipacao da burguesia ou da massa popular requer condigdes reais distintas. "As condicdes reais de emancipagao [da mas sa] se diferenciam essencialmente das condigSes nas quais a burguesia podia emancipar-se e emai a Sociedade’. Um fator objetivo € também a produgao material, a indiistria, o trabalho, sem os quais nao se poderia explicar a agao histérica, como dizer, aos filésofos “criti- cos", Marx e Engels: ‘Ou por acaso a Critica critica acredita ter chegado ao comego da realidade historica nem sequer ao comeco, enquanto elimina do movimento hist6rico 0 comportamento “ebrico e prético do homem diante da natureza, da ciéneia e da indistria? Ou acredita jé ter co- hecido, na realidade, qualquer perioddo sem conhecer, por exemplo, 1 indistria desse periodo, o modo de produedo da prépria vida?" ‘Temos, portanto, aqui in nuce a tese fundamental do materialismo histérico, a saber: que a producio material em um perfodo determi- nado permite explicar a alo historica na qual as massas populares desempenham o papel principal. O papel desses fatores objetivos se acentua quando se fala do proletariada, Mars e Engels se referem a ele, fem primeiro lugar, escapando da apreciagao negativa que os fil6sofos “eriticos” fazem de sua situagio e missdo. Haja vista que, para cles, 1 bid, 148. : 2 mid. . 65 hid. p 147. a 64 Bid. p. 216 138 A concEPGKO DA Pmibas EN MARK a criagéo apenas espiritual, compreende-se que afirmem, diante do ‘que ja haviam reconhecido inclusive os economistas burgueses, que "0 trabalhiador nao cria nada” e "nao cria nada ~ comentam ironicamente ‘0s autores de A Sagrada Familia — porque cria simplesmente objetos ‘eoncretos', isto é, abjetos materiais tangiveis, isentos de espfrito e de critica, um verdadeiro horror aos olhos da Critica pura’ ** Marx e Engels apresentam o proletariado dentro de uma série de antfteses objetivas: com a riqueza, com a propriedade privada e, final- mente, com a burguesia. E ainda que nessas antiteses nao se deixe de filtrar 0 antropologismo jé observado em os Manuscritos de 1844, nao se alude claramente a seu fundamento objetivo: a propriedade privada. E, nao obstante, seus acentos antropolégicos (no proletariado chega "8 sia maxima perfeicao prética ... abstracdo de toda humanidade”; pet= deu-se também “o homem no proletério"), a missfio histérica que Ihe 6 reconhecida esta objetivamente em seu ser de classe, como modalidade cantitese da propriedade privada. INko se trata do que este ou aquele proletério, ou inclusive o proleta- riado em seu conjunto, possa representar-se de ver em quando como meta, Trata-se do que o proletariado & e do que ¢ sbrigado histori mente a fazer, conforme esse ser seu, Sua meta e sua ago historica sio clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua propria situa ‘80 de vida e por toda a organizagao da sociedade burguesa atual.* E essa missio histérica nio s6 se fundamenta objetivamente sendio que, tendo presente a experiéncia do proletariado em paftes capitalistas de- senvolvidos, aponta-se a tese de que a consciencia de sua missio (isto é, suia consciencia de classe) se da nele, ¢ ele mesmo luta por elevé-la. (0 fator objetivo fica claramente configurado em A Sagrada Fa- milia na medida em que proletariado e riqueza formam com seu an- tagonismo um todo como “modalidades da propriedade privada”; na medida em que a propriedade privada encontra-se forcada a manter sua propria existéncia e, com essa, a do proletariaéo; e, finalmente pelo contritio, na medida em que o proletariado é obrigado a destruit= se a si mesmo e, com isso, a propriedade privada. Nesse muituo condi- clonamento objetivo dos termos antagonicos, Marx e Engels buscam © findamento historico do proletariado como classe e do acesso & sua conscigncia. E necessrio partir dessa necessidade objetiva, portanto, para explicar a luta do proletariado. ‘Temos, portanto, que a hist6ria humana ¢ feita pelos homens & que a forca principal da ago historica € a massa, 0 povo; e que nos tempos modernos essa forca é— em virtude da necessidade hist6rica ob- 65 rbd. p. 84, (66 ip. 102 19 Firosoria Da PRAXIS Jetiva que o engendra como classe ¢ provoca sua luta ~ 0 proletariada, Mas isso nao quer dizer que as massas, os pro.etirios, fagam a histéria de um modo automatico, mas sim, tomando consciéncia de sua propria situagao como antitese da propriedade privada. 18 certo quea propriedade privada promove por si mesma, em seu mi vimento econémico, a sua propria dissolugio, mas apenas por mei de um desenvolvimento independente dela, inconsciente, contrétio {sua vontade, condicionado pela propria natureza da coisa; apenas enquanto engendra o proletariado como proletariado consciente de sua miséria espiritual e fisica, consciente de sua desumanizacao e, portanto, como desumanizagao que se supera a si mesma, Do ponto de vista da elaboracao do conceito de préxis, em A Sagrada Fa- ‘iia se da um passo importante ao assinalar-se o papel do fator objetivo que determina a natureza do sujeito da acio resk: 0 proletariado, Mas, 20 ‘mesmo tempo, enfatiza-se o papel do fator subjetivo, jé que essa nature- za missto e, portanto, sua agao real, tém de tornar-se conscientes para cles; na verdade, em A Sagrada Familia se diz que “grande parte do prole- tariado inglés e francés ¢ ja conscience de sua missao histérica e trabalha constantemente para elevar essa consciéncia a completa claridade’ Assim, jé ha no conceito de praxis uma correlagao bastante acu- sada do objetivo e do subjetivo na medida em que 0 que é 0 proletariado tem um fundamento objetivo ¢ requer ser consciente de sua situago € misao histérica para poder atuar “conforme esse ser seu”, Desse modo, para que se enriquesa 0 conceito marxista de praxis, sera preciso, ain- da, que 0 objetivo e 0 subjetivo se correlacionem nao s6 nessa forma — ou seja, como unidade da necessidade histérica objetiva e da ago real consciente dos homens ~, mas também como unidade no interior mesmo da acdo real, da propria praxis; isto 6, como atividade objetiva e subjetiva ao mesmo tempo. Mas Marx apenas chegard a isso posterior mente, a partir de suas "Teses sobre Feuerbach’, O Pare. DECISIVO Da PRAXIS Nas TrSES SOBRE FEUERBACH © problema das relagdes entre o homem e a natureza permite a Marx avancar, a despeito de certo antropologismo, en direcdo a uma concep- io que situe a atividade prética humana no centro de sua concepeao, ¢ que faga de sua filosofia uma verdadeira “filosofia da praxis”. Os tacos essenciais dessa filosofia ja aparecem com grande nitidez em stias Teses sobre Feuerbach, obra imediatamente posterior aos Manuscritos e quase contemporanea de A ideologia alemd. Desenvolvendo um contenido ja 97 bid, 10. (68 Bi, p, 102, Mo, [A CONCEDED Da PRAISE Manx implicito nos Manuscritos (a pratica como fundamento da unidade en- treo homem e a natureza, e da unidade sujeito-objeto), Mars formula em suas Teses sobre Feuerbach uma concepcio da objetividade, fundada na praxis, e define sua filosofia como a filosofia da transformacto do mundo. Ambos os momentos, como veremos, aparecem estreitamente vineulados entre si, pois se a préxis é elevada & conéigao de fundamen- to de toda relacao humana, isto é, se a relagao pratica sujeito-objeto € asica e original, a relagio sujeito-objeto no plano do conhecimento tem de inscrever-se no proprio horizonte da pratica, O problema da objetividade, da existEncia ou tipo de existéncia des objetos, s6 pode ser formulado no préprio marco da praxis. Isto é, an colocar no centro de toda relac3o humana a atividade prética, transformadora do mun- do, isso nfo pode deixar de ter conseqiiéncias profundas no terreno do conhecimento. A praxis aparecers como fundamento (tese 1), critério de verdade (tese ID fim do conhecimento. A oposizio entre idealismo e materialismo metafisico, ou entre idealismo e realismo, adquire um novo vis. A intervencio da praxis no processo de conhecimento leva & superago da antitese entre idealismo e materialismo, entre a concepgo do conhecimento como conhecimento de objetos produzidos ou cri dos pela consciéncia, e a concepeao que vé nele ura mera reprodugiio ideal de objetos em si. Isto €, a0 converter-se a prética no fundamento, ceritério de sua verdiade e fim do conhecimento, as das posicoes tém de ser transcendidas; e da mesma maneira que nio é possfvel permanecer, uma vez admitido o papel decisivo da praxis, em uma teoria idealista do conhecimento, tampouco € possfvel continuar se atendo a uma teoria realista como a do materialismo tradicional, que nao é nada mais do que um desenvolvimento do ponto de vista do realismo ingénuo. Devemos observar, no entanto, que o exame das conseqiiéncias acarretadas pela introduco da préxis na relacdo de conhecimento no leva, nos intérpretes de Marx, as mesmas conclusées. Para uns, 0 fato de a praxis ser um fator em nosso conhecimento nio significa que no conhecamos coisas em si; para outros, a aceitagio desse papel deci- sivo da préxis significa que nao conhecemos que as coisas sio em si mesmas, & margem de sua relago com o homem, e sim coisas huma- nizadas pela praxis e integradas, gracas a ela, em um mundo humano (ponto de vista de Gramsci); por tltimo, se sustenta corretamente que sem a praxis como criagdo da realidade humana-sccial nao é possivel 0 conhecimento da propria realidade (posicao de K. Kosik) Todas essas posigfes pretendem apoiarse nas Teses sobre Feu- erbach. Dai a necessidade de voltar ao préprio texto de Marx e tentar estabelecer seu verdadeiro sentido, que, a julear pelas interpretagtes diversas e inclusive opostas a que da lugar, apresenta-se, a principio, com um cardter problemético. Passemos, pois, ao exame de algumas das Teses sobre Feuerbach Fiosoma Da prius A PRAXIS COMO FUNDAMENTO DO CONHECINENTO (TESE I) Tese A falha fundamental de todo 0 materialismo precedente (incluindo 0 de Feuerbach) reside em que somente capta 0 objeto (Gegenstand), 4 realidade, 0 sensivel, sob a forma de objeto (Objekt) ou de con- templagdo (Anschaung), nfio como atividade humana sensorial, como pprética; ndo de um modo subjetivo. Daf que 0 lado ativo fosse desen- volvido de um modo abstrato, em contrapasicso ao materialismo, pelo idealismo, o qual, naturalmente, nao conhece a atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach aspira a objetos sensiveis, realmente diferentes dos objetos conceltuals, mas nio concebe a propria ati- vidade humana como uma atividade objetiva (gegenstirdtiche). Por isso, em A esséncia do cristianisio, s6 se considera como autentica- mente humano o comportamento tedrico, e, inversamente, a pritica 86 & captada e plasmada sob a sua suja forma judia de manifestacao, Daf que Feuerbach nio compreenda a importncia da atividade “re- volucionéria”, da atividade “erftico-pratica®* ‘Toda essa primeira tese tende a contrapor o materialismo tradicional & © idealismo no que se refere ao modo de conceber o abjeto e, portanto, a relagio cognoscitiva do sujeito com ele, Tanto uma como outra posi G0 sao negadas, mas com sua negaco indicam-se, por sua vez, a ne- Cessidade de sua superasao ¢ 0 plano em que essa superagio pode ocor- rer (a concepgio da atividade humana como atividade sensorial, real, objetiva, isto é, como pratica). A critica do materialismo tradicional é feita com referéncia a seu modo de captar o objeto. E preciso observar que Marx utiliza em alemao dois termos para designar objeto: a primei- ra ver diz Gegenstand; a segunda, Objekt. Com 2ssa diversa designacio, Marx quer distinguir 0 objeto como objetivacio nao s6 tedrica como pritica, e 0 objeto em si que é 0 que entra na relagao cognoscitiva de acordo com 0 materialismo, Objekt é 0 objeto em si, exterior ao homem. ©. sua atividade; 0 objeto € aqui o que se opée ao suieito; algo dado, cxistente em si e por si, ndo um produto humano, A relaglo que cor responde diante desse objeto exterior e subsistente por si é uma atitude passiva por parte do sujeito, uma visao ou contemplagao. O sujeito se limita a receber ou refletir uma realidade; 0 conhecimento no passa de uum resultado da agao dos objetos do mundo exterior sobre os érgéos dos sentidos. O objeto ¢ captado objetivament, isto é, no como pro- duto da atividade pratica, nio de um modo subjetivo. A subjetividade = entendida aqui como atividade humana sensivel, como pritica ~ 469, Marx, Tests sobve Feeback, em C. Marx e FE Engels a deologtaalemana,tradugho {de W. Rocar, Montevideo, EPU, 1968, p. 633, ua A CONCEPGIO DA Prices ex Man contraposta a objetividade, & existéncia do objeto somo objeto em si, dado na contemplagao. ‘A teoria que Marx atribui ~ e critica — a0 materialismo tradicio- nal é a teoria do conhecimento como viséo ou contemplacao segundo a ‘qual a imagem sensfvel do objeto que se imprime erm nossa consciéncia traduz, sem a alteragio do sujeito cognoscente, o que € 0 objeto em si. Esse papel passivo, inativo, do sujeito, caracteristico do materialismo tradicional, é 0 que Marx tem presente ao mostrar a necessidade de substituir seu objetivismo por uma concepgao da realidade, do objeto, como atividade humana, como pratica, isto ¢, subjetivamente. O obje- to do conhecimento é produto da atividade humara, e como tal ~ nao ‘como mero objeto da contemplacao ~€ conhecido pelo homem. A critica de Marx ao materialismo tradicional, incluindo 0 de Feuerbach, baseia-se, portanto, em que, a seu jutizo vé no real, no obje- 10, 0 “outro” do sujeito, algo oposto a ele, em vez de consideré-lo subje- tivamente, como o produto de sua atividade.” ‘© conhecimento € 0 conhecimento de um mundo eriado pelo homem, isto é, inexistente fora da historia, da sociedade e da indiistria Isso é justamente o que ~ segundo Marx ~ 0 materialismo tradicional ignora, incluindo Feuerbach, Em contraposic&o a isso, o idealismo viu e desenvolveu 0 “lado ative’, a atividade subjetiva no processo de conhecimento. © sujetto no capta objetos dados, em si, mas produtos de sua atividade. Marx tom presente a concepeae idealista do conhecimento que Kant inaugu- 1a, e de acordo com a qual o sujeito conhece um objeto que ele mesmo produz. Marx reconhece o mérito do idealismo por ter assinalado esse papel ativo do sujeito na relagio sujeito-objeto, Mas essa atividade é ~na filosofia idealista ~ a do sujeito enguanto sujeito consciente, pen- sante; dat ser considerada abstratamente, ji que nio inclui 2 atividade pratica, sensivel, real ‘Essa homenagem que Marx rende ao idealismo, ao mesmo tem- poem que aponta suas limitagées, prova que a solncio para ele esti na superagio da posicio idealista e, de modo algum, em uma volta a ati- tude contemplativa, realista, ingénua, que justamente 0 idealismo viera demolir. Como este, Marx formula uma concepedo do objeto como pro- 70 0 que Maxx nos diz tio explictamente em suas Tees, express sem rodlos nesta pas ager de 4 ieologin alema qe dats ds mesma epocs: "Nao ve (Feuerbach) que © mundo Sensivel que o rodeia nfo ¢ algo direcamente dado desde toda uma eternidade e constant ‘ment igual cal mest, massim o produto da inddstria eo etaco soclal,.no sentido de que ‘Gum produto histrice, oresullado da atividade de toda ume série de gerngies. cada um ‘das quale se ergue sobre os homens da anterior, conta Jesenvolvendo sue insti © se lntereambio« modifies sua organlzacto social com eagde a novas necessiaes. AL os OD |etos da‘cerezs sensorial mais simples Ihe sio dados somente pelo desenvolvimento social ‘indsta ea toca comercla (C Marx e F. Engels, a idenloga alesana, op ci, 5.) aaa Fnosoria a PRAxs duto da atividade subjetiva, mas entendida nao mais abstratamente, € sim como atividade real, objetiva, material. Também como o idealismo, Marx concebe 0 conhecimento em relagio a essa atividade, como co- nhecimento de objetos produzides por uma atividade pratica, da qual satividade pensante, da consciéncia ~tinica que o idealismo tinha pre- sente ~ ndo podia ser separada, ‘A superacio do idealismo e do materialism tradicional havia de consistir, portanto, na negacéo da atitude contemplativa do segundo, as- sim como na negacio da atividade em sentido idealista, especulativo. A verdadeira atividade é revolucionria, ertico-prética; isto é, transforma dora e, portanto, revoluciondria, mas critica e prética a0 mesmo tempo, ‘ou seja, te6rico-pratica: te6rica, sem ser mera contemplacao, j4 que € a teoria que guia a acto, e prética, ou ago guiada pela teoria A critica —a teoria, ou a verdade que contém — nao existe & margem da praxis ‘Resumamos a contribuigao da tese I. Marx colocou a pratica como fundamento do conhecimento ao rejeitar a possibilidade de co- nhecer & margem da atividade prética do hamem (posigao do mate- tialismo tradicional) e ao negar também a possibilidade de um verda- deiro conhecimento se 0 objeto é considerado como mero produto da conseineia (posicto do idealismo). Conhecer & conhecer objetos que se integram na relagio entre o homem eo mundo, ou entre o homem e a natureza, que se estabelece gracas & atividade prética humana. ‘Appritica é fundamento e limite do conbecer e do objeto humant- zado que, como produto da ago, € objeto do conhecimento. Fora des- se fundamento ou para além desse limite esté a natureza exterior que ainda nao é objeto da atividade pratica e que, enquanto permanecer em sua existéncia imediata, vem a ser uma coisa em si exterior ao homem, destinada a comverter-se em objeto da préxis humana e, portanto, em ‘objeto de conhecimento. Marx no nega a existéncia de uma natureza A margem da préxis ‘ou anterior & histéria, mas a natureza que existe efetivamente para ele se d& apenas em e pela pritica. Desse modo, Marx aceita a prioridade ontolégica de uma natureza 4 margem da préxis que reduz cada vez mais seu Ambito para se transformar em natureza humanizada, Em A ‘deologia alema, Marx é bastante explicito ao sustentar que a praxis € 0 fundamento do mundo em que hoje nos desenvolvemes, sem que isso implique a negacéo de uma natureza anterior & préxis.”” E justamente 171%. que seria de ctneia neural, a no sor pel insti pelo comércio? Inclusive esta citncin natural ‘pars apenas adguire tanto seu Em como seu material somente gragas a0 ‘coméreioe& indintia, gras 8 eividade sensivel dos homens." Eacrescentase!". esta ‘ividade ese continuo leborare ciarsensives, esa produgso, a base de odo o mundo Sensive.”, Enquamto 2 natureza exterior, em si & argem da stivdade prtica de home, ‘diz um pouce mais adiante: cero que permanece dep, nso, a priordade ds natureza ‘terior Devesto, eta naureza anterior historia humana mo a natureza em se vive Feuerbach, mas sim ims naturers que, fora talver de wmantanta has de coral ausralianes mae | | Aconcergio a praxis rai MARX por ser fundamento do mundo real que hoje existe, a praxis proporcio- na & cigneia, ao conhecimento, nao s6 seu fim como seu objeto. Tudo isso reafirma 0 que Marx dissera antes nos Manuscrtos de 1844, a0 falar das relagdes entre 0 homem e a natureza ‘Assim, portanto, ao conceber 0 objeto como atividade subjetiva, como produto de sua ago, nfo nega por principio aexistencia de uma realidade absolutamente independente do homem, exterior a ee, isto é, uma realidacle em si. O que nega ¢ que 0 conhecimento seja mera con- templaco, a margem da pratica. O conhecimento 6 existe na pratica, e€oconhecimento de objetos nela integrados, de uma realidade que jf perdeu, owesté em vias de perder, sua existéncia imeciata, para ser uma realidade mediada pelo homem. Tal 6, a nosso jutzo, 0 verdadeiro sentido da ‘ese I a0 conceber 0 objeto como produto da atividade humana, e entender esta atividade real, objetiva, sensfvel, isto é, como prética. A PRAXIS COMO CRITERIO DE VERDADE (TESE 11) ‘Vejamos agora a tese II, cuja importancia ¢ capital, jé que nos faz ver © papel da pratica no conhecimento em uma nova dimensdo: nao s6 proporciona 0 objeto do conhecimento como também o critério de sua verdade. © problema da possibilidade de atribuir-se ao pensamento humano uma verdade objetiva nao é um problema te6rics, mas sim um pro- ‘blema pratico. E na pratica onde o homem deve demonstrar a verda- de, isto 6, a realidade e o poder, a terrenalidade de seu pensamemto, {A disputa em torno da realidade ou irrealidacle do pensamento ~ iso lado da prética ~¢é um problema puramente escoldstico.7® Infere-se essa tese da anterior. Se a praxis € fundamento do conheci- mento, isto é, se 0 homem apenas conhece un mundo na medida em que é objeto ou produto de sua atividade, e se, além disso, apenas 0 conhece porque atua, praticamente, e gracasa sua atividade real, trans- formadora, isso significa que o problema da verdade objetiva, ou seja, se nosso pensamento concorda com as coisas que preexistem a ele, no €um problema que possa ser resolvido teoricamente, em um mero con- fronto tedrico de nosso conceito com 0 objeto, ou de meu pensamento com outros pensamentos. Isto , no se pode fundar a verdade de um. pensamento se no se sai da prépria esfera do pensamento, Para mos- ‘rar sua verdade hé que sair de si mesmo, plasmar-se, ganhar corpo na {de recente formapao, js no existe hoje em parte alguma, nem ext tampoueo, portant, para Feuerbach" (C. Maree E. Engel, La ideoogia aloara, op ei, pp. ACT) TRC. Mars, Tse sobre ouerbach,op.clt, p. 634, FILosoma pa praxis propria realidade, sob a forma de atividade pratica. $6 entao, pondo-o em relagdo com a préxis, na medida em que esta se encontra impree- nada por ele, ¢ o pensamento, por sua vez, na préxis, um pensamento plasmado, realizado, podemos falar de sua verdade ou falsidade. na pritica que se prova e se demonstra a verdade, “o carter terreno”, do pensamento, Fora dela, nio verdadeiro nem falso, pois a verdade nao. existe em si, no puro reino do pensamento, mas sit, na pritica. Neste sentido, Marx diz que a disputa em torno de verdade ou falsidade (re- alidade ou irrealidade) do pensamento, & margem da prética, € uma. questo puramente escolastica, Isto ¢, ao julgara verdade ou a falsidade de uma teoria nao podemos isolé-la da pratica, ‘Mas como posso afirmar que a prética prova uma verdade, en- ‘quanto que outra demonstra a falsidade de uma teoria? Marx nao da ai luma resposta a essa questo. Mas podemos encontrar a resposta a par- tir de sua concepeao da prxis como atividade real, material, adequada fins. A ago transformadora da realidade tem um carater teleoldgico, ‘mas os fins que se pretende materializar esto, por sua vez, condiciona- dos, ¢ tém por base o conhecimento da realidade que se quer transfor mar. Se ao atuar se atingem os fins que se perseguiam, isso significa que ‘0 conhecimento de que se partiu para tragar esses fins é verdadeiro. E. nna acdo prética sobre as coisas que se demonstra se nossas conclusées teGricas a seu respeito so verdadeiras ou nao. Se, partindo de determi- nados jutizos sobre a realidade, nes propomos a alcangar certo resulta- do e este nfo se produz, isso significa que o juizo em questio era falso. ‘Mas é preciso ter cuidado ao interpretar essa relagdo entre ver- dade e aplicagdo venturosa, ou entre falsidade e fracasso, em um senti- do pragmético, como se a verdade ou a falsidade fossem determinadas pelo éxito ou o fracasso. Se uma teoria pode ser aplicada com éxito € porque era verdadeira, ¢ nilo ao contrério (verdadeira porque foi aplica- da eficazmente). 0 éxito nao constitui a verdade; simplesmente a toma transparente, ou seja, torna visivel que o pensamento reproduz adequa- damente uma realidade. Esse papel da pritica como critério de verdade nao deve ser en- tendido, por outro lado, no sentido de que proporcione de forma direta ¢ imediata esse critério de validade de tal modo que bastaria abrir os colhos ela, ou proceder a uma simples leitura da prética para que encon- tréssemos jnscrito nesta ~ como uma evidéncia ~o critério da verdade. Desse modo, a pratica nao fala por si mesma e os fatos praticos - como todo fato -tém de ser analisados, interpretatios, jf que nao revelam seu sentido a observacio direta e imediata, ou auma apreensao intuitiva. 0 critério de verdade esté na pratica, mas s6 é descoberto em uma relagao propriamente teérica com a propria pratica Essa intervengao da teoria para que a verdade inscrita na préxis se torne transparente é apontada por Marx, a nosso ver, na tese VI, nestes termos: “Todos os mistérios us AcONCERGAODA PRAXIS EM MARX que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solugéo racional na pritica humana e na compreensdo dessa prética’.™ Desse modo, as teses Te Ill estabelecem a unidace entze a teoria e a pratica em um duplo ‘movimento: da teoria para a prética, na tese Il, e desta tltima para a teoria (na tese VIII). Assim, pois, a concepeio da prética como crité rio de verdade opdc-st tanto a uma concepgao idealista do critério de validade do conhecimento, segundo qual a teoria teria em si mesma o critério de sua verdade, como a uma concepeao empirica segundo a qual a pratica proporcionaria na forma direta e imediata o critério de verdade da teoria Tal é 0 papel da pratica como critério de verdade, independente- mente das formas especificas que possa adotar nas diferentes ciéncias, assim como das limitagdes de sua aplicabilidade que impedem que fa- amos dela um critério absoluto de verdade. A PRAXIS REVOLUCIONARIA COMO UNIDADE DA MUDANCA DO HOMEM E DAS CIRCUNSTANCIAS (TESE Tit) Na tese IIT, enfatiza-se a pratica revoluciondria como praxis que trans- forma a sociedade ¢, com isso, Marx opde:se a concepeio materialista anterior da transformagao do homem, transformacao que era reduzida a.um trabalho de educagao de uma parte da sociedade sobre outra. ‘A tcoria materialista da mudanga das clrcunstiincias e da educagio lesquece que as circunstincias fazem os homens mudarem ¢ que 0 educador necessita, por sua vez, ser educado. Tem, pois, que distin- guir na sociedade duas partes, uma das quais se encontra colocada por cima dela. A coincidéncia da mudanga das circunsténcias com o da atividade humana ou a mudanca dos préprios homens, s6 pode ser concebida ‘eentendida racionalmente como pratica revolucionaria.”™ ‘Marx tem presente, aqui, a idéia da transformagao social sustentada pelos iluministas e materialistas do século XVIII € que Feuerbach ¢ os socialistas utdpicos, no século XIX, nao fazem mais Jo que continuar. De acordo com essa concepeio, 0 homem ¢ produto das cit= cunstancias, do meio; é determinado por este (leoria de Voltaire na Franca), mas néio rigorosamente, ja que junto com a influéncia do meio, admite-se a influéncia ainda mais decisiva da educagao, O Tu- minismo ~e particularmente o alemao com Goethe, Hender ~ concebe a transformagio da humanidade como uma vasta empresa de educa- ‘so. Essa concepeao da transformaco educativa da humanidade tem 73. Mary, Tesi sobre Feuerbach, op. itp. 635. (grifo nosso) 74 bid, p63, uaz Finosoria Da précs ‘como base a idéia do homem como ser racional. O progresso da hu- manidade exige a dissipagio dos pré-conceitos e o dominio da razao. Basta iluminar, esclarecer a consciéncia com a luz da razdo para que a humanidade progrida, entre na idade da razio e viva em um mundo construido segundo princfpios racionais. Aeducagso permite que homem passe do reino das “sombras", da “superstig&0”, ao reino da razo. Educar é transformar a humani- dade. Mas quem so os educadores que devem educar o resto da socie- dade? Sao 0s filésofos do Huminismo e os “déspotas jluministas” que escutam os conselhos desses filésofos. Ao resto da sociedade s6 cabe deixar que a conscigncia seja moldada a fim de que os homens possam vviver - como seres racionais ~ de acordo com sua prépria natureza, Essa concepsio da transformacao da saciedade acarreta a idéia do homem como uma matéria passiva que se deixa moldar pelo mefo ou por outros homens. A atividade sé é reconhecida em uma parte da societlade ~ 0s filésofos e os déspotas iluministas ~ e, por outro lado, & reduzida a uma atividade pedagogica, a influéncia que exercem os edu- cadores sobre os educandos. ‘Acessa concepeio que se encontra no fundo de toda tentativa de transformagéo da sociedade pelo caminho meramente pedagégico & ‘do pelo caminho pratico revolucionario, Marx opde uma critica que pode ser entendida da seguinte forma: a) os homens no 6 séo produto das ci-cunstancias, como estas também so produtos seus. Reivindica-se, assim, o condiciona- ‘mento do meio pelo homem, e com isso seu papel ativo em rela- ‘glo ao meio. AS circunstancias condicionam, mas na medida em ‘que nfo existem circunsténcias em si, 8 margem do homem, elas encontram-se, por sua vez, condicionadas; b) os educadores também deve ser educados. Rejeita-se, assim, a concepeao caracterfstica de uma sociedade dividida em duas: em educadores e em educandos, com a particularidade de que 0s primeiros permanecem subtraidos 10 processo de educagao. Por conseguinte, o sujeito da atividade educativa se encarnma em ‘uma parte da sociedade ~ por sinal minoritéria — 0 objeto — pro- duto passivo da sociedade -, na maioria. Desse modo, a tarefa de transformar a humanidade - concabida como educagao do género humano - fica nas mios de educadores que, por sua vez, ndo se transformam a si mesmos ¢ cuja misao é transformar os demais. Eles so, portanto, os verdadeiros sujeitos da hist6- ria; os demais seres humanos ndo sao mais do que uma matéria ppassiva que eles devem moldar. Ao se afirmar que os educadores também devem ser educados, rejeita-se que 0 principio do desen- volvimento da humanidade se encarne em uma parte da socie- 148 A coneurgko a praxis EM Maro: dade que nao exija também sua propria transformago, Tal era a concepso caracieristica da burguesia revolucionaria do século XVIII que se via, a si mesma, como o principio do desenvolvi- mento e do condicionamento histérico, ao mesmo tempo em que negava para si este desenvolvimento, Na tarefa da transformaglo social, os homens néo podem se dividir em atlvos e passives; por isso nto se pode acettar o dualismo de “educadores e educandas’. A negacio desse dualismo - assim como a coneepeio de tum sujeita transformador que permanece ele pro- prio subtraido & mudanga ~ implica a idéia de uma praxis incessan te, continua, na qual se transformam tanto 0 objeto como o sujeito, ‘Ao translormar a natureza ~ diré Marx em outro lugar ~ 0 homem twansforma sua propria natureza,"* em um processo de attotrans- formagio que jamais pode ter fim. Por isso, jamais poder haver educadores que nio requeiram, por sua ver, ser educados; 6) as circunstncias que modificam 0 homem s30, ao mesmo tem- po, modificadas por ele; o educador que educa de ser educado por sua vez. Fo homem, definitivamente, quem muda as circuns- tancias e muda a si mesmo. Atavés desse fundamento humano comum, coincidem a mucanca das circunsténcias e a mudanca do proprio homem. Mas essa coincidéncia sé pode ser entendi- da ~ diz Marx ~ como pratica revolucionsria. Na transformagao prético-revolucionéria das relagées sociais, c homem modifica as circunstincias ¢ afirma seu dominio sobre slas, isto 6, sua ca- pacidade de responder a seu condicionamento ao abolir as cir cunstincias que 0 condicionavam. Desse mao, como se trata, por um lado, de circunstincias humanas ~ relagdes sociais, eco- nomicas ~ ¢, por outro, os homens sao conscientes dessa trans- formagao e de seu resultado, a mudanga das circunstdncias nao pode ser separada da mudanca do homem, éa mesma maneira ‘que as mudangas que se operam nele ~ ao elevar sua consciéncia = nao podem ser separadas da mudanga das circunstncias. Mas essa unidade entre circunsténcias e atividade humana, ou entre transformacio das primeiras ¢ autotransformagao do homem, somente se realiza em e pela prética revolucionsta. ‘Ao enfatizar essa unidade, Marx se opée tanto ao utopismo que pensa que basta a educagio—isto €, um processo de autotranslormagie do hemem-, {a margem ou com anterioridade & mudanga das circunstancias de sua vida, paraproduzir uma mudanea radical de homem, comea um determinismo rigoroso que acredita que basta mudar as circunstancias, as condigbes de vida —a margem das mudancas na consciéncia através de um trabalho de 15 CE Et Capital, op. cit, p. 130 149 FILosorla Da pris educagao ~ para que o homem se transforme. A modificagao das clrcuns- ‘ancias e do homem, a consciéncia da mudanca do meio e da educaga ‘fo obtidas apenas por meio da atividade pratica revolucionaria, Apréxis, que nas duas teses anteriores aparecia, sobretudo, como ‘uma categoria gnoseolégica, converte-se, assim, em uma categoria so- ciol6gica que, diante do utopismo e do determinismo mecanicista, fixa as condigées de uma verdadeira transformacio social: mudanca das cireunstancias e do proprio homem. A unidace entre uma e outra mu- danga define, por sua vez, a praxis revolucionaria, Da INTERPRETAGAO DO MUNDO A SUA TRANSFORMAGAO (TESE X1) Deve-se situar a tese XI justamente em relacao A prixis revolucionéria, como ago sobre as circunstancias que ¢ inseparavel de uma ago sobre as consciéncias. Ela define a conexao hist6rica entre a filosofia e a ago ¢, por sua vez, a relagdo que o marxismo mantém com a prética, rom- pendo com toda a filosofia tradicional. 0s fil6sofos limitaram-se a incerpretar o mundo de distintos moos; do que se trata é de transformé-lo."* Nessa tese fala-se do mundo em dois sentidos: como objeto de interpre- tagdo, e como objeto da acdo do homem, de sua atividade pratica, isto 6, como objeto de sua transformagao. Em que relagao esté ou deve estar a filosofia com o mundo? Marx responde a essa questo em sua famosa tese XI: a filosofia deve relacionar-se com o mundo enquanto objeto de sua aco. Essa tese é perfeitamente congruente com tudo 0 que se disse antes e particularmente com as teses I e II que jé comentamos. Se o ho- ‘mem conhece o mundo na medida em que atua sobre ele de tal maneira {que no ha conhecimento a margem dessa relagdo pratica, a filosofia enquanto teoria nao pode se desvincular da pratica para se reduzir a mera visio, contemplagao ou interpretacio. Mas isso é precisamente 0 ‘que a filosofia fez até agora. Ainda que uma filosofia desse género pos- sa ter conseqiléncias priticas, estas se inscrevem sempre no marco de ‘uma aceitaco do mundo que contribui, por sua vez, para justificd-lo e sustenté-lo. A expresso mais acabada dessa filosofia ¢ justamente a que 86 aspira ~ como em Hegel ~ a dar razdo do que ¢ ¢ rejeita a tentativa de apontar caminhos para o desenvolvimentodo real, Trata-se ai nao de transformar 0 mundo, mas sim de reduzi-lo ao pensamento, isto é, de interpreté-Jo; uma vez terminada sua interpretagéo, o mundo nao pode ser modificado; admitir sua modificacao equivaleria a admitir algo que fescapa ao pensamento, e esse mundo nao pensado - levando em conta a tese fundamental de Hegel da identidade do pensamento e do ser ‘760, Marx, Bisis sobre Feuerbach, opi, p. 635. 150 A CONCEDGAO Da PRAXIS EM MARX ~ somente poderia ser um mundo irreal. Considerandlo-se que para He- gelo mundo é como deve ser, ndo ha lugar para uma realidade que seja objeto de transformacio. Sendo assim, quando se trata de transformar 0 -nundo, a primei- ra coisa que € preciso rejeitar é uma filosofia que, com suas consequién- cias préticas —como pura teoria ~, contribui para a accitagio do mundo ce, nesse sentido, opde-se a sua transformacso. Dai a necessidade de combater semelhiante flosofia, que ¢ justamente a filosofiaidealista ale- ma gue culmina — como tal filosofia da interpretacao~ no sé em He- gel como também em Feuerbach. Essa filosofia tem de ser combatida nfo s6 por ser mera teoria, mas precisamente porque sendo tal ~ uma teoria da conciliagio da raz4o com © mundo ~ tem conseqiiéncias que ultrapassam seu marco meramente teérico. Interpretar apenas & niko transformar; por isso, diz. Marx na primeira parte de suas Teses que “os fil6sofos limitaram-se a inierpretar 0 mundo”, o que equivale a dizer que se limitaram a aceité-lo, a justifics-lo, a nao transformé-o. Isto ¢, Marx nunca negou que uma filosofia, mesmo sendo ide- alista, faga parte da realidade; faz parte dela pelas conseatiéncias pré- ticas que tem enquanto teoria, Mas, ao rejeitar a filesofia que por ser mera interpretagfo aceita 0 mundo como ele é ¢ ne contribui para a sua transformaco, Marx no rejeita toda flosofia ou teoria. Se se trata de transformar 0 mundo, & preciso rejeitar a teoria que é mera interpre- taco c accitar a filosofia ou teoria que € pratica, isto é, que vé o mundo como objeto da pris. A flosofia¢ filosofia da transformagaa do mun- do; € teoria da praxis, no sentido de teoria ~ e, portanto, compreensio, interpretagio ~ que torna possivel sua transformagii. ‘A tese XI nao implica nenhuma diminuicao do papel da teoria ‘e menos ainda sua rejei¢do ou exclusto, Rejeita-se a teoria que, isola- da da prixis, como mera interpretagao, esta a servign da aceitacko do mundo. Reconhece ¢ eleva até o mais alto nivel aquela que, vinculada & rixis, estd a servigo de sua transformagio. A teoria assim conecbida se toma necesséria, como critica tedrica das teorias que justificam a nao transformagao do mundo e como teoria das condices ¢ possibilidades da acdo. Assim, portanto, nem mera teoria nem mera préxis; unidade indissoltivel das duas. Tal é 0 sentido iiltimo da tese XI. A tese XT mostra 0 ponto em que se verifica a ruptura do pen- samento de Marx com todo 0 pensamento filoséfico anterior. B af que aparece 0 marxismo como uma revolugto que abala a problematica, © objeto e a funcio da filosofia. Nao sé interpretar, mas transformar Mas ~ é preciso enfatizar mais uma vez trata-se de transformar com ase em uma interpreiagao. Ora, essa interpretagac exigida, por sua ver, pela transformagio do mundo nao pode ser outra além de uma interpretacdo cientifica. Desse modo, a passagem da interpretacio & transformacdo, ou do pensamento a ago, implica, per sua vez, uma re- 151 FILosoria pa PRAMS volugio te6rica que 0 marxismo deve levar a cabo com relagio a praxis revoluciondria do proletariado: a passagem do socialismo como utopia ou ideologia ao socialismo como ciéncia.” ‘Reduzir 0 marxismo a mera interpretacio, mesmo que apresen- tado como uma ciéncia, quando do que se ‘rata é de transformar 0 mundo, significa permanecer dentro dos limites te6ricos que o préprio, ‘Marx assinala e denuncia na tese XT sobre Feuerbach. A PRAXIS EM A IDEOLOGIA ALEMA A transformacao da teoria, isto é, sua transformagiio de utopia (ou ide- ologia) em ciéncia, ¢ condicao indispensavel da préxis revolucionéria. Por isso, Marx buscar superar as limitagées do cariter antropolégico, uut6pico ou ideol6gico que suas obras de juventude revelam. A ideologia alema, escrita em 1845 em colaboracao com Friedrich Engels, constitu ‘uma etapa decisiva nesse processo de transformagdo do socialismo em. ciéncia. Mas nio se deve esquecer que a vireda que essa obra produz ao elaborar conceitos chave para interpretar ¢ histéria e, em particular, 1 sociedade capitalista, corresponde a exigéncias da praxis. Por isso, a concepgéo materialista da histéria, cujos alicerces so langados nessa obra, nao pode ser concebida como uma mera interpretacao da historia, ‘mas sim em estreita relagdo com a teoria da prixis revoluciondria, na ‘medida em que as condigdes objetivas —historicas, econOmicas e sociais ~funcam e tornam possivel a ado revolucionaria do proletariado. ‘Trata-se nao de criar a consciéncia de um fato existente, mas sim de derrubar 0 que existe, de transformar as coisas. Levando em conta essas exigencias da praxis, explice-se a atengio que Marx (e Engels) concede novamente em A ideologia alemd aos jovens hegelianos e, em particular, & historiografia idealista alema de seu tempo. Na verdade, no se pode desenvolver uma verdadeira ago real enquanto se confia ilusoriamente no poder das idéias e estas aparecem desvinculadas de seu verdadeiro fundamento econdmico-social. Daf a necessidade de ex- plicar a verdadeira natureza das formacées idzol6gicas, sua origem, sua fungio e o caminho para dissipé-las. Trata-se ~ diz Marx ~ de “explicar as formagées ideolégicas com base na pratica material” ¢ no de “ex- 77 Ao longo de toda sua vida e obra Marx e Engels mantim st fits & concept da neces: Sidade de transfarmar 0 soclalisma de utopla em clencia por razbespratias, Assim, pot tempo, no folheto de F Engels, excrto em 187, e que ele initulou inequivecadamente Do socialism uidpico ao sovalismo cientfico, s¢ d4 esa caracierizagio do socialim0 lentico, na qual re evidenca claramente 0 conte lesrieo-prtica de mmarxsmo: "O oclallsmo cienifico, expresso tries da movimento proletério, 0 chamadoa investiga 1s condigdes histéricase, com isso, a prépria natureza desse ato [a revolugio proletria, infundindo deste modo a classe designada a fazer essa revolugto, a classe hoje oprimiéa, ‘conscigncia das eondigoes e da matureza de sua propria ago" (ct. Marx e Engels, Obras sseogdas, op 0, tomo Il, p. 144.) 152 | A CONCEPGRO na paces ext Manx icar a prética partindo da idéia’.” A erftica, isto 6, a ago das idéias F406 a forga motriz da hist6ria, como pensam os jovens hegelianos; tal - farea € para ele a ago real, efetiva: a revolugao.”” |A PRODUGAO NA HISTORIA E NA VIDA SOCIAL -pssa anilise da verdadeira natureza ¢ fungi das idéias esclarece o lu- ‘em que se opera a transformago real do existente. A destruigio Gas “ilusdes ideol6gicas” aparece em Marx como condicéo necesséiria para elaborar uma teoria da transformagio revoluciondria da socieda- fe existente. Desa maneira, a propria vinculago entre essas ilusdes € fas condigOes reais da vida social assinala, por sua vez, a necessidade de conhecer as condigées reais, materiais que, por um lado, fazem 0 ho- mem e suas idéias e que, por outro, deverao ser transformadas com sta acho real. “As circunsténcias fazer o homem - dizem Marx e Engels “the medida em que este faz as circunstancias’.® ‘A anilise dessas circunstncias leva Marx a assinalar ~ enrique- cendo e desenvolvendo as idéias expostas nos Manuscritos de 1844 — 0 papel da produco na histéria e na vida social. © homem se diferencia do anitnal por sua atividade produtiva e, nesse sentido, a produgaio nao um trago entre outros da existéncia humana, e sim umn trago essencial Podemos distinguir o homem dos animais pela consciéneia, pela re- ligiao ou pelo que se quiser: Mas 0 préprio homem se diferencia dos animais a partir do momento em que comega a produzir seus meios, de vida, passo este condicionado por sua organizagdo corpérea. Ao produzir seus meios de vida, o homem produz indiretamente sua propria vida material." Esse papel fundamental da produgao explica também o modo de ser dos individuos. ‘Tal e como os individuos manifestam sua vida, assim 0 so. 0 que so coincide, por conseguinte, tanto com 0 gue produzem quanto ‘com 0 modo como produzem. O que os individuos sao depende, por: tanto, das condigdes materials de sua produgao." ‘Vemos, portanto, que o papel da produgio ~ como “condigao funda- ‘mental de toda hist6ria” ~ implica nao s6 a produgao de bens materiais, TSC, Marie F. Engel, La ideale alemane, op. cit p38. 79 °A forea propulsora da histri, inclusive da vligto,o flosoa,e toda outra teori, rio € a enti, e sim a revlugso" (bid, p. 39.) 0 bi Bi bud, p19. 2 ibid, 153 Fiosort Da PRs emeios indispenséveis para a satisfacao de necessidades humanas, bem como produz o préprio homem, sua vida social. Com isso, Marx intro- duz dois conceitos fundamentais do materialismo histérico, ao mesmo tempo em que os vincula entre si: Forgas produtivas erelagdes de produ gf (que Marc ainda chama de “forma de troca”). As forgas produtivas determinam as relagbes de produgao que, por sta ver, condicfonam as formas ideoldgicas ¢ o Estado. Tal é a tese fundamental da concep¢ao materialista da historia que Marx formula pela primeira vez em A ideo- logia alema nos seguintes termos: ssa concep da histria consists, porto, em expor o processo real de produgio,partindo para isso da produséo material da vida imediata, «em conceber a forma de trac correspondentea esse modo de proc ‘80 e por ele engendrada, isto é, a sociedade civil em suas diferentes fa- Ses como o fundamento de toda s histra,spresentando-a em sa 250 tenguanto Estado e expicando com base neste todos 0 diversos procks- tos tedricos formas da consciécia, eisio, losofia, moral, ete”? NECESSIDADE DA PRAXIS REVOLUCIONARIA Apesar da imprecisio da terminologia, Marx caracteriza as relagées de produc, ou relagoes que os homens contraem no processo de produ- ‘do, como relacdes sociais que esto em consonancia com o desenvol- vimento das forcas produtivas. Esse desenvolvimento dialético tanto de ‘umas como de outras constitui o elemento fundamental da historia hu- ‘mana, cujo desenvolvimento origina a passagem de determinadas forgas produtivas e relagGes sociais a outras. Trata-se de um proceso objetivo ‘que se realiza necessariamente, com independéncia em relagio & vonta~ de e as intengbes dos individuos, em virtude do qual as forgas produtivas que se desenvolvem sob 0 acicate das necessidades da sociedade engen- dram um tipo de relagdes de produgéo ("formas de troca”) que, por sua ‘vez, em uma complexa vinculagdo dialética, influem no desenvolvimen- to das forcas produtivas. Na medida em que as relagées de producao se converte em um entrave para o incremento das forcas produtivas, produz-se uma contradicdo que reveste a forma de um antagonismo de classes. © agugamento dessa contradipao torna necessaria a revolugao, que surge, assim, como uma atividade pratice dos homens ~ mais exa- tamente, do proletariado ~ condicionada por zerto nivel de desenvolvi- mento das forcas produtivas e da contradigo correspondente com as relagdes de producao. © comunismo aparece, por sua vez, como uma solucio nfo utépica, e sim cientifica, isto é, a solucso que corresponde a certas condiges histéricas e sociais, no marco das quais a ago dos ho- 83 bid, 38 154 A-concergko 2a nds eM Mans ‘mens ~ como revolugao proletaria - tem um fundamento hist6rico, real objetivo. “O comunismo nio € um estado que deve ser implantado, um ideal a0 qual a realidade tenha de sujeitarse. Nés chamamos comunis- ‘mo a0 movimento real que anula e supera o estado de coisas atuais.”** ‘A necessidade da praxis revolucionéria que conduz a essa solu- ‘gao nfo surge de uma contradicao entre a histéria e a verdadeira essén- ia humana, mas sim de uma contradigo entre as fergas produtivas € as relagbes de producdo, 0 proletariado nao é agora o ser que encarna osofrimento humano universal, ou o trabalhacor quenega sua esséncia humana no trabalho, mas sim, antes de tudo, o membro de uma classe social que, pelo lugar que ocupa na producio, e por estar vinculado 2 forma mais avancada de produgao, entra em conflito com a classe dominante e, ao adquirir a consciéncia da necessidade da revolugéo, leva-a a cabo para abolir 0 dominio de todas as classes, abolindo as préprias classes. “A classe revoluciondria aparece de antemao, apenas pelo nico fato de contrapor-se a uma classe, néio como classe, mas sim como representante de toda a sociedad, como toda a massa da socie- dade, diante da tinica classe, a classe dominante”.* A CONCEPCAO MATERIALISTA DA HISTORIA E A TEORIA DA PRAXIS Vemos, portanto, que a interpretagao materialista da historia, cujos conceitos fundamentais se esbocam em A ideoiogia alemd, assim como a teoria da praxis revolucionaria, nela oferecida, encontram-se em es- teita vinculagao, como dois aspectos inseparaveis deuma doutrina que Marx Engels apenas iro enriquecer e desenvolver no futuro. Essa unidade se manifesta claramente nos quatro pontos em que os funda- dores do marxismo resumem sus concepeio da histécia, e que, por sua clareza e precisfo, transcrevemos integralmente a seguir: 1) No desenvolvimento das forgas produtivas, chegase a uma fase em que surgem forcas produtivas # meios de troca que, sob as relagbes ‘existentes, s6 podem ser fonte de males, j que nfo sto mais forgas de producio, ¢ sim muito mais forcas de destruicso (maquinaria € dinheiro);, intimamente relacionada com isso, surge uma classe con- denada a suportar todos os inconvenientes da socisdade sem gozar de suas vantagens, que se vé expulsa da sociedade e obrigada a colocar se na mais resoluta oposisao a todas as demais classes; uma classe que forma 2 majoria de todos os membros de uma sociedade e da ‘qual nasce a conscigncia de que é necesséria uma revolugao radical aconsciéneia comunista, consciéneia que, naturalmente, pode chegar a formanse também entre as outras classes, a0 ccntemplar a posicso 84 bid 36. 85 tid, . 50. Frrosoria Darrius fem que esta se encontra colocada; 2) Que 2s condigdes em que podem ser empregadas determinadas forgas de produgao sao as condigoes da dominagio de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, emanado de sua riqueza, encontra sua expresséo idealista-pri- tica na forma de Estado imperante em cada caso, razao pela qual toda luta revoluciondria é necessariamente dirigida contra uma classe, a ‘que até entio domina; 3) Que todas as revolugées anteriores deixaram Intacto 0 modo de atividade e s6 trataram de conseguir outra distri- ‘buigdo dessa atividade, uma nova distribuigao do trabalho entre ou- ‘tas pessoas, ao passo que a revolugao comunista é dirigida contra 0 modo anterior de atividade, elimina o trabalho e suprime a dominacao das classes a0 acabar com as proprias classes, ja que essa revolugao é levada a cabo pela classe que a sociedade nao considera como tal, no reconhece como classe e que ja expressa por si a dissolucio de todas as classes, nacionais, etc., dentro da atua! sociedade; 4) Que, tanto para engendrar em massa essa consciéncia comunista, como para le- var adiante a coisa mesma, é necesséria uma transformacio em mas- sa dos homens, que s6 poderd ser obtida mediante um movimento prético, mediante uma revolupfo; e que, por conseguinte, a revolugo Bo s6 € necesséria porque a classe domtirante nao pode ser derruba- da de outro modo, como também porque somente por meio de uma revolucio poderd a classe que derruba sair do lodo em que se afunda & ‘tornanse capaz de fundar a sociedade sobre novas bases." Encontramos nesse texto: 1) o cardter hist6rico ¢ objetivo da contradi- ‘cdo entre forcas produtivas e relagdes de preducio cuja solucso (con- sondncia das relacées de producao com as forcas produtivas com base na aboligao da propriedade privada) s6 pode ocorrer por meio de uma classe social engendrada pelo préprio desenvolvimento social e a cujos interesses de classe esta vinculada a consciéncia da necessidade dessa solugao e da luta revolucionaria para impé-la: 2) a correspondéncia das relagdes de producgo com as forgas produtivas acarreta a Juta contra a classe dominante ¢ contra 0 poder social - 0 Estado ~ que emana de seu poder material; 3) essa revolucdio proletiria se distingue de todas as anteriores por nao significar a abolicao de determinada propriedade sobre os meios de produgo, mas sim da propriedade privada em geral, pond fim a toda dominagao de classe; ¢ 4) a revolugdio comunista no 6 significa a transformagao das relagbes eccndmicas e politicas como ‘também a transformagio em massa dos homens (a criagdo em massa de uma consciéncia comunista). A revolugdc no s6 € necesséria para derrubar a classe dominante, como também porque s6 assim a classe revoluciondria pode criar uma nova sociedade. 86. MarceF Engels, La ideologtaalemana, op. ct. pp.77-78. 156 A.concEPGhO 38 PRAXIS Hm MARX A idéia fundamental dos Manuscritos de 1844 sobre o papel do trabalho na formagao do homem se coneretiza ¢ eleva em A ideologia alemfi a0 ser mostrado o papel determinante da producao na histéria numana e na vida social. E esse processo de formacéo do homem que constitui 0 contetido da histéria nao se revela mais como contradicao entre o homem e sua esséncia, mas sim como contradico entre as for- ‘as produtivas e as relages sociais de producdo. A clienagio que nos Manuscritos se apresenta como negacéo da esséncia humana do traba- Thador no trabalho dexa de ter o papel central que tinha em tal obra e ‘comeca a revelar-se como coisificagao das relagbes sociais. O antago- nismo de classes que nos Manuscritos aparece fundado debilmente pelo modo de apropriaco do produto no trabalho alienado, em A ideologia ‘lemd aparece como expresso necesséria da contradico entre as for ‘gas produtivas e as relagées de producto. No que diz respeito a praxis, aps estabelecer o cardter originério fundamental da praxis produtiva, sio apontadas, por sua vez, as rela- goes entre as diferentes formas de atividade, inclusive a atividade ideo- logica. Quanto a préxis revolucionéria tendente & transformacao pratica da sociedade, ao destruir as ilusbes que a ideologia e outopismo plantam nesse terreno e formular sua concepeao materialista da historia, Marx (e Engels) assinala na prépria estrutura da sociedade e no movimento da histéria, na contradigo entre forcas produtivas e relagées de producao, © proprio fundamento da praxis revolucionaria. Essa praxis nao se da na esfera da aventura ou da utopia; é determinada, e em A ideologia alemd “em sua concepeo materialista da hist6ria ~jé se poe o acento na estru- tura e nas condigdes reais, objetivas, que determinam a revolucao. Desse modo, essa praxis revoluciondria, como explicitada nas Teses sobre Feuerbach, nao & atividade prética pura, mas sim o terreno em que se opera a unidade do pensamento ¢ da agio. Se em A iddeo- logia alema se diz que a histéria humana é, acima de tudo, a histéria da produgio e que essa hist6ria condicfona uma préxis revolucionsria, ‘em as Teses sobre Feuerbach assinala-se 0 carter racional da praxis e, portanto, a unidade entre a teoria e a pritica. Nao basta definir as con- digdes da préxis revolucionaria ~ como o faz a conc=p¢ao materialista da historia ~ mas é necessdrio apontar 0 caminho para que essa praxis condicionada histérica e socialmente se converta em uma realidade. E necessério passar da consciencia da revolugdo, inscrita como possibili- dade na propria estrutura social e no movimento histérico, & revolucao real, efetiva, E necessério elaborar uma teoria conereta da revolusao como passagem indispensavel, em virtude da unidade entre teoria € pratica, para transformar as relagdes sociais existentes. ‘A teoria jé no seré tanto a andlise de uma estrutura social que condiciona a revolucao - tarefa levada a cabo em A ideologia alema ‘mas sim, a teoria da revolucao que se quer desencadear, teoria que de- 157 Finosoria Da praxis termina ages ao esclarecer os objetivos, possibilidades e forgas sociais participantes, Cumpre também a fun¢So que antes haviamos assinala- do de fundamento da ago, mas, por sua ver, deve contribuir para isso climinando teoricamente os obsticulos que se opéem a ela, que tentam invalidé-la ou refreé-la. Nesse sentido, a teoria cumpre a outra funcao, critica que antes haviamos assinalado. © PROBLEMA DA PASSAGEM DA TEORIA A ACAO EM 0 MANIFESTO Ainda que a teoria seja formulada com essa dupla vertente (como fun- damento de ages reais e como critica teérica), nto deixa de ser teo- ria, Isto €, nao é atividade prética per se. 14 diziamos anteriormente ‘que mesmo as teorias mais distanciadas da praxis, isto é, aquelas que aspiram pura e simplesmente a interpretar o mundo, nao deixam de ter, por isso, conseqiténcias préticas, na medida em que contribuem praticamente para impedir ou obstaculizar essa transformagao. Mas ‘quando se trata de transformar 0 mundo, quando se pretende que a teoria se plasme em uma atividade pratica como guia da acao, a teoria mais revolucionéria nunca deixa de ser mera teoria enquanto nao se realiza ou se materializa em atos. Da atividade te6rica € preciso pas- sar & pritica, mas a primeira por si s6 niio pode dar esse passo. Isto é, ‘quando se estabelece uma unidade consciente entre teoria e praxis -e essa unidade no se reduz a unidade entre a teoria e as conseqiiéncias praticas que espontaneamente ela pode ter -, no se passa direta € ‘imediatamente de uma esfera a outra. Se a teoria nao quer permane- cer como simples teoria ~ e € evidente que uma verdadeira teoria re- voluciondria no pode permanecer nesse plano meramente teérico -, deve superar a si mesma, materializar-se. Mas como se torna prética? ‘Como se materializa? Como se converte em atos que se integram em ‘uma praxis total? Para essas questdes, nao encontramos resposta nos trabalhos de Marx examinados até aqui. Essas questées s6 sfio formuladas ¢ 36 tem resposias adequadas quando surge a necessidade de transformar © mundo efetivamente, isto é, de realizar a revolucio; quando esta nao € apenas uma tarefa teérica, mas, acirra de tudo, prética, Marx € Engels respondem a essas questées no Manifesto do Partido Comuis- ta. O Manifesto foi redigido por Marx e Engels em uma época em que esto empenhados em uma atividade revoluciondria e relacionam- se com um grupo de homens que, como eles, querem transformar 0 mundo e com esse fim se organizaram nz Liga dos Comunistas. 0 Manifesto € obra de encomenda; com efeito, sua redagao, apés urna série de projetos, circulares e questionarios formulados na Liga, Ihes foi encarregada pelo seu Comité Central. E um documento encomen- dado por homens que querem realizar uma revalucaa e é dirigido aos 138) A.cONGERCKO Dx praxis a1 MARK proletérios; ou seja, aqueles que devem constituir sva forga motriz, Trata-se, portanto, de um trabalho tedrico vinculado intimamente a necessidades préticas, revolucionérias. Por tratar-se de um trabalho tedrico destinado a guiar uma revolucdo concreta, efetiva ~ a revolu- io proletéria -, é em primeiro lugar uma teoria dos fins da revoluso, ‘baseada por sua vez em um conhecimento da realidade social que se quer transformar, e é também uma fundamentagao dz necessidade da ‘mudanga revolucionaria e da missao histérica que nela cabe ao prole- tariado. O Manifesto é, nesse sentido, teoria de uma revolusao que se quer desencadear. E teoria na medida em que fundamenta, de diver- 08 Angulos, a revolucao proletéria e na medida em que, como critica, se opSe as falsas concepeées que contribuem para obstaculizé-la ou impedi-la, Em certo sentido, 0 Manifesto nada mais é do que uma sintese e enriquecimento das descobertas tedricas anteriores de Mars. No entanto, no é uma teoria a mais da revolugdo. Oferece um aspecto novo que vem determinado por algo que nao tem antecedentes nos trabalhos anteriores de Marx, a saber: ao mesmo tempo em que é uina teoria da revolucao € também ~ ¢ isso marca uma virada radical na concepcao marxista da praxis ao enriquecé-la com um aspecto novo ~1uma teoria da organizago da revoluc4o ou, em outros termos, da passagem da teoria para a prética. (© Manifesto , 20 mesmo tempo ¢ em estreita unidade, um do- cumento teérico e pratico: tedrico, na medida em que seus principios, para além da conjuntura precisa que os inspira ~ a revolugio iminen- tena Europa -, fundamentam a préxis revoluciondria do proletariado; prético, na medida em que traca uma linha de acto, estratégica e tatica, ¢ formula-se também uma teoria da organizacio que permita dirigir e aglutinar os esforgos dos proletérios de acordo com os fins € as condi- goes da revolucéo. ‘Em consonancia com essas exigéncias que, defnitivamente, so as de fundamentar a necessidade historica da praxis rvoluciondria e a possibilidade objetiva do proletariado de levé-la a cabo, encontramos xno Manifesto: caminhos te6ricos do desenvolvimento histérico, da revo- lugdo como revolucao especifica, proletiria e do agente histérico revo- lucionério, o proletariado, assim como uma concepsio da estratégia € da tatica da revolugao e, finalmente, uma critica das falsas concepgdes do socialismo e comunisme como objetivos da revoluzio. Detenhamo-nos, brevemente, em alguns desses aspectos BTC. Maine F Engels, Manifesto dl Partido Contmista, radu expan, em €. Marx eF Engels, Obras Escopdes, em tres tomos, Mosc, Progresso, 1873, 1 [A tradugao ‘mais recente de Leon Mames, em OME 9: Manifesto del Partido Conse, Arcus dels "Nueva Gace Renn” (7847: junio 1848), Barcelona, Cea, 1973] 159) Fixosoria pa Priva O DESENVOLVIMENTO HISTORICO Marx e Engels reafirmam no Manifesto 0 que jé identificaram em A ide- ologia alema, a saber: que todos os conflitos tm sua origem na contra- digo entre forgas produtivas e relagdes de producao, contradigto que se traduz necessariamente em revolugdo. Essa dialética ¢ apresentada na sego I ao expor-se 0 desenvolvimento histérico da burguesia em sua luta com as relac6es feudais de producto, assim como 0 conflito moderno entre as forgas produtivas ¢ as relagdes burguesas de produ- so. “Ha décadas, a histéria da industria e do comércio nfo é mais do {que a histéria das forgas produtivas modernas contra as atuais relacdes de propriedade, contra as relag6es de propricdade que condicionam a existéncia da burguesia e sua dominacao”. # certo que mal se abre o Manifesto também se diz: “A historia de todas as sociedades até agora tem sido a hist6ria da luta de classes", co que pode criar a impresséo de que a Iuta de classes € 0 fator determi- nante do desenvolvimento histérico. “Mas faz algumas décadas, a his- {6ria da inddstria e do comércio no ¢ mais do que a historia das forsas produtivas modernas contra as atuais relagées de propriedade, contra as relagdes de propriedade que condicionam a existéncia da burguesia ede sua dominacio”, 1 idéia fimdamental que penetra todo 0 Manifesto, a saber que: a produgio econdmica e a estrutura social que dela se deriva neces sariamente em cada época histérica constituem a base sobre a qual descansa a histéria politica e intelectual dessa epoca; ... portanto, toda a historia (desde a dissolucao do regime primitivo de proprie~ dade comum da terra) foi uma histéria ce luta de classes explorado- ras e exploradas, dominantes ¢ dominadas, nas diferentes fases do desenvolvimento social; e que agora essa luta chegou a unsa fase em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) nfo pode mais emanciparse da classe que a explora e @ oprime (a burguesia) sem femancipar, ao mesmo tempo e para sempre, a sociedade inteira da exploracio, da opressao e da luta de classes .."" Nao hé nada no Manifesto que permita fundar a idéia de que a luta de classes é o fator hist6rico determinante como se depreenderia de uma leitura economicista do texto. Semelhante leitura estaria em contra dicdo nao sé com o sentido que impregna todo 0 Manifesto, ao desta- car o papel ativo da burguesia e, especialmente, do proletariado nas mudangas politicas, como também com manifestacdes inequivocas de 88 Bil, p16. {59 F Engels, “Prefaci al eicidn alemana de 1883", en C. Marke F Bagels, Obras e5co- sides, op ct, 1 pp. 102-103. [CE OME 9, pp. 375-376) 160 A CONCEP GAO Da Prax EE MARK Marx e Engels no mesmo texto, Com efeito, tanto ao ¢ inelutavel 0 processo econdmico e o desenlace da luta de classes como sua expres- so, que essa Iuta pode levar a resultados diametralmente opostos *... a transformagéo revolucionéria da sociedade ou a derrubada das classes em pugna’.”” No Manifesto se expoem a origem, o desenvolvimento, a posi- gfo © 0 papel das duas classes fundamentais da sociedade burguesa (seco I: “Burgueses ¢ proletarios"). 0 enfogue da durguesia é hist6- rico: € 0 produto de uma evolucso vinculada as mdancas operadas no terreno econdmico. Do ponto de vista politico, foi evoluindo do estamento oprimido na sociedade feudal até que “depois do estabe- Iecimento da grande indiistria e do mercado universal, conquistou finalmente a hegcmonia exclusiva do poder politico como o Estado sepresentativo moderno”.”" © enfoque historico permite ao Manifesto oporse ao ponto de vista proprio da economia politica burguesa segundo o qual as relac6es burguesas so eternas e, portanto, poderiam escarar a sua transfor magao e desaparicio; igualmente, 0 leva a rejeitar a condenagao do capitalismo com um critério moral, exclusivamente pela miséria e pelos sofrimentos que engendra, Frente a toda apologia ou negagao absoluta, © Manifesto reconhece que “a burguesia desempenhou na historia um papel altamente revolucionario” * ao revolucionar incessantemente a produgao, ao estendé-la a escala mundial e criar imensas forgas produ- tivas “mais abundantes e mais grandiosas do que as de todas as gera- bes passadas juntas". Através de seu proprio desenvolvimento hist6rico, a burguesia cria as condigdes para sua propria desapari¢fo: as armas (as forgas produ- tivas) os homens (os proletérios) que hio de destruf-las.%* Com esse tratamento histérico, o proletariado se apresenta como produto do de- senvolvimento capitalista e, ao mesmo tempo, como condicéo para a existéncia do capitalista. © desenvolvimento capitalista (acrescentamen- to do capital, extensao do emprego das méquinas, divisao crescente do trabalho, etc.) agrava as condicdes de vida do trabalhador até um ponto em que se prova que a burguesia jé nfo pode continuar dominando e que sua existéncia se tornou incompativel com a da sociedade, ‘Na caracterizagio da situagéo do trabalhador jé nfo encontramos 6s elementos antropolégicos que ainda se faziam presentes em A Sagrada 90 Manifesto, op cit. p. 91 bid, p13 82 phi, 93 mid, 115, 94 bid, p_ 117 16. Friosoria pa précas Familia. Ao final da Secao I, enfatiza-se vigorosamente a determinacio ‘objetiva de sua situagao e de sua missao histérica revolucionaria, © progresso da indéstria, de que a burguesia ~ incapaz de opor-se a ele — é agente passivo e inconsciente, substitui o isolamento dos trabalhadores, decorvente da concorréncia, pela sua unido revolu- cionéria através da associacio. Com 0 desenvolvimento da grande indstria, portanto, a base sobre a qual a burguesia assentou seu re gime de producio ¢ apropriacao dos prodvtos € solapada, A burue- sia produz, antes de mais nada, seus proprios coveiros. Seu declinio a vit6ria do proletariado sio igualmente inevitéveis. * esse modo, 0 préprio desenvolvimento do zapitalismo atenta con- ‘a sua existéncia, torna necessdria sua transformago e produz 0 seu agente: 0 proletariado como coveiro da burguesia. Cumpre essa funcao fem um processo revolucionario cujo fundamento objetivo é "a rebeligo das forgas produtivas modernas contra as atuais relagées de producao, contra as relagdes de propriedade que condicionam a existencia da bur- gutesia e sua dominacao”.» Mas essa rebelidio no nivel econdmico no € ainda a revolugdo no plano politico como passagem do poder das maos dda burguesia as do proletariado. Uma no leva mecanicamente & outra, como prova o fato, registrado em o Manifesto, de que a “rebeliao das forcas produtivas” se vinha dando “hé algumas décadas” enquanto a mudanga politica, a revolugao proletaria, que € 0 passo que se aspira ‘ax, ainda nao se dew, A REVOLUCAO PROLETARIA A revolucdo proletaria é a forma mais alta, historicamente, da praxis revolucionaria. No Manifesto, 6 concebida como um processo no qual se destacam tres aspectos, elementos ou fases dificilmente separdveis: a) aconquista do poder politico; b) a organizacao do proletariado como classe dominante (como novo poder politico); ¢ c) a utilizagao desse novo poder para transformar radicalmente o modo de produgao, Esse processo pritico revolucionario é também tm proceso de ruptura e organizacio; isto &, nao pode ser reduzido ao “primeiro pas- 50": a conquista do poder politico. Mas vejamos mais detidamente as formulagdes do Manifesto: “A revolucio comunista é a ruptura mais radical com as relagdes de propriedade tradicionais; nada de estranho ha em que, no curso de seu desenvolvimento, rompa de maneira mais, radical com as idéias tradicionais”.” Aqui se enfatiza claramente o ele~ 95 Ibid p12 96 Bid, p18 97 hi, p. 128. we A conenngio pA praia emt Man mento de ruptura como um ato global ¢ dinimico que abarca tanto as relagdes de produgio como as velhas idéias, Entendida em sua ra- dicalidade profunda, requer-se como “primeira passa” a conquista do poder politico pelo proletariado, a derrubada da dominagao burguesa @, conseqtientemente, a organizacso do proletariado como classe do- minante. ‘O primeiro passo da revolugao trabalhadora é a elevagao do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia’ Uma vez conquiistado 0 poder politico, 0 proletariado usa sua dominagao politica para aprofundar a ruptura ao longo de todo 0 pro- cesso revoluciondrio. “O proletariado se valeré de sua dominacéo para ir subtraindo gradualmente da burguesia todo o capital, para centra- lizar todos os instrumentos de producio nas mios do Estado, isto é, do proletariado organizade como classe dominante ¢ para aumentar com a maior rapidez possfvel a soma das forgas produtivas".” Fica cla- ro, pois, que se trata da fase do processo revolucionério na qual, j4 conquistado 0 poder ~ como organizacao do proletariado em classe dominante ele é usado para incrementar as forgas produtivas e trans- formar na raiz as relagdes de producio. Por isso, acrescenta imediata- mente: “Isso, naturalmente, nao se poder realizar a principio a nao ser por uma violagio despética do direito de propriedade e das relagoes burguesas de produgao ... que no curso do movimento ultrapassarao a si mesmas e sero indispensdveis como meio para transformar radical- mente o modo de producio"."® Ac longo das passagens anteriores, foi-se perfilando uma definicao do poder politico, ou do Estado, que enfatiza o elemento de dominasao. Certamente, ao conguistar 0 poder politico, 0 proletariado se organiza como classe dominante. £, através dessa organizac&o, o nove pader com- parte o que é proprio de todo poder politico: o ser “violencia organizada de uma classe para a opressao de outra’. Mas trata-se, por seu contedido, de uma violéncia especial, j4 que é compativel com 0 que, nos poderes politicos anteriores, mantém-se excluido: a democrasia, Com efeito, no ‘Manifesto “a elevacao do proletariado a classe dominante” que é a "vio- encia organizada”, de classe, conjuga-se claramente com “a conquista da democracia”. Desse modo, ficam claramente marcados, em sua unidade indissolivel, os dois aspectos essenciais do conceito classico de ditadura do proletariado que Lenin retomara em O Estado e a revolugfo, Arrevolugao proletatia é, como vimos, um provesso de ruptura ra- dical com as relagdes burguesas de produgao e com as idéias tradicio- nais, mediante 0 uso adequado do novo poder politico, Mas essa trans- 98 id 99 mi, 100 1b, 129, 163, Fibosoria pa Pa‘S formacao radical alcanga também o poder conquistado, isto é, o proprio instrumento dessa transformagao. Lelamos com atengao esta passagem: “Uma vez que no curso do desenvolvimento tenham desaparecido as di- ferencas de classe e se tenha concentrado todaa producao nas maos dos individuos associados, o poder pablico perder seu carter politico”.'"! ‘Embora Marx e Engels nfo a caracterizam explicitamente assim, poderfamos dizer, com base na passagem anterior, que a revoluipdo pro- letdria constitu um processo de transi¢ao entre a conquista do poder & a perda do cardter politico desse poder. Certamente, na passagem citada pressupde-se que 0 poder politico est vinculaso as diferengas de classe ¢, de acordo com a definigéo antes dada de poder politico, & necessida- de—uma vez que existe tal diferenciagio ~ de que uma classe organize e exerca sua dominacdo sobre outra. Supée-se também uma forma de organizagio no futuro que nao tenha esse carter politico: quando os individuos se associarem livremente € no sob relagdes de dominagao, ‘Trata-se, pois, do fim do poder polftico, ou da politica como pré- tica de dominacao, ao desaparecer sua necessidade com o desapareci- mento da divisio da sociedade em classes, Justamente por isso 0 Man festo diz um pouco mais adiante: ‘Se na huta contra a burguesia 0 proletartado constitui-se indefecti- velmente como classe; se mediante a revo.ucio converte-se em classe dominante e, enquanto classe dominante, suprime pela forga as ve- Ihas relagies de produgo, suprime, ao mesmo tempo que essas re- lagdes de producto, as condicSes para a existéncia do antagonismo de classe ¢ das classes om geral e, portarto, sua propria dominagio de classe." ‘Uma conclusio se impée, entiio: se o poder politico éa classe organizada como classe dominante, e se a desaparigao das classes torna desneces- séria sua dominacio, desaparece como conseqiéncia a necessidade do ‘rgio que a exerce: 0 poder politico ou Estado. O que se tem em troca é ‘uma associagdo livre de individuos. Ou, como se diz no Manifesto: "Em substituigao a antiga sociedade burguesa, com suas classes e seus anta~ gonismos, surgiré uma associagao livre na qual o livre desenvolvimento de cada um sera a condicio do livre desenvolvimento de todos”. Encontramo-nos, portanto, novamente diante do problema da desaparigaio do poder politico, o do Estado, que Marx havia formulado de forma muito rudimentar em seu escrito juvenil, de 1843, a Critica da Filosofia do Estado, de Hegel. 101 rbd, p. 129, 102 tid p 130. 10s tb. 165 A CONCEPGKO DA PRAXIS EM MAR. ORGANIZACAO COMO CLASSE, CONSCIENCIA E PARTIDO POLITICO No Manifesto nao s6 se descreve a situacao objetiva da classe trabalha- Gora como produto e condiczo do desenvolvimento capitalista, como também o proceso pritico histérico pelo qual acede & canseiéncia de seu proprio interesse e se constitui como classe revoluciondria. Esse processo, consistente em uma série de lutas, passa per diferentes fases. Na primeira, os trabalhadores lutam isolados contra os burgue- set particulares e seu objetivo nio é tanto destruir as relagées burgue- sas de produgio como as maquinas ou as mercadories. Nao ha propria- mente luta de classe contra classe. Em rigor, nao hd classe, mas sim uma massa amoria e desagregada que, inclusive em suas lutas, serve aos interesses da burguesia, a qual se vale delas para lutar contra seus proprios inimigos. Em uma segunda fase, prossegue a descrigdo hist6- rica do Manifesto, os trabalhadores formam coalizées ou associagoes permanentes para defender seus salérjos. Trata-se de uma luta dispersa em muitas localidades que desemboca “em uma luta nacional, em uma Ita de classes". Mas como “toda luta de classes é uma luta politica”, é dirigida contra o poder politico. O resultado desse processo pritico de Intas é “a organizacao do proletariado como classe e, portant, como partido polftico”.™' Prestemos atenco a essa formulagdo, detendo-nos ‘no conceito de proletariado de classe, ‘Se como fruto das lutas dos trabalhadores, a principio discrimi- nados e desagregados, se produz a “organizagdo do proletariado como classe", isso quer dizer que para Marx e Engels o proletariado como classe nao é um dado imediato, pois sua organizagionao se da enquan- {0 suas lutas locals nto se centralizam em escala nacional, A classe nao ‘existe isoladamente, mas sim, em uma relagio de luta (de lata politica) contra outras classes. Finalmente, o proletariado apenas se constitui come classe quando tem consciéncia de seu interesse proprio diante da burguesia, consciéncia que adquire na luta e que passa historicamente por diferentes niveis, claramente expostos no Manifesto até chegar a sua expresstio mais alta como consciéncia da necessidade da revolugdio. Enquanto o proletariado é uma massa dispersa c desagregada que nao luta propriamente contra a burguesia, no se constitui como Classe e 56 0 ¢ potencialmente. No entanto, diferentemente de outras Classes (“estamentos médios: pequeno industrial, pequeno comercian- te, artesdo, camponés”) ou, & diferenga do lumpemproletariado, “ape- nas o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionaria”,e isso em virtude de suas condigdes de existéncia. Os proletérios nao tem pro- priedade; nfo t&m nada que salvaguardar e apenas podem conquistar forgas sociais produtivas “abolindo seu préprio modo de apropriagio 108 id, p19 165 Finosoria na reais ‘em vigor”. Trata-se, portanto, de um process pritico cujo sujeito ¢ 0 proletariado; o meio, a luta violenta e o fim, 0 estabelecimento de sua prépria dominacao. Ou, nas palavras do Manifesto: "A guerra civil mais, fou menos aculta que se desenvolve no seio da sociedade existente transforma-se em uma revolugio aberta, eo proletariado, derrubando a burguesia pela violéncia, implanta sua dominaco”."® Vemos, portanto, que a “organizagao do proletariado como classe" significa, ao mesmo tempo, sua constituigae como sujeito da praxis revolucionaria. ‘Depois de compreender, nos termos do Manifesto, o que significa 1 constituicao do proletariado como classe e, portanto, como agente histérica da revolucio, torna-se necessdrio entender em que sentido se estabelece um sinal de igualdade entre classe e partido, pois, certamen~ te, Marx e Engels dizem: “Essa organizagao como classe e, portanto, co...”. Temos aqui uma primeira caracterizaao do partido (clizemos "primeira’, pois, como veremos no Manifesto, podem- se distinguir outras duas). Partido, em uma primeira formulagao, é a classe que, com cons- ciéncia de seu interesse proprio, enfrenta em um proceso de luta a burguesia. Nesse processo pritico, a classe atua como partido: é a clas se-partido; portanto, partido nfio é aqui uma parte ou um setor dela, ‘mas sim o partido-classe. Ambos os termos cobrem-se reciprocamente. (O partido existe desde que existe a classe e a classe existe desde que funciona como partido. Trata-se, portanto, de um conceito de partido ‘0 amplo que nio pode ser confundido com o conceito estrito aplicavel a liga dos Comunistas, que para Marx é apenas, do mesmo modo que em outras sociedades, “episddios na historia ... do partido no grande sentido histérico do termo” No partido assim entendido, cabem tanto uma organizagaio po- Iitica especifica quanto sindical ¢ inclusive cultural, mas essas organi- zages nfo entram nele como fragdes ot setores da classe trabalhado- ra, mas como classe que Iuta contra a burguesia em diversas formas: politica, econémica, cultural, etc. © modele empirico que inspira em ‘Marx e Engels esse conceito amplo de partido é 0 proletariado com suas diversas organizagées. ‘Mas o Manifesto fala também de partidos em um segundo senti- do quando se refere aos partidos operdrios eatre os quais se encontra 0 dos comunistas. Em varias ocasiGes, nomeia os comunistas como um pparticlo entre os partidos operdirios, no oposto, mas sim, distinto deles. Na verdade, no texto encontramos formulagbes como as seguintes: “Os comunistas no formam um partido a parte, oposto aos partidos ope- 105 fil, p24. 106 Carta de Marx a Freligrath, 29 de feveraino de 1860 168 ACONCEPEAG DA PRAXIS EM MARK rérios ..”; “.. apenas se distinguem dos demais paridos operatios, séo o setor mais resolvido dos partidos operérios ": “... 0 objetiva imediato dos comunistas é 0 mesmo que o de todos os demais partidos operarios ...”."" Por ihimo, cita entre eles “dois partidos operdrios ja constituidos ... os cartistas da Inglaterra ¢ os partidérios da reforma agraria na América do Norte” Partido operério significa no Manifesto, portanto, um partido (nfo Gnico, como acabamos de ver) que, longe de identificarse com a classe inteira, € um setor ou parte dela, com um programa politico determinado e com um objetivo comum com o de outros partidos ope- ririos. E esse objetivo é precisamente “a derrubada da dominacao bu guesa, a conquista do poder politico pelo proletariado”. Careceria, pois, de sentido para Marx e Engels que um partido, monopolizando esse objetivo comum, se auto-intitulasse “o partido da classe trabalhadora’. Finalmente, chegamos ao terceiro conceito de partido: 0 dos co- munistas. Ao caracterizé-lo, o Manifesto assinala o que tem de comum com os demais partidos operarios, o que a distingue e, por dltimo, sua superioridade ou vantagem sobre as demais partidos proletirios. ‘Trata-se, portanto, em primeiro lugar de um dos partidos opera- ros: “os comunistas no formam um partido & parte, oposto aos outros partidos operdrios; seus interesses sfo os mesmos que os de toda classe, ow seja, “nao tém interesses que os separem do conjunto do proleta- riado” ¢, por essa razio, “nao proclamam principios especiais aos ‘quisessem moldar o movimento proletiria”. Por wltimo, tém o mesmo. objetivo imediato que os demais partidos operirios: “constituicao dos proletirios em classe, derrocada da dominago burguesa, conquista do poder politico”, Mas no Manifesto vemos, também, que nfo se trata de um partido operirio a mais. Distinguem-se deles por dois tacos que ficam nitida- mente assinalados: 1) fazer valer os interesses comunsa todos os prolet- rios “independentemente da nacionalidade” e 2) representar em cada fase do movimento “os interesses do proletariado em seu canjunto”. Como primeiro trago, sublinha-se o cardter internacional de movimento comu- nista; com o segundo, seus interesses se identificam, em cada fase do de- senvolvimento da luta, com os do proletariado em sea conjunto, Assim, pois, o que os comunistas compartilham com outros partidos trabelhado- res nfo exclui, ao mesmo tempo, sua distinezio com respeito a eles. Mas os comunistas no s6 se distinguem dos demais partidos ‘operiirios, como também tém vantagens em relagao a eles. Marx e En- gels assinalam claramente essas vantagens, embora, na verdade, aquilo 107 Manifesto, op ety p. 122, 108 1c 187 Fir0saFta Da PRAXIS pelo que se distinguem —a saber, seu internacionalismo, sua representa- 80 dos interesses do movimento em seu conjanto~ constituam jé gran- des vantagens. Mas 0 Manifesto diz explicitamente que os comunistas tém vantagens sobre os demais partidos operarios: 1) praticamente, por ser "o setor mais resolvido” ... “que sempre impulsiona os demais"; 2) teoricamente, "por sua clara visio das condigées da marcha e dos resul- tados gerais do movimento proletério”." Essa visio te6rica enraizada no movimento real, hist6rico, os distancia dos utopistas que propem_ principios inventados, “As teses te6ricas dos comunistas nao se baseiam_ de modo algum em idéias e principios inventados por tal ou qual refor- mador do mundo ... Nao so nada mais do que a expresso de conjunto das condigées reais de uma luta de classes existente, de um movimento histérico que esta se desenvolvendo diante de nossos olhos’.""® Com o apoio no texto de Marx e de Engels, pode-se conceber © partido comunista como a propria classe em seu mais alto nivel de combatividade e consciéncia, Nisso radicaria sua superioridade sobre ‘outros partidos ou setores da classe, situades em wm nivel mais baixo tanto pritica como teoricamente. No entanto, essa superioridade pré- tica nao significa - ao menos no se depreende do texto ~ que esse se- tor organizado cumpra um papel dirigente na luta, embora se aponte claramente que é 0 setor mais resalvido “cue impulsiona adiante os demais”. Quanto sua superioridade tedrica, dela nao se infere que os comunistas tenham o monopélio da consciéncia de classe, pois de outro modo 0 Manifesto nao teria reconhecido que os demais partidos operarios compartilham com os comunistas um objetivo comum, o que seria inconcebivel sem certa visio ou consciéncia do interesse de classe. Naturalmente, isso néo exchii que a “visio clara" se dé precisamente nos comunistas. ‘Mas de onde provém essa visto ou consciéncia? De sua prépria, luta, na pratica, no processo hist6rico, que, pasando por diferentes ni- veis de organizagao e consciéncia, se eleva da condigao de massa amor. fa e desagregada & sua constituicdo propriamente como classe? Tal é 0 processo que em um texto quase contemporaneo do Manifesto, Miséria da filosofia, se denomina, bem hegelianamente, transformagao do pro- letariado de “classe em si” em “classe para si’ sujeito desse processo ¢ 0 proprio proletariado e o partido & sobretudo, seu produto, a expresso do nivel alcangado pela classe quanto & sua consciéncia e sua luta, O partido nao é, portanto, uma vanguarda exterior classe, 0 setor que a dirige, mas sim o que expres sao nfvel alcancado por ela em seu processo de auto-emancipacao & 109 sbi, 110 it 168 A-concergke pa pairs eat MARS autodiregio. Mas o partido dos comunistas, por sero mais avantajado teérica e praticamente, se converte em um fator vital enquanto que, na realidade e nao pelo direito adquirido, mantém a dupla vantagem assinalada pelo Manifesto.""! BaLanco po Maniresto (0 Manifesto do Partido Comunista 6 a teoria ¢ o programa revoluciona- rio da classe social cestinada historicamente, objetivamente, a transfor mar radicalmente a sociedade em um processo que € o de sua prépria auto-emancipagao, Nele se apresenta essa transformagio como obra sua, embora somente realizavel quando, levando-se 2m conta as condi- ‘gOes objetivas, se eleva a certo grau de consciéncia, organizagao ¢ luta. esse pracesso, o partido comunista — produto ¢ expressio da classe ~ cumpre um papel importante por sua visao “das condigdes, da marcha © dos resultados gerais do movimento” e, por sua vez, por impulsionar, como 0 setor mais resolvido, a préxis revolucionaria do proletariado, Nesse sentido, 0 Manifesto ocupa um lugar excepcional na ela boragao do conceito de praxis por Marx. Nele se mostra claramente 0 marxismo como teoria da praxis, da transformagao radical do mundo. eles se amarraram os diferentes fios que conduzem a esse momento maduro da concepcao da praxis em Marx, a saber: 8) a concepeao da missio histérica do proletariado, j4 objetivamen- te fundada, como sujeito da praxis revolucionaria, como proces- so de sua emancipacao; b) a unidade da teoria e da pratica na praxis revoluciondtia; & ©) 0 partide como produto e expressio da classe e, por sua vez, como meio necessério — por sua vantagem te6rica e prética ~ para que © proletariado aleance sua auto-emancipacao.'? O MARXISMO COMO FILOSOFIA DA PRAXIS. Depois de examinar a concepcio marxista da praxis, chegamos & con- ‘clusio de que essa categoria é central para Marx, na medida em que so- mente a partir dela ganha sentido a atividade do homem, sua histéria, 111 Da gue fo dito anteriormente se deduz que a concepsto do partido exposta no Man= festo aie pode ser considerada como a considerseamos erroneaments na edlga0 anteier {desta obra ~a premissa da teora leninsta do partido, 112 Sobre © Manifesto Comunista como teria da revolugto social « obre os concetos de coneelénla de classe partido nel, artim como sobre sa vinculagao com a stuagio eco ‘ica, sovale politic da epace e, em particular sobre s preva de fopo que representou ‘revoligho de 1848 para este texto genial de Marx e Eugels,oletor pode consular muito Droveitosamente a excelente obra de Fernanda Claudin, Mars, Engels y la revolucion de 1848, Madtid, Siglo XXL. 1975, da qual nos spreximamos em isis postos 369 Frzasoria Da Pras assim como 0 conhecimento. 0 homem se define, certamente, como ser pratico. A filosofia de Marx ganha, assim, seu verdadeiro sentido como filosofia da transformacio do mundo, isto é, da praxis. ‘Que posteriormente esse contetido tenha se desvanecido tanto para o reformismo como para o materialism vulgar, que coincidem precisamente em reduzir 0 marxismo a uma tzoria que nao se suprime ‘asi mesma como tal, ou que este contetido praticista tenha sido exage- ado até fazer do marxismo um voluntarismo, nos obriga a examinar varias quest6es que consideramos fundamentais embora nao esgotem a problematica de uma verdadeira filosofia da praxis. 0 objeto-de andlise desses problemas tenderé a confirmar que a justa interpretacdo do marxismo exige situar a praxis — como, a nosso ver, Marx pretendia ~ no centro de sua filosoia. Quando Marx instala em suas Teses sobre Feuerbach ~ a categoria de praxis como eixo de sua filosofia, jd nfo é possivel voltar, em seu nome, a posigbes filoséficas, que sio superadas justamente com tal categoria. Nem o objeto pode ser mais considerado & margem da subjetividade humana, fora de sua atividade ~ concepgtio do materialismo metafisico ¢, em geral, de todo ‘materialismo vulgar, nem a atividade da qual o objeto ¢ produto pode ser entendida — como faz o idealismo ~ como mera atividade espiritual, embora se trate da atividade da consciéncia hamana. Marx encontra-se em relagao tanto com uma como com outra filosofia, mas entendida esta relacao como negagao e superacio delas, ‘Se o materialismo contemplativo rejeita legi-imamente que 0 mundo real seja um produto da consciéneia, e vé a natureza real, material do sujeito e do objeto, reconhece essa materialidade ao prego de colocar tanto um como outro ~ como diz Marx - em uma relagao abstrata, ex- terior. A superagao desse materialismo radica-se, pois, em reconhecer uma materialidade que pressuponha, por sua vez, a atividade subjeti- va, Se 0 idealismo, pelo contririo, vé o lado ativo da relagao sujeito- objeto, vé apenas a atividade da consciéncia do sujeito e perde de vista © lado material, objetivo dessa atividade. © caminho da superagio dessa limitagao é justamente reconhecer a atividade subjetiva, mas, 0 mesmo tempo, sua materialidade, tanto 22 atividade em si como em seus produtos. Nesse sentido, cabe dizer que o materialismo mar xiano € a inversao do idealismo concebido como filosofia da atividade fdeal, e, em forma mistificada, do homem. Marx, por isso, nao é He- gel antropologizado nem Feurbach historizado, Tanto um como outro ‘nao superam 0 marco da filosofia como interpretacao do mundo; seu Ambito, seu elemento proprio comum, é a tearia como o € em grande parte 0 do joven Marx até as Teses sobre Fewerback eA ideologia alemd. 0 ambito novo no qual se realiza propriameate a inversio do idealis- mo absoluto de Hegel e do antropologismo de Feuerbach é a praxis, ¢ essa inversao traz em si necessariamente ~ ac ter de fundar historiea e 170 A CoNCERGRO DA Praxis Et Mans realmente a atividade pritica humana, suas condigées, limites e possi- bilidades - uma mudanca radical no marxismo como teoria, mudanga que se expressa na clissica formulagéo da passagem do socialismo como utopia ao socialismo como ciéncia. Somente assim o marxismo chegou a ser e é atualmente, em um proceso 130 infinito como seu objeto, flosofia da atividade real, objetiva; isto ¢, da praxis. Tal é 0 sen- tido da expresso de Engels: 0 proletariado aleméo é 0 “herdeiro da filosofia classica alema”. Se 0 idealismo é uma filosofia da atividade, 0 marxismo é propriamente a filosofia da verdadeira atividade transfor. madora, isto é, pritica ‘Como filosofia da praxis, o marxismo é a consciéneia filoséfica da atividade prética humana que transforma o mundo. Como teoria nao 86 se eticontra em relagdo com a praxis ~ revela seu fundamento, ‘condigdes e objetivos - como também tem consciéncia dessa relaglo e, por isso, é um guia da aso. Por isso, o marxismo € também, nos termas que vimos, uma superacao da conseiéncia flos6fica anterior ~ materialista e idealista —e da consciéncia filoséfica que em nossos dias - como materialismo vulgar ou filosofia idealista especulativa ~ traz em si uma volta &s po- sigdes que Marx havia superado. Essa superagao da consciéncia filo- séfica anterior € obtida mediante a absorcao das posicdes flosoficas em uma sintese superior. Por isso, © marxismo constitui um enrique- cimento filoséfico, uma ascensio, e no um descenso a filosofias an- teriores a Marx ou a uma postura pré-filosdfica como a representada pela consciéncia ou o senso comum, © marxismo nao é, de modo algum, a restitu:gao da conscigncia ordinaria, destrufda ou negada pelo idealismo, visto que também ele se opde a conscigncia simples, ao senso comum. No nosso modo de ver, a consciéncia simples - como conscincia pré-filoséfica ~ ndo ve a ‘materialidade nem a atividade do sujeito. E uma coasciéncia obscura e espontanea da praxis que, externamente, parece superar a consciéncia materialista tradicional na medida em que centra a atengo na prética, na atividade; mas, por um lado, essa atividade se parece mais & forma sordid como a entendia Feuerbach, e, por outro, jé reduzida a esse bbaixo nivel, fica separada ~ em sua compreensio ~ de toda atividade teérica, A consciéncia simples parece superar, por sua vez, a conscién- Cia idealista, especulativa, da praxis, na medida em que esta se isola da praxis material; mas por um lado, a consciéneia simples vé o mundo como um mundo de objetos acabados, no como produtos da atividade hhumana e, por outro lado, ao conccber @ atividade em um sentido utili- ‘ério, capta-a, em oposigzo a toda teoria. ‘Sendo assim, quando o conceito de préxis nao ganha seu sentido cabal, pode-se cair: m Frosoma pa pais 4) No materialismo anterior a Marx, ao continuar vendo objeto € sujelto em uma relagdo exterior, abstrata, e reduzir a préis a um critério de verificagao entre o pensamento do sujeito e um objeto que existe em si, a margem de sua relacio prética com 0 mundo (empirismo da praxis). b) No idealismo, se a atividade prética ¢ concebida em um sentido absoluto e subjetivista, negando a propredade da natureza exte- rior (idealismo da praxis) ©) No ponto de vista da consciéncia ordinaria, pré-filoséfica, que ignora tanto a relaglo intrinseca sujeito-objeto (realismo ingé- rnuo) como a atividade do sujeito ~ no sentido teérico e pratico. Arelagio exterior sujeito-objeto s6 se toma compativel aqui com a atividade pratico-utilitaria, o que prefigura bem mais a posiglo do pragmatismo do que a de uma verdadeira flosofia da praxis (eragmatismo da préxis) Oconceito de praxis e seu papel fundamental na formagao ¢ constituicso do marxismo se descaracterizam do mesmo modo quando a revolugao, filosofica que 0 marxismo leva a cabo e a ruptura que pressup6e com a filosofia wadicionale, particularmente, com a de Hegel e Feuerbach, si0 interpretadas como um cortemeramente te6rico ou “epistemol6gico”.'* O corte com a filosofia anterior assim entendido nao s6 obscurece o de- senvolvimento do marxismo — ao mesmo tempo continuo e descontinuo como empalidece, antes de tudo, a verdadeira natureza do corte ou ruptura com a filosofia tradicional a que Marx alude desde a sua famosa tese XI sobre Feuerbach. “corte” nio é meramente epistemoldgico, pois embora se rompa ou corte com uma teoria — particularmente com 113 0 conceito de “core epistemolégico” foi introduride por Gaston Bachelarde aplicado por Louis Althusser para expressar a transformagio de una problemdtica pré-clentlce 6 ideoldpica em uma problemsatiea cientifics. Althusser utiliza tal conceito a0 estudar 0 Denstmnento de Marx e sobretudo, a0 tentarestabelecer alinha diviéria com respelto 3 ‘seus trabalhos de juventade (Pour Mar, op. itp. 26). Sem entrar agors na questto que tocamos ante sobre a ineratancta de urna descontinuidade radical entre o jovera Mar, particularmenteo dos Marusortas de 1844, eo Marx imedintarente posterior que comers ‘se desenhar a partirdas “Teses sobre Feuerbach’ ea Aideolopaaled, ese insist as ‘a unilaerlidade © no esquematismo que supde carscterzar a prablemitca do prime ' periode como simples problemticafeverbuchlana, a que toda nossa exposigso neste tapitlo rejeita essa tse, cigamos, nese momento, que o verdadero objeto da eitice de [Marx nig ¢ tanto Feuerbach como Hess; que a rupuurs ou corte se efetua com a flosafia como interpretagao do mundo que Hegel levou aié suas dlimas conseqaeacias; que o# Deokgelinnos apenas exacerbaram evs Sloofis,deixande pelo eaminho 0 conte eal ‘gue de forma mistificada aparecia em Hegel; que Feuerbach a mantém, apeser de sua antropologizacao de Deus e da Ida, e que Mare Inia pare Ibertarse dela por meio da ‘xitca do idealisme hegeliano,conseguindo-o ao final a parti sobretudo, das "Tess sobre Feuerbach” e da Ideologia ale. Entre ea concepeo ds flosofia como interpret © {da filosoia como ransformacto do mundo se do verdadero corte que, por seu carter ‘Wérico-pratico, nso se pode redunira um mero "core eps malo va A cONcEPGKG Da pnvGxs Ent Mans 0 fdealismo hegeliano ¢ com a critica a que o submete Feuerbach -, rompe-se, acima de tudo, na teoria em que culmina 9 esforgo filos6fico tradicional por interpretar 0 mundo. Corta-se com a teoria que, defini- tivamente, no s6 interpretacao da realidade, mas sim instrumento de coneiliagao com cla, com o qual contribui para fechar a passagem para sua transformag%o. O corte com essa teoria, que nada mais € do que uma ideologia da concilia¢ao com 0 mundo reel; faz-se, portanto, em nome da prépria transformagao desse mundo. Por outro lado, por ser uma ideologia da justficacao da realidade que se deseja transformar , por ter essa ideologia raizes sociais, reais, o corte do marxismo com ela exige nfo s6 sua reducao a suas raizes reais, como principalmente a transformagao da realidade que essa ideologia da conciliagao engendra Nao se trata, portanto, de um corte meramente epistemol6gico entre {déias ou graus ou niveis de conhecimento nem tamsouco de uma sim- ples passagem do erro a verdade, da ideologia & ciéncia, jé que a préxis esta implicada nessa passagem, a propria transformagao do real. Nesse sentido, o corte ou ruptura de Marx com a filosofia tradicional, assim ‘como com a fase de seu pensamento que ainda se encontra em maior ou menor gran sob sua influéncia, nao pode ser caracterizada em termos puramente teéricos ou epistemolégicos, mas fundamentalmente em termos préticos. © marxismo se constitu, portante, como tal ¢ assim rompe com a filosofia que, como mera interpretagio do mundo, culmi- nna em Hegel quando se afirma como teoria da préxis revoluciondria em particular, e da atividade prétice humana em geral. Assim entendido, 0 marxismo é essencialmente a filosofia da praxis. va

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