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OCONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO Paulo Cesar da Costa Gomes Professor do Departamento de Geografia, UFRJ Evitemos de imediato a sedutora tentagao de procurar res- ponder definitivamente 4 questao — 0 que é a regiaio — estabele- cendo uma validade restritiva para este conceito, como se a cién- cia fosse um tribunal onde se julgasse o direito de vida e de morte das nogées. Parece bem mais salutar comegar justamente pelo oposto, reconhecendo a existéncia da nocao de regio em outros dominios, que nao os da ciéncia e, o mais importante, reconhecen- do, 20 mesmo tempo, a variedade de seu emprego no 4mbito da propria ciéncia e particularmente na geografia. Reconhecer aqui significa mais do que simplesmente assinalar a existéncia, signifi- ca aceitar seu uso, ser inclusivo destes outros meios de operar com esta nocao, enfim, significa conceber nesta multiplicidade a riqueza e 0 objeto propriamente de uma investiga¢ao cientifica. Esta concepgao tem importantes conseqiiéncias: em primei- ro lugar, 0 conhecimento cientifico perde o carater de matéria nor- 50 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS mativa, de tmica representac&o “verdadeira” da realidade; em segundo lugar, ao invés da busca de conceitos “puros”, a ciéncia, e neste caso a geografia, deve procurar nos diferentes usos corren- - tes do conceito de regio suas diferentes operacionalidades, ou seja, os diferentes recortes que sao criados e suas respectivas ins- trumentalidades; finalmente em terceiro lugar, nesta perspectiva pode-se avancar sem ser mais um ator nesta trama que tantas vezes se transformou em um campo de controvérsias na geografia sobre a “melhor” definicao para o conceito de regiado. Ao observar este campo de controvérsias, sem estabelecer um a priori, pode- remos compreender as raizes dos debates mais profundamente vividos pelo Pensamento Geografico, reconhecendo, 20 mesmo tempo, o dominio particular sob o qual incide e opera esta nocao nos debates geograficos. Dentro desta visio, cumpre antes de mais nada discernir os sentidos diferentes que podem existir na nogdo de regiao nas diversas esferas onde ela é utllizada, no senso comum, como voca- bulo de outras disciplinas e, o mais importante, na variedade de acepcées que ela possui na geografia. E necessario também para- lelamente religar estas significagdes aos diversos contextos no qual esta nogao serve como elemento-chave de um sistema expli- cativo, contextos politicos, politicos-institucionais, econédmicos e culturais. ALGUNS IMPORTANTES ANTECEDENTES A palavra regiao deriva do latim regere, palavra composta pelo radical reg, que deu origem a outras palavras como regente, regéncia, regra etc. Regione nos tempos do Império Romano era a denominacao utilizada para designar areas que, ainda que dispu- sessem de uma administracao local, estavam subordinadas as regras gerais e hegem6nicas das magistraturas sediadas em Roma. Alguns fildsofos interpretam a emergéncia deste conceito como OCONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 61 uma necessidade de um momento histérico em que, pela primeira vez, surge, de forma ampla, a relacdo entre a centralizacaéo do poder em um local e a extensdo dele sobre uma 4rea de grande diversidade social, cultural e espacial. A contribuir com esta inter- pretacio existe também o fato de que outros conceitos de nature- za espacial tenham sido enunciados nesta mesma época, como o conceito mesmo de espa¢o (spatium), visto como “continuo”, ou como intervalo, no qual esto dispostos os corpos seguindo uma. certa ordem neste vazio, ou ainda o conceito de provincia (provin- cere), areas atribuidas ao controle daqueles que a haviam subme- tido a ordem hegeménica romana. Desta forma, os mapas que representam o Império Romano sao preenchidos pela nomencla- tura destas regides que representam a extensdo espacial do poder central hegeménico, onde os governadores locais dispunham de~ alguma autonomia, em fungao mesmo da diversidade de situacdes sociais e culturais, mas deviam obediéncia e impostos & cidade de Roma. O esfacelamento do Império Romano seguiu, a principio, estas linhas de fraturas regionais e a subdivisao destas areas foi a origem espacial do poder aut6nomo dos feudos, predominante na Idade Média. A mesma época, a Igreja reforcou este tipo de divi- sao do espago, utilizando 0 tecido destas unidades regionais como base para o estabelecimento de sua hierarquia administrativa. Também neste caso a rede hierarquizada dos recortes espaciais exprimia a relacdo entre a centralizacao do poder, as varias com- peténcias e os niveis diversos de autonomia de cada unidade da complexa burocracia administrativa desta instituicao. O surgimento do Estado moderno na Europa recolocou o problema destas unidades espaciais regionais. Um dos discursos predominantes na afirmacdo da legitimidade do Estado no século 18 € o da uniao regional face a um inimigo comercial, cultural ou militar exterior. Nos diversos relatos histdricos referentes 4 cons- tituigo dos Estados europeus, podemos observar com clareza a 52 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS complexidade das negociacées e dos conflitos que envolveram a redefini¢&o da autonomia do poder, da cultura, das atividades pro- dutivas e de seus limites territoriais. Fundamentalmente, a ques- t&o que se recoloca é a mesma que deu origem ao conceito de regido na Antiguidade Classica, ou seja, a questo da relag&o entre a centralizagao, a uniformizacao administrativa e a diversidade espacial, diversidade fisica, cultural, econémica e politica, sobre a qual este poder centralizado deve ser exercido. Este periodo da ’ formagéo dos Estados-Moderos assistiu, pois, ao renascimento das discussdes em torno dos conceitos de regiao, nag4o, comuni- dades territoriais, diferencas espaciais etc. Foi também neste momento que um campo disciplinar especificamente geografico comegou a tomar forma, af incluindo exatamente este tipo de questao e de conceitos. Através desta breve reconstituic4o histérica podemos perce- ber trés principais conseqiiéncias: a primeira é que 0 conceito de regiao tem implicagdes fundadoras no campo da discussdo politi- ca, da dinamica do Estado, da organizac4o da cultura e do estatuto da diversidade espacial; percebemos também que este debate sobre a regiao (ou sobre seus correlatos como nagao), possui um inequivoco componente espacial, ou seja, vemos que 0 viés na dis- cussio destes temas, da politica, da cultura, das atividades econé- micas, esta relacionado especificamente as projecdes no espaco das nocées de autonomia, soberania, direitos etc., e de suas repre- sentac6es; finalmente, em terceiro lugar, percebemos que a geo- grafia foi o campo privilegiado destas discusses ao abrigar a regido coro um dos seus conceitos-chave e ao tomar a si a tarefa de produzir uma reflexio sistematica sobre este tema. A contemporaneidade é também inspiradora deste tipo de discussao. Assistimos hoje no mundo a redefinigao do papel do Estado, a quebra de pactos territoriais que moldaram o mundo nos tiltimos anos, ao ressurgimento de questdes “regionais” no seio dos Estados e a manifestagio, cada vez mais acirrada, de naciona- O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO_ 53 lismos/regionalismos fragmentadores. No mundo atual, unido por uma nova centralidade dos focos hegeménicos de uma polftica- econémica imposta pelo capitalismo mundial, vemos mais uma vez surgir com forga, um novo momento de reflexdo destes temas: da politica, da cultura, das atividades econémicas, atrelados a questao espacial da centralidade e uniformizagao em sua relagao com a diversidade e o desejo de autonomia. Antes, no entanto, de tratarmos um pouco mais minuciosamente deste momento, veja- mos algumas das mais importantes perspectivas que tém predomi- nado no entendimento da regiao. OS DIVERSOS DOMINIOS DA NOCAO DE REGIAO Na linguagem cotidiana do senso comum, a nocao de regiio parece existir relacionada a dois principios fundamentais: o de localizagao e o de extens&o. Ela pode assim ser empregada como: uma referéncia associada & localizacdo e 4 extensdo de um certo fato ou fendémeno, ou ser ainda uma referéncia a limites mais ou menos habituais atribuidos a4 diversidade espacial. Empregamos assim cotidianamente expressdes como — “a regidéo mais pobre”, “a regiao montanhosa”, “a regio da cidade X”, como referéncia a ‘um conjunto de drea onde hd o dominio de determinadas caracte- risticas que distingue aquela area das demais. Notemos que como simples referéncia nao exigimos que esta nocdo se defina sempre em relacaio aos mesmos critérios, que haja preciso em seus limi- tes ou que esteja referida sempre a um mesmo nivel de tamanho ou escala espacial. A regiaio tem também um sentido bastante conhecido como unidade administrativa e, neste caso, a divisdo regional é 0 meio pelo qual se exerce fregiientemente a hierarquia e 0 controle na administragao dos Estados. Desde o fim da Idade Média as divi- s6es administrativas foram as primeiras formas de divisdo territo- rial presentes no desenho dos mapas. Ainda que muitas vezes sob 64 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS denominagées diversas (Régions, na Franga, Provincias, na Italia ou Laender, na Alemanha), o tecido regional é freqiientemente a malha administrativa fundamental que define competéncias e os limites das autonomias dos poderes locais na gestao do territério dos Estados modernos. Muitas instituigdes e empresas de grande porte também utilizam este tipo de recorte como estratégia de gestdo dos seus respectivos negécios dentro do mesmo sentido de delimitagao de circunscrigées e hierarquias administrativas. Nas ciéncias em geral, como na matematica, na biologia, na geologia etc., a nocao de regido possui um emprego também asso- ciado a localizagdo de um certo dominio, ou seja, dominio de uma dada propriedade matematica, dominio de uma dada espécie, de um afloramento, ou dominio de certas relag6es como, por exem- plo, na biogeografia, inspirada na ecologia, onde dividimos a Terra segundo associacées do clima, da fauna e da flora em diversas regides (regido australiana, regido neartica, regio paleartica etc). Neste caso, é possivel perceber que o emprego da nocio de regio est4 bem préximo de sua etimologia, ou seja, 4rea sob um certo dominio ou drea definida por uma regularidade de propriedades que a definem. Na geografia, o uso desta nogiio de regido é um pouco mais complexo, pois ao tentarmos fazer dela um conceito cientifico, herdamos as indefinig6es e a forga de seu uso na linguagem co- mum e a isto se somam as discuss6es epistemolégicas que o em- prego mesmo deste conceito nos impée. Uma das alternativas en- contradas pelos geégrafos foi a de adjetivar a noc4o de regiao para assim diferencid-la de seu uso pelo senso comum. Ao tentar preci- sar, no entanto, o sentido do conceito de regiao através de associa- ¢6es, surgiram outros debates que interrogam mesmo a natureza, o alcance e o estatuto do conhecimento geogrdfico. Sdo estes debates que passaremos a privilegiar aqui, tomados sob o prisma da discuss4o regional. Bem antes de a geografia alcangar prestigio e importancia no terreno académico, a geologia, em meados do século 19, através de Lyell na Inglaterra e de Beaumont na Franga, havia reunido O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO. 55 uma larga assisténcia. Um dos conceitos-chave desta geologia foi o de regio. Quando, por exemplo, Vidal de La Blache, em 1903, escreveu o Tableau de la géographie de la France, a inspiragao da divis4o regional, tal qual apresentada nesta obra, tinha ecos de sua leitura dos gedlogos. Segundo CLAVAL (1974), foi em parte sob esta inspiracao da geologia, pela consideracao da regido como um ele- mento da geografia fisica, um elemento da natureza, que surgiu a idéia de regiao natural. Havia também antecedentes desta concep- cao na propria geografia do século 18, pois as bacias hidrograficas foram vistas como demarcadores naturais das regides durante um bom tempo, como ilustra a importancia e aceitacao do trabalho de P. Buache de 1752 sobre este tema. Em 1908, L. Gallois, discfpulo de Vidal de La Blache, escre- veu uma obra intitulada Régions naturelles et noms de pays, onde buscava a relacdo entre as tradicionais regides galo-romanas e uma certa unidade fisionémica natural basica. Para ele, estas divi- sées fisicas da superficie terrestre eram o quadro de estudos da geografia humana e neste sentido havia uma aceitaco implicita de sua parte de que a influéncia da regiao natural é decisiva na confi- guracio de uma sociedade, ainda que em seu texto ele afirme diversas vezes que “entre as condigées impostas a atividade huma- na, além do relevo do solo e do clima, existem outras igualmente necessarias: de posi¢do, de facilidade de comunicacao e todo um conjunto de causas que corresponde em cada época a um estagio de civilizagao determinado” (GALLOIS, 1908, p. 234). O conceito de regiao natural nasce, pois, desta idéia de que 0 ambiente tem um certo dominio sobre a orientacao do desenvolvi- mento da sociedade. Surge dai o primeiro debate que tem a regiao como um dos epicentros, 0 conhecido debate entre as determina- ¢6es e as influéncias do meio natural. Contra esta perspectiva de um meio natural “explicativo” das diferencas sociais e do conjunto da diversidade espacial, L. Fébvre, em 1922, forja a expressao “possibilismo”, que pretende ser uma resposta definitiva 4 idéia de estabelecer leis gerais e regras, tendo por base o ambiente natural. A natureza pode influenciar e moldar certos géneros de vida, mas 56 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS é sempre a sociedade, seu nivel de cultura, de educacao, de civili- zac4o, que tem a responsabilidade da escolha, segundo uma for- mula que é bastante conhecida — “o meio ambiente propée, o homem disp6e”. A regido natural nao pode ser o quadro e o funda- mento da geografia, pois o ambiente nao é capaz de tudo explicar. Segundo esta perspectiva “possibilista”, as regides existem como unidades bdsicas do saber geografico, nao como unidades morfo- légica e fisicamente pré-constituidas, mas sim como o resultado do trabalho humano em um determinado ambiente. Sado assim as formas de civilizagaéo, a ago humana, os géneros de vida, que devem ser interrogados para compreendermos uma determinada regiao. Sao eles que dao unidade, pela complementariedade, pela solidariedade das atividades, pela unidade cultural, a certas por- ges do territério.\Nasce dai a nogSo de regido geogrffica, ou regiao-paisagem na bibliografia alema e anglo-sax6nica, unidade superior que sintetiza a acdo transformadora do homem sobre um determinado ambiente, este deve ser 0 novo conceito central da geografia, o novo patamar de compreensao do objeto de investiga- cao geografica. A partir de entéo uma série de monografias regionais sao produzidas, seguindo um plano mais ou menos constante. Neste plano se deve comegar pela descrigao das caracteristicas fisicas seguida da descricdo da estrutura da populacao e de suas ativida- des econdémicas. O objetivo final é encontrar para cada regiéo uma personalidade, uma forma de ser diferente e particular. De fato neste caso, nao se pode identificar a priori os tracos distintivos responsaveis pela unidade regional, pode ser o clima, a morfolo- gia, ou qualquer outro elemento, a partir do qual uma comunidade territorial cria uma forma diversa de se adaptar, um género de vida. A geografia regional francesa nos ensina, por exemplo, que na identificacdo da Borgonha o fundamental é o quadro histérico; nos Pirineus mediterranicos, o clima; na Picardia o relevo; e assim sucessivamente. O fundamental é que estamos diante de um pro- duto tnico, sintético, formado pela inter-relagdo destes fatores combinados de forma variada. O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO_ 57 ', regiado é uma realidade concreta, fisica, ela existe como um quadro de referéncia para a populacao que ai vive.'Enquanto reali- dade, esta regiao independe do pesquisador em seu estatuto onto- légico. Ao geégrafo cabe desvendar, desvelar, a combinacio de fatores responsdvel por sua configuracdo. Ojnétada recomenda- do é a descricdo, pois sé através dela é possivel penetrar na com- plexa dinamica que estrutura este espaco (VIDAL DE LA BLACHE, 1921). Além disso, é necessario que o pesquisador se aproxime, * conviva e indague a prépria regiao sobre sua identidade. Daf a enorme importancia do trabalho de campo, momento onde o ge6- grafo se aproxima das manifestacGes tinicas da individualidade de cada regiao. Este é 0 quadro caracteristico daquilo que convencio- nalmente ficou conhecido como a “Escola Francesa de Geografia”" perspectiva predominante nos primeiros cinqiienta anos deste século na Franca e modelo largamente “exportado” ao exterior, com grandes repercuss6es no Brasil, por exemplo, para onde vie- ram diversos professores e pesquisadores franceses nos anos trin- tae quarenta criar a base universitaria da geografia. Apesar de este modelo ser identificado quase sempre a “Es- cola Francesa”, a verdade é que esta forma de pensar a atividade geografica se desenvolveu, com pequenas diferencas, também em outras escolas nacionais. Na Alemanha, que juntamente com a Franga foi, desde o final do século 19, o grande foco produtor de uma reflex4o geografica, o maior defensor de uma geografia regio- nal, como sintese do trabalho geografico foi o influente gedgrafo A Hettner! Tendo seguido uma formacao filoséfica de influéncia neo-kantista, este gedgrafo acreditava que o método das ciéncias humanas nao poderia se comparar aqueles recomendados pelo dominio do positivismo classico, dominante nas ciéncias fisicas e Matemdaticas e que pretendia ser o tinico método efetivamente cientifico. Um dos autores mais conhecidos desta escola neo-kantista, Dilthey estabelecia que para as “ciéncias do espfrito” (ciéncias 68 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS humanas e sociais) o tnico meio para a produc&o do conhecimen- to era a descri¢do e a interpretacdo. Para estas ciéncias a metodo- logia basica era a compreensio que se opunha & explicacéo das ciéncias fisicas e matematicas. A compreens&o exige a proximida- de entre 0 sujeito e o objeto, exige um conhecimento contextuali- lo, particular e jamais pretende chegar ao patamar das grandes leis ou teorias, caracteristicas do universo da explicagao. Foi tam- bém um outro filésofo desta escola que forjou a caracterizacao de dois tipos fundamentais de ciéncias:’as idiograficas e as nomotéti- cas. As primeiras, ciéncias do homem, sao descritivas, tratam de fatos nao repetitivos, nao reprodutiveis e, portanto, sem aspectos regulares que possam fundamentar leis ou normas gerais. Estes fatos s6 podem ser compreendidos a partir do contexto particular que os gerou, sao tinicos, nao podem ser explicados, mas somente compreendidos a luz de suas particularidades. A ciéncia nomotéti- ca, ao contrério, procura nos fatos aquilo que é regular, geral e comum, estabelece assim modelos abstratos que podem antecipar resultados a partir do conhecimento das variaveis fundamentais que definem um fato ou fendmeno. "Para Hettner; a geografia era uma ciéneia idiogréfica, visto que ela estudava o espaco terrestre e este é diferenciado, nao regu- lar e tnico em cada paisagem. Assim, para ele, a geografia é “a ciéncia da superficie terrestre segundo suas diferengas regionais ; (Cf. MENDOZA, p. 73). A geografia nao deve, no entanto, se ocupar unicamente apenas em descrever as diferentes paisagens, como um longo inventario de formas regionais, é necess4rio interpretar estas formas como 0 resultado de uma dinamica complexa. Este ponto foi o nticleo de uma controvérsia com outros geégrafos ale- maes da €poca, principalmente com Passarge e Schliiter, que acre- ditavam que as paisagens deveriam ser analisadas através de seus aspectos formais, seguindo uma morfologia, atribuida a padrées genéticos e funcionais. Notemos que, sob este Ultimo ponto de vista, poder-se-ia encontrar regras gerais, padrées de classificacao OCONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 69 e, desta forma, um certo nivel de generalizagao. Na perspectiva corolégica de Hettner, dificilmente a geografia poderia estabele- cer estes padrées de generalizacao. O principio da “diferenciacao de areas” conduz irremediavelmente a estabelecer o conhecimen- to regional como produto supremo do conhecimento geografico. Ainda segundo Hettner, nao havia dicotomia entre uma geografia geral e uma particular, visto que a regiao seria 0 objeto que res- guardaria o campo mais sistem4tico do perigo objetivista. Assim, através da regido, a geografia garantiria um objeto préprio, um método especifico e uma interface particular entre a consideragao dos fenémenos fisicos e humanos combinados e considerados em suas diferencas locais. Esta posicao de Hettner alcangou maior divulgacdo através da obra de um outro geégrafo: The Nature of Geography, de R. Hartshorne. Neste livro Hartshorne tenta demonstrar que desde Kant, passando por Humboldt e por Ritter, a geografia teria se caracterizado por ser o estudo das diferencas regionais. Este é, pois, o traco distintivo que marca a natureza da geografia e a ele devemos nos ater./O método regional, ou seja, o ponto de vista da geografia, de procurar na distribuicdo espacial dos fendmenos a caracterizacao de unidades regionais, é a particularidade que iden- tifica e diferencia a geografia das demais ciéncias. Hé outros cam- pos que estudam os mesmos fenémenos, a geologia, a climatolo- gia, a botanica, a demografia, a economia, a sociologia etc., mas%6 a geografia, segundo Hartshorne, tem esta preocupac4o primor- dial com a distribuicdo e a localizacéo espacial e este ponto de vista é o elemento-chave na definicado de um campo epistemoldgi- co préprio a geografia. Muito embora a perspectiva de Hartshorne se inscreva tam- bém na valorizacao de uma geografia regional, um ponto funda- mental o distingue da maior parte dos autores da chamada “Escola Francesa”. Para ele, a regiao nao é uma realidade evidente, dada, a qual caberia apenas ao gedgrafo descrever. A regido é um produto 60 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS: mental, uma forma de ver 0 espaco que coloca em evidéncia os fundamentos da organizacao diferenciada do espaco/ HA& em Hartshorne, como em Hettner, a suposicao de que o método coro- légico orienta a geografia para uma unificacao de seu campo de pesquisas fisico e humano e a regio é a sintese destas relagdes complexas./A regido é, a0 mesmo tempo, 0 campo empfrico de observag4o e 0 campo da verificagao das relacées gerais. A partir do método regional a dicotomia sistemdtico-particular desaparece em uma espécie de complementariedade inerente ao proprio con- ceito de regido’ Hartshorne, inspirado pela classificagéo das ciéncias de Kant, sugere uma separacao entre as ciéncigs sistematicas de um lado e de outro — a Geografia e a Histéria. O campo sistematico das ciéncias naturais est4 mais proximo do modelo nomotético, enquanto as ciéncias sociais, pelo carater nico dos fenémenos que estudam (os mesmos fatos nado se repetem na histéria, uma montanha, ou um rio nunca é igual a outro) se identificam muito mais ao modelo idiogréfico” Todas as disciplinas, no entanto, segundo Hartshorne, devem fazer apelo aos dois procedimentos — nomotético e idiografico — a ciéncia, alids, costuma proceder do particular ao geral. Ele reconhece pois a necessidade de estabe- lecer esquemas gerais em todos os campos cientificos, inclusive na geografia. Entretanto, uma grande parte dos fendmenos obser- vados pela geografia possuir um carter singular e uma localiza- cdo tinica. Desta maneira, a despeito do fato de que a meta funda- mental da geografia deva ser o estabelecimento de uma classifica- go global de regides, em sistemas genéricos e especificos (a pri- meira, fruto de uma classificagaéo comparativa; a segunda, uma sintese singular de localizagdes, HARTSHORNE, 1939, p. 378), estas regides possuem sempre aspectos que sao irredutiveis a qualquer generalizacao. Esta perspectiva da incontorndvel singularidade regional de Hartshome vai se colocar no centro das criticas que a ele serao dirigidas nos anos posteriores. De fato, apesar de uma 0 CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 61 argumentacao global que valoriza o comportamento nomotético, Hartshorne termina por afirmar a exceléncia do método regional, das singularidades e dando um lugar de destaque ao tinico na geo- grafia. Segundo P. Claval, “o espago de Hettner e de Hartshorne acaba sendo con- cebido como um espaco concreto e a geografia como uma hist6ria natural das paisagens terrestres. A curiosi- dade destes autores se orienta muito mais para uma abordagem idiografica do que propriamente para uma abordagem nomotética que vai interessar cada vez mais aos gedgrafos contemporaneos. (CLAVAL, 1974, p. 121). A obra de Hartshorne, publicada em 1939, teve grande reper- cussao e foi durante quase duas décadas a referéncia fundamental nas discuss6es metodoldgicas da geografia. Ela esteve, por isso, no centro das criticas e dos debates que pretenderam renovar a geografia a partir dos anos cingiienta. Este periodo da geografia classica se fecha por um debate cada vez mais insidioso que recoloca em diivida os valores e o estatuto de uma ciéncia idiografica, comprometida com fatos tni- cos, com a descri¢éo e com a compreens&o e que, ao mesmo. tempo, renuncia as leis gerais, as teorias e 4 explicacaio (SCHAEFER, 1953). A regido é um dos alvos fundamentais deste debate, pois ela foi alcada na geografia classica a uma posi¢Ao central, isto é, iden- tificar e descrever regides foi o projeto fundamental que alimentou a geografia desta época. Este programa de pesquisas geografico cléssico, muito préximo da perspectiva de uma ciéncia idiografi- ca, que tinha a regido como centro, ficou por isto conhecido como empiricista e descritivo, pelo peso relativamente grande das monografias regionais. E igualmente importante reconhecer que 0 conceito de regio, visto sob esta forma classica, péde preservar a unidade fundamental do campo da geografia, instituida sob o for- 62 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS mato de discussdo da relaco homem-meio. No conceito de regio, ou sua manifestacdo, ha o pleno encontro do homem, da cultura com 0 ambiente, a natureza; a regido é a materialidade desta inter- relacio, é também a forma localizada das diferentes maneiras pelas quais esta inter-relacdo se realiza. Dessa forma, a regio era vista como 0 conceito capaz de Promover o encontro entre as ciéncias da natureza e as ciéncias humanas, 0 produto-sintese de uma reflex4o verdadeiramente geografica. Segundo Hartshome, que seguia a orientagéo de Hettner, esta localizago singular do objeto geogrdfico, no vértice das cién- cias naturais e sociais, corresponderia 4 principal propriedade da geografia face as outras ciéncias. A geografia era assim um ponto de vista, possui uma natureza epistemoldgica diversa e, portanto, "deve proceder segundo um método particular: o método regional. \, Como foi dito antes, a crise da geografia classica coincidiu com uma grande rediscussdo da noc&o de regiao, da propriedade de um método particular 4 geografia e de uma natureza distinta do conjunto das outras ciéncias. As criticas se multiplicaram. Uma das mais importantes diz respeito ao carater “excepcionalista” (0 fato de ver os fendmenos como tinicos) do saber geografico. O argumento fundamental desta critica é a de que em um mundo sem teorias, sem modelos, todos os fatos sao tnicos. A geografia assim, através desta perspectiva regional-descritiva, jamais teria alcancado o estatuto verdadeiramente cientifico, pois'se limitava a descrigao, sem procurar estabelecer relagées, andlises e correla- ¢Ges entre os fatos. Ao mesmo tempo, o fato de acreditar que o método regional fosse caracteristico ao saber geografico também constituia um erro, pois de fato, segundo estes criticos, o método cientifico é um sé, nao ha pontos de vista diversos, ha objetos cientificos diferentes. O da geografia é 0 espago e seu método é a andlise (BERRY, 1964). Neste sentido, a regio nao pode ser vista como uma evidén- cia do mundo real-concreto, ela sequer pode pretender existir no O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 63 mundo cientffico sem estar submetida a critérios explicitos, uni- formes e gerais. Podemos perceber claramente aqui a ruptura com osenso comum. Para que esta nogao de regio se tome um concei- to cientifico é absolutamente necessario que haja uma formulacao clara de seu sentido, de seus critérios e de sua natureza. O estabe- lecimento de regides passa a ser uma técnica da geografia, um meio para demionstracao de uma hipétese e néo mais um produto * final do trabalho de pesquisa. Regionalizar passa a ser a tarefa de dividir o espaco segundo diferentes critérios que s4o devidamente explicitados e que variam segundo as intengées explicativas de cada trabalho (GRIGG, 1967). As divisées nao sdo definitivas, nem pretendem inscrever a totalidade da diversidade espacial, elas devem simplesmente contribuir para um certo entendimento de um problema, colaborar em uma dada explicagao. E neste sentido que a regifio passa a ser um meio e nao mais um produto. A variabilidade das divisdes possiveis é quase infinita, pois s4o quase infinitas as possibilidades dos critérios que trazem novas explicacdes, tudo depende da demonstracio final a que se quer chegar. Na medida em que os critérios de classificagdo e divi- sao do espaco s&o uniformes, s6 interessa neste espaco aquilo que é geral, que est4 sempre presente. O fato particular, o tinico ou excep- cional, nao é do dominio da ciéncia segundo esta perspectiva. A este conjunto de novas regras chama-se analise regional. Nesta abordagem a regido é uma classe de area, fruto de uma clas- sificacZo geral que divide 0 espaco segundo critérios ou varidveis arbitrérios que possuem justificativa no julgamento de sua rele- vancia para uma certa explicagao. Dentro desta perspectiva surgiram dois tipos fundamentais de regides: as regides homogéneas e as regides funcionais ou pola- rizadas. As primeiras partem da idéia de que ao selecionarmos varidveis verdadeiramente estruturantes do espaco, os intervalos nas freqiiéncias e na magnitude destas variaveis, estatisticamente mensurados, definem espacos mais ou menos homogéneos — 64 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS regides isondémicas, isto é, divisées do espaco que correspondem a verdadeiros niveis hierarquicos e significativos da diferenciagao espacial. Quanto as regides funcionais, a estruturac4o do espago nao é vista sob o cardter da uniformidade espacial, mas sim das milti- plas relagdes que circulam e dao forma a um espaco que é interna- mente diferenciado. Grande parte desta perspectiva surge com a valorizacdo do papel da cidade como centro de organizacao espa- cial. Desta forma, as cidades organizam sua hinterlandia (sua area de influéncia) e organizam também outros centros urbanos de menor porte, em um verdadeiro sistema espacial. Toda uma escola de geografia se dedicou, pois, ao estudo do que ficou conhecido como de “regides polarizadas”, ou seja, de um espago tributario, organizado e comandado por uma cidade. Esta concepcao leva Pierre George a afirmar ironicamente que antes, ou seja, na geo- grafia clssica, a regiao fazia a cidade e agora, na geografia moder- na, a cidade faz a regio. Ao estudarmos os fluxos e as trocas que se organizam em um espaco estruturado, ao qual chamamos de regido funcional, ha naturalmente uma valorizacio da vida econémica como funda- mento destas trocas e destes fluxos, sejam eles de mercadorias, de servicos, de m&o-de-obra etc. Se h4 uma funcionalidade no espago que remete a integragéo mesmo ao sistema econémico vigente, é natural que as teorias econémicas que interpretam o desenvolvi- mento deste sistema, digamos mais claramente, o desenvolvimen- to do capitalismo, sejam chamadas para justificar esta funcionali- dade. Desta forma, a interpretacdo das regides funcionais se fez predominantemente de uma forma tributdria da interpretacdo Macroeconémica de inspiracao neocldssica. Assim o foi na base dos modelos espaciais de Christaller ou de Weber, ou ainda no de von Thiinen. A partir dos anos setenta uma grande onda critica se fez pre- O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 65 sente, argiiindo sobretudo o carter ideolégico deste tipo de pers- pectiva amparada nos modelos econémicos neoclassicos. Efeti- vamente, nestes modelos duas noes sao fundamentais na defini- co da funcionalidade: a nocao de rentabilidade e a nogao de mer- cado. Assim, para estes criticos, a geografia ao produzir regionali- zacées baseadas nestas nocées estaria em verdade colaborando com a produc&o de um desenvolvimento espacial desigual, visto sob a mascara de uma complementariedade funcional hierarquica. Ao assumir a dinamica de mercado como pressuposto da organiza- co espacial, estes modelos “naturalizariam” o capitalismo, como a unica forma possivel de conceber o desenvolvimento social, ao mesmo tempo; em que trabalhavam para a manutencao do status quo de uma sociedade desequilibrada e desigual. Esta corrente critica, conhecida como geografia radical, argu- mentava que a diferenciagio do espaco se deve, antes de mais nada, & divis&o territorial do trabalho e ao processo de acumulacao capitalista que produz e distingue espacialmente possuidores e despossuidos. Desta forma, a identificagao de regides deve se ater Aquilo que é essencial no processo de producao do espago, isto é, 2 divisio sécio-espacial do trabalho (MASSEY, 1978). Qualquer outro tipo de regionalizacao que nao leve em conta este aspecto funda- mental passou a ser vista, sob este novo Angulo critico, como um produto ideoldégico que visa esconder as verdadeiras contradigées das classes sociais em sua luta pelo espaco. Novas regionalizag6es foram entao estabelecidas tendo em vista os diferentes padrées de _acumulacao, o nivel de organizacao das classes sociais, o desenvol- vimento espacial desigual etc. E importante perceber aqui o fato de que, embora recusando o funcionalismo como critério para a divi- sao do espaco, esta nova corrente radical aceita que a regido seja um processo de classificagao do espaco segundo diferentes varia- veis. Em outras palavras, a controvérsia se da em relacgaio ao con- tetido, ou seja, em relacao a escolha dos critérios, a forma de pro- ceder metodologicamente, no entanto, é preservada. 66 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS Outros gedgrafos desta corrente, sobretudo aqueles mais in- fluenciados pelo discurso marxista, procuraram estabelecer uma relagao estreita entre o conceito de regiao e os conceitos da eco- nomia politica marxista. Tal é 0 caso das regides vistas como for- macées sécio-espaciais, que se aproxima, ou coincide, com o con- ceito de formacdo sécio-econémica. Para Marx, este ultimo con- ceito corresponderia aos produtos histérico-concretos dos diver- sos modos de produgao. Cada modo de producao apresenta, pois, um conjunto de formacées sécio-econémicas com aspectos parti- culares, com evolucées diversas, mas que possuem em comum as caracteristicas que dio unidade ao modo de produg&o. Cada uma destas unidades deve, pois organizar seu espaco de uma maneira prépria, sendo esta a base de uma regionalizac&o, ou do principio de diferenciacZo do espaco em cada diferente momento histérico. * Surge também deste tipo de reflexao a_idéia da regiao como de uma totalidade sécio-espacial, ou seja, no processo de produgao da vida, as sociedades produzem seus espacos de forma determi- nada e ao mesmo tempo so determinadas por ele, segundo mesmo os principios da ldgica dialética (DUARTE, 1980). A regio 6, pois, nesta perspectiva a sintese concreta e histérica desta instan- cia espacial ontolégica dos processos sociais, produto e meio de producao e reprodugao de toda a vida social (SANTOS, 1978). De fato, da aproximacao destes conceitos da economia poli- tica com a regiao nao resultou um verdadeiro enriquecimento con- ceitual, visto que do enxerto dos instrumentos teéricos do mate- rialismo histérico-dialético néo surgiu um conceito de regiao efeti- vamente operacional e, muitas vezes, a idéia evolucionista e meca- nicista predominou revestida de um vocabuldrio marxista. Fre- qiientemente, a dialética se transforma em determinacao histérica mecAnica onde o estatuto da espacialidade poucas vezes adquiriu independéncia explicativa e, neste vacuo, a totalidade sécio-espa- cial se transmuta na “velha” idéia da sintese regional, reforcando- se assim as concepcées metodoldgicas da geografia classica, como alias nos havia advertido YVES LACOSTE (1977). O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO. 67 Em meados da década de setenta surgiu uma outra corrente critica que, no entanto, dirigiu sua apreciacio sobre outros aspec- tos. O humanismo na geografia, ao contrario da geografia radical, foi buscar no passado da disciplina elementos que, segundo estes autores, seriam importantes resgatat. Um destes elementos foi a nogao de regiao, vista como um quadro de referéncia fundamental na sociedade. Consciéncia regional, sentimento de pertencimento, mentalidades regionais sao alguns dos elementos que estes autores chamam a atencio para revalorizar esta dimensdo regional como um espaco vivido (PELLEGRINO, 1983; POCHE, 1983; RICQ, 1983). Nes- te sentido, a regiao existe como um quadro de referéncia na cons- ciéncia das sociedades; 0 espaco ganha uma espessura, ou seja, ele é uma teia de significagdes de experiéncias, isto é, a regido define um cédigo social comum que tem uma base territorial (BASSAND e GUINDANI, 1983). Novamente, a regiao passa a ser vista como um produto real, construfdo dentro de um quadro de solidariedade ter- ritorial. Refuta-se, assim, a regionalizacdo e a andlise regional, co- mo classificag4o a partir de critérios externos 4 vida regional. Para compreender uma regiao é preciso viver a regiao. A partir deste quadro sumario podemos concluir que a regiao esteve no centro de diversos debates que ainda hoje animam as discusses epistemolégicas da geografia. O primeiro deles 6, como vimos, aquele delineado pelas nogGes de regiao natural e de regido geografica. O que est4 em jogo nestas duas nocées é 0 peso diferente atribufdo as condicdes naturais como modelo explicati- vo para interpretar a diversidade na organizacao social. Se a geo- grafia se define como o campo disciplinar que analisa a relacao entre a sociedade e o meio arabiente, que critérios sio definitivos na demarcacao da diversidade espacial, aqueles advindos das ca- racteristicas naturais ou aqueles definidos pela cultura? Pode- rfamos encontrar uma solucdo de consenso ao dizer que se trata de uma relaco dinamica em que ha uma reciprocidade de influén- cias ou como disse Vidal de La Blache: 68 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS, “O homem faz parte desta cadeia [que une as coi- Sas aos seres] € em suas relacdes com 0 que OS cerca, ele 6 ao mesmo tempo ativo e passivo, sem que seja facil de determinar, na maior parte dos casos, até que ponto ele é um ou outro” (VIDAL DELA BLACHE, 1921, p. 104). De qualquer maneira, se ao nivel de um discurso de inten- des este ponto de vista péde subsistir, operacionalmente torna-se muito dificil trabalhar em um terreno tao fluido quanto este da reciprocidade. Muitas questdes restam a ser respondidas, como, por exemplo, se ha uma natureza possivel de ser investigada em suas relagdes com a cultura sem se contaminar com os éculos da prépria cultura que envolve o homem? A que tipo de homem esta- mos nos referindo, ao ser biolégico que sofre as pressdes do meio a0 mesmo titulo que as outras espécies animais e vegetais (como em Max Sorre) ou estamos falando de um ser social que reveste sua relacéo biolégica de valores e em que estas construcées pas- sam a Ser 0 Seu verdadeiro “meio ambiente”? Estas e outras ques- t6es podem ser respondidas de forma muito diversa e parece que estamos longe de poder afirmar praticamente no trabalho do ge6- grafo o pretendido consenso proclamado. De qualquer forma, este momento da geografia foi importan- te na afirmagdo de um campo de pesquisas unificado, ou melhor, tanto a regido natural quanto a regiéo geogrdfica significavam a- manutencdo de uma reflexao que incluia homem e natureza dentro de um mesmo quadro analitico, posigao que nao podera ser preser- vada, a despeito de outros discursos mitificadores na posteridade. Nas concepcées predominantes da regiaio que surgem a partir dos anos 50, a tendéncia é a dissolugao da regionalizacao fisica e humana como sistemas correspondentes a ordens diferentes, ou como afirmava Gourou, os elementos fisicos e os elementos humanos das paisagens nao devem ser verdadeiramente vistos como conjuntos estruturados (GOUROU, 1973). Em outras palavras, O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 69 alégica que preside a divisao regional sob o angulo de uma ordem natural nao pode ser enxertada 4 ordem social e vice-versa, 0 que resulta em uma renincia da geografia moderna em ver a regio como um objeto sintético que poderia resolver o velho problema dict6mico entre a geografia fisica e a geografia humana. Outro grande debate que tem repercussées na regido é aque- Je entre os modelos de uma ciéncia do geral e de uma ciéncia do singular. No primeiro caso, o modelo é analitico e se destina a pro- duzir leis gerais e medidas objetivas na observacio dos fatos estu- dados. A intengao fundamental é estabelecer uma explicacao geral e sua legitimidade esta associada ao comportamento objetivo, a capacidade de trabalhar com conceitos abstratos e generalizantes sobre uma base sistematica. Neste caso, a regido é vista como 0 resultado de uma classificagdo, uma classe de area obtida através da aplicagao de um critério analftico de extensao espacial, util na compreensao de um dado fenémeno ou problema, portanto arbi- trariamente concebido para operar em um sistema explicativo (GRIGG, 1965). Na perspectiva da ciéncia do singular, o modelo é sintético, os fendmenos sao vistos como uma matéria nao desmembravel e portanto sua identidade deve ser tomada globalmente em toda a sua complexidade. O trabalho intelectual nao se elabora a partir de idéias-conceitos abstratos, produzidos por generalizagdes, mas a partir de categorias que se definem pela descrigdo de casos con- cretos, ou seja, o fendmeno em si é fundador de uma categoria. Este método compreensivo de conhecimento se baseia em descri- gées detalhadas, obtidas gracas a um contato direto e prolongado com a realidade e pela utilizacao de categorias sintéticas que pos- suem uma explicabilidade em sua maneira propria e particular de ser. A regido neste ponto de vista é concebida como uma realidade auto-evidente, fisicamente constituida, seus limites so, pois, per- manentes e definem um quadro de referéncia fixo percebidos muito mais pelo sentimento, de identidade e de pertencimento, do 70 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS, que pela légica (FREMONT, 1976). E esta dualidade que marca o debate entre as propostas conhecidas como Geografia Geral ou Sistemdtica e Geografia Regional. Nas palavras de Juillard, por exemplo, encontramos claramente este tipo de debate: “Existem pois duas abordagens diferentes da rea- lidade geogrAfica, uma que se aproxima da ecologia e, consegiientemente, incorpora antes de mais nada os dados das ciéncias naturais e da sociologia; a outra esta ligada sobretudo ao funcionamento do espaco territo- rial e da destaque aos dados da economia politica (...) Longe de exclufrem uma a outra, estas duas aborda- gens se esclarecem mutuamente, mas somente a segun- da permitira talvez ultrapassar a enfermidade congéni- ta da geografia: sua inaptiddo para a generalizacao” (JUILLARD, 1974). Finalmente o terceiro debate que identificamos é aquele que pretende saber se é possivel identificar critérios gerais e unifor- mes que estruturam 0 espaco ou se estes critérios sio mutaveis ° se definem pela direcio da explicagio ou das coordenadas as quais o pesquisador faz variar de acordo com suas conveniéncias explicativas (As regides siio, assim, no primeiro caso, 0 resultado de uma divisao do espaco que é em principio submetido essencial- mente sempre as mesmas varidveis, definindo-se, pois, através desta divisdo um sistema espacial classificatério, uniforme e hie- rérquico} no segundo caso{gs regides sao concebidas como produ- tos relativos, fruto da aplicag&o de critérios particulares que ope- ram internamente na explicabilidade daqueles que as propdem, tém, pois, um carater demonstrativo na comprovacao do dominio de certas varidveis no interior de determinados fendmentos. Apés esta discussio sobre os debates propriamente episte- molégicos que envolvem a nocdo de regiZo estamos talvez mais O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 7 aptos a retornar 4 atualidade para examinarmos alguns elementos recentes da discussao. E moeda corrente hoje no discurso dos geégrafos 0 conceito de globalizacao. Em geral, esta palavra expressa a idéia de uma economia unificada, de uma dinamica cultural hegeménica, de uma sociedade que s6 pode ser compreendida como um processo de reprodugdo social global. Este debate incide, pois, sobre as relacées antag6nicas entre conjuntos de Estados e, sobretudo, no interior deste como uma oposicao entre Estado e regides (CARNEY, 1980; BECKER, 1984, DAMETTE e PONCET ,1980). Muitos foram aque- les que afirmaram que os novos tempos anunciavam o fim das regides pela homogeneizacaio do espaco ou pela uniformizacao das relac6es sociais (LIPIETZ,1977). Segundo esta versao, os movi- mentos regionais ou regionalistas sao em geral vistos como movi- mentos de resisténcia 4 homogeneizac4o, movimentos de defesa das diferengas e por isso contam com a simpatia e a adesdo ime- diata de grande ntimero de pessoas. A simpatia também é em geral estendida a estes movimentos regionais quando se contesta a malha administrativa e gestionaria do Estado, como uma manifes- tacZo espontanea dos interesses locais face 4 burocracia esmaga- dora do poder central, insensivel as diferencas e as desigualdades (MARKUSEN, 1981). Em verdade, falar em simpatia parece vago e este sentimento se alimenta de fato de uma postura ideoldgica que tem “nos direi- tos a diferenga” seu discurso maior. No entanto, é necessario per- ceber que este discurso do direito 4s diferencas, que alimentou tantos movimentos e foi a base de uma ideologia da democracia das minorias, significa também o direito & exclusao. O regionalis- mo visto sob este Angulo perde-um pouco de seu revestimento generoso e pode ser visto como uma legitimac4o da estranheza, do reptidio e da incapacidade de conviver com a diferenca. Por isso, muitos preferem hoje falar do “direito a indiferenca”, desta possi- bilidade de gerir a alteridade que, de certo modo, é a possibilidade 7 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS de um cosmopolitismo modemo que opée a nocao de comunidade ade cidadao. Este tema tem, alids, alimentado na sociologia politi- ca grandes discussées em torno dos direitos e limites do multicul- turalismo no seio de uma mesma comunidade ou ainda dado forma a uma oposicao cada vez mais referida entre cultura nacio- nal ou grande cultura versus subculturas ou culturas locais. Mais uma vez constatamos a relacdo de proximidade entre territério e politica, entre limites territoriais de soberania ou autonomia e, Mais uma vez, confirmamos a rede de vinculos que estes debates mantém com o conceito de regiao. 7 Ao mesmo tempo, porém, o discurso regional pode ser tam- bém o veiculo encontrado por uma elite local para sua preserva- ao, forjando um conflito que reitera sua posig&o de lideranca e seu controle sobre aquele espaco (CASTRO, 1988). Mais grave ainda sao as situacdes bem contemporaneas onde a aspiraco da auto- nomia, baseada em um discurso regionalista, esté a servico de um grupo nao exclusivo em uma dada area, que pretende impor uma identidade que o colocara na posicao de controle “legitimo” daque- Je territério. Dissemos no inicio que a regio tem em sua etimologia 0 sig- nificado de dominio, de relacdo entre um poder central e um espa- Go diversificado. E hora talvez de estabelecer que na afirmagao de uma regionalidade ha sempre uma proposi¢ao politica, vista sob um Angulo territorial. A tao decantada globalizacdo parece concre- tamente no ter conseguido suprimir a diversidade espacial, talvez nem a tenha diminuido. Se hoje o capitalismo se ampara em uma economia mundial n&o quer dizer que haja uma homogeneidade resultante desta acgao. Este argumento parece tanto mais valido quanto vemos que o regionalismo, ou seja, a cpnsciéncia da diver- sidade, continua a se manifestar por todos os lados. O mais prova- vel €é que nesta nova relacao espacial entre centros hegeménicos e as reas sob suas influéncias tenham surgido novas regides ou ainda se renovado algumas j4 antigas. Mas 0 que sao estas regides O CONCEITO DE REGIAO E SUA DISCUSSAO 3 hoje em dia, grupos de Estados (Comunidade Européia, Nafta etc.), parcelas subnacionais, como no tradicional estatuto geogra- fico que coloca a regiaio como alguma coisa entre o local e 0 nacio- nal, unidades supranacionais com uma forte identidade cultural (mundo arabe)? Certamente os possiveis recortes regionais atuais séo milti- plos e complexos, certamente ha recobrimento entre eles, certa- mente eles sio mutaveis, mas ao aceitarmos todos estes recortes como regides nao estariamos voltando ao sentido do senso comum, de uma nocao que tao simplesmente pretende localizar e delimitar fenédmenos de natureza e tamanho muito diversos e que, portanto, perde todo o contetido explicativo, como conceito? Nao nos demos como tarefa produzir um novo conceito de regiao, adaptado 4 contemporaneidade, mas acreditamos ser util repensar estes pontos acima levantados. De qualquer forma, se a regiao é um conceito que funda uma reflexdo politica de base terri- torial, se ela coloca em jogo comunidades de interesse identifica- das a uma certa drea e, finalmente, se ela é sempre uma discussio entre os limites da autonomia face a um poder central, parece que estes elementos devem fazer parte desta nova definigao em lugar de assumirmos de imediato uma solidariedade total com o senso comum que, neste caso da regido, pode obscurecer um dado essencial: o fundamento politico, de controle e gestao de um terri- trio. 4 GEOGRAFIA: CONCEITOS E TEMAS: BIBLIOGRAFIA BASSAND, Michel e GUINDANI, Silvio (1983). Maldéveloppement régio- nal et luttes identitaires, Espaces et Sociétés, n° 42, Paris, pp. 13-26: BECKER, Bertha (1984). A Crise do Estado e a Regiao: Estratégia da Descentralizagéo em Questao, Ordenagdo do Territério: Uma Ques- tao Politica? BECKER B. (Org,). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, pp. 1-35. 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