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Plinio, o Velho: uma historia material da pintura Pliny the Elder: a material history of painting ‘Annateresa Fabris* Res ‘Autor de uma obra enciclopédica, Histéria Natural, Plinio, 0 Velho ¢ uma fonte quase dnica pata a arte antiga. No Livro XXXV de sua enciclopédia encon- twam-se dados sobre artistas, descricdes de obras de arte informagbes sobre materiais e técnicas,além de jufzos que permite compreender os tracos fundamentais da mentalidade estética romana. Palavras-chave: Pintura, arte antiga, Roma. Nascido em Novum Comum (atual Como, Itélia) em 23 ou 24, Plinio, © Velho (Caius Plinius Secundus), apés ter exercido a atividade legal em Roma, foi oficial de cavalaria na Alemanha, Entre 70 e 76 exerceu 0 cargo de procurador na Galia, na Africa, na Es- panha e, provavelmente, na Judéia e na Siria, Nomeado comandante imperial da frota de Miseno, um dos principais portos romanos, morreu em seus arredores em 79, durante a erupcao do Vestivio que destruiu Pompéia e Herculano. Natureza essencialmente pragmatic, dedicava grande parte de seu tempo ao estudo. Acompanhiado por um escravo, lia e tomava apontamentos durante as viagens e em varios momentos do dia (inclusive durante as refeic6es e nos banhos): escreve, assim, sete obras que V0, da arte militar & biografia, da oratéria a historia até chegar a compilac3o da primeira enciclopédia juizo sobre Plinio escritor baseia-se na Historia Natural, a Unica obra que chegou até nés, e ndo pode deixar de ser positivo, se lembrarmos que se trata da primeira enciclopédia de que se tem noticia. Guiado por um objetivo didatico, Plinio deseja fazer conhecer ao homem, pequena parte do Todo, os multiplos aspectos da natureza, uma vez Professora do Programa de Pés-Graduacéo em Artes da Escola de Comunicacdes ¢ Artes da Universidade de Sao Paulo. Pesquisadora do CNPq, i que este ¢ indefeso e deve aprender tudo. Por isso, abarca todos os campos do existente ~ do verificdvel ao fantasioso, levando Jorge Luis Borges a afirmar que a “fabula da Fenix n3o 0 atrai menos que a anatomia da formiga”'. Essa conjuncdo de “ciéncia” ¢ “fantasia” pode ser facilmente verificada na estrutura da obra, cujos trinta e sete volumes sio um verdadeiro resumo da cultura do periodo, Dedicada a Tito (39-81), a Histéria Natural € publicada em 77, com excecdo do | Livro, cujo contedde foi reunido pelo sobrinha Plinio, o Jovem (42-113) apés a morte do tio, Essa primeira parte da obra contém o sumario geral € 0 elenco das fontes que, na primeira edicdo, precediam cada livro. © proprio autor fornece uma descricao delas na dedicate fazer referéncia a "20.000 noticias dignas de meméria, derivadas da leitura de aproximadamente 2,000 volumes, de 100 autores escolhidos. Mais noticias novas"?. Se Plinio se refere a cem autores escolhidos, isto ¢, aqueles que lhe pareciam particularmente mere- cedores de leitura por riqueza e autoridade de informacao, 0 indice real dos auctores consultados é bem maior ~ mais de 470, sendo 146 latinos e 327 gregos. ‘Ao Prefécio segue-se a verdadeira Enciclopédia, “um caminho nem percorrido pelos autores, nem no qual se caminhe 4 vontade. Nao ha entre nés quem tenha tentado a mesma coisa, e nem hi, mesmo entre os Gregos, quem sozinho tenha tratado todas essas coisas juntas”. Ao fazer essa afirmacdo, Plinio da mostras de ter cons- ciéncia do aspecto inovador do proprio empreendimento, que obedece 8 seguinte distribuicdo: 1 - Sumario geral e elenco das fontes Il = Descticdo matematico-fisica do mundo (corpos celestes, fendmenos meteoroldgicos; estacdes; forma da terra; fendmenos da superficie terrestre: mares, rios, mananciais) Ill a VI = Geografia e etnografia (Europa, Africa e Asia) ‘VI - Antropologia e fisiologia (estudo do homem e dos fatos portentosos € maravilhosos da “engenhosa natureza") ‘VIII = Zoologia (animais terrestres, entre os quais os fantasticos) IX - Zoologia (animais aquaticos, entre as quais os “fabulosos” trites e nereidas) X - Zoologia (aves) XI = Zoologia (insetos € anatomia comparada) Xi a XIX - Botnica 3X a XVII - Botdnica medicinal XXVIII a OOK! ~ Remédios derivados do corpo do homem e de ‘outros animais SOCK a XXKVII ~ Mineralogia e produtos metalicos (materials preciosos; bronze, estatuaria em bronze, ferro e chumbo; pinturs; pedra e arquitetura; gemas e pedras preciosas). A pintura na Histéria Natural 0 elenco das matérias tratadas - que permite considerar a Histéria Natural nao apenas uma obra de erudicao, mas sobretudo a sistematizacdo de uma cultura bem vasta, fruto de um trabalho intenso de leitura e sinal de um profundo interesse pela cincia - nao deixa de confrontar com um problema fundamental quem deseja analisar um aspecto parcial do trabalho de Piinio, O livro da pintura nao representa um tratado autonomo, sendo um dos aspectos da mineralogia e de seus derivadas. Isso leva-nos a pressupor que o autor ndo esta inte- ressado em constituir uma Histéria da Arte, como a entendemos atualmente, e sim em verificar a aplicacao da ciéncia aos varios aspectos da vida social. “Citncia pura” e “ciéncia aplicada”, pois, mas no um interesse especifico pela disciplina artistica. Disso deriva uma pergunta: é legitimo extrair o Livro XXXV do contexto das ciéncias naturais ¢ transform4-lo numa fonte independente de informac6es, apesar do objetivo abarcador do autor? Sim, se levarmos em conta o juizo de Eugenia Sellers, para quem 0 texto de Plinio é um episédio suficientemente completo em si, podendo tomar-se tema de uma pesquisa especifica’; de Julius Schlosser Magnino, 0 qual, mesmo lembrando que a arte desempenha um papel secundario (“ilustracdo do natural por intermédio do artificial”) na Historia Natural, no deixa de reconhecer o mérito de Plinio em ter legado “um quadro do desenvolvimento da arte antiga, frequientemente desordenado, mas,em todo caso original”; de Pierre-Emmanuel Dauzat, que considera positiva a recusa dos excessos neronianos por parte do autor, pois atestaria a existéncia de “uma real sensibilidade estética, servida por uma lingua elegante e um cuidado constante em partilhar seus sentimentos diante das mirabifia - obras da natureza ou da mao do homem”*; de Jacqueline Lichtenstein, para quem o interesse do texto pliniano reside ndo s6 ‘nas informacdes sobre a vida dos pintores, escultores e arquitetos do periodo estudado e dos procedimentos técnicos utilizados por eles, mas também na demonstracio involuntaria de que “o prestigio do aftista antigo e as honras que o cercam so 0 fruto de uma ficcdo retrospectiva dos autores do Renascimento”. Sim, se for lembrado 0 ‘earater imprescindivel dos dados fornecidos por Plinio sabre a histéria da arte romana (e grega). __ Dessas consideragSes parece emergir o perfil de um Plinio “critica de arte”, Mas serd justa essa definicso, se a maioria dos autores que estudou seu pensamento sublinha sua pequena contribuic3o pessoal €m contraposicdo 4s numerosas fontes nas quails se inspirou e das co ‘quais se perdeu quase toda noticia? Para Eugenia Sellers, a “historia da arte” pliniana tem um valor nico, uma ver que se petderam quase todos os textos dos autores que precederam. E, mesmo que nos Indices aparecam os nomes de numerosos autores gregos, a analise do Livre XW demonstra que o escritor romano nao possula um conhecimento direto dos textos mencionados, tendo provavelmente buscado inspiracao em fontes latinas, entre as quais Varrdo (116-27 aC), que, por sua vez, citava informacoes obtidas de maneira indireta’. Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, gracas a uma série de estudas filolégicos, foi possivel determina as tontes de Plinio, Ganharam destaque a figura de Xendcrates e a critica grega do século Ill aC. Em Xenocrates von Athen (1932), Schweitzer remetia a esse pensador os aspectos fundamentais das formulacdes de Plinio, ou seja, © conceito de evolucao (todo género tem um inventor ~ primus - € um aperfeicoador) ¢ os critérios técnicos (simetria, ritmo, argutia, difigentia, composicdo, contraste cromitico, perspectiva, tom)’. Lionello Venturl, por sua vez, fala de duas fontes inditetas ~ Xendcrates de Sicion e Antigono de Caristo -, mas acaba por fundi-las na figura de Xendcrates (por ser o mais importante dos dois), acrescentando aos conceitos de Schweitzer as categorias da mimese ¢ da beleza como simbolo da moralidade". Essas breves indicacSes demonstram o cardter complexo da problematica das fontes plinianas, enfrentada em varios momentos sobretudo pela escola alema, mas no € esse o assunto que interessa na presente reflexio, voltada para outro tipo de abordagem: Plinio enquanto testemunho da pintura romana ou presente em Roma, vista pelo prisma do pragmatismo e do principio mimético. O “sistema” pliniano Deixando momentaneamente de lado essas duas coordenadas, que podem ser consideradas © eixo fundamental do discurso pliniano, deve-se concordar com Silvio Ferri quando afirma que o objetivo de Plinio nao foi o de escrever uma “histéria da arte”, e sim 0 de redigit uma lista dos artistas antigos de acordo com um principio alexandrino (diadas, triadas, tétradas, décadas), fixando seu acme, sua patria, suas ‘obras e dando um juizo sumario a respeito de cada um deles"'. Esse citério, alids, foi parcialmente revelado pelo proprio Plinio, que assim define a estrutura de seu trabalho: “E agora, com a maior brevidade, elencarei os célebres da pintura, pois nao ¢ proprio dessa obra estender-se no assunto; seri suficiente, por conseguinte, nomear alguns de passagem © em paralelo & lembranca de outros, excetuando-se naturalmente as obras-primas que deverdo ser também lembradas, quer existam ainda, quer tenham sido destrutdas" ‘Os artistas s30 classificados por méritos decrescentes, de acordo com quatro rubricas - clari, lumina artis, primis proximi, non ignobiles =: dentro delas, 05 nomes sdo dispostos em ordem alfabética, geral- mente em tétradas. Embora Plinio seja sobretudo um compilador, um reelaborador de dados, nao se pode ignorar seu contato direto com obras de arte anteriores a fundac3o de Roma, butim de guerra ou produzidas na cidade. Apés ter demonstrado ser favordvel aos gregos na disputa com ‘9s egipcios sobre as origens da pintura'?, 0 autor lembra 0 desen- volvimento desta no territério itdlico, tomando como patadigma obras de Landvio, Caere e Ardéia, que define “pincuras que admiro como enhuma outta, tio frescas depois de tanto tempo, mesmo estande ao ar livre", Apesar de Plinio falar em “letras latinas antigas” em sua referéncia a0 epigrama inscrito na pintura do asidtico Licon (depois rebatizado Marco Pléutio) no templo de Juno em Ardéia'§ ~ que seria anterior a propria fundac3o de Roma em 753 ac. -, a critica atual revil 0 epis6dio € 0 situa no século Il, no Ambit de um afluxo mais amplo de artistas estrangeiros para a cidade, sobretudo no periodo helenistico. Embora Plinio lembre os primelros nomes de Damarato € Ecfanto'*, de Damdfilo e Gérgaso que teriam decorado o templo de Ceres no Circo Maximo, em 49% a.C.”, € naquele segundo perfodo mais rica em intercimbios culturais que se destacam os nomes do ateniense Metrodoro, “ilustrador® do triunfo de Licio Paulo e instrutor de seus filhos (168 aC)"*,e de lala de Citico (116-26 a. C), famosa no periodo de Silas (88-46 a,C) por seus retratos em tempera e encdustica'’, superiores em qualidade preco aos dos ja afirmados Sépolis e Dionisio™, Se as noticias sobre os primelros artistas citados permitem confirmar as posteriores descobertas arqueolégicas, que estabeleceram uma origem estrangeira para a pintura romana, nfo pode ser esquecido que, em 304 a.C, comeca a afirmar-se uma expressdo autéctone que Plinio faz remontar ao patricia Fabio Pictor*', seguido por outros personagens de estirpe como o dramaturgo Pacivio (que, em 168 a.C. teria sido encarregado da decoracio pictérica do Templo de Hercules no Forum boarium)*, 0 cavaleiro Turpilio, o pretor Titédio Labeo, escamecido por seus pequenos quadras, e o “pramissor” Quinto Pédio, falecido na adolescéncia, que fora encaminhado para a pintura para compensar um defeito de nascenca®™ Arteteréncia a esses nomes patricios no deve levar a crer que a pintura gozasse em Roma do mesmo prestigio que tinha na Grécia, MS como Plinio registra, ao lembrar a aprendizagem desde cedo da pintura sobre madeira (graphiké), considerada uma arte liberal “E ela teve sempre a honra de ser exercida por cidadaos livres, € posteriormente também por pessoas de estirpe, enquanto foi per- petuamente proibido seu ensino aos servos™. Ao prolifico panorama grego contrapée-se o deficiente desenvolvimento da expresso pictérica romana, que se tornou loge atividade de plebeus e libertos. Séo escassos os nomes dos artistas nativos arrolados por Plinio: o retratista Arélio; o palsagista Studius [ou Ludio) do periodo de Augusto (63 a.C.-14); Famulo, o pintor da Domus Aurea; Comélio Pino e Atio Prisco, que pintaram, sob Vespasiano, (9-79) os templos restaurados da Honra e da Virtude’*. Essa pequena incidéncia de nomes de artistas autéctones ou que atuavam na cidade em contraposicdo aos dados sobre os pintores: gregos ¢ as obras presentes em Roma ndo deve ser vista como uma peculiaridade de Plinio, mas reportada ao Ambito mais vasto da formacio do Jovem romano. © cidadao ideal nao era o intelectual, o artista, € sim 0 soldado, o pai de familia, o magistrado, Cultivava-se a literatura pelo seu conteddo ético, mas era bem diferente a visio da arte,

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