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Aby Warburg e a ciéncia sem nome 1 O presente ensaio tem como objetivo a situagio critica de uma disciplina que, ao contrario de tantas outras, existe mas ndo tem nome. Uma vez que o criador dessa disciplina foi Aby Warburg,’ s6 uma atenta andlise de seu pensamento poder fornecer 0 ponto de vista do qual tal situac3o se tornara possivel. E s6 a partir de tal situagao sera possivel perguntar se essa Cai suscetivel de receber um nome € em que medida os nomes até agora propostos respondem ao objetivo. A esséncia do ensinamento e do método de Warburg, tal como ficou expresso na atividade da “Biblioteca para as ciéncias da cultu- ra”, em Hamburgo, que se tornou mais tarde o Instituto Warburg,” é habitualmente caracterizada como uma como t ' A boutade sobre Warburg como criador de uma disciplina “gui, d'inverse de sant d'autres, existe, mais n'a pas de nom" [“que, a0 contrario de ovtras, existe, mas nio tem nome"] € de Robert Klein em La forme et Vintelligible (Paris: Gallimard, 1970. p. 224). ? Em 1933, com a chegada do nazismo, o Instituto Warburg foi, como se sabe, trans- ferido para Londres, onde, em 1944, foi integrado 4 Universidade de Londres. Cf. SAXL, Fritz. The History of Warburg’s Library. In: GOMBRICH, Ernst. Aby Warburg. An Intellectual Biography. London: The Warburg Institute, 1970. p. 325-326 (traducio italiana: Aby Warburg. Una biografia intelletuate. Milan: Felerinelli, 1983). ql um deslocamento do foco da investigacio da histéria dos estilos e da avaliagio estética para os peeks pragilaticos © leonOgTaniedS da obra de arte, tal como eles resultam do estudo das fontes literarias e do exame da tradi¢ao cultural. A lufada de ar fresco que a aproximacao warburguiana 4 obra de arte teria soprado nas 4guas estagnadas do for- malismo estético é confirmada pelo éxito crescente das investigacdes que se inspiraram em seu método e que conquistaram um ptblico tio vasto, mesmo para além dos circulos académicos, que se péde falar de uma imagem “popular” do Instituto Warburg, A par desse alargamento da fama do instituto, assistia-~se, porém, a uma obliteragio crescente da figura de seu fundador e de seu projeto original, enquanto a edicio dos escritos e dos fragmentos inéditos de Warburg era continuamente anunciada e nao chegou até hoje a ver a luz.* Naturalmente, essa caracterizagio do método warburguiano reflete uma @fitudelperante alObraldelante que foi indubitavelmente propria de Aby Warburg. Em 1889, enquanto preparava na Univer- sidade de Estrasburgo sua tese sobre 0 Nascimento de Vénus e sobre a Primavera, de Botticelli, deu-se conta de que qualquer tentativa de compreender a mente de um pintor do Renascimento seria initil se o problema fosse abordado sé de um ponto de vista formal,! ¢ durante toda a vida laisthetisierende Kunstgeschichte]” Mas essa atitude nao nascia nele de uma aproxima¢ao puramente erudita ¢ antiquaria dos problemas da obra de arte, tampouco de uma indiferenga pelos seus aspectos formais: sua obsessiva, quase(€onOelasea) atenc3o 4 forca das imagens prova, se fosse necessario, que ele era até bastante sensivel aos “valores for- mais”, € um conceit m que G01 pose orque designa um indissolivel A publicacio da bela “biografia intelectual” de Warburg, da autoria do entio diretor do Instituto Warburg, Gombrich, s6 em parte preencheu essa lacuna, Ela constitui hoje [1984] a mica fonte para o conhecimento dos inéditos de Warburg, [Nesse interim, iniciou-se na Alemanha, pela editora Akademie, a publicagio dos escritos de Warburg] + Otestemunho é de SAXL, The History of Warburg's Library, p. 326. A expressio pode ser lida em uma nota inédita de 1923, entre outras. Cf. GOM- BRICH. Aby Warburg, p. 88. te FILGAGAMBEN entrelagamento de uma carga emotiva e de uma formula iconografi- ca, é prova suficiente de que seu pensamento nao se deixa de modo algum interpretar nos termos de uma oposi¢ao tao pouco genuina como a de forma/contetido, histéria dos estilos/histéria da cultura. O que é Unico e préprio em sua atitude de estudioso nao é tanto um novo modo de fazer histéria da arte, mas mais uma tendéncia para a supera¢ao dos limites da histéria da arte que acompanha desde 0 inicio seu interesse por essa disciplina, como se ele a tivesse escolhido s6 para introduzir nela a semente que a faria explodir. O @BOMIGEESY que, segundo sua célebre maxima, “¢@\ESeOnde os pormenores ndo era, para ele, o nume tutelar da histéria da arte, ma: (Cease ceria iHOMTRAMA cujos tracos s6 hoje comecamos a perceber, 2 Em 1923, quando se encontrava na clinica de Ludwig Binswan- ger, em Kreuzlingen, durante a longa doenga mental que o afastou de sua biblioteca por seis anos, Warburg perguntou aos médicos se lhe dariam permissio de sair no momento em que provasse que estava curado fazendo uma conferéncia para os doentes da clinica. O tema que escolheu para sua conferéncia, os rituais da serpente dos indios da América do Norte,‘ era inesperadamente retirado de uma experiéncia de sua vida que remontava a aves QR °° devia, portanto, ter deixado uma marca muito profunda em sua meméria. Em 1895, quando ainda nio tinha 30 anos, durante uma viagem 4 América do Norte, ele tinha permanecido durante alguns meses com os indios (@GELIOSTEINWAHGR) do Novo México. © encontro com a cultura primitiva americana (4 qual tinha sido introduzido por Cyrus Adler, Frank Hamilton Cushing, James Mooney e Franz Boas) o tinha defi nitivarente dita a do nas ark eonetli (RGR, confirmando nele uma ideia sobre a qual tinha refletido longamente enquanto frequentava em Bonn as aulas de Usener e de Lamprecht. Usener (que Pasquali uma vez definiu como “o filélogo mais rico de ideias entre os grandes alemies da segunda metade do “ A conferéncia foi publicada em lingua inglesa em 1939: WARBURG, Aby. A Lecture on Serpent Ritual, Journal of the Warburg Iustitute, n. 4, p. 277-292, 1939 (tradugio italiana: Hf rituale del serpente, Milan: Adelphi, 1998). GIORGIO AGAMBEN A POTENCIA DO PENSAMENTO ~ ENSAIOS E CONFERENCIAS 113 século XIX”) tinha chamado a atenc4o para um estudioso italiano, Tito Vignoli, que, em seu livro Mito ¢ scienza,* tinha defendido a necessidade de uma abordagem conjunta de antropologia, etnolo- gia, mitologia, psicologia e biologia para 0 estudo dos problemas do homem. Os trechos do livro de Vignoli em que se encontram essas afirmagées estado fortemente sublinhados por Warburg. Durante a estada na América, essa exigéncia juvenil se torna uma) (GRR que se pode dizer que toda a obra de “historiador da arte” de Warburg, incluindo a célebre biblioteca que ele tinha comecado a constituir j4 a partic de 1886,’ sé tem sentido se a entendermos como um esforgo levado a cabo através e para além da histéria da arte no sentido de uma ciéncia mais ampla para a qual ele nio conseguiu encontrar um nome definitivo, mas para cuja configura¢ao trabalhou com afinco até a morte. Nas notas para a conferéncia de Kreuzlingen sobre o ritual da serpente, ele define assim 0 objetivo de sua biblioteca como “uma colegio de documentos que se referem(@jpsicologiayda) '° Nas mesmas notas, confirma sua aversao a uma abordagem formal da imagem em que esteja ausente a “compreensao 7 PASQUALI, Giorgio. Aby Warburg. Pegaso, abr. 1930; agora em PASQUALLI, Giorgio. Pagine stravaganti. Firenze: Sansoni, 1968. v. 1. p. 44. * VIGNOLI, Tito. Mito ¢ scienza. Milan: [5.n.], 1879. A constituigio de sua biblioteca 0 ocupou durante toda a vida e foi, talvez, a obra a que consagrou a maior parte de suas energias. Na sua origem, esti um fatidico epis6- dio infantil: aos 13 anos, Aby, que era o primogénito de uma familia de banqueiros, propés a seu irmao mais novo, Max, ceder-Ihe scus direitos em troca da promessa de comprar todos 0s livros que ele Ihe pedisse. Max aceitou, no imaginando certamente que a brincadeira infantil se tornaria realidade. Warburg ordenava seus livros no pelos critérios alfabéticos ou aritméticos usados nas grandes bibliotecas, mas segundo seus interesses e seu sistema de pensamento, a ponto de mudar a ordem em cada alteracdo de seus métodos de investigacao. A lei que 0 guiava eraa do “bom vizinho”, segundo a qual a solugio de um problema estava contida nio no livro que se procurava, mas em outro que se encontrava ao lado. Desse modo, ele fez da biblioteca uma espécie de imagem labirintica de si mesmo, cujo poder de fascinacio era enorme. Saxl refere a anedota de Cassirer, que, tendo entrado pela primeira vez na biblioteca, declarou que tinha de fugirimediatamente ou ficarfechado nela durante anos. Como um verdadeiro labirinto, a biblioteca conduzia o leitor a seu destino desviando-o, de um “bom vizinho” para ‘outro, em uma série de détours no fim dos quais ele encontrava fatalmente o Minotauro que © esperava desde o inicio e que era, em certo sentido, 0 proprio Warburg. Quem trabalhou na biblioteca sabe 0 quanto isso é verdade ainda hoje, apesar das concessdes que foram feitas 20 longo dos anos as exigéncias da biblioteconomia. ™ GOMBRICH. Aby Warburg, p. 222. 114 FILBAGAMBEN de sua necessidade biolégica como produto entre religiio e pritica artistica”."" Essa situagdo da imagem entre a religiio e a arte é impor- tante para delimitar o horizonte de sua investigagio, GHjO/Objeto|® (GHRABEM, mais do que a obra de arte, e isso a coloca decisivamente fora dos confins da estética. Ja em 1912, concluindo sua conferéncia sobre Arte italiana e astrologia internacional no Palacio Schifanoia de Ferrara, ele convidava a uma “ampliagio metodolégica dos limites tematicos e€ geograficos” da historia da arte: Categorias inadequadas de uma teoria evolucionista geral impe- diram até aqui a histéria da arte de pér seu material 4 disposicio da “psicologia histérica da expressio humana”, que na verdade ainda nao foi escrita,'? Nossa jovem disciplina se fecha 4 pers- pectiva histérica universal através de uma posigdo fandamental ou demasiado materialist ou demasiado mites. Avsngan3o 3 apalpadelas, ela procura encontrar sua teoria do desenvolvimento entre os esquematismos da histéria politica e as teorias sobre 0 génio. Com o método que utilizei na tentativa de interpretar ‘os afrescos do Palacio Schifanoia, espero ter mostrado que uma anilise iconolégica que nio se deixe intimidar por um exage- rado respeito em relagio aos limites e considere a Antiguidade, a Idade Média e a Idade Moderna como uma(@pSealeoHens, © interrogue também a obra de arte auténoma e a arte aplicada na medida em que sio ambas, com iguais direitos, documentos da expressio, espero ter mostrado que esse método, procurando iluminar com cuidado uma obscuridade singular, ilumina, em sua conexio, 03 grandes momentos do desenvolvimento geral. Para mim, importava menos a elegante solugdo do que a elucidacio de um novo problema que gostaria de enunciar deste modo: “Em " GOMBRICH. Aby Warburg, p. 84. " B caracteristico da forma mentis de Warburg que ele apresente muitas vezes seus escritos como contributos a ciéncias ainda por fundar. Também seu grande estudo sobre a divi- nizagio na época de Lutero é apresentado como uma contribuigio para um “manual” ainda inexistente, Da servidao do homem moderno supersticioso, que deveria ser precedido por uma investigacio cientifica, também ela incompleta, sobre © renascimento da anti- quidade deménica na época da Reforma Alemé, Desse modo, ele conseguia, por um lado, inclair em seus escritos uma tensio para a autossuperacio, que é uma das razdes, ¢ no a menor, para seu fascinio, e, por outro, fazer aparecer seu projeto global através de uma espécie de “presenca por defeito”, que recorda o principio aristotélico segundo 0 qual “também a priyacdo é uma forma de possessio” (Metaph., 1019 b 7). GIORGIO AGAMBEN & POTENCIA DO PENSAMENTO ~ ENSALOS E CONFERENCIAS M5 que medida a ocorréncia da transformagio estilistica da figura humana na arte italiana tem de ser considerada o resultado de um confronto em um nivel internacional com os conceitos figurativos da civilizagio pag dos povos do Mediterraneo Oriental?”. O entusidstico espanto perante o incompreensivel acontecimento da genialidade artis a s6 podera ser sentido com maior vigor quando reconhecermos que o génio é graca ¢ ao mesmo tempo consciente capacidade de se empenhar em um reciproco dar ¢ ter. O novo grande estilo que nos doou 0 génio artistico italiano estava radicado na vontade social de libertar a humanidade gre- ga da “pratica” medieval, oriental-latina. Com essa vontade de (CEERETAREIGATA 0 “Lom evropeu” inicia sua luea pelas luzes naquela época de migracées internacionais das imagens que nés - de um modo um pouco mistico — chamamos época do Renascimento, E importante notar que essas consideragdes aparecem precisa- mente na conferéncia em que ele expSe uma de suas mais célebres descobertas iconogrAficas, isto é, a identificagao do tema da faixa mediana dos afrescos do Paldcio Schifanoia com base nas figuras dos decanos descritas no Introductorium maius de Abu Ma'shar. Nas maos de Warbur, (como Kraus dizia do artista, também dele se pode dizer que soube transformar a solugdo em enigma), mas tende sempre, além da identificagdo de um assunto ¢ de suas fontes, para a configuragao de um problema que é, ao mesmo tempo, histérico e ético, na perspectiva do que ele chegou a definir, por vezes, como : A transfiguragio do método iconogrifico nas maos de Warburg faz assim lembrar, muito de perto, a transfigura¢ao stbita do método lexicografico na “‘semantica histérica” de Spitzer, em que a historia de uma palavra se torna ao mesmo tempo histéria de uma cultura e configuracao de seu problema vital especifico; ou sera necessdrio ' WARBURG, Aby. Italienische Kunst und internazionale Astrologie im Palazzo Schifanoia zu Ferrara. In: L’ltalia e Varte straniera, Atti del X Congreso Internazionale i Storia dell'Arte in Roma, Roma: Maglione & Strini, 1922 (tradugio italiana: Arte italiana e astrologia internacionale en el Palazzo Schifanoia di Ferrara, In: WAR- BURG, Aby. La rinascita del paganesimo antico. Contributi alla storia della cultura, Firenze: La Nuova Italia, 1966. p. 268). 116 FILBAGAMBEN pensar, para compreender de que modo ele entendia o estudo da tra- di¢ao das imagens, na revolucio que a paleografia sofreu nas maos de Ludwig Traube, a quem Warburg chamava “o Grio-Mestre da nossa Ordem”, que soube extrair dos erros dos copistas e das influéncias caligraficas descobertas decisivas para a histéria da cultura, Mesmo o tema da “vida péstuma’’> da civilizagdo paga, que define uma das principais linhas de forca da reflexdo de Warburg, s6 tem sentido se for inserido nesse horizonte mais amplo, em que as solugées estilisticas e formais adotadas em cada momento pelos ar- tistas se apresentam como decisdes éticas que definem a posi¢io dos individuos ¢ de uma época relativamente 4 heranga do passado e em que a interpretagao do problema histérico se torna, ao mesmo tempo, um “diagnéstico” do homem ocidental em sua luta para curar suas contradi¢ées € encontrar, entre o velho e o novo, sua morada vital. Se Warburg péde mesmo apresentar o problema do Nachleben des Heidentums, da vida péstuma do paganismo, como seu problema supremo de estudioso,® é porque ele tinha compreendido, com uma surpreendente intuigdo antropolégica, que a questao da 7, Mais uma vez o método e os conceitos de Warburg se iluminam quando postos em confronto “ De Spitzer, ver em particular os Essays in Historical Semantics (New York, 1948). Para um juizo sobre a obra de Traube, ler o que escreveu Pasquali em “Paleografia quale scienza dello spirit” (Nuova Antologia, 1 jun, 1931), agora em PASQUALL. Pagine stravaganti, p. 115-116 © termo alemio Nachleben, usado por Warburg, ndo significa propriamente “renas- cimento”, como por vezes foi traduzido, nem “sobrevivéncia’, Ele implica a ideia da continuidade da heranga pag, que para Warburg era essencial. Em uma carta 20 amigo Mesnil, que tinha formulado o problema de Warburg no modo tradicional (“Que représentait Vantiquité pour les hommes de la Renaissance?” (“O que a Antiguidade representava para os homens do Renascimento?”]), Warburg esclareceu que “mais tarde, ao longo dos anos, 0 problema se ampliou na tentativa de compreender o significado da vida péstuma do paganismo para toda a civilizagio europeia” (GOMBRICH. Aby Warburg, p. 307). Sobre a oposigio entre sociedades “frias” (ou sem hist6ria) e sociedades “quentes”, que multiplicam a incidéncia dos fatores historicos, ver o que escreveu Claude Lévi- Strauss em La pensée sauvage (Paris: Plon, 1962. p. 309-310). GIORGIO AGAMBEN 4 POTENCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERENCIAS 7 com as ideias que guiaram Spitzer em suas investigagdes de semantica hist6rica, que o levaram a acentuar o carater ao mesmo tempo “con- servador™ e “progressista” de nossa tradi¢do cultural, na qual (como est4 provado pela singular continuidade do patriménio semantico das linguas europeias modernas, essencialmente greco-romano-judaico- cristao) as muta¢Ges aparentemente maiores estao sempre, de algum modo, ligadas 4 heranga do passado, Nessa perspectiva, em qui torna-se também compreensivel por que Warburg teria fatalmente de concentrar sua atencdo no problema dos simbolos e de sua vida na meméria social. Gombrich mostrou a influéncia que exerceram sobre ele as teorias de um aluno de Hering, Richard Semon, cujo livro sobre a Mneme ele tinha comprado em 1908. Segundo Semon, 3 sneméra no uma propredade da consiéaia, min gusts que distingue o ser vivo da matéria inorganica. Ela é a capacidade de reagir a um aconteci longo de um periodo de tempo; desconhecida para 0 mundo fisico, Todo acontecimento que age sobre a matéria viva deixa nela um trago que Semon chama engramma. A energia potencial conservada nesse engramma pode, em determinadas circunstancias, ser reativada e descarregada, caso em que dizemos que 0 organismo age de certo modo porque recorda © acontecimento precedente." O simbolo e a imagem desempenham para Warburg a mes- ma fungdo que, segundo Semon, o engramma desempenha no sis- tema nervoso central do individuo: cristalizam-se neles uma carga energética e uma experiéncia emotiva que sobrevivem como uma heranga transmitida pela memoria social e que, como a eletricidade condensada em uma garrafa de Leyden, tornam-se efetivas através do contato com a “vontade seletiva” de uma determinada época. Por isso, Warburg fala muitas vezes dos simbolos como “dinamogramas” que sAo transmitidos aos artistas em um estado de mAxima tensio, GOMBRICH. Aby Warburg, p. 242. 118 FILBAGAMBEN mas nao polarizados quanto 4 sua carga energética ativa ou passiva, negativa ou positiva, e cuja polarizac3o, no encontro com a nova época e suas necessidades vitais, pode levar a uma virada completa do significado." 1sso, para ele, era verdade nao apenas para os artistas que, como Diier, tinham humanizado, polarizando-o, o temor supersticioso de Saturno no emblema da contemplacao intelectual,’ mas também para © historiador ¢ 0 estudioso, que Warburg concebe como@isHOBFatOSD ou como (mgeromantés” que, em plena consciéncia, evocam os es- pectros que os ameacam,”! ¥ “Os dinamogramas da arte antiga sio transmitidos em um estado de tensio maxima, mas ndo polarizados quanto 4 sua carga energética ativa ou passiva, aos artistas que imitam, respondem ou recordam. E s6 0 contato com uma nova época que produz a polarizagao. A polarizagio pode levar a uma virada radical {inversio) do significado que eles tinham para a Antiguidade classica [...] Os engrainas tiasdticos sio essencial- mente como cargas equilibradas em uma garrafa de Leyden antes de seu contato com a vontade seletiva da época” (GOMBRICH. Aby Warburg, p. 248-249). » A interpretagio warburguiana da Melencolia de Diirer como “pigina de consolo humanistico contra o medo de Saturno”, que transforma a imagem do deménio planetirio, determinou amplamente as conclusdes do estudo de Erwin Panofsky ¢ Fritz Saxl em Diirers “Melencolia 1”, Bine Quellen und Typengeschichtliche Untersuchung (Leipzig-Berlim: Teubner, 1923). As paginas em que Warburg desenvolve essa interpretagio das figuras de Burckhardt ¢ de Nietzsche sio das mais belas que ele escreveu: “Temos de aprender a ver Burckhardt ¢ Nietzsche como captadores de ondas mneménicas e compreender que eles tomaram consciéncia do mundo de duas maneiras fundamentalmente diferentes {...] Ambos so sismografos sensibilissimos cujos fundamentos tremem quando tém de receber ¢ transmnitir as ondas. Mas ha uma importante diferenga entre eles: Burckhardt recebia as ondas que vinham do passado, sentia seu inquietante abalo ¢ procurou reforcar as fundagées de seu sismégrafo [...] Ele sentiu claramente o perigo de sua profissio e 0 risco de sucumbir, mas nio se rendeu ao romantismo [,..] Burckhardt era um necro- mante com plena consciéncia: evocou os espectros que © ameacavam seriamente, mas os derrotou construindo sua torre de observacio, E um vidente como Linceu: instala-se em sua torre e fala [...] era e permaneceu um iluminador, mas ndo quer ser a O simbolo pertencia assim, para ele, a uma esfera intermediaria entre a(@QHeisheia lela teaeao|pHinitivade trazia em si tanto a possi- bilidade da regressio quanto a do mais alto conhecimento: ele é um Zwischenraum, um “GBeERValO puma espécie de terra de ninguém no centro do humang; e, tal como a criagao ea fruigdo da arte requerem a fusio entre duas atitudes psiquicas que normalmente se excluem de forma mitua (“ r ), assim a “ciéncia sem nome” que Warburg erseguia é, como se 1é em uma nota de 1929, ‘ ”, ou uma’ i i sse estatuto “interme- diario” do simbolo (¢ sua capacidade, quando dominado, de “curar” e orientar a mente humana) é claramente afirmado em uma nota da época em que, enquanto preparava a conferéncia de Kreuzlingen, provava a si mesmo e aos outros sua propria cura: Toda humanidade é eterament exguinofgnica orem es ponto de vista ontogenético, é possivel talvez descrever um tipo de reagio as imagens da meméria como primitivo ¢ anterior, ainda que ele continue a viver marginalmente. Em uma fase mais tardia, a meméria néo provoca mais um movimento reflexo imediato ¢ pritico, ainda que seja de natureza combativa e religiosa, mas as imagens da meméria sio agora conscientemente depositadas em imagens e signos. Entre esas duas fases se situa uma relagio com as impressdes que pode ser definida como a forma simbilica de pensamento.”? mais do que um simples mestre |...] Que tipo de vidente é Nietzsche? E do mesmo tipo que o Nabi, o antigo profeta que corria na rua, arrancava as vestes, ameagava arrastava por vezes 0 povo consigo. Seu gesto deriva daquele do portador de Tirso que obriga toda a gente a segui-lo. Dai suas observagées sobre a danca. Nas figuras de Nietzsche e de Burckhardt dois antigos modelos de profeta estio em confronto no lugar de encontro das tradigGes latinas ¢ alemis. A questio é saber qual dos dois tipos pode melhor suportar o trauma de sua vocagio, Um deles procura transforma-la em um apelo. A auséncia de uma resposta mina continuamente suas fumdagées: acima de tudo ele era um mestre. Dois filhos de pastores reagem de modo oposto ao sen- timento da presenga divina no mundo” (GOMBRICH, Aby Warburg, p. 254-257). * GOMBRICH. Aby Warburg, p. 253. 2 A concepgio warburguiana dos simbolos e de sua vida na meméria social pode fazer lembrar a ideia jungiana de arquétipo. O nome de Jung nao surge, porém, nas tee FILGAGAMBEN S6 nessa perspectiva é possivel apreciar o sentido ¢ a importan- cia do projeto a que Warburg consagrou seus dltimos anos e para 0 qual tinha escolhido o nome que também queria que fosse a divisa de sua biblioteca (ainda hoje pode ser lido 4 entrada da biblioteca do Instituto Warburg): como Gertrud Bing descreveu esse projeto * Provavelmente, Warburg foi conduzido a esse modelo singular por sua dificuldade pessoal quanto 4 escrita, mas, sobretudo, pela vontade de encontrar uma forma que, supe- rando os esquemas e os modos tradicionais da critica e da historia da arte, fosse finalmente adequada 4 “ciéncia sem nome” que cle tinha em mente. Do projeto Mnemosyne, que ficou incompleto pela morte de Warburg, em outubro de 1929, restam uns 4 nos quais esto fixadas cerca de @Millfotogianias em que é possivel reconhecer seus temas iconograficos favoritos, mas cujo material se alarga até compreender a affiche publicitaria de uma companhia de navegagio, a fotografia de uma jogadora de golfe ou a do papae de Mussolini assinando a Concordata. Mas Mnemosyne é algo mais do que uma orquestracio, mais ou menos organica, dos motivos que tinham guiado a investigacio de Warburg ao longo dos anos. Ele a definiu uma vez, um tanto enigmaticamente, como “imap (Gastonia ae eatitasmas paraladultos”. Considerando a fungao que ele atribuia 4 imagem como 6rgio da memédria social e engramma das tensées espirituais de uma cultura, compreende-se o que ele queria dizer: seu “atlas” era uma espécie de gigantesco condensa- dor em que se reuniam todas as correntes energéticas que tinham animado e ainda continuavam a animar a memoria da Europa, tomando corpo em seus “‘fantasmas”. O nome Mnemosyne encon- tra aqui sua razio profunda. O atlas que tem esse titulo recorda de fato o teatro mnemotécnico, construido no século XVI por Giulio Camillo, que espantou seus contemporantos como uma notas de Warburg. E preciso nio esquecer, por outro lado, que as imagens sio para Warburg realidades histéricas, inseridas em um processo de transmissio da cultura, endo entidades a-historicas, como em Jung. 2 Na introdugio a WARBURG. La rinascita del paganesimo antico, p. XVII. GIORGIO AGAMBEN A POTENCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERENCIAS 121 nova ¢ inaudita maravilha.** O autor tinha procurado reunir nele “a natureza de todas as coisas que podem ser expressas na palavra”, de tal modo que quem entrasse no admiravel edificio dominaria imediatamente a ciéncia: E certo que também Mnemosyne, como muitas outras obras de Warburg, incluindo sua biblioteca, podera parecer um sistema menmotécnico de uso privado em que o estudioso e psicopatico Aby Warburg projetou ¢ procurou resolver seus conflitos psiquicos pes- soais. E isso ¢ verdade para além de qualquer diivida. Mas é a medida da grandeza de um individuo de quem nio sé as idiossincrasias, mas também os remédios que encontra para domina-las correspondem as necessidades secretas do espirito do tempo. 3 As disciplinas filolégicas e histéricas j4 assumiram como um essencial dado metodoldgico que o processo cognitivo que Ihes é proprio esta necessariamente delimitado em um circulo, Esse cir- culo, cuja descoberta como fundamento de toda hermenéutica pode remontar a Schleiermacher ¢ 4 sua intuigao de que em filologia “a parte pode ser compreendida apenas através da totalidade e toda explicagio do aspecto particular pressup6e uma compreensio de conjunto”,”* nao é, porém, de modo algum um circulo vicioso; pelo contrario, é ele proprio o fundamento do rigor e da racionalidade das disciplinas hamanas. O essencial, para uma ciéncia que queira permanecer fiel 4 sua lei, no consiste em sair desse “circulo da compreensio”, 0 que seria impossivel, mas em “estar dentro dele * Sobre Giulio Camillo ¢ seu teatro, ver o capitulo 6 de YATES, Frances A. The Art of Memory. London: Routledge; Kegan Paul, 1966. % Sobre o circulo hermenéutico, ver as magistrais observagdes em SPITZER, Leo. Linguistics and Literary History. Princeton: (s.n], 1948 (tradugio italiana: Critica stlistica e semantica storica. Bari: Laterza, 1966. p. 93-95). 122 FILSAGAMBEN de modo justo”.”” Por efeito do conhecimento adquirido em cada passagem, o ir e vir da parte ao todo nunca é um tegresso, de fato, ao mesmo ponto: em cada volta, alarga necessariamente seu raio € descobre uma perspectiva mais alta de onde abre um novo circul a curva que o representa ndo é, como tantas vezes foi repetido, uma circunferéncia, mas uma espiral que amplia continuamente suas voltas. Justarnente a ciéncia que recomendava que se procurasse o bom. deus nos pormenores ilustra perfeitamente a fecundidade de uma posi¢4o correta no préprio circulo hermenéutico, O movimento em espiral no sentido de um alargamento cada vez maior do hori- zonte pode ser seguido de modo exemplar nos dois temas centrais da investigacdo de Warburg: o da@aiiiifay’ e o do do Renascimento. Na tese de licenciatura sobre a Primavera eo Nascimento de Vénus, de Botticelli, o aparecimento da figura feminina em movimento com vestes esvoacantes vinda de sarcéfagos classicos, que Warburg, com base em algumas fontes literdrias, batiza de “ninfa”, identificando nela um novo tipo iconografico, serve para esclarecer o tema das pinturas e, a0 mesmo tempo, mostrar como “Botticelli levava em conta as ideias que sua época tinha dos deuses antigos”.?* Mas, na descoberta de que os artistas do século XV se apoiavam em uma Pa- thosformel classica sempre que se tratava de representar um movimento externo intensificado, revela-se também seslinitadetansigens's arte classica, que Warburg, seguindo os passos de Nietzsche, afirmou com veeméncia, talvez pela primeira vez na esfera da historia da arte, ainda dominada pelo modelo de Winckelmann. Em um circulo ainda mais amplo, o aparecimento da “ninfa” se torna, assim, o signo de um profundo conflito espiritual na cultura renascentista, em que a descoberta das Pathosformeln classicas, com sua Gaga erpiastics) deveria ser acrobaticamente conciliada com o cristianismo em um equilsbrio » A observagio é de Heidegger, que fundou filosoficamente 0 circulo hermenéutico em Sein und Zeit (Tibingen: Niemeyer, 1927, p. 151-153). ™ WARBURG, Aby. Sandro Botticelli “Geburt der Venus” und “Fribling”. Hamburg; Leipzig: Leopold Voss, 1893 (traducio italiana: La “Nascita di Venere” e la “Prima- vera” di Sandro Botticelli. In: WAR BURG. La rinascita del paganesimo antico, p. 58). GIORGIO AGAMBEN A POTENCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERENCIAS 123 carregado Pern quais uma personalidade como a do co- merciante florentino Francesco Sassetti, analisada por Warburg em um famoso ensaio, é um perfeito exemplo. E, no circulo supremo da espiral hermenéutica, a “ninfa”, posta em confronto com a obscura figura jazente que os artistas do Renascimento tinham ido buscar as representagGes gregas de um deus fluvial, torna-se a marca de uma polaridade perene da cultura ocidental, cindida em uma trdgica es- quizofrenia, que Warburg registra numa das anotagdes mais densas do seu diario: Parece-me as vezes que, como historiador da psique, experimentei fazer 0 diagnéstico da esquizoftenia da cultura ocidental num reflexo autobiogrifico: SEED (03, » par: se Tay < oSEERESIED EWU) (epressiv}, por outro? Um analogo e progressivo alargamento da espiral hermenéutica pode ser seguido também através do tema ‘aCe. O circulo mais estreito, propriamente iconografico, coincide com a identificacdo do tema dos afrescos do Palacio Schifanoia, em Ferrara, onde Warburg reconheceu, como vimos, as figuras dos decanos do Introductorium maius, de Abu Ma'shar. No plano da histéria essa descoberta se torna entao a de um sultura, , portanto, da am- biguidade da cultura renascentista, que Warburg foi o primeiro a perceber, em um momento em que o Renascimento passava ainda por ser uma época de luzes, em contraste com a obscura [dade Mé- dia. Na linha extrema da espiral, o aparecimento das imagens dos decanos e 0 reviver da antiguidade demoniaca justamente no inicio da época moderna se tornam o sintoma do conflito em que radica nossa civilizagéo e de sua impossibilidade de dominar sua tensao bipolar. Como Warburg chegou a dizer ao apresentar uma mostra de imagens astrolégicas no Congresso de Orientalistica de 1926, aquelas imagens mostravam para além de qualquer contestagio que a cultura europeia é 0 resultado de tendéncias conflituais, um proceso em que, no que » GOMBRICH, Aby Warburg, p. 303. 124 FILBAGAMBEN diz respeito is tentativas astrolégicas de orientacao, nao devemos procurar nem amigos nem inimigos, mas antes sintomas de um movimento de oscilagao pendular entre os dois polos distantes da pritica magico-religiosa e da contemplagao matemitica.” Pode-se assim exemplificar 0 circulo hermenéutico warbur- guiano como uma espiral que se desenvolve em trés planos princi- orientada para um diagnostico do homem ocidental através de seus fancasmas, a cuja configura¢ao Warburg dedicou sua vida. © circulo em que se revela 0 bom deus escondido nos pormenores nio era um circulo vicioso, nem sequer no sentido nietzschiano de um circolus vitiosus deus. 4 Se queremos agora perguntar, seguindo nosso projeto inicial, se podemos atribuir um nome 4 “ciéncia inominada” cujas linhas fundamentais procuramos trazer 4 luz no pensamento de Warburg, devemos antes de tudo observar que nenhum dos termos de que ele se serviu ao longo dos anos (“histéria da cultura”, “psicologia da expressio humana’, “histéria da psique”, “iconologia do intervalo”) parece té-lo deixado plenamente satisfeito. A mais respeitavel tentativa pés-warburguiana de nomear essa ciéncia foi certamente a d@PaHORkyD gue, no Ambito de suas investigagdes, batizou de ‘G@HOlogia? (em oposigio a iconografia) a mais profunda abordagem possivel a uma imagem, A fortuna desse termo (que, como vimos, jd tinha sido usado por Warburg) foi tio vasta que hoje é costume usé-lo para se referir * WAR BURG, Aby. Orientalisierende Astrologie. Zeitschrift der Deutscher Morgentiindi- schen Gesellschafi, n. 6, 1927, Uma vez que & sempre novamente preciso salvar a razio dos racionalistas, convém precisar que as categorias de que Warburg se serve para seu diagnéstico sio infinitamente mais sutis que a oposi¢ao corrente entre racionalismo € irracionalismo. © conflito é, de fato, interpretado por ele em termos de polaridade, € nao de dicotomia. A redescoberta da nogio goethiana de polaridade, usada para uma compreensio global de nossa cultura, esta entre as mais fecundas herangas que ‘Warburg deixou 4 ciéncia da cultura. Isso é particular mente importante se se considera que a oposigio racionalismo/irracionalismo falseou muitas vezes a interpretagio da tradicio cultural do Ocidente GIORGIO AGAMBEN # POTENCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS & CONFERENCIAS 125 nao sé aos estudos de Panofsky, mas também a toda investigacio que se ponha na esteira de Warburg. Mas também uma anilise sumiria é suficiente para mostrar 0 quanto os objetivos que Panofsky atribui a iconologia estdo afastados dos que Warburg tinha em mente para sua ciéncia do “intervalo”, Como é sabido, Panofsky distingue na interpretagdo da obra trés momentos, que correspondem, por assim dizer, a trés estratos de seu significado. Ao primeiro estrato, que é o do “assunto primdrio e natural”, corresponde a descrigo pré-icono- grafica; ao segundo, que é o do “assunto secundério on convencional”, que constitui o mundo de “imagens, historias e alegorias”, corresponde a analise iconografica. O terceiro estrato, o mais profundo, é o do “significado intrinseco ou contetido, que constitui o mundo dos valores simbélicos”. “A descoberta e a interpretagdo desses valores ‘simbéli- cos’ [,..] € 0 objeto daquilo a que podemos chamar ‘iconologia’, em oposi¢ao a ‘iconografia”’.' Mas se tentarmos precisar 0 que sdo para Panofsky esses “valores simbélicos”, vemos que ele oscila entre con- siderd-los “documentos do sentido unitario da concep¢ao do mundo” ¢ interpreta-los como “sintomas de uma personalidade artistica”. No ensaio sobre O movimento neoplaténico e Michelangelo, ele parece assim entender os simbolos artisticos como “sintomas da prépria esséncia da personalidade de Michelangelo”. A nogao de simbolo, que Warburg retomava dos emblematistas do Renascimento e da psicologia teligiosa, arrisca-se assim a ser reconduzida ao ambito da estética tradicional, que considerava essencialmente a obra de arte como expressio da personalidade criativa do artista. A auséncia de uma perspectiva tedrica mais ampla na qual situar os “valores simbélicos” torna assim extremamente dificil alargar o circulo hermenéutico para além da histéria da arte e da estética (0 que nao significa que Panofsky nao o tenha muitas vezes conseguido de maneira brilhante).** * PANOFSKY, Erwin. Meaning in the Visual Ars, Papers in and on Art History, Garden City: Doubleday, 1955 (tradugio italiana: Il significato nelle arti visive. Torino: Einaudi, 1962, p, 36). © PANOFSKY, Erwin. Studies in Iconology. Humanistic Themes in the Art of the Renais- sance. New York: Oxford University Press, 1939 (tradugio italiana: Studi dt iconologia ‘Torino: Einaudi, 1975. p. 246). > Nem Panofsky nem os estudiosos que mais foram proximos de Warburg e assegura- ram, depois de sua morte, a continuidade do instituto, de F. Saxla G. Binge E. Wind 126 FILDAGAMBEN Quanto a Warburg, ele nunca teria podido considerar a essén- cia da personalidade de um artista como o contetido mais profundo de uma imagem, Os simbolos, como esfera intermediaria entre a consciéncia e a identificagdo primitiva, pareciam-lhe significativos nao tanto (ou, pelo menos, nio apenas) para a reconstrugio de uma personalidade ou de uma visio do mundo, mas mais porque, nio sendo propriamente nem conscientes nem inconscientes, ofereciam 0 espaco ideal para uma abordagem unitdria da cultura ” em que mais de 20 anos depois Lévi-Strauss veria o né central das relagées entre essas duas disciplinas.™ © nome da antropologia teria podido ser pronunciado mais vezes ao longo deste estudo. E de fato indubitavel que o ponto de vista a partir do qual Warburg olhava o: Talvez o modo menos infiel de caracterizar sua “ciéncia sem nome” seja inseri-la no projeto de uma ftura {SRESPOIORARACUGEGTERGD, em que filologa, etnologia, historia e biologia convergem com uma ‘ am. do Zwischenraum, no qual se cumpre o incessante labor simbolico da meméria social. A urgéncia de tal ciéncia, para uma época que ter4 mais cedo ou mais tarde de levar em conta o que 30 anos antes Valéry tinha verificado ao escrever que “le temps du monde (quante 2 E, Gombrich, ele ingressou no instituto depois da morte de Warburg), Jamais pretenderam ser considerados sucessores de Warburg em sua investigacio de uma ciéncia sem nome para além das fronteiras da histéria da arte. Cada um deles aprofundou, muitas vezes de modo genial, a heranca de Warburg nos limites da his- t6ria da arte, mas sem ultrapassi-los tematicamente em uma aproximagio global dos fatos da cultura. E é provavel que isso tenha correspondido também a uma objetiva necessidade vital ¢ de organizagao do instituto, cuja atividade, de qualquer modo, marcou uma incomparavel renovagio dos estudos de histéria da arte. No que diz respeito 4 “cigncia sem nome”, © Nachleben de Warburg espera ainda 0 encontro polarizante com a vontade seletiva da época. Sobre a personalidade dos estudiosos ligados ao Instituto Warburg, veja-se GINZBURG, Carlo, Da A. Warburg a E. H. Gombrich, Note su un problema di metodo. Studi Medievali, n. 2, p. 1015-1065, 1966; agora Miti emblemsi spie. Morfologia ¢ storia. Torino: Einaudi, 1986. ™ Cf, LEVI-STRAUSS, Claude. Histoire et ethnologie. Revue de Métaphysique et de Moral, n, 3-4, 1949; reeditado em Anthropologie structurale. Paris: [sn], 1958, p. 24-25. GIORGIO AGAMBEN A POTENCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERENCIAS 127 fini commence”,* no precisa de ser sublinhada. $6 essa ciéncia poderia de fato permitir ao homem ocidental, saido dos limites de seu etno- centrismo, chegar ao conhecimento libertador de um = A essa ciéncia, que, infelizmente, depois de quase um século de estudos antropoldgicos, est4 apenas no inicio, trouxe Warburg “em seu modo erudito, um pouco complicado”,* contributos notaveis, que permitem inscrever seu nome junto aos de Mauss, de Sapir, de Spitzer, de Kerényi, de Usener, de Dumézil, de Benveniste e de alguns outros. E é provavel que tal ciéncia permanega sem nome enquanto sua agao nio tiver penetrado profundamente em nossa cultura, de modo a aniquilar as falsas divisdes e as falsas hierarquias que mantém separadas entre si nao s6 as disciplinas, mas também as obras de arte em relagdo aos studia humaniora e a criacao literaria em relacdo A ciéncia. Talvez a fratura que divide, em nossa cultura, poesia ¢ filosofia, arte ¢ ciéncia, a palavra que “canta” e a que “recorda”, no seja senio um aspecto da esquizofrenia da cultura ocidental que Warburg tinha reconhecido na polaridade da ninfa extatica e do melancélico deus fluvial. Seremos verdadeiramente fiéis ao ensi to de Warburg A ciéncia que tera entéo apreendido em seu gesto 0 conhecimento libertador do humano mereceré verdadeiramente ser chamada pelo nome grego | Mnemosyne Apostila de 1983 Este ensaio foi escrito em 1975, depois de um ano de fervoroso trabalho na biblioteca do Instituto Warburg. Ele tinha sido concebido como 0 primeiro de uma série de retratos dedicados a personalidades 25 A afirmacio de Valéry (em Regards sur le monde actuet. ser aqui entendida nao s6 no sentido geogrifico. * WARBURG, Aby. Der Eintritt des antikisierenden Idealstils in die Malerei det FriihRenaissance. Kunstchronile, v. 25,8 maio 1914 (traducio italiana: L'ingresso dello stile ideale anticheggiante nella pittura del primo Rinascimento. In: WARBURG. La rinascita del paganesimo antico, p. 307) : Euvres, t. I, p. 923) deve 128 FILOAGAMEN exemplares, cada uma das quais deveria representar uma ciéncia hu- mana. Além do ensaio sobre Warburg, s6 o dedicado a Benveniste € a linguistica avancou, ainda que nunca tenha sido terminado. A distancia de sete anos, 0 projeto de uma ciéncia geral do humano, que se encontra formulada neste estudo, parece, ao autor, nao propriamente superado, mas com certeza jd nao pode ser pros- seguido nos mesmos termos. De resto, j4 no final dos anos 1960), a antropologia e as ciéncias humanas tinham entrado em uma fase de desencanto, o que teria tornado tal projeto provavelmente ob- soleto. (Que nestes dltimos anos ele tenha voltado a ser proposto aqui ¢ ali, de maneiras diferentes, como ideal cientifico genérico, é apenas uma prova da ligeireza com que, no ambito académico, costumam-se desfazer os nés histéricos e politicos implicitos nos problemas do conhecimento.) CO itinerario da linguistica, que, j4 com a gera¢io de Benveniste, tinha esgotado 0 grande projeto do século XIX da gramAtica com~ parada, pode, nessa perspectiva, servir de exemplo, Se, por um lado, com o Vocabulaire des institutions européennes, a gramatica comparada tinha alcangado um cume onde pareciam vacilar as proprias catego- rias epistemolégicas das disciplinas histéricas, por outro, com a teoria da enuncia¢io, a ciéncia da linguagem penetrava no terreno tradi- cional da filosofia. Em ambos os casos, isso coincidia com o fato dea ciéncia (nesse caso, a linguistica, essa “disciplina-piloto” das ciéncias humanas) se defrontar com seus limites, cujo reconhecimento exato parecia delinear concretamente o campo no qual poderia ter-se desenvolvido uma ciéncia geral do humano, subtraida ao cardter vago da interdisciplinaridade. Tal nao aconteceu, e nao é este o lugar para indagar as razées. O que € fato é que assistimos, pelo contrario, na retaguarda, a uma resisténcia académica com base nas posi¢des da semidtica (muito aquém das perspectivas indicadas por Benveniste, e até por Saussure), e, na vanguarda, 4 maciga virada no sentido da linguistica formalizada de matriz chomskiana, cuja fecunda aventura esta ainda em curso, mas em cujo horizonte epis- temoldgico um projeto do género dificilmente poderia ser proposto nos mesmos termos. Para voltar a Warburg, chamado a representar, talvez por an- tifrase, a histéria da arte, o que ndo deixa de parecer atual é 0 gesto GIORGIO AGAMBEN A POTENCIA DO PENSAMENTO ~ ENSAIOS E CONFERENCIAS 129 decidido com que a consideragao da obra de arte (e, ainda mais, da imagem) é subtraida tanto da consciéncia do artista como das estruturas inconscientes. Também aqui seria licito estabelecer uma analogia com Benveniste. Enquanto, de fato, a fonologia (e, em sua esteira, a antropologia levistraussiana) tinha se encaminhado, com indubitaveis vantagens, para o estudo das estruturas inconscientes, a teoria benvenistiana da enunciacao, penetrando no campo do sujei- to e no problema da passagem da lingua 4 fala, abria a investigagio Linguistica um Ambito que nao era propriamente definivel através da oposi¢gao consciente/inconsciente. Ao mesmo tempo, a investigagio comparatista de que o Vocabulaire era o ponto culminante oferecia resultados que nao era possivel apreciar convenientemente por meio

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