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PROBLEMAS DE GENERO — nao a realizacgio de algum objetivo, mas obediénc\, . sofrimento, para impor ao “sujeito” o sentido de sua 4; mitagao “diante da lei”, Ha, é claro, 0 lado cémico degce drama, o qual é revelado pela descoberta da imposs}pj- lidade permanente da realizagdo da identidade. Mas ar¢ essa comédia é a expressdo inversa de uma escravizayjo ao Deus que ela afirma ser incapaz de superar. A teoria lacaniana deve ser compreendida como uma espécie de “moral do escrayo”. Mas como seria refigr- mulada apds a apropriagio do insight de Nietzsche, em Genealogia da moral, de que Deus, 0 Simb6lico inacessi\el, é tornado inacessivel por um poder (a vontade de poder) que institui regularmente sua propria impoténcia?™” Essa representagao da lei paterna como autoridade inevitavel e incognoscivel diante da qual 0 sujeito sexuado esta fadado a fracassar é na verdade o impulso teoldgico que a motiya, bem como a critica da teologia que aponta para além desse marco. A construgio da lei que garante o fracasso€ sinto- matica de uma moral do escravo, que renega os proprios poderes generativos que usa para construir a “Lei” como impossibilidade permanente. Que poder cria essa ficgio que reflete a sujeicdo inevitavel? Qual 0 interesse cultural de conservar o poder nesse circulo de abnegagao, e como resgatar esse poder das artiiadilhas de uma lei proibitiva que é esse poder em,suia dissimulagao & autossujcigio? Freud e a melancolia do género Ainda que Irigaray manténha que a estrutura da fernini- lidade e da melancolia “se reiterem mutuamente”,*'€ que, em “Motherhood According to Bellini” [A maternidade de 106 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... acordo com Bellini] e em Sol negro: depressao e melanco- lia,” Kristeva identifique a maternidade com a melancolia, poucos foram os esforgos para compreender a negacao/ preservacao melancdlica da homossexualidade na produgao do género no interior da estrutura heterossexual. Freud isola © mecanismo da melancolia, caracterizando-o como essen- cial a “formagao do eu” ¢ do “cardter”, mas s6 faz mengao indireta a centralidade da melancolia no género. Em O eu e o id, ele discorre sobre © luto como estrutura incipiente da formagao do eu, tese cujos rastos podem ser encontrados no ensaio de 1917, Luto e melancolia.*? Na experiéncia de perder um ser humano amado, argumenta Freud, o eu incorpora esse outro em sua propria estrutura, assumindo atributos do outro e “preservando-o” por meio de atos mAgicos de imitagdo. A perda do outro desejado e amado € superada mediante um ato especifico de identificacgdo, ato esse que busca acolher o outro na propria estrutura do eu: “Assim, refugiando-se no eu, 0 amor escapa A aniquilagao” (p. 178). Essa identificagio nao é meramente momentinea ou ocasional, mas se torna uma nova estructura da identi- dade; com efeito, o outro se torna parte do eu através da internalizagao permanente deseus atributos.* Nos casos em que uma relagao ambivalente é interrompida pela perda, essa ambivaléncia éinternalizada como:uma predisposigao autocritica ou autodepreciativa, em que o»papel do outro passa a ser ocupado edirigido pelo proprio eu: “A identifica- ¢4o narcisica com o objeto,torna“se entao um substituto do investimento erdtico, e resulta que, apesar do conflito coma pessoa amada, nao épreciso abrir mao da relagéo amorosa” (p. 170). Freud esclarece, posteriormente, que o processo de internalizagao e preservacado dos amores perdidos é crucial para a formagao do eu e de sua “escolha de objeto”. 107 PROBLEMAS DE GENERO Em O eu ¢ o id, Freud refere-se a esse processo da internalizacdo descrito em Luto e melancolia e observa; [...] conseguimos explicar o doloroso distirbio da me_ lancolia pela suposigdo de que [nos que sofrem dele] un, objeto perdido é reinstaurado no eu — isto €, que un investimento no objeto é substituido por uma identifica. 40. Na época, contudo, nao apreciamos plenamente significado desse processo ¢ néo soubemos 0 quanto éra comum e tipico. Desde entéo, compreendemos que esse tipo de substituigao tem grande peso na determinaci, da forma assumida pelo eu, e que da uma contribuigag. essencial para a construgao daquilo a que se chama sey “carater” (p. 18). Na sequéncia deste capitulo sobre “O eu e 0 superey (ideal do eu)”, contudo, vemos que nao €é meramente 0 * cq. rater” que esta sendo descrito, mas igualmente a aquisigaig de uma identidade do género. Ao afirmar que “é possive] que essa identificagao seja a Unica condigao sob a qual o id pode abrir mao de seus objetos”, Freud sugere que a estratégia de internalizagao da melancolia nado se opde ao trabalho do luto, mas pode ser o tinico caminho em que o eu pode sobreviver 4 perda de seus lagos afetivos essenciais com 0 outro. Freud afirma entao qué “o carater do eu é um precipitado de investiméntos objetais abandonados e contém a histéria dessas escolhas dé objeto” (p. 19). Esse processo de internalizagao.dé amores perdidos setorna pertinente 3 formagio do género quando compreendemos que 0 tabu do incesto, entre outras fulngdes; inicia, para o eu, a perda de um objeto de amor, @ qué esse eu se recupera dessa perda mediante a internalizacgao do objeto tabu do desejo. No caso de uma unio heterossexual proibida, é 0 objeto que 108 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ... é negado, mas nao a modalidade de desejo, de modo que o desejo é desviado desse objeto para outros objetos do sexo oposto. Mas no caso de uma unido homossexual proibida, é claro que tanto o desejo como o objeto requerem uma renincia e, assim, se tornam sujeitos as estratégias de in- ternalizagao da melancolia. Consequentemente, “o menino lida com seu pai identificando-se com ele” (p. 21). Na formagao inicial da identificagéo menino-pai, Freud especula que a identificagdo ocorre sem o investimento objetal anterior (p. 21), 0 que significa que a identificacdo em questao nao é a consequéncia de um amor perdido ou proibido do filho pelo pai. Posteriormente, contudo, Freud postula a bissexualidade primdria como fator complicador do processo de formagao do carater e do género. Coma pos- tulagao de um conjunto de disposigdes bissexuais da libido, nao ha razao para negar o amor sexual original do filho pelo pai, mas Freud implicitamente o faz. O menino mantém, todavia, um investimento primario na mae, e Freud observa que a bissexualidade manifesta-se no comportamento mas- culino e feminino com que 0 menino tenta seduzir a mae. Embora Freud introduza 0 complexo de Edipo para explicar por que 0 menino precisa repudiar a mae e adotar uma atitude ambivalente'em relagao ao pai, observa logo a seguir que “é até possivel que.a ambivaléncia nas relagoes com os pais deva serinteiramente atribuida a bissexua- lidade, e que nao se desenvolva,*como indiquei acima, a partir da identificagio em consequéncia da rivalidade” (p. 23, n. 1). Mas o.que.condicionaria a ambivaléncia nesse caso? Freud sugere claratmente que o menino tem de es- colher nao s6 entre as duas escolhas de objeto, mas entre as duas predisposig6es sexuais, masculina e feminina. O fato de o menino geralmente escolher o heterossexual 109 PROBLEMAS DE GENERO nado resultaria do medo da castragdo pelo pai, may go medo de castragao — isto é, do medo da “feminizagy,>, associado com a homossexualidade masculina nas (yy. turas heterossexuais. Com efeito, nao é primordialm,,¢¢ o desejo heterossexual pela mae que deve ser puniqy ¢ sublimado, mas é o investimento homossexual que (eye ser subordinado a uma heterossexualidade culturalmen te sancionada. Ora, se é a bissexualidade primaria, e nip 9 drama edipiano da rivalidade, que produz no mening 9 reptidio da feminilidade e sua ambivaléncia em relagay ao pai, entio a primazia do investimento materno tornys¢ cada vez mais duvidosa e, consequentemente, a heteras- sexualidade primaria do investimento objetal do menino, Independentemente da raz4o por que o menino repydia a mae (analisamos nés o pai punitivo como rival ou como objeto do desejo que profbe a si mesmo como tal?), » re- ptidio se torna o momento fundador do que Freud chams de “consolidacdo” do género. Ao renunciar a mae Como objeto do desejo, o menino internaliza essa perda por neio de uma identificagao com ela, ou desloca seu apego heteros- sexual, caso em que fortalece sua ligagdo com o pai e, por meio disso, “consolida” sua masculinidade. Como sugere a metdfora da consolidacao, ha claramente fragmentos de masculinidade a serem encontrados na paisagem, nas pre disposic6es, tendéncias sextiais e.objetivos psiquicos, mas eles sa0 difusos e desorganizados, ainda nao amarrados pela exclusividade de uma escolhade objeto heterossexual De fato, quando o menino renuncia tanto ao objetivo come ao objeto, e portanto. ao investimento heterossexual, ele internaliza a mae’é estabelete um supereu feminino, 0 qual dissolve e desorganiza a masculinidade, consolidando disposicdes libidinais femininas em seu lugar. 110 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... Quanto 4 menina, o complexo de Edipo também pode ser “positivo” (identificagdo com o mesmo sexo) ou “nega- tivo” (identificacdo com o sexo oposto); a perda do pai, ini- ciada pelo tabu do incesto, pode resultar numa identifica- ¢ao com 0 objeto perdido (consolidagao da masculinidade) ou fazer com que 0 alvo se desvie do objeto, caso em que a heterossexualidade triunfa sobre a homossexualidade, e um objeto substituto é encontrado. Na conclusao do breve pardgrafo sobre o complexo de Edipo negativo na meni- na, Freud observa que o fator a decidir se a identificagdo se realizara 6 a forga ou fraqueza da masculinidade e da feminilidade em sua predisposi¢ao. Significativamente, Freud admite sua confusdo sobre 0 que é exatamente uma predisposigéo masculina ou feminina, ao interromper sua reflexaéo a meio caminho com uma divida entre travessées: “— 9 que quer que seja isso —” (p, 22). O que sao essas predisposigées primérias em que o proprio Freud parece se embaragar? Serao elas atributos de uma organizagao libidinal inconsciente? Como exatamen- te se estabelecem as varias identificagées instauradas em consequéncia do trabalho do conflito edipiano no sentido de reforgar ou dissolver cada uma, dessas predisposi¢des? Que aspecto da “feminilidade” nés consideramos atinente a predisposigao, equal é aconsequéneia da identificagao? Ora, o que nos impediria de entender'as “predisposigdes” de bissexualidade como efeités ou produtos de uma série de internalizagées2.Além disso, como identificar, desde a origem, uma-predisposicdo “feminina” ou “mas- culina”? Por que tragos @¢la reconhecida, ¢ em que medida supomos que a predisposic¢ao “feminina” ou “masculina” € a precondigdo de uma escolha de objeto heterossexual? Em outras palavras, até que ponto nés tomamos 0 desejo mW PROBLEMAS DE GENERO pelo pai como prova de uma predisposigao feminina, si, porque partimos de uma matriz heterossexual do desejo apesar da postulagao da bissexualidade primaria? A conceituagiio da bissexualidade em termos de predispo sigdes, feminina e masculina, que tém objetivos heterosse. Xuais como seus correlatos intencionais sugere que, pary Freud, a bis heterossexuais no interior de um s6 psiquismo. Con xualidade é a coincidéncia de dois desejog efeito, a predisposigio masculina nunea se orienta para » pai como objeto de amor sexual, e tampouco se orient, para a mie a predisposigao feminina (a menina pode ay- sim se orientar, mas isso antes de ter renunciado ao lado “masculino” da sua natureza disposicional), Ao repudia; a mae como objeto do amor sexual, a menina repudia ne- cessariamente sua masculinidade e “fixa” paradoxalmente sua feminilidade, como uma consequéncia. Assim, nao hg homossexualidade na tese de bissexualidade primaria de Freud, e 86 05 opostos se atraem. Mas que prova nos da Freud da existéncia dessas predis. posigdes? adquirida mediante internalizagdes e aquela estritamente Se nao ha modo de distinguir entre a feminilidade oriunda das predisposigdes, 0 que nos impede de coneluir que todas as afinidades especificas;do género sao consequencia de internalizagdes? Em gue basesisao atribuidas predisposi Ges e identidades sextais aos individuos, e que significados podemos dar & “feminilidade” ¢.a“masculinidade” em sua origem? Tomande a:problemari¢a-da. internalizagao como ponto de partida, consideremos.o'status das identificagdes internalizadas na*forma¢ao-do género e, secundariamente, a relacdo entre uma afinidade de género internalizada e a melancolia autopunitiva das identificagées internalizadas, 112 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... Em Luto e melancolia, Freud interpreta as atitudes au- tocriticas do melancélico como resultantes da internaliza- cao de um objeto amoroso perdido. f precisamente porque foi perdido, mesmo que a relagdo permancga ambivalente e nao resolvida, que esse objeto é “trazido para dentro” do eu, onde a disputa recomega magicamente, como um didlogo interior entre duas partes do psiquismo. Em Luto emelancolia, 0 objeto perdido se estabelece no interior do eu como voz ou agéncia critica, e a raiva originalmente sentida por ele se inverte, de modo que, internalizado, o objeto passa a recriminar 0 eu: Ao escutar pacientemente as muitas e variadas autoacu- sagdes do melancdlico, nao se pode evitar a impressio de que frequentemente as mais violentas delas nao se aplicam ao préprio paciente, mas, com modificagdes insignificantes, referem-se de fato a um outro, a alguém que 0 paciente ama, amou ou deveria amar [...] as au- torrecriminagGes sao recriminagées contra um objeto amado, deslocadas para 0 eu do préprio paciente (p. 169). O melancélico recusa a perda do objeto, e a interna- lizagdo se torna uma estratégia dé ressuscitagdo magica do objeto perdido, nado sé porque a perdaé dolorosa, mas porque a ambivaléncia,sentida em, relagao.ao objeto exige que ele seja preservadovaté que asidiferengas sejam supera- das. Nesse enisaio, um dos primeitosyFreud compreende a tristeza como a retirada do investimento libidinal do objeto e sua transferéncia bem-sucedida para um novo objeto. Em O ew eo id, contudo, Freud revé essa distingao entre luto e melancolia e sugere que 0 processo de identificacdo associa- do a melancolia pode ser “a tinica condigao sob a qual 0 id 113 PROBLEMAS DE GENERO pode abrir mao de seus objetos” (p. 19). Em outras palay,.,._ a identificacao com amores perdidos que € caracteristicy 4, melancolia torna-se uma precondigdo do trabalho do |, ¢, Os dois processos, concebidos originalmente como opogyos, passam a ser entendidos como aspectos integralmente y.J2- cionados do processo do luto.’* Nessa ultima visio, Frond observa que a internalizagao da perda é compensaty,;.. “Quando 0 eu assume as caracteristicas do objeto, esta, por assim dizer, impondo-se a perda do id, como se disspgse: ‘Olhe, vocé também pode me amar — sou muito paregido com 0 objeto” (p. 20). Estritamente falando, abrir m4g do objeto ndo é uma negagao do investimento, mas sua inter- nalizagao e, consequentemente, preservagao. Qual é exatamente a topologia da psique em que 0 eue seus amores perdidos residem em abrigo perpétuo? Rreud conceitua claramente o eu na companhia perpétua do jdeal do eu, o qual atua como agéncia moral de varios tipds, As perdas internalizadas do eu sao restabelecidas como parte desse agente de escrutinio moral, como a internalizagig da raiva e da culpa originalmente sentidas pelo objeto em sua forma externa. No ato da internalizagao, a raiva e a culpa, inevitavelmente aumentadas pela propria perda, voltam-se so eu troca de lugar com o objeto internalizado e, panmeio dessa operagao, investe essa externalidade internali déacio efotga morais. Assim, 0 eu cede sua raiva e eficacia ao ideal do-eu, o qual se yolta contra o préprio.eu qué o mantén’e preserva; em outras pala- vras, 0 eu constréi um modo de se-Voltar contra si mesmo, E Freud adverte sobré as possibilidades hipermorais desse idea! do eu, que, levadas a extremos, podem motivar 0 suicidio.* A construgao de um ideal do eu interior envolve igual- mente a internalizagao de identidades de género. Freud para dentro e so preservads 4 r PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ... observa que 0 ideal do eu é uma solugao do complexo de Edipo e, assim, € instrumental na consolidacao bem-su- cedida da masculinidade e da feminilidade: O supereu nao é, todavia, um simples residuo das esco- Ihas de objeto anteriores do id: também representa uma formagdo reativa enérgica contra essas escolhas. Sua relagdo com o eu nao é esgorada pelo preceita: “Vocé tem de ser assim (como seu pai).” Ela abrange também uma proibigdo: “Vocé nao pode ser assim (como seu pai) — isto ¢, nado pode fazer tudo que ele faz; alzumas coisas sao prerrogativas dele” (p. 24). O ideal do eu serve assim como agéncia interna de sangio e tabu, a qual, segundo Freud, atua para consolidar iden- tidades de género por meio da reorientagao € sublimagao apropriadas do desejo. A internalizagao do genitor como objeto amoroso sofre uma inversao necessaria de sentido. O genitor nao s6 é proibido como objeto amoroso, mas é internalizado como objeto de amor proibidor ou impeditivo. Desse modo, a fungao proibidora do ideal do eu age para inibir ou reprimir a expressao do deseja por esse genitor, mas também funda um “espago” interno em que 0 amor pode ser preservado. Haja vista poder ser“positiva’’.ou “negativa” a solugéo do dilema edipianoy a proibigao degenitor do sexo oposto pode levar tanto a uma idenitifieagas com 0 sexo do genitor perdido como actima’ rectsa‘dessa identificagao e, consequentemente,a um desviordo desejo heterossexual. Como conjunto desangées ¢ tabus, 0 ideal do eu regula e determina as identificacées masculina e feminina. Con- siderando que as identificagGes substituem as relagdes de objeto € sao a consequéncia de uma perda, a identificagao 15 PROBLEMAS DE GENERO de género é uma espécie de melancolia em que 0 Sey, do objeto proibido é internalizado como proibigao. Ey. proibigdo sanciona e regula identidades de género distin,. > a lei do desejo heterossexual. A resolugao do complex, de Fdipo afeta a identificagao de géncro por via nao 86 go tabu do incesto, mas, antes disso, do tabu contra a hom,.- sexualidade. O resultado é que a pessoa se identifica coy, 6 objeto amoroso do mesmo sexo, internalizando por Meio disso tanto 0 objetivo como o objeto do investimento },,- mossexual. As identificagGes consequentes 4 melancolia 55 modos de preservacao de relagdes de objeto nao resolvigas e, no caso da identificacdo de género com © MesMO sexo, as relagdes de objeto nao resolvidas sao invariavelmente homossexuais. Alias, quanto mais rigorosa ¢ estavel ¢ a afinidade de género, menos resolvida é a perda original, de modo que as rigidas fronteiras de género agem inevVitayel- mente no sentido de ocultar a perda de um objeto amoroso original, o qual, nao reconhecido, nao pode se resolver, Obviamente, porém, nem toda identificagéo de g&nero baseia-se na implementagao bem-sucedida do tabu contra a homossexualidade,Sé as predisposig6es masculina e fe- minina sao resultado dacifiternalizagao efetiva desse tabu, ese a resposta melaficoli¢a a perda do objeto do mesmo sexo éincorporar,e, a rigors tornadrese esse objeto, por via da constragao do ideat doet,.entao-a identidade de género paréée ser, em.ptimeirolugat, a internalizagao de uma proibigao, qiie.se mostra’formadora da identidade. Alén disso, eSsaidentidadé é construida e mantida pela aplicagac coerente dessétabu, ndo s6 na estilizagdo do corpo segundo categorias sexuais distintas, mas também na produgao e na “predisposicao” do desejo sexual. A linguagem das predis- posig6es evolui de uma formagao verbal (estar disposto 116 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... para uma formagao substantival, em consequéncia do que se cristaliza (ter predisposig6es); a linguagem das “predis- posigoes” desdobra-se assim em falso fumdacionismo, sendo os resultados da afetividade formados ou “fixados” pelos efeitos da proibigao, Como consequéncia, as predisposigdes nao sao fatos sexuais primarios do psiquismo, mas efeitos produzidos por uma lei imposta pela cultura e pelos atos ctimplices e transvalorizadores do ideal do eu. Na melancolia, 0 objeto amado é perdido por uma va- riedade de meios: separacdo, morte ou ruptura de um lago afetivo. Na situagdo edipiana, contudo, a perda é ditada por uma proibiga@o acompanhada de um conjunto de punicgées. A melancolia da identificagio de género que “responde” ao dilema edipiano deve ser entendida, portanto, como a internalizagao de uma diretriz moral interna, que adquire sua estrutura e energia a partir de um tabu externamente imposto, Embora Freud nao o argumente explicitamen- te, dir-se-ia que o tabu contra a homossexualidade deve preceder o tabu heterossexual do incesto; 0 tabu contra a homossexualidade com efeito cria as “predisposigdes” hete- rossexuais pelas quais o conflito edipiano se torna possivel. O menino ea menina que entram no.drama edipiano com objetivos incestuosos heterossexuais jA foram submetidos a proibigdes que os “predispuseram” a diregSes sexuais distin- tas. Consequentemente, as predisposig6es que Freud supde serem os fatos primarios oucconstitutivos da vida sexual sao efeitos de uma lei que, interfializada, produz e regula identidades de género.distintas € a heterossexualidade. Longe de serem fundantes, essas predisposig6es sao o resultado de um processo cujo objetivo é dissimular sua propria genealogia. Em outras palavras, as “predisposi- gGes” sao vestigios de uma histéria de proibic6es sexuais Ww? PROBLEMAS DE GENERO impostas, de uma histéria que no é contada e cujas proi|_ cdes buscam torné-la indizivel. A narrativa da apropriag3,, do género que comega pela postulagdo de predisposic(,. exclui efetivamente seu ponto de partida, que a expoy;, como tatica de autoampliagdo da pr6pria proibigéo. ky, narrativa psicanalitica, as predisposigGes sdo ensinady, fixadas e consolidadas por uma proibigdo que, posteriy, mente e em nome da cultura, consegue subjugar o disty,_ bio criado por um investimento homossexual irrefreaqy, Contada do ponto de vista que toma a lei proibitiva como momento fundador da narrativa, a lei tanto produz a ce_ xualidade sob forma de “predisposigdes” como reaparyce ardilosamente, num momento posterior, para transformar essas predisposigdes aparentemente “naturais” em estrury- ras culturalmente aceitaveis de parentesco exogamico. Para ocultar sua genealogia como norma produtora do préprio fenédmeno que ela afirma posteriormente somente Canali- zar Ou reprimir, a lei desempenha um terceira fungao: 30 instalar a si mesma como principio de continuidade logica numa narrativa de relagdes causais que toma os fatos psi- quicos como seu ponto.de pa rtida, essa configuragdo da lei exclui a possibilidade de uma genealogia mais radical das origens culturais da sexuatidade edas relagdes de poder. O qué’significd exatamente inverter a narrativa causal de Freud e.pensar as disposi¢oes primarias como efeitos da lei?’Em Histéria dasexnalidade 1, Foucault critica a hip6étese repressiva por ela pressupor um desejo original (nao “desejo” nos termos de Lacan, mas gozo) que conser- va integridade ontoldgica e prioridade temporal em relagao a lei repressiva.*” Essa lei, segundo Foucault, silencia ou transmuda subsequentemente esse desejo em uma forma ou expressao secundaria e inevitavelmente insatisfatoria 18 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ.., (deslocamento). Foucault argumenta que © desejo, que tanto € concebido como original quanto como recalcado, é 0 efeito da prépria lei coercitiva. Consequentemente, a lei produz a suposigdo do desejo recalcado para raciona- lizar suas pr6prias estratégias autoampliadoras; € ao invés de exercer uma fungao repressiva, a lei juridica deve ser reconcebida, aqui como em toda parte, como uma pratica discursiva produtora ou generativa — discursiva porque produz a ficgao linguistica do desejo recalcado para man- ter sua prdpria posi¢ao como instrumento teleolégico. O desejo em questao assume o significado de “recalcado” na medida em que a lei constitui sua estrutura de contextua- lizagao; na verdade, a lei identifica e faz vigorar 0 “desejo recalcado” como tal, dissemina 0 termo e, com efeito, cava 0 espago discursivo para a experiéncia constrangida e linguisticamente elaborada chamada “desejo recaleado”. O tabu contra 0 incesto, e implicitamente contra a ho- mossexualidade, é uma injungéo repressora que presume um desejo original, localizado na nogdo de “predispo- sigdes”, o qual sofre a represso de um direcionamento libidinal originalmente homossexual e produz o fendmeno deslocado do desejo heteross¢xual. A éstrutura dessa meta- narrativa particular dodesenvolvimeiito infaritil representa as predisposigées Sexuais. Como impulsos pré-discursivos, temporariamente primarids e ontologicamente distintos, dotados de um‘ propésito,e} Consequentemente, de um significado anterior a seu. surgimento na linguagem e na cultura. A propria entrada‘no:campo cultural desvia esse desejo de seu significado original, com a consequéncia de que o desejo é, na cultura, necessariamente, uma série de deslocamentos. Assim, a lei repressiva efetivamente produz a heterossexualidade, e atua ndo como um cédigo mera- 9 PROBLEMAS DE GENERO mente negativo ou excludente, mas como uma sangao ¢_ mais apropriadamente, uma lei do discurso, distinguindo ¢, que é dizivel do que é indizivel (delimitando e construind, o campo do indizivel), o que é legftimo do que é ilegitimn, A complexidade do género e os limites da identificacao As andlises precedentes de Lacan, de Riviere e de Freud, en, Oeue oid, apresentam versées rivais de como funcionamas identificagdes do género — se € que se pode dizer que de fato, “funcionam”, Podem a complexidade e a dissonancia do género ser explicadas pela multiplicagao e convergéncia de uma variedade de identificagdes culturalmente dissonantes? Ou sera toda identificagdo construida mediante a exclusio de uma sexualidade que questiona essas identificagdes? No primeiro caso, as identificagdes multiplas podem constituir uma configuragio nao hierarquica de identidades mutavejs € superpostas que questionam a primazia de quaisquer atribuig6es univocas de género. Na formulagao de Lacan, a identificagéo é compreendida como fixada na disjungio bindria entre “ter” e “ser” o Falé, com a consequéncia de que © termo excluido do bindrio assombra e perturba conti- nuamente a postura coéretite dos sujcitos. O termo excluido € uma sexualidadescexcluida qué contesta as pretensdes autorreferentes do sujeitobenv Como suas afirmagées de conhecer a fonte.e'o.objeto de seu desejo. Em sua maior parte, a8 criticas feministas preocupadas coma problematicapsicanalitica da identificagao tém con- centrado sua atengao na questo da identificagdo materna, buscando elaborar uma posigdo epistemoldgica feminista a partir dessa identificagdo materna e/ou um discurso 120

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