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Poesia de Cordel RAIMUNDO SANTA HELENA Colecdo EPOPEIA DA VIDA - Livreto I-6 DUELO DO PADIM CI¢O COM _O PAPA a Flagelados das Secas Pag. 7 e 8.. Na Lama da Droga Pag. 9 @ ze O Cacador Pagina 11.............. A Ultima Cacada Capa 3 Coleco EPOPEIA DA VIDA Livreto H-8 — la. edicdo 2.000 Exemplares — RIO JUNHO. — 1980. RAIMUNDO SANTA HELENA — O Poeta Mafinheiro — Poemas do autor, registrados na Biblioteca Nacional, 4 venda na Feira de Sdo Cristévao (domingo), na FEIRARTE da Praca XV (6a A4: BS: ct: DS: ES: F3: Gl: H8: 16: . € sabado) e alhures: Seios Nus, botafogozando, Cacéfatos e Cangdo Nordesti- na. Filhinhos de Super-Maés, Skylab, Racismo, Cangao do Va queiro e To be Happy or Miserable. Adeus, Gilson Amado! Devastar o Brasil? . . . Aqui Pra Vocés! Mulher Ultrajada - A Fuga, Vicios e Feira de Sao Cristévao. Senhor do Bonfim, Brizola Nao Querer Indios, Retirantes, Crianca-Passarinho-Floresta e Favela Colorida. Lampido e o Sangue de Meu Pai, Chico do Mar e Gaivota Rejeitada> Estatuto Social da COORDEL-JR. Doengas Sexuais, Orgasmo Feminino, Menstruacao, Enfer- meira, Mastigéforos Ciclicos Antropéfagos, Casamento, Oragado ede Velho e Desuniao. Duelo do Padim Cicgo com o Papa, Flagelados das Secas, Na Lama da Droga, 0 Cacador, A Ultima Cacada e Zé Ra- 10. TOTAL: 38 titulos e 26.000 exemplares. Pedidos: Editora “GED”, Rua Eduardo Prado no.13-A., Sao Cris- tévao, CEP 20940 — RIO (RJ). | ) | | EPOPEIA DA VIDA Raimundo Santa Helena Papa: Cigo: Papa: DUELO DO PADIM CiCO COM O PAPA Ex-Padim Cigo, eu queria (J que nao lhe vi no Céu), Através da poesia Populista de cordel, Enxergar o queu néo via: 0 “ milagre ” do chapéu, E outras mentiras suas, E boatos de romeiro, La de Crato e Juazeiro, Nas casas, pragas e ruas . . , Dobre a Ifngua, papa-délar! Eu sou padre, até mijando! Dizer queu sou “ex” ndo cola Continuo abencoando, Minha fama deita e rola, Todos estéo me amando . . . Agora me chamo Santo! Nas cidades, nos sertées, Meu retrato, meus sermées, Tao ai, por todo canto... Se vocé ndo é mais padre, Santo ndo vai se chamar! Nao pode sair da grade, Quem nfo tenta subornar! Ninguém pode ser comadre, Sem filho e sem batizar! Como pode ter aborto, Mulher que nunca trepou? Vocé, cara, nfo mudou, Nem mesmo depois de morto! -1- Poesia de Cordel Cigo: Papa: Cige: Duelo do Padim Cigo com o Pa Pra quem respeita a mulher, Seu dogma ndo combina: Missa a Igreja ndo quer, Pela classe feminina! Se escravize quem quiser, Mas papa que discrimina, Nae monta no meu cangote! Por muito menos, Jesus, Antes de morrer na cruz, Castigou com seu chicote! Alta la, pare com isso! Que comparagdo boboca! Um simples ex-Padim Cigo, Nome de Jesus invoca! E comparar um chourigo, A um doce carioca; Um sertanejo nortista Qu caboclo nordestino, Ao rico, forte e gra-fino, 0 fazendeiro sulista! Deus do Céu, nao € poss{vel! Muda o tempo e o papa nao! Que comportamento horrivel: Tudo € discriminacdo! Por isso, achei exeqiifvel, A minha excomunhiéo, Da sua Igreja romana, Preu ficar com minha gente, Leal, humilde e decente, Contra Roma soberanal -2- EPOPEIA DA VIDA Papa: Cigo: Papa: Raimundo Santa Huiena Mas canonizei, de vera, Anchieta, € 0 caso encerra Quatro séculos de espera! Do Corcovado, na serra, Rezei até pra quimera, No ar, no mar e na terra! E catei vocé no Céu, Embora no meu caderno, Conste vocé no Inferno, Com batina e com chapéu! Vooé fez 0 queu previa : No Brasil foi convidado — Com cruz e demagogia Visitou o favelado! S6 faltou ir a Caxia ! Num vagao superlotado! Em Juazeiro do Norte, Papado me excomungou, E nunca me respeitou, Nem depois de minha morte! Mads vocé foi trapaceiro — Se eu mentir, mico me coma: Ganhava muito dinheiro, E nado mandava pra Roma — Dava ao pobre brasileiro, Uma infinita soma! Foi demais o desaforo, Pois eu ndo fago segredo: A Basilica So Pedro Precisava de mais oura! -3- Poesia de Cordef Duelo do Padim Cigo com o Papa Cigo: Mas isso a gente sabia — Quem foi a Roma e voltou! Para 0 povo que nio via, A televisio mostrou! Mas prefiro a estrebaria, Onde um menino chorev, Nascendo {na manjedoura — Sempre humilde Jesus foi. . . Eu também prefiro o boi, Do que uma santa loura! Cigo: Por causa desta verdade, Vocé, papa, est4 calado! Quem pratica caridade, Pra Deus ja t4 perdoado — No sert&o ou na cidade, Pelo povo eu sou amado! As coroas amarelas Simbolizam o escarninho — Eu prefiro as de espinho .. . S&o mais santas, 40 mais belas! Cigo: “S6 de Roma”, vocé diz, “Se alcanca o Paraiso!” Contradigao infeliz: Mataram o “Papa Sorriso”... Liberdade no se doma, Nem se cria de improviso! E so Joao Paulo Primeiro, Joapa D’Arc e outros Santos, Chovem na Terra seus prantos, Pefo golpe traigoeiro! ~4- EPOPFIA DA VIDA ~ Raimundo Santa Helena Cico: Papa: Cigo: Todo crime eu condeno, Se nao for pra nado morrer! Lago, o fogo e o veneno, Nunca posso conceber! E Jesus de Nazareno. Lé de Cima péde ver : O papa bebendo vinho, Quando foi envenenado! Foi mais um injusticade, Mas no céu nao estd sozinho... Eu nao vou the dizer nada --- Nao the devo explicacao! Mas papa que diz piada, Vai direto pro caixao! Acabou-se a palhacada, Com sabor de palavrao! Papa morto. papa posto! Eu sou papa de moral — No meu cerimenial, Pra vocé s6 viro o rosto... Vocé me fala de lado, Oferidendo os brios meus, E ainda é chamado, Pelos puxas, “Joao de Deus”... Mas por mim. t4 perdoado — Perdoei os fariseus... Mas a Biblia fala nisto: Naquela Ceia,-alguém. O rosto virou também, Depois traiu Jesus Cristo! $ Poesia de Cordel Cigo: Ciga: Cigo: Duelo do Padim Cigo com o Papa Agora, pro fMlagelado, Vocé vem celebrar missa — De fazendeiro cercado, Pede um mundo sem injustica! E pedir ao corvo alado, Que no fareje a camiéd! Isso foi em Fortaleza, No Congresso Eucaristico — Papa, seja menos mistico.. . . Defenda mesmo a pobreza! Eu sempre fui bom cristéo, E nao sou “subversivo™. . . Mas eu vejo a coergio, Jogar bola com explosive! E hoje, a Religido E um 4rbitro passive, Pasndo © time das gerais um saco de pancadas! Time das arquibancadas Tem mais grana, tem cartaz! QO rio corre pro mar, E vira nuvem celeste — Chove no Sul, sem parar, So ndo chove no Nordeste — Fazendeiro vai comprar, Do pobre, tudo que reste .. . Papa condena o aborto: “Ndo matar”, disse vocs! Mas meu Deus,matar 0 qué? Nascer pobre é nascer'morto ! | ! FiM -6- eee EPOPEIA DA VIDA Raimundo Santa Helena FLAGELADOS DAS SECAS Paraiba, 1932 E 32, imaldicdo, No Sertao de Cajazeiras! Sem arroz e sem feijao, Sem agua, sombras nem feiras, 0 yento arrasta no ch4o, Ossos fofos das caveiras! La no alto, os urubus . . . C4 em baixo, cena imunda: Cao faminto lambe bunda De criancas -- todos nus . . Na seca, a vida nao presta.. . Mais de um ano sem inverno, Como se fosse uma festa Do Satands, no Inferno ! Um pingo d’4gua no resta, Neste sofrimento eterno! Gestantes pedindo esmolas, De joelhos, maltrapilhas .. . Pais banguelos trocam filhas, Nao ha missa, nem escolas! Grito por Deus, La em cima, Mas Ele j4 estd saindo, Cujo destino nao rima. . . Nos deixando um sol tinindo, Que a terra “séca” lastima! Pra nos o mundo est4 findo — Nas arvores nao ha mais copas. . . Caminhoés? Vejo dezoito !, Nos dando gua ¢ biscoito, Homens de verde, as tropas ... -7- Poesia de Cordel — Flarvhadas das Secas O Exército € um pedaco Do Governo. no Brasil £ como se fosse um brace S6, se erguendo dentre mil... E coar palha de ago Gu pitomba num funil... F dar peixe, sem fartar, Aum mendigo faminto — Melhor seria, eu sinto, Se the ensinasse a pescar... O Poder. que é mau politico, Nao tem medo do abismo - Vé no pobre um paral {tico, Vé no rico 0 altrufsmo! Dividir terra 6 fat{dico Ao feudo coronelismo, Que na seca é urubu: Com acude, tem fartura — Compra um jumento, usura! Com um prato de angu... Agude pablico, gente, Nus municipios sedentos, Ferramenta e semente, Peixe, poco e cataventos, Arvoreda resistente, Também armazenamentos! Sen “discursos” nos coretos... De contrdrio, estou bem certo, Nordeste vira deserto, Sepultando os esqueletos... ~FIM- 8 EPOPEIA DA VIDA .. Ruimundo Santa Helena NA LAMA DA DROGA No mundo do fumo, Do Aicool e da droga, Um jovem sem rumo, Caminha sem alma, Sem vida nem calma, Na lama se afoga... Nascew no sertao ~ E contra a vontade, Cresceu na cidade, Mas na solidio, Por falta de amor, No vicio ingressou... No mundo da droga, De Alcool e do fumo, Na lama se afoga Um jovem sem rumo, Sem vida nem alma, Caminha sem calma... Deixando seus pais Eo verde planalto, Cobriu de asfalto O seu coracio — Com um copo na mio, Protestos de paz... No cheiro do dlcool, Fumaga do fumo, Suplicio na alma, Sem vida nem rumo, ‘Um jovem se afoga Na lama da droga... 9 Poesia de Corde} Na Lama da Deoga- Néo tem mais amigos — Na senda do crime, Enfrenta perigos ... Jamais se redime! ‘Um tiro ecoou, Seis versos deixou: “Nao tenho querer, Nao sinto a mulher, Perdi minha fé, Queimei minha cruz, Prefiro morrer . . . Cleméncia, Jesus!” No mundo do fumo, Do Alcool e da droga, Um jovem sem rumo Na lama se afoga Seus antepassados, De bracos cruzados! 6 tu, velho rico, Tu és o Poder, Seu velho penico! Teu Deus é 0 dinheiro ~ Eu sou marinheiro, - Eu vou te comer I!f FIM Ad. 10 - “ Cada vez mais me apercebo da dignidade e da beleza que existem na simplicidade de pensamento,de conduta ¢ de palavras. “JOAQ XXII, “Didrio de Uma Alma”). 40 - EPOPEIA DA VIDA Raimundo Santa Helena © CAGADOR ‘A mata esté parando e o Sol se esconde, L& por tras da serra, que alaranjou . . . A caga, em algazarra, se aninhando, Exausto volta o tltimo cagador . . . ; Barraca, verdes galhos, bem armada, Lé no giral palestram cacadores. . . Lanterna, por mosquitos festejada, Projeta micro-sombras muiticores .. . Com brisa, no fogao cintilam brasas: Assam carne gorda que pinga e cheira . . . Floresta, aqui e ali bater de asas, Abafando 0 rufar da cachoeira . . . Alguém chora, tossindo com a fumaga, Mas ao fogo nao deixa de atigar . . . E virando o espeto, acha graca, Da mentira que acabam de contar . . . E comem, bebem, mascam, fumam, falam — Palestra pouco a pouco vai sumindo . . . E chega 0 sono e quase todos calam, Menos um, que ainda se vai mentindo . . > A mata est4 parada,a serra nua — A noite prateada, esplendor . . . Caca moderna, namorande a Lua, E cansado, medita o cacador . . . FIM A seguir, BIOGRAFIA do autor, 8a. Edigao: -TEe Poesia de Cordel Biografia BIOGRAFIA Fui parido em 6-4-1926 num trole rodando 4 vara. Minha cabega nasceu na Paratba e 0 restante no Ceard. Meu pai, RAIMUNDO LUIZ, agricultor e mestre-de-linha, fundador do municipio paraibano de “Santa Helena”, morreu combatendo Lamipido e mais 65 cangaceiros que invadiram e incendiaram a cidade em 9-6-1927 — Processo MF 0168-4081 11/69, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Minha mae, Dona ROSINHA, estava gravida de 5 meses-e foi maltratada pelos bandidos, que ainda tentaram matd-la. Na 1@ punhalada defendeu-se com um ferro de engomar a carvito e na 24 foi salva pelo “Jararaca”’, amigo de meu pai. Na hora do tiroteio fui camuflade com capim seco numa cacimba velha, onde uma virgem ime acalentou com os seios nus. Lam- pido, entrincheirado por tras de um cavalo, matou meu pai é queima-roupa, com um firo na nuca e outro num dos olhos, quando viu que papai com a espada na mao era intocdivel. Em 1933 mamde vendeu 7 casas e as terras herdadas para regressar a Sdo Luts do Maranhao, mas ndo pode viajar porque 0 fazendeiro yizinho que the comprara os im6veis ndo pagou nenhum tostdo e ainda nos expulsou de nossas propriedades a tiros de espingarda, xingando todo mundo de fithos da puta. Juntamos os teréns as pressas e fomos morar num quarto alu- gado ao Antonio Rolim. Foi um momento terrivel! Mama foi ser lavadeira e os 3 filhos passamos a trabalhar de aluguel nas terras dos que foram salvos por meu pai. Fazta- mos biscates a troco de comida e vendiamos qualquer coisa nos frens de passageiro que 2 vezes por Semana paravani para tomar dgua na caixa construtda pelo meu pai. Certa noite, com a mesma espada com que papai lutara contra os bandidos, a mamde, para defender a honra, matou um cabra safado através da fresta da porta Em 19°4 minha mde, em Sao Jodo do Rio do Peixe, haje Antencor Navarro, acompanhada pelos compadres Granjeiro e Manui, abragada com seus 3 filhos ajoelhou-se chorando e pediu a restituigdo dos imdveis, porém as autoridades ndo se comoveram. -- POPEIA DA VIDA Raimundo Santa Helena Ao meio-dia de 31-12-1937, sem tostéo, num velho trem de madeira fugi de casa para matar Lampido. Mas tive de traba- thar duramente no Ceard, para sobreviver e sutentar minha mae, Em “‘Barbatana’’, perto de “José de Alencar”, fui agri- cultor, vaqueiro e lenhador, cuja lenha era vendida em Iguatu, onde iniciei minhas atividades de cordel. Depois viajei para Fortaleza, apos ter me recuperado de uma fratura no queixo e de mordidas na perna direita, produzidas por um jumento-de- besta quando eu, de cima de um toco, mantinha relacdes sexuais com sua égua, Lé na capital eu dormia no oitéo da Igreja da Sé ou nas calgadas do Mercado Municipal, comende sobras de comida, Aos 13 anos de idade, sendo empregado doméstico, fui preso injustamente como ladrao. Sé depois de ser torturado na delegacia e jogado, sangrando pela boca, no chdo, foi que a filha do patriio confessou que na auséncia dos pais apanhara o dinheiro como empréstimo. A noite, sem ter onde dormir, descalgo e sé com a roupa do corpo, vaguei a pé da Praia de fracema até Mucuripe. Ali trabathei_ na construgdo do .quebra-mar com meu padrinho Emiliano, fui pescador na jangada do Seu Cardoso, peixeiro, cameié, caixeira e cambista (bicheiro). Ndufrago de uma jangada em alto-mar, arribei para Munguba, onde trabaihei quebrando pedras para o quebra-mar de Mucuripe, mas fugi por causa de um amor platénico proibido. Voltando @ Fortaleza, fui ser empregado de pensdes, vendedor ambulanie, tirador-de-barato no ‘‘Curral das Eguas”’, trocador de Gnibus, erc. Aos 15 anos de idade fui currado por 2 senhoras % quem eu entregava roupa engomeda. Moravam perto do cemttério fiado do portdo principal}. Foi a melhor coisa que me aconteceu, pois até aquela noite eu s6 procurava galinhes ou peruas, cabras, cadelas, ete. e as nddegas das meni- nas, porque na infancia mis cnsinaram na rua que o clitoris da mulher penetrava na uretr: do pénis e dota, Desmascarada a grande mentira, descobri que 2 vagina humana era melhor do que tudo que eu havia experimentudo. Diariamente eu fazia Sexo com aquelas santas senhoras... 13 Poesia de Corde} Biografia Mas naquele periodo sublime de minha vida larguei tudo pra socorrer minha mde, que passava fome em “Santa Helena”, no auge da longa estiagem. Em “Olho d'Agua do Meldo” eu trabalhava 66 horas por semana nas frentes de trabalho do governo e andava 14 léguas semanaimente para levar comida pra mamde. Nau recebia dinheiro e sim alimentos que so po- diam ser comprados no armazém cujo nome estivesse carim- bado na caderneta de trabalho. Dormia em barracas de galhos secos. Meu irmao Toinho e eu ficamos no lugar dos irmdos Horacio e José Caetano dos Santos, que abandonaram sua turma declarando, apavorados, que na despensa de uma casa onde se vendiam churrasquinhos. viram sacos de estopa com terra e ossada de criancinhas, Eu me tembro que troquei minha medalhinka de ouro (N.S. da Conceicao} por um bife. Meu irmdo mais velho {o Santo}, apds comer um pedago, foi mijar nos fundos da dita casa, voltou vomitando e regressou corren- do a “Santa Helena”. com dor de cabega. Confessou & mamde que vira tc:nbém a ossada e um pé de crianga saindo pela boca de .m dos sacos. Apos aquele achado macabro, trabalhamos traumatizados alguns meses, tendo pesadelos todas as noites. Um trabatha- dor especial” que ouvi nossa confisséo, miandou que a gente calasse 0 “‘bico para néo morrer”. Pensando ia mame, ca- famos, Nao agtientando mats, fomos tentar outras frentes de trabalho em Cajazeiras. “Antenor Navarro”, Pildes, etc., mas ndo arranjamos cotacagdo Apos 2 dias de fome e com muita sede, bebemos lama nos bruios de um acude que o governo construtra na fazenda verdejante de um ricaco ‘“‘coronel”’, de onde roubamos uma bejuda meiancia. Um homem forte, armada de foice, correu atrés de nos. Pulamos uma cerca e subimos num serrute pedregoso. Quando o agressor jd ia degolando o meu irmdo, atirei unia grande pedra de cima para baixo, atingindo a cabega do estranho, o qual desfaleceu. Imediatamente comemos a melancia com casca e tudo, 86 deixando um pedago pra mamée. Retornando mais tarde a Fortaleza, fui ser baleiro de Dona Ester. coin meus colegas “Dente de Our” e “Amare- 14 EPOPEIA DA VIDA Raimundo Santa Helena linho” que depois morreram tirando borracha na Amazonia para os norte-americanos. Em s guida, com meu melhor amigo, irmdo de criag@o, “Manolo”, passei a engraxar sapatos na velha Praga do Ferreira, mas tive minha caixinha arreben- tada por um policial de chapéu vermelho, porque, mandando dinheiro pra mamde, eu nao podia engraxar de graga como ele queria, Levei pontapés e cat ensanglientado na sarjeta, mas consegui me refugiar no interior do Cine Majestic, onde uma senhora me encaminhou para ser baletro da Professora Car- mem, na Rua Major Fagundes, onde, trabalhando 13 horas por dia e estudando a noite num gatinheiro, d luz de lamparina, fiz provas e ingressei na Marinha do Brasil. Sou ex-combatente. Quando eu fazia o ultimo teste prdtico em alto-mar, do Curso de Tatica Anti-Submarina, um superior me pegou ras- cunhando o poema “‘Solidio de Marinheiro”, num pedago de papel higiénice. Discretamente escondi o papel no meio de um sanduiche e fingi que estava comendo. O chefe percebeu o disfarce e mandou que eu comesse de verdade. Esperou um pouco, arrebatou o resto do sanduiche e leu o que,sobrara de meus versos, dizendo. “Que vergonha para o Brasil — em plena guerra um marinheiro na hora do expediente faz versinhos de mierda! Vocé esté preso!” E no dia seguinte fui libertado pelo Comandante Alberto Jorge Carvathal, com o seguinte elogio: “\ este marujo, representando seu navio (CT Bracut), sendo o menos graduado de uma turma numerosa, acaba de conquistar o 19 lugar. Parabéns, meu ex-aprendiz-marinheiro; parabéns, meu jovem!” E como ironia do destino, 13 anos depois, o entio almirante Alberto Jorge Carvalhal, comandando o 5° Distrito Naval, em Florianopolis, entregava a este poeta incor- rigtvel, o diploma de I colocado no curso de aperfeigoamento para sargentos escreventes, . Antes, em 1946, no Rio, abandonei o Curso Rio Branco aa Praga da Bendeira: Marinheiro ndo podia estudar aqui fora! Deixaram-me um diciondrio de inglés e outro onde se dizia que 0 Corde! ndo era Literatura! Hoje o Ministro é poeta, o marujo é Dr. e o Aurélio jd se conscientizou! FIM, 1s EXPLICACAQ DO AUTOR Ad. 13 — A xilogravura acima, publicada na capa do livreto H-8, causou polémicas nos meios cordelistas. Para muitos, a igura é “‘simplesmente imoral-e nao pode ser mostrada a@ minha familia.” Para outros, “isto é pornografia, que enver- gonha a Literatura de Cordel,” E alguns acham que “isto é comercial e pornd, para chocar e vender.” Para mim, todavia, imoral, pornografia, porné e DESUMANO, é deixar que os jovens permanegam mergu- Thados na ignorancia sexual, doentes, impotentes e infelizes, rocurando abertura nos vicios,.. “em nome.da familia, da onra e da moral.” Tenho 3 filhos jovens e.solteiros, e eles foram os primeiros a me dar os parabéns pela ‘‘xilogravura cientifica’ e 0 poema “DOENCAS SEXUAIS”, de minha autoria. A juventude, aos educadores e aos sequiosos da verdade, dedico a minha poesia educativa. (RAIMUNDO SANTA HELENA). 16 EPOPEIA DA VIDA Raimundo Santa Helena A ULTIMA CACADA — (Mamucaba, ERJ, 1961) A espreita de uma caca, pra matar, Vou andando pelas matas, de mansinho . . . Segurando a espingerda, com carinho, Ouco algo e procuro me agachar . . . Mergulhado num véu de cipés em tranca Pouco a pouco me aproximo, rastejando .. . Sobre um tronco levemente vem passando, Em siléncio um par de sombras, que avanca... Com a pala tapo o Sol, olhando o céu ~ E num galho seco, como dois casacos, Um peludo casal de mono-macacos, Trocando caricias de lua-de-mel . . . Por tras de garranchos, acima de um toco, 0 macho me avista — Cadé o machismo? Deixando a macaca ao meu vil sadismo, Na mira de um cano, aosolhos de um louco . . . Com um tiro certeiro bem no coracéo, Despenca a bichinha por entre os cipés! Grunhindo baixinho, sua altima yoz Espirros de sangue chovendo no chao . . . Filhotes fucando, gemendo em aflicdo, No peito materno, tentando mamar . . . Eu juro, 6 meu Deus, nunca mais vou Trocat minhas balas por flores e pao !! Ad.11- Quebrei a espingarda na mesma hora. Nunca mais cacei. A arma serd doada a um museu, com este poema. Rio, 1980. (O AUTOR). TB LL sa de Cordel RAIMUNDO SANTA HELENA Colegio EPOPEIA DA VIDA - Livreto 1-6 ZE RAMALHO Rie, 1780 evra. Desde que se fez a data, Muito antes de Jesus, Ha sempre alguém com a chibata, Ha sempre alguém com a cruz... Em todo escuro da mata, Hé4 sempre um raio de luz... Em todo mar ha marinha, Em todo luar, estrelas — Othem bem, se querem vé-las, Joao, Zé Ramalho, Amelinha... ... ... Ad.12- Homenagem do autor, comovido pelo gesto fraterno de Z Ramalho, cantando de graca no encerramento do I Congres- so Nacional dos Poetas da Literatura de Cordel(RIO,16-3-80).

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