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evacko MUSEOLOGIA.PT #5.2011 jo )e}}s¥0e) AOS Ves CaF UE) totes aU aUa NGO LTS OR ORCC CO Gee ee BT ne Resumo Abstract s the several attempts mad junch a national museum cent Este artigo procura dar conta das sucessivas tentati vas de musealizac3o da cultura popular portuguesa no fodo que se estende desde 1870 a 1970, Nelecomecam Portuguese folk culture. In the first part of the pape’ the initial attempts to bring Portuguese traditional eiros ensaios ~ falhados ~ de fazer 0 Muse, tratadas os museum, through the cre he into the spac f the Portuguese Ethno © povo no museu, primeira no qua Etnogratico ~ e depois Etnoldgico ~ Portugués e de no quadro do Museu de Arte Popular. Na p hment of the Muse: Ik Art. In the fi artigo ab: riagao do Museu de Etnologia do Ultr. he paper | concentrate inthe creation ofthe Ethn« pols Museu Nacional de Etnologia ~ e 0 mi | Museum of "Ultramar” (Portuguese oversea ter esar da sua orientacdo ultramarina, ele permi- _ritaries) ~ later renamed National Museum of Ethnolog tird ~ finalmente = que a cultura popular portuguesa s rich, despite its colonial orientation, had a strong focus instale no espaco do museu on Portuguese folk culture Palavras-chave Antropologia | Etnogratia | Cultura Popular | o | Museu Etnolégico Portugués ‘Museu de Arte Popular | Museu Nacional de Etnologia ‘A antropologia portuguesa nasce, nos anos 1870/1880, sob o signo do estudo da literatura e das tradicées populares. O seu territério era ~ para recorrer a uma designagao actual - 0 da cultura imaterial, Era, nessa medida, uma antropologia imune a objectos e a museus. Gradualmente, os antropé- logos portugueses ~ continuando a fazer do povo rural o seu objecto Unico de indagacao ~ ir-se-8o entretanto interessar por outros campos de pesquisa. Nesse proceso de diversificacdo da agenda antropoliégica ocupard desde cedo papel de destaque aquilo que progressivamente ird sendo chamado de cultura material: um conjunto diversificado de objectos ~ e dos modos de fazer a eles associadas ~ que, ou documentavam as fainas e tecnologias asso: ciados 20 modo de vida rural, ou eram testemunhos das capacidades artisti- cas do povo.* Trés grandes momentos podem ser surpreendidos nese processo de tematizacdo da cultura material. O primeiro ocorre na virager do século XIX para o século XX e tem como principais protagonistas dois antropélogos ~ Adolfo Coelho e Rocha Peixoto ~ que embora tenham iniciado a sua carreira sob o signo do estudo da literatura e das tradi¢bes populares, comegardo, a partir dos anos 1890, a alargar o campo dos seus interesses. Adolfo Coelho teve a esse respeito um duplo papel. Foi ele, por um lado, que chamou a sia tarefa de enunciar programaticamente a necessidade do alarge- mento tematico da antropologia portuguesa, em artigos como "Esbogo de um Programa de Estudos de Etnologia Peninsular" (1993a), “Exposicao Etnogratica Portuguesa’ (1993b) ou “Tradigdes Populares Portuguesas. A Caprificacao" (1993c), Nesses ensaios, a par de urna visdo ampla da antropologia portuguesa, 2 ‘Adolfo Coelho insistesernpre na importncia dos estudos sobre a cuitura mate- tialdo povo. Esta concepcio aberta da antropologiareencontra-se ~ embora de modo pontual ~ na praducdo concreta de Adolfo Coelho, que, em particular 2 partir dos anos 1890, se abrird para temas relacionados com a cultura materia, ‘como o mostram o jé mencionado "Tradicdes Populares Portuguess. A Capri ficacSo" e ainda a “Alfaia Agricola Portuguesa’ (1993). ‘Mas é sobretudo em Rocha Peixoto que essa reorientacdo para o domt- nio da cultura material é mais evidente, De facto a parte mais significativa da sua obra etnogréfica encontra-se estruturada em torna de estudos ~ na maior parte dos casos pioneiros ~ sobre t6picos come a lara, ailuminacao popu- lar, 0s ex-votos, 0 trale popular, as filigranas, etc. Reunido postumamente no Volume I das suas Obras (1967) ¢ posteriormente reeditado sob o titulo Etnografia Portuguesa (1990), este conjunto de estudos constitui a melhor ilustrac3o da importancia que o dominio da cultura material ocupou em Por tugal na viragem do século XIX para o século XX ‘Um segundo momento do processo de tematizacdo da cultura material 1a antropologia portuguesa ocorre nos anos da | Republica. Entre os seus principals protagonistas contam-se Vergtlio Correia, Luis Chaves e - embora tem lugar mais discreto ~ Leite de Vasconcelos. Mas enquanto em Racha Pe xoto 0 interesse pela cultura material era um interesse razoavelmente alar- ado e diversiticado ~ abrangendo tanto as tecnologias tradicionais como 0 campo da arte popular ~ 0s etndgratos da | Repiiblica vao mais exclusiva- mente focar-se na arte popular e mais do que cultores da etnografia sergo sobretudo cultores daquilo a que na época se chamava “etnografia artis- tica’. A obra de Vergtlio Correia 6, a esse respeito, uma das mais consisten- tes, abrangendo tépicos como os trabalhos de tear, aarte pastor formas de ‘ornamentacdo popular, 2 arte das salinas ou 0 carro rural. Simuitaneamente, outros autores trouxeram para o campo da etnografia portuguesa objectos como os tapetes de Arraiolos ~ estudados por D. Sebastiao Pessanha ~ ou 60 bonecos de Estremoz, alvo do interesse de D. Sebastio Pessanha e Luts Chaves. Leite de Vasconcelos, para além de alguns artigos sobre temas de etnografa artstica escrevers também sobre a figa eo signo saimao (Vascon- celos 1996) Um terceiro momento do processo de tematizacao da cultura material ocorre @ partir da segunda metade dos anos 1940 na sequéncia do traba~ thode lorge Dias e da sua equipa, itegrada, entre outros, por Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira. Como se sabe 0 pro- sgrama de pesquisa desta equipa era muito ambiciosoe razoavelmente diver- sificado, recobrindo, para além de estudos de conjunto da cultura portu- guesa, t6picos como as comunidades de montanha do norte de Portugal, a Vida pastori, a arquitectura popular, as festividades e ceriménias ciclicas, 0 culto dos mortes, etc. Mas um dos niicleos estruturantes da pesquisa de Jorge Dias e da sua equipa teve mais uma vez a ver com a cultura material «¢em particular com as tecnologias tradicionais do mundo rural portugués. ( sinal de partida foi dado pela publicacdo de Os Arados Portugueses e as suas Provavels Origens (1948), da autoria de Jorge Dias. Na sua sequénca MuscoLociaeT Jorge Dias e os seus colaboradores iro desenvolver um projecto de levan- tamento sistemtico das tecnologias tradicionais portuguesas que daré or gem a um conjunto de mais de uma dezena de monografias, recobrindo domi- rnios como os aparelhos de elevar dgua da rega, os moinhos e azenhas, os sistemas de armazenagem e secagem dos cereais ~ com destaque para os espigueiros ~ os sistemas de atrelagem de bois, as actividades agro-mari- timas, a alfaia agricola ou a tecnologia tradicional do linho. As raizes deste extenso trabalho de pesquisa remontam, por um lado, @ agenda da etnolo- gia europeia dos anos do pés-guerra, dominada por grandes projectos de cartografia etnogrética centrados designadamente em elementos da cul- tura material. Mas tém directamente a ver, por outro lado, com peso que nas prioridades de pesquisa definidas por Dias e pelos seus colaboradores tinham as recolhas centradas em elementos da cultura tradicional vistos ‘como mais ameacados pelas transformacdes tecnoldgicas e socials nos cam- os portugueses. Em consequéncia, dezenas de mithares de paginas foram dedicadas pela equipa de Jorge Dias & pesquisa das tecnologias tradicionais portuguesas O povo etnografico e€ 0 povo arqueoldgico ‘Ao mesmo tempo que assinalam as principais etapas de tematizacio da culture material camponesa no interior do espaco disciplinar da antropolo- 41a, estes diferentes momentos esto também associados & emergéncia de diferentes projectos museolégicos. ‘A viragem do século XIX para o século XX seré marcada pelo desenvolv- mento dos primeiros projectos desse tipo. Alguns deles ~ 8 semelhanca das exposicées de indistrias populares organizadas por Joaquim de Vasconcelos no decurso dos anos 1880 ~ no envolvem directamente as figuras centrais da etnografia portuguesa da época. £0 que se passa com a exposicso Alfaia Agricola Portuguesa, organizada em 1894 na Ajuda (Lisboa). Mas 2 cons- cléncia de que 2 exposicao e o museu eram instrumentos importantes no desenvolvimento da antropologia portuguesa nao delxa de estar presente nos etndgrafos mais destacados da época. Adolfo Coelho, para além de um ensaio sobre a exposiclo Alfaia Agricola Portuguesa (Coelho 19934), apresentarétamn- bbém um plano para uma “Exposicdo Etnogréfica Portuguesa’ (Coelho 1993b). ‘Quanto a Rocha Peixoto desempenhars fungSes de chetia no Museu Munic- pal do Porto, que compreendia uma seccao etnogratica e fundaré também lum pequeno museu etnogrfico no Club Naval Povoense (Pévoa do Varzir). De resto a orientacSo da pesquisa de Peixoto para temas da cultura material nao pode ser entendida ~ come éreferido pelo seu bidgrafo Flavio Goncalves (1967) ~ sem as exposicdes de indtstrias populares 2 que Joaquim de Vas- concelos esteve ligado, que culminarao na criacao do Museu Industrial e 34 1a ua visto de conjunt dahistéria do mbém Brac DDesenho de cara alentelana Desenhio de Jo Saavedra Machado Comercial do Porto, dirigido também por Joaquim de Vasconcelos e onde as indtistrias artesanais ~ ou caseiras ~ ocupavam lugar de relevo. Entretanto, 0 passo de maior significado no sentido de franquear a entrada do povo no museu, sera dado, em 1893, por intermédio da criaao do Museu Etnogréfico Portugués. Dirigido por Leite de Vasconcelos, o Museu seré rebap- tizado em 1897 de Museu Etnolégico Portugués, nome que conservard até a0 falecimento de Vasconcelos. Inicialmente sediado na Academia de Cién~ cias de Lisboa, serd instalado em 1903 no Mosteiro dos Jerdnimos e abriré 20 pubblico no ano seguinte.” ( projecto do Museu era de uma marcada ambico. Na sequéncia da sua ctiaco, Vasconcelos fixa-Ihe como objectiva “representar a parte material da vida do povo portugues — isto é, tudo 0 que a esse respeito etnicamente nos caracteriza" (1894/95: 13). Desde o principio que um tal propésito foi enun~ ciado ndo apenas por referéncia ao "presente etnogréfico” do povo portugués ‘mas também ao seu "passado arqueolégico”. Por isso 0 Museu Etnogréfico, explicava Vasconcelos, dividir-se-A "em duas secgdes: uma de Arqueologia, ‘que compreenderd monumentos pertencentes a0 espaco de tempo que vai desde as mais remotas eras até ao século XVIL, outra moderna (id: 14), Emibora mais tarde o &mbito do Museu se amplie ainda mais, passando a incluir uma ecco de antropologiafisica, por ocasido da sua criacao as duas componen~ tes principais do Museu ~ a arqueolégica e a etnogrética ~ parecem ter sido cconcebidas de uma forrna equlbrada. Assim, no artigo em que enuncia os objec tivos do Museu e publicita de modo detalhado 0 seu projecto museolégico,, Vasconcelos consagra 27 paginas 8 arqueologia e 32 a etnografia. Para esta Ultima 0 plano estabelecido é também ambicioso e compreende t6picos como: desenho e modelos de edificacdes, mobilia e objectos caseiros, vestuério € objectos correlativos, comidas e objectos correlativos, religido e usos funerd- rios, divertimentos e festas, vida agréria, vida maritima e ocupa¢ao da pesca, aprestos de caca, e, a fechar, belas artes populares e artes industriais. No mesmo artigo, Vasconcelos sublinha o particular valor patriético da seccdo ‘etnografica: “0 nosso pals possui bastantes elementos seus, com feicao genui~ rnamente portuguesa’ e competiria ao Museu, numa época de descrencanacio- nal, mostrar que “hd ainda entre nés alguma coisa (..) na qual se imprimiv indelevelmente o cunho nacional" (id: 76). ‘Apesar deste inicial desenho equilibrado, na pratica, a arqueologia rapi- damente remeter para plano secundario a etnografia. As primeiras colec~ ‘ses que dardo entrada no Museu sao coleccdes arquealégicas e embora posteriormente se tenham desenvolvido as coleccdes etnograficas ~ desig- nadamente em resultado da accdo desenvolvida por Vergilio Correia e Luis Chaves no quadro do Museu ~ o que é certo é que, no apenas o crescimento das coleccées etnogréficas foi sempre inferior a0 das colecsdes arqueolégi- cas, como o espaco concedido no Museu & arqueologia subalternizou sem- pre 0 espaco reservado a sua secedo etnografica. Assim, em 1910, a etnogra- fia, que partihava com a antropologia fisica 0 terceiro e tiltimo pavimento do edificio, era eclipsada pelas seccBes consagradas as "épocas pré-histérica, proto-histérica e romana ~ isto 6, 8 arqueologia - instaladas no espago mais MuscoLociart nobre do Museu e ocupando um total de dois pavimentos. Embora a situa- ‘¢40 tenha posteriormente evoluido, a etnografia nunca conseguir recuperar esta sua desvantagem inicial Come viriaa escrever Vergilio Correia, o Museu Etnolégica Portugués seria ‘menos um museu etnografico do que um "Museu das Antiguidades Nacio- nais" (Correia 1936). Vergilio Correia nao esta sozinho nesta sua constatacao. Escrevendo em 1950 sobre o conteido etnografico do Museu, D. Sebastiéo Pessanha encara-o também como uma oportunidade perdida para a etno- gratia portuguesa: este ndo é ainda, nem poderia ser, aquele Museu Etnogréfico Nacional com {que son ha largos anos...) Nem aqui se reuniu, em tempo pr6prio, o mate~ rial cientficoindispensével 20s estudos etnogrficos, nem o que esté exposto consegue documentar suficientemente, em qualquer dos seus aspectos avide ‘materiale espirtual das nossas populacées rurais, nem o meio geografica em que habitam e trabalham (1950: 13) De resto, 0 préprio Leite de Vasconcelos tinha consciéncia dessa meno- rizacdo a que a etnografia tinha sido condenada, Em 1905, por exemplo, em contraste com a riqueza do esplio arqueolégico do Museu, a seccao de etno- sgralia portuguesa ~ “em vias de organizacao" ~ é objecto de um comentario esclarecedor por parte de Vasconcelos: “por agora, ndo posso sendo assina- lar pouca coisa" (1915: 103), Da mesma forma, em 1915, Leite de Vasconce- los refere que a etnogratia, jd implantada no terceiro piso do edifcio, possui uma “instalacao meramente proviséria, 8 falta de sala apropriada’ (id: 202). E embora o espilio etnogratico tenha entretanto crescido, so inimeras as referéncias a pecas que “seria bom adquirir® ou a reas da etnogratia portu- _guesa relativamente as quais "no é muito 0 que a Museu tem”. Nao é por isso de estranhar que na sua Etnografia Portuguesa ao referir-se aos 5.090 objectos que integravam em 1928 a seco etnografica do Museu, Vascon- ccelos acrescente de imediato: “quao longe (.) estamos ainda de museus, como, Por exemplo, o de Estocalmo (..),t30 copinso, e to bem coordenado e aco- modado” (1933: 41). As razbes para esta secundarizacao da etnografia sao certamente vérias, Mas nao podem ser desligadas do peso que a arqueologia ocupou, nos anos mais importantes de desenvolvimento das coleccdes do Museu, na activi- dade de pesquisa de Leite de Vasconcelos. A viragem de Vasconcelos para a arqueologia remontava a 1885, ano a partir do qual os temas arqueol6gicos ito secundarizar os temas etnograficos na sua pesquisa, Mas acentuar-se-8 a partir da criacao do Museu Etnogréfico. Este ird originar um comprometi-~ mento ainda mais profundo do autor com a arqueologia, simultaneo de um afastamento pronunciado em relacdio a etnografia, 2 qual Vasconcelos s6 regressaré de forma mais continuada apés a sua aposentacao, quando inicia a redaceao da Etnografia Portuguesa (1933, 1936, 1942), Nesse sentido, como sugeria D. Sebastigo Pessanha, o Museu Etno- grSfico ~ e depois Etnolégico ~ Portugués foi uma oportunidade perdida no 95 desenvolvimento da antropologia em Portugal. © povo que nele estava nao a 0 povo etnografico mas 0 povo arqueolégico, Nao era o pove da Etnogra- fia Portuguesa mas 0 povo das Religides da Lusitania, E se o Museu foi razoa- velmente feliz na ratificacao arqueolégica dos lusitanos como antepassados nacionalistas dos portugueses, foi mais infeliz na construco simult3nea de lum discurso que ligasse “patrioticamente” ~ como Vasconcelos tinha suge- rido em 1894 ~ vida popular e nacionalidade. Um povo ameno e festivo Concentrando-se na arte popular, os etndgrafos da | Republica foram parti- cularmente sensivels aos objectos e as suas potencialidades museogréficas. Se Percorrermos aquela que é a revista mais representativa da etnografia desses, ‘anos ~ A Terra Portuguesa, a que estiveram ligados, entre outros, D. Sebastiéo Pessanha e Vergilio Correia ~ somos confrontados com 0 modo como a aten- ‘so dada aos objectos que integravam o dominio da arte popular era uma aten- ‘$40 & exposicao ~ no sentido lato da expresso - desses mesmos objectos, Ainsisténciano desenho etnogratico ~ que conhece ento um periado de grande desenvolvimento ~ mostra esse apetite pela exposico, que se reencontra tam- bém na predominancia de uma escrita de perfil marcadamente visual Eno interior desse quadro que se pode entender a insisténcia dos etnégra- {fos da | Republica na exposi¢ao ~ agora em sentido estrito ~ do popular. Essa insisténcia dard nomeadamente origem a algumas exposicdes, entre as quais, se destaca aquela que D. Sebastio Pessanha organizou sobre os tapetes de Arraiolos. Provavelmente é também ela a responsavel pelo desenvolvimento do coleccionisme particular ao longo deste periodo (cf. Vasconcelos 1933: 41-42), Finalmente, serd ela que estaré também na origem de uma parte significativa da coleccao etnografica do Museu Etnoldgico Portugués, designadamente em resultado da acco de Vergtlio Correia e de Lu's Chaves. Vergilio Correia fi entre 1912 e 1915, conservador do Museu e como refere Vera Alves, é desta altura que datam os seus escritos sobre os pesos de tear (..) ou a arte no sal ...Teré sido, assim, também em fun¢a0 da constituicdo de colecsdes para a secedo etnogréfica daquele museu que se desenvalveu a [sua] investigac8o (..) em torno da arte ristica” (Alves 2007: 209). Quanto @ Lufs Chaves {oi (..) no contexte da reunio do espélio etnografico destainsttuio que, ainda ‘nos anos 10, dé inicio As suas incursées na arte popular (... Publica, entdo, um texto sobre a coleccdo de ex-votos do [Museu Etnolégico Portugués] (.. fe] 20 ‘mesmo tempo que Sebastio Pessanha encomendava para a sua calecca par ticular um jogo completo de figuras de presépio de Estremer (..), haves adqui- fia pecas similares (.) para o Museu Etnoléigico (a). Entretanto, como foi anteriormente referido, as esforcos de Vergtlio Cor- reia e Luis Chaves foram insuficientes para contrariar a vocaco arqueolégica do Museu Etnolégico Portugués ¢ apesar da apeténcia dos etnégrafos da | Republica pela exposicao do popular, o salto para um Museu exclusivamente consagrado &s coisas populares ndo foi, durante a I Republica, dado Seria preciso esperar pelo Estado Novo e por Anténio Ferro para que um novo passo nessa vontade de musealiza¢ao da cultura popular, 8 luz das pre ocupagses de pesquisa dos etnégrafos da | Republica, pudesse ser tentado, Por intermédio da cria¢ao, em 1948, do Museu de Arte Popular. Pode parecer & primeira vista estranha esta ascendéncia "republicana’ do Museu de Arte Popular. Em geral o que é sublinhado pela historiografia do periodo é0 modo como o Estado Novo nasce e se afirma em ruptura politica coma | Reptiblica. Mas essa ruptura ndo deixa de se articular com numero- sas continuidades, nomeadamente do ponto de vista cultural. £ o que se passa justamente com a chamada etnogratia do Estado Novo. Entre ela e a etno gratia da | Repablica ha antes de mais continuidade de nomes, como resulta das colaboragbes de Vergilio Correia e de Luts Chaves com iniciativas varias promovidas pelo SPN/SNI, Mas mais importante do que isso, hd também continuidade nos interesses e modos de tratamento da matéria etnogratica Por um lado mantém-se a fixaco na arte popular como niicleo estruturador do empreendimento etnografico. Por outro lado, prossegue e até se reforcao tratamento artistico e nacionalista dado ao tema, O que muda é a subita visi- bilidade publica da cultura popular resultante do marcado interesse do estado 1a sua utiliza¢do politica. E neste quadro que nasce ~ em grande medida como resultado do empe- inho de Anténio Ferro ~ 0 Museu de Arte Popular. Embora a ideia da sua cria~ ‘580 remante a 1935, s6 em 19.48, na sequéncia da Exposicao do Mundo Por- tugués, o Museu abre as portas. Entretanto o povo que val entrar no Museu de Arte Popular é um povo peculiar. Por um lado é um povo moldado a ima- DOSSIE MUSEUS NACIONAIS Museu de Arte Popular gem do Estado Novo. £ um povo ameno e alegre, desenhado de forma emi- nentemente decorativa e bom para representar a identidade nacional do pais nos terrmos da ideologia folclorista do Estado Novo. E é também um povo cuja representacao museolégica, comio mostrou Vera Alves, resulta de opcées pes- soais do seu director, Francisco Laje, multas vezes em contra-mao com alguns dos etndgrafos que, vindos da | Republica, colaboravam com as actividades do SPN/SNI e que vim 0 Museu como uma oportunidade para uma repre: sentaco mais documentada da cultura popular portuguesa. Por isso, tanto D. Sebastido Pessanha como Luis Chaves - que haviam sido anteriormente cconsultados para 0 estabelecimento do projecto museoldgico do Museu ~ aca- bardo por se demarcar dele. Ao Museu, segundo Luts Chaves “faltava a 'sis- tematiza¢ao cientifica, porque Iha no quiseram dar’... O critério que teria presidido 3 realizaco do Museu de Arte Popular, dz ainda (.), fora oda simples, ica, raz3o pela qual se optou pelas mais rudimentares regras de arrumacao dos objectos: ‘plas regies corogréficas, e nestas as da apro- ximacao de espécies afins” (Alves 2007: 160). (© Museu de Arte Popular acaba assim por ser visto por muitos daqueles que saudaram @ sua criago como uma desilusdo, com o decorativismo a fechar as, portas a um esforco mais sistematizado de documentaclo etnogréfica. A sua maneira, pois, a histéria do Museu de Arte Popular é, tal como a historia do Museu Etnolégico Portugués, uma histéria de insucesso. Mais uma vez 0 povo ~ agora jd ndo © pavo arquealégico de Leite de Vasconcelos mas 0 povo etnogrética com ratzes na etnografia da | Repiiblica ~ € convidado a entrar no Museu, mas acaba por ficar 3 sua porta. Em sua vez, 0 Museu de Arte Popular dara guarida a um povo estetae feliz, devidamente domesticado pela ideologia "nacional-popular” do Estado Novo. Ultramar e metropole No mesmo ano em que o Museu de Arte Popular abre as portas, Jorge Dias, publica a primeira das ruitas monografias que ele e os seus colaboradores dedicardo 3s tecnologias tradicionais: Os Arados Portugueses e as suas Pro- véveis Origens (Dias 1948). Ao longo da década de 1950, esse investimento de Jorge Dias no estudo das tecnologias tradicionais do mundo rural portu- gués manter-se-4, como 0 comprovam as monografias sobre Os Aparelhos de Elevar Agua da Rega (Dias & Galhano 1953), os Sistemas Primitivos de Moa- gem (Dias, Oliveira & Galhano 19592, 1959b) e, ié em 1963, Os Espigueiros Portugueses (Dias, Oliveira & Galhano 1963). € também nessa década que é ublicada a sua mais famosa monografia, Rio de Onor (Dias 19532). O com- promisso de Dias com os terrenos portugueses estendeu-se ainda ao estudo dda encomendacao das almas (Dias & Dias 1950, 1956) e &histéria da etnolo~ gia em Portugal (Dias 1952) e foi também entao que publicou os seus dois grandes estudos de sintese sobre a cultura portuguesa: "Os Elementos Fun- damentais da Cultura Portuguesa" (Dias 1953b) e, 8 em 1960, 0 “Tentamen de Fixacao das Grandes Areas Culturais Portuguesas” (Dias 1960) Mas 20 mesmo tempo que assinala urna das fases mais produtivas da pes- ‘uisa de Jorge Dias sobre Portugal, a década de 1950 marca também o cres- cente envolvimento de Jorge Dias com um projecto antropolégico mais ambi- cioso, que 0 ird afastar progressivamente dos terrenos portugueses. Segundo Jodo Lupi, a partir de 1952 Jorge Dias “tinha cada vez menos tempo para acom- panhar o grupo do Centro de Estudos de Etnologia nas suas expedigdes etno- gréficas” (Lupi 1984: 37) e simultaneamente o seu porttolio antropolégico ganhava crescente diversidade. Para além dos seus contactos com o grupo de €etndlogos europeus da Comissao Internacional das Artes e Tradigdes Popula- res (de que veio a ser secretério geral), Jorge Dias amplia a sua insercio na ‘omunidade antropolégica internacional, designadamente com deslocacdes 0s EUA e ao Brasil. partir de 1952, comeca também a ensinar etnologia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se manteré até 1956, ano em que passa a ensinar antropologia na Faculdade de Letras da Universi- dade de Lisboa e no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (antiga Escola Superior Colonial, mais tarde ISCSPU). Em Letras seré 0 regente, a partir de 1958, das cadeiras Etnologia Gerale Etnologia Regional, enquanto no ISEU teve ‘a seu cargo as discalinas de Antropologia Culturale Insttuiedes Nativas (mais tarde rebaptizada de Instituicdes Regionais). Como decorre das designacdes destas cadeiras, os interesses antropoldgicos de Dias parecem agora mais descolados de Portugal, facto que é igualmente confirmado pelo crescente ‘imero de artigos de perfil mais tedrico que publicaré entre 1952 e 1960. Occrescente envolvimento de Jorge Dias com uma perspectiva mais larga da antropologia iré coincidi, a partir de 1956, com anecessidade que o Estado Novo sentia de responder aos desafios colocados por uma conjuntura inter~ nacional dominada pela auto-determinac3o das ex-colénias europeias. Um desses desafios tinha a ver com a “urgéncia de actualizacio e sobretudo de DOSSIE MUSEUS NACIONAIS eo Nota 4 Cr alnds 0 volume que Viegas Gueteiro consagrou 3 "Sabedoria, Lingua, Literatura e Jogos" maconde (Guerrero 196 VIDA E ARTE bo POVO MACONDE a saber eroscots Do seer THOMA He Reso Capa do catlogo da exposicao Vida e Arte do Povo Maconde,Palcie Fo, Lisboa, 1959 investigacdo sobre a realidade social das colénias e 0s problemas politicos postos pela nova conjuntura internacional” (Castelo 2010). Além de ter estado provavelmente na origem do conwite que levou Dias para o ISEU, esse desa- fio conduziu a criaco em 1956, no &mbito da Junta de Investigagées do Ultra- ‘mar, do Centro de Estudos Politicos e Sociais, chefiado pelo entao professor do ISEU e futuro Ministro do Ultramar Adriano Moreira, Tendo jd convidado Jorge Dias para o ISEU, Adriano Moreira iré também convidé-lo em 1957 para dirigir a recém-criada Missdo de Estudos das Minorias Etnicas do Ultramar Portugués, a0 abrigo da qual realizar, com Margot Dias e Manuel Viegas Guerreiro, a sua pesquisa entre os macondes do norte de Mocambique. Cul mina assim um processo em que, partindo da etnografia portuguesa, Jorge Dias vai gradualmente ampliando os seus interesses de pesquisa até, final- mente, se instalar na antropologia africanista Dessa pesquisa, 0 produto mais conhecido sao os trés volumes da mono- grafia que Jorge Dias em colabora¢o com Margot Dias (Dias 1964, Dias & Dias 1964, 1970) escreveu sobre os macondes e que so a primeira obraescrita ‘em Portugal, do ponto de vista da antropologia cultural e social, sobre uma etnia da entao Africa portuguesa.‘ Mas, para além da monografia, da pesquisa de Dias entre os macondes resultaram também outros produtos. Um deles foram os relatérios - de antro- pologia aplicada — que Jorge Dias escreveu para 0 Ministétio do Ultramar sobre a situacao politica, econémica e social no planalto da Mueda (Pereira, Rui 1986, 1999), marcados por uma reprovacao “em privada" do colonialismo Portugués que é dificil encontrar noutros textos ~ mais “pablicos” ~ de Jorge Dias. Simultaneamente, Jorge Dias procedeu, no decurso das suas misses, no norte de Mogambique, 3 recolha de objectos relacionados com a vida maconde, da qual resultard a exposi¢ao Vida e Arte do Povo Maconde rea- lizada em 1959 em Lisboa Serd a partir dessa recolha que se terd afirmado mais resolutamente em Jorge Dias 0 projecto de criacao do Museu que ¢ hoje conhecido como Museu Nacional de Etnologia, Segundo Ernesto Veiga de Oliveira a op¢So de Jorge Dias e da sua equipa pelo estudo da cultura material do mundo rural portu- gues "apontava jé para acriacdo de um museu etnogrifico" (Oliveira 1989: 57), O envolvimento de Dias na criac8o de pequenos museus escolares ~ pri- ‘meio na Faculdade de Letras de Coimbra e depois no ISEU - deve ser tam- bém sublinhada (Gouveia 1997 Vol. II: 111), Mas sera 2 partir da viragem ultra- marina de Jorge Dias e da sua expedico entre os macondes que a ideia de criago de um grande Museu de Etnologia ganhard mais forca. O"expressivo Conjunto de objectos etnograficos representatives desse grupo étnico” reco- \hidos por Jorge e Margot Dias, de facto, teria sida reunido “ja com a ideia de se vir a fazer um museu que faltava no complexo museoldgico do pais” (Oliveira 1989: 57) A ideia desse museu ~ que se comecard por chamar Museu de Etnologia do Ultramer ~ era tanto mais facil de implementar quanto faltava a Portugal um grande museu etnolégico com representacao de culturas ndo-europeias ‘como aqueles que todas as principais poténcias coloniais europeias da altura MuseoLociA.PT tinham. Em 1870 havia-se constituido um Museu Colonial, transladado em ara a Sociedade de Geogratia, mas a sua natureza a-sistemtica era nais evidente. Sendo assim, estava aberto o terreno para a criac3o de is ambicioso, tanto mais que, desde 1945, 0 Ministério do Ul 2 das Misses Geogr inta de Investigacdes do wuseu ‘mar havia feito uma encomenda nesse sentido a Jun riormente ficas e de Investigacao Colonial (pos Ultramar). Do ponto de vista do Estado Novo, 0 objectivo, que a eminéncia e depois a ecloso da guerra colonial haviam tornado mais urgente, era 0 de lerguer um Museu que expando os “povos” do ultramar portugués fosse tarn- bém um hino & expansao portuguesa, Como é sublinhado por Veiga de Ol: veira: “no projecto governamental, este Museu seria voltado apenas para 0 icta de celebrar a expan: ‘Ultramar’¢..) com uma finalidade explicita ou in 80 portuguesa no mundo” (id, ibid) (© Museu comeca por ser instalado, em 1960, no ISEU e em 1962 6 cri uma Missao Organizadora do Museu do Ultramar junto do Centro de Estu- dos de Antropologia Cultural que, nessa mesma data, substituiu a Missdo para © Estudos das Minorias Etnicas do Ultramar e & frente do qual se manteré Jorge Dias. Na sequéncia dos trabalhos desta Comissao, serd finalmente criado em 1965 0 Museu de Etnologia do Ultramar, na dependéncia da Junta de inves tigacdes do Ultramar e em estreita articula¢ao com o Centra de Estudos de Antropologia Cultural, cujo director ‘or do Museu. jorge Dias ~ era também, por inerén- cia, odin ‘Aquilo que hoje mais surpreende na decreto de criago do Museu (Decreto -Lei 46.254 de Margo de 1965) é 0 seu tom sébrio, o modo como cria um 1u Ambito de acco. Provavelmente tratou-se de ‘olusao de compromisso, visando salvaguardar dois projectos de mu .cem ter debatido silenciosamente tanto antes camo depois da ue se par sua criacao. De facto, baptizado com 0 nome de Museu de Etnologia do Ultr Museu ngo foi desde o seu inicio apenas isso. Para além do trabalho sobre tecnologias tradicionais realizado ainda com a intervengaio de Jorge Dias, 0s, eu colaboradores tinham continuado, depois de 1952, @ trabalhar ness terreno, alimentando a esse respeit o testemunho de Veiga d citado ~ a esperana de um dia poderem dispor de um museu apropriado. Por isso, Jorge Dias concebeu o Museu como um espaco onde, para além do ultramar, estivesse também representada a cultura popular portuguesa rina do Museu de um coma decorre Nao é que Jorge Dias pareca discordar da vocacao ult Em 1964 tinha mesmo escrito um artigo em que defendia a criac: Museu que der ter como finalida suprema dacumentar a formaco do povo portugues desde a proto-hstéria e exprimir de maneira particular a sua expansso ultra 3s que a0 lone ‘miitiplos povos com que con fo tempo foi estabelecendo cam os rmaneira a dar uma visio histérica ‘su ris’ de um povo de campaneses, pastores e pescadores que se expandi pelos cinco continentes da terra dando origem a variadissimas formas de cul tura e acabando por constituir uma Patra pluri-racial extremamente original jas 1964: 19). ‘Mas, de acordo com Veiga de Oliveira, a concepcdo de Jorge Dias era tam: bém a de que o Museu pudesse documentar no apenas os povos do Ullramar portugues, ou aqueles que os portugueses contactararn na época da sua maior expansSo no mundo, e que de qualquer maneira sofreram a influéncia ou inflam na elaboragao da cul tura portuguesa, mas também a prdpria cultura de Portugal metropolitan, do ‘modo mais amplo e completo possivel e mesmo, no seu mximo desenvolv ‘mento, asculturas de todos 0s povos da Terra ~ um auténtico Museu do Homem (Oliveira 1971: 29). Seria pois um Museu onde ultramar e metrépole ~ e ainda outros lugares do mundo ~ deveriam estar representados. Se a abertura do Museu para outros lugares do mundo ~ conduzida em grande parte por Vitor Bandeira ~ nao parece ter suscitado grandes reservas, por parte da tutela, outro tanto ndo se teré passado com a sua vocagao met politana. De facto, do lado do poder, o interesse era sobretudo numa versio fe Portugal nunca tinha tido aggiornata do Museu Colonial a} fe permitisse strutura ideolégica da narrativa colonial portuguesa. A completar a super tura popular portuguesa era nessa visd0 algo de excedentario em relacao aquilo que devia ser o perfil fundamental do Museu. Daf algumas dificuldades que ‘0 Museu entrentard em sedimentar essa sua vaca¢o mais estritamente metro politana ‘Assim, ¢ porque a orientacao superior privilegiava os programas fundamen- tais de recolha no terreno ultramarino” (Pereira, Benjamim 1989: 558) ha de algumas importantes coleccdes de etnografia portuguesa teve que ser ta com recursoa fontes de financiamento exteriores & Junta de Investiga do Ultramar. E ern 1973, nas vésperas da inauguragéo do Museu, a Junta, em nome da vocac3o ultramarina do Museu, ir-se~d opor 4 montagem de uma exposi¢ao centrada na Vida Pastoril em Portugat dado que sendo Portugal um todo um todo uno ¢ indivsivel(.) independen: temente da localizacSo geogréfica dos seus territéies(.) parece no fazer sen: posicBo com 0 tido que na inauguraczo de Museu do Ultramar se faca uma: titulo de em Portugal’ e ela se refira apenas parte de Portugal que o Museu legalmente ndo contempla (in Pereira, Benjamim 1989: 561) ‘Apesar destas dificuldades, uma das linhas de acg0 fundamentais do Museu Nacional de Etnologia no deixaré de privilegiar os terrenos portugueses. Para além da sua articulagdo com 0 Centro de Estudos de Antropologia Cultural ~ cconsagrado aos terrenos ultramarinos ~ o Museu construiy uma relaco como Centro de Estudos de Etnologia - vocacionado para a pesquisa no territério por- tugués ~ que permitiu que o estudo monogréfico das tecnologias tradicionais fosse acompanhado da “seleccao criteriosa e (..) aquisicao dos especimens que ppassavam a constituir conjuntos coerentes e representativos, de ambito geral no pais" (id: 557), Assim, corno sublinha Benjamim Pereira, “a década de 1960/70 foi (.) decisiva na organizagao da maior parte das coleccbes portuguesas que hoje se encontram” (id: 558) no Museu. Foi ento que surgiram, entre outras, as coleccdes sobre arados, sistemas de atrelagem do gado bovino, trale popu- lar, “equipamentoligado ao ciclo do linho e da la’ (id: 559). Reflectindo a impor tancia desta linha de trabalho, teve lugar em 1968, "por ocasio da reunio em Lisboa da conferéncia do grupo de Etnologia Europaea” (Oliveira 1983: 426), aquela {ue foi a primeira exposic0 portuguesa organizada no émbito da Museu e con- sagrada & Alfaia Agricola Portuguesa. Isto 6, apesar das resistencias da tutela, o Museu de Etnologia do Ultramar stituiu-se num Museu em que Portugal e os terrenos portugueses ocu- param desde cedo um lugar de grande relevo. Pade nessa medida dizer-se que coma fundacao daquilo que 6 hoje o Museu Nacional de Etnologia cumpriu-se 103 um terceiro ~ e decisivo ~ momento na relacdo entre povo e museu. Depoi seu. De alguma de dois convites frustrados, 0 pove entrava finalmente no forma pode dizer-se que essa entrada se fez a reboque de um projecto em que, da xou por isso de ser a mais efectiva e ambicio: cultura popular portuguesa, Com ela, 0 povo sentou-se finalmente na primeira fila do espaco ~ povoado de vitrinas, de jogos de luz e de sombra, de legen- das, catélogos e fotografias ~ de um Museu nacional portugués. Rural, arrumado em dreas culturais que Jorge Dias e os seus fs tinham entretanto identificado, 0 povo do Museu Nacional de Etnologia do poder politico, 0 que contava era o ultramar. Mas nao de: sa tentativa de musealizagao da colaborado: era também um povo peculiar. Embora fosse também um povo artstico - como 9 exemplo, as coleccdes sobre méscaras transmontanas ou sobre vo de arados e abri- se trilho ollustram, traje popular - era sobretudo um povo tecnolégh ‘205 pastoris de montanha, de teares e cangas de boi Em suma, um pavo documentado sobretudo naquilo que na sua cultura tes- temunha de uma ligagiio material 8 terra, Finalmente instalado no Museu, esse ovo, a0 mesmo tempo que enraizava a identidade nacional portuguesa ni material e da cultura popular, fazia-o ~ ironicamente ~ no momento pre: ciso em que essa cultura comecava a entrar em declinio, Por isso, quando o Museu, apés uma longa crise que se arrastou pelos anos 1980, reabre nos anos 1990, sab a direc¢o de Joaquim Pais de Brito, uma das exposicdes de maior impacto entdo organizada teré como titulo ~ sugestivo ~ O Voo do Arado. Orientada para as tecnologias tradicionais do mundo rural portugués, ela seré um ultimo e comovido adeus a um mundo que deixara entretanto de existir. Conclusaéo Recentemente, no Museu da Electricidade (Lisboa), teve lugar uma expo- sigdo subordinada ao titulo Povo. Como resulta tanto da exposicao como do livro que a acompanhou ~ Como se Faz um Povo (Neves 2010) - 0s povos. de que ai se falaram so muitos mais do que aqueles que foram tematizados pela antropologia de orientagao ruralista que prevaleceu em Portugal até aos ‘anos 1980. A esses povos outros povos poderiam ser acrescentados, alguns ja razoavelmente identificados pela nova antropologia portuguesa que se afir- ‘mou em Portugal nas tiltimas duas décadas. Nesses povos, para além de cam~ poneses, cabem imigrantes e emigrantes, associativismo popular e presos, cultura pimba e memérias operérias, novos artesdos ¢ lutas populares. O desa~ fio que fica ¢ 0 de pensar os modos de musealizaco desses “novos” povos, debatendo os termos em que devem ser convidados, também eles, a frequen- tar oespaco do museu, onde se juntardo ~ com proveito ~ aos “velhos” povos que jd la esto, Bibliografia ALVES, Vera, 2007, ‘Camponeses Estetas’ no Estado Viagens e Missdes Cientficas nos Trépicos 1883-2010, Novo: Arte Popular e Naco na Politica Folclorista Lisboa, ICT, 90-94, do Secretariado de Propaganda Nacional, Lisboa, ISCTE (Tese de Doutoramento em Antropologia). BRANCO, Jorge Freitas, 1995, “Lugares para 0 Povo: uma Periodizaco da Cultura Popular em Portugal’, BRANCO, JLF.e LEAL, Joao (eds.), “Retratos do Pa‘s. Actas do Coléquio’, Revista Lusitana (ns.) 13/14, 145-177, CASTELO, Claudia, 2010, “As Misses do Centro de Estudos Politicos ¢ Sociais", Martins A. C. & T. 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