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20. Lou von Salomé: Didrio para Paul Rée Tautenburg (Gegunda-feira) 14 de agosto E aenovo tempo dos raios de sol, querida casinha. Eles reluzem uma vez mais vindos do céu claro_e, pene- trando espessos através da folhagem densa e obscura do vilarejozinho da floresta de Tautenburg, tecem sua rede dourada de luz sobre todo 0 solo. Os raios solares penetram formalmente vindo de dentro para fora - depois de terem tornado claros em ‘nds mesmos todos os cantos escuros. N,, no grande todo alguém de uma consequéncia férrea, é em particular um homem de estados de humor violentos. Eu sabia que se entrissemos em contato, que 1s dois de inicio evitamos na tempestade das sensagées, 1nés logo, logo, para além de todo falatério mesquinho, nos encontrariamos em nossas naturezas profundamente aparentadas. Eu j Ihe disse isso por escrito em resposta sua primeira eestranha carta, E assim o foi, Depois de ‘um dia de contato, no qual me empenhei por estar livre, naturale serena, a antiga...) tinha ocorrido. Ele sempre se aproximava uma vez mais. A noite, ele pegou minha mio ea beljou duas vezes, comesando a dizer algo que nao foi expresso, Nos préximos dias fiquei de cama, ele ‘me enviou cartas para 0 quarto falou pela porta comigo. Entio, minha antiga febre etosse arrefeceram e eu me 8.A palavra falta no original. (N-T.) levantei. Ontem estivemos o tempo inteiro juntos, hoje passamos um dia maravilhoso na silenciosa ¢ escura floresta de Kiefern, sozinhos com 0s raios de sol e 0s ‘castores. Elisabeth estava em Dornburg com conhecidos. [Na hospedagem, onde se come sob os auspicios da grande ‘efrondosa tlia, as pessoas nos acharam tdo pertinentes quanto eu e voc’, quando chego com meu gorro ¢ ele sem Elisabeth. Conversa-se de maneira extraordinariamente bela com Nietzsche ~ mas isso vocé sabe melhor do que eu. Todavia, um encanto particular se acha na coincidéncia dos mesmos pensamentos, das mesmas sensagdes e ideias, & possivel se entender jé com meias palavras. Certa vez. cle me disse, surpreendido com isso: “Acho, que a tinica diferenca entre nés 6a de idade. Nés vivemos o mesmo e pensamos 0 mesmo", F somente porque somos tio similares, que ele pode tomar a diferenga entre nés, ou aquilo que Ihe pareceu assim, de maneira tao dura ¢ violenta, foi s6 por isso que ela 0 abalou tanto. Quando se é tao dessemelhante quanto eu e voc®, entdo se experimentam os pontos de concordancia e se alegra com eles ~ quando se ¢ tao apa- rentado quanto eu N., entdo se sentem as diferengas @ se sofrem com elas. A desigualdade universal, sim, 0 antagonismo entre dois seres humanos, pode condicionar tanto simpatia quanto antipatia. A diferenca no particular ‘em meio a igualdade no todo equivale a uma simpatia interrompida ou perturbada, ela sempre produz um efeito constrangedor—e ela apenas é separadora. Eu tinha estabelecido para mim mesma que ano- taria nossas conversas, apesar de ser quase impossivel, ‘uma vez. que, em nossas caminhadas através das regides de pensamento mais distantes e mais préximas, clas s° concentram pouco demais em sentengas particulares agudas. Eo contedido de um dislogo entre nés consiste jpropriamente naquilo que precisamente no € expresso, ‘mas que se d por si mesmo a meio caminho do ‘encontro de cada um de nés. Ele tem tanta alegria em ‘conversar, que me confessou que mesmo em nossa Pri- ‘meira briga por aqui, quando eu cheguei, ainda que ele estivesse com 0 coracio tao em frangalhos, ele nao pode reprimir um prazer colateral em meu modo de refutar le leu sozinho meu ensaio sobre a mulher e achou ‘estilo da primeira parte detestavel. O que ele de resto disse é prolixo demais para escrever. Por fim, cle pegou minha mao e disse em um tom sério e comovido: “Nunca cesquega que seria lamentavel, se vocé ndo estabelecesse tum (..)? monumento de seu espirito mais intimo, (~) pleno, enquanto voc® tiver de viver”. Esse timo comen- ido desesperadamente terrivel tario refere-se & sua 0} sobre a minha satide. Leve em consideragao apenas que ‘ele tinha feito jd estudos de medicina por minha causa. Ble me aconselhou a levar adiante meu rapido breve trabalho e anotou para mim varios livros ligados ele. Fu me alegrei, quando cle disse: seria avessa a toda a produgio do seu coragio, sendo se tratasse de algo Pr ‘moroso—portanto, ele nao teria me aconselhado a isso, se cle nio 0 pudesse fazer com a melhor das consciéncias, Eu poderia aprender a escrever em um dia, porque, segundo ele, eu estar preparada para iss. Tenhio uma confianga enorme em sua capacidade de ensino. Nés rnos entendemos até esse ponto bem. Mas se ¢ bom ou indo que ele fique 0 dia inteiro comigo em didlogo, desde cedo até tarde, a0 invés de com o seu trabalho; eu disse {sso para ele hoje, a0 que ele balangou negativamente a cabega e disse: “é tdo raro que eu tenha algo assim e eu © estou aproveitando como uma crianca”. Na mesma noite, poréin, ele disse: “Eu no posso viver muito tempo junto de voce”. ‘A lembranga de nosso tempo italiano nos vem com frequéncia e...® percorriam montanha acima um caminho estreito, disse ele silenciosamente: “monte sacro = devo a voce o sonho mais encantador de minha vida", -Nés ficamos muito serenos um ao lado do outro, 1iés rimos muito. Para o horror de Elisabeth (que, aids, ‘quase nunca esta conosco), meu quarto é logo visitado por batidas de fantasmas, quando Nietzsche entra, 0 que nos deixa imensamente serenos. Também precisamos ter em comum essa famigerada capacidade. - Alegro-meem ver que desapareceu de seu rosto o traco pesaroso, que ‘me fazia tanto mal, e que seus olhos recobraram 0 seu brilho e sua reluzéncia antigos. Belas horas também passamos nas margens da floresta, onde ha uma casinha de fazenda e, convidativo, ‘um pequeno banco. © quanto se ri, se sonha e se conversa {luz do luar, quando os iiltimos raios olham em nossa diregio, atravessando os galhos. [Quem dera essas horas nunca]"" 10, Verso da pagina. Aqui estao faltando muitas palavras. (N.E) 11. Bssas palavras foram riscadas. (N.E.) Raunt ae ae 5A margem superior da folhaestérasgada.Também falta, portantoy oy texto no verso da folha. (N-E.) Anotagives cle diario Quarta-feira 16 de agosto Eu venho me acostumando tanto com as conversas «que tenho com voce no didrio - exatamente como anti- ‘gamente nas folhas do didrio de Gillot (..)* Para ir ao seu trabalho, um sorriso em seu rosto ficou para tris. Toda a alegria que me manteve em pé nos dias 6 ele estava ao meu lado, solitarios de luta, nos qui vem de sua obra. E toda a forga jovial que 0 tornava forte vinha de Esse é 0 paréntese que nos une. Casinha, por que Ihe conto apenas a velha histéria ‘da imagem da mecha de Efeu?)” Sexta-feira, 18 de agosto Bem no inicio de meu encontro com Nietzsche, cescrevi para Malwida uma vez da Itilia sobre ele, dizendo que ele seria uma natureza religiosa, 0 que despertou nela as mais fortes reflexdes. Hoje gostaria de sublinhar duas vezes mais essa expresso. O traco religioso fun- damental de nossa natureza é nosso elemento comum isso talvez tena vindo & tona em nés tao intensamente, precisamente porque somos espiritos livres no sentido ‘mais extremo, No espirito livre, o sentimento religioso 12, Evidentemente faltam muitas| 13, Essas linhas esto riscadas, algumas quase ilegiveis. Anotagbes de diario no pode se referir a nada divino ea nenhum céu para além de nos quais as forgas formadoras de rel tais como a fraqueza, 0 medo ea cobiga encontrariam * sua justificativa. No espirito livre, somente o carecimen- to religioso que emerge através das religides ~ aquele rebento mais nobre das formas particulares de crenca ~ pode, por assim dizer, ser langado de volta a si mesmo, transformando-se em forga herdica de sua esséncia, em simbolo da entrega de sia uma grande meta. No carter de N. ha um trago herdico e esse trago Eoessencial nele, aquilo que dé a todas as suas proprie- dades e impulsos a cunhagem e a unidade coesa.— Nos ‘ainda vivenciamos o fato de que ele vem a tona como 0 anunciador de uma nova religido e, entao, sera alguém que angaria herdis como seus discipulos. (© quanto nés pensamos e sentimas a mesma coisa €em relagio a isso e retiramos as palavras e os pensamen- tos formalmente da boca um do outro! Nés formalmente nos matamos de tanto conversar nessas trés semanas e ele repentinamente agora para diariamente, quando da ‘mais ou menos dez horas, de jogar conversa fora. Em. nossas noites, quando 0s candeeiros, como invalidos amarrados com um pano vermelho, para no machu- ‘carem seus pobres olhos, s6 langam um fraco feixe de luz sobre 0 quarto, nés sempre acabamos falando de trabalhos conjuntos e 0 quanto fico feliz em ter diante ‘de mim um trabalho reconhecido e determinado. Ele se desviou completamente do plano de ser meu mestre. Ele diz.que et nunca poderia ter um tal apoio, mas buscar seguir em frente de maneira completamente independente nunca devendo me comportar tampou- co meramente como aprendiz, mas que eu precisaria aprender criando e eriar aprendendo, ~ Estranho que nds sempre recaiamos involuntariamente em nossas conversas em abismos, naquelas passagens vertiginosas, até as quais escalamos um dia sozinhos, a fim de olhar ara o fundo. Nés sempre escolhemos as sendas a beira dos desfiladeiros e, se alguém nos tivesse ouvido, teria acreditado que dois diabos estavam conversando. Serd que somos completamente préximos um do ‘outro? Nao, apesar de tudo isso no. Tudo se dé como se ‘houvesse uma sombra sobre o meu sentimento oriunda daquelas representagdes, que ha poucas semanas ainda tinham animado N. Essa sombra nos separa, ela se coloca entre nds. E em alguma profundeza velada de nossa ‘esséncia, hé um mundo de distancia entre nds. —N. tem em seu ser, como um antigo burgo, alguns obscuros ca- labousos e pordes secretos, que ndo chamam a atengao ‘quando tomamos um contato fugidio com ele, mas que, contudo, contém certamente 0 que Ihe ha de mais proprio. De maneira estranha, fui atravessada recentemente ‘com um poder repentino pela ideia de que poderiamos até mesmo nos encontrar um dia um diante do outro como inimigos. (..)" 2 it tie eon leh tical 8 Ti Lacuna de duas outs ina, A margem inferior se encontracortada. ‘As palavras que se encontram entre ((p.186) ndo foram encontradas, mnos foram inseridas uma vez mais lapis no topo da préxima folha. Segunda-feira, 21 de agosto 'N.riu muito ontem ao pegara sua foto de minha es- pertur~ ba 0 prosseguimento do seu trabalho, mas vocé pode por vezes retornar a ele mais renovado, porque ele nado, absorveu as suas sensagdes tdo intensamente. Voce ndo tem, na mesma medida que N., ~ 0 egoista em grande estilo, ~0 coragdo enfiado no cérebro e ligado de maneira indissolivel com ele. — Isso ainda pode ter no seu caso, contudo, uma outra razao, a saber, 0 fato de que vocé em, geral se encontra diante da vida indiferente e cansado-e ppara vocé, a fim de the encher com um impulso vital e com uma alegria de trabalho, algo alegre e estimulante nao pode se mostrar como um obstéculo. O mesmo que dispersa e desvia a atengao de N. pode Ihe dar o élan. (.)” sossegado e servir um ao outro significa. Ao ‘mesmo tempo, por meio dessa sua constituigZo, sua meta adquire, eu gostaria de dizer, uma marca religiosa de tipo cristo, na medida em que ele langa mao dela a partir de ‘um estado por assim dizer carente de redengao, penoso, como um auto-salvamento. A meta de meu conhecimento completamente igual se abate sobre mim em um estado pleno de felicidade: essa ¢ a diferenga, que chama mais a atengdo em nés, assim como em tudo aquilo que se precisa comprovar em nossas lutas por desenvolvimento. Nietzsche, por exemplo, jogou a reli 0 mar, quando ‘© seu coragao ja nao sentia mais nada em relagio a ela, tendo passado a almejar em seu vazio e em seu enfado 15, Lacuna de um ndmero indeterminado de folhas. A partir daqui, um ‘outro papel datilogrifico. (N.E,) ‘uma nova meta que Ihe pudesse preencher. A descren- ‘a caiu como um raio de maneira semelhante em meu corago, ou, a0 contrdrio, muito mais no entendimento, que obrigou o coracio, que pendia com fervor infantil junto a crenga, a abandonar essa crenca. Em N. foi a dor constantemente a causa de uma nova fase de desenvol- vimento e mesmo de sua meta atual; em mim, ela foi um meio autoimposto, para atingir a nova meta, que pairava em uma posigao mais elevada, Nele tratava-se deum estado, em mim, de um fazer, no qual ocorreu a transigio para um novo desenvolvimento, Esse elemento passivo de suas dores encontra-se expresso de maneira peculiar também no fato de ele ter precisado suportar corporalmente tantas coisas, enquanto, para mim, toda, 1 configuragio anterior da vida fez com que dor e luta se tornassem uma tinica palavra.~ Nessa disposicio de N. também reside a razio, pela {qual ele langou mao e abandonou tantas metas diversas, ‘enquanto eu fui impelida ja bem cedo e por assim dizer por uma necessidade de minha natureza para uma coisa. ‘Metas nao foram para mim nenhuma escolha, assim como eu em geral nao conheci propriamente o sentimento de escolha, mas descobri em mim mesma muita analogia ‘com forcas da natureza necessariamente atuantes ~ raz30 pela qual a doutrina da liberdade da vontade nao me da particularmente comichées. Através dessa busca, que admite uma escolha, por ‘uma meta, que nao deveria salvé-lo do estado penoso da dissipagio das forcas e da decadéncia consigo, também ‘vem a tona 0 fato de que o mesmo nao aparece para ele ‘como para mim enquanto a mais intensa expressio de si, ‘mas como algo cindido dele e dele diverso. :) E que muda como as formas de Estado ~ sempre de acordo, com o impulso dominante.) Enquanto eu, portanto, encon- traria, ativaria e preencheria a mim mesma, quanto mais completa e incondicionada fosse a entrega a minha meta, seu modo de entrega se lhe mostra como uma espécie de autoaniquilagao, que nao passa de qualquer modo nem visa tampouco a outra coisa sendo a uma auto-salvasio. E enquanto eu considero completamente correto 0 que N, disse sobre mim: “que para um ser concentrado em si ‘como eu, que se desenvolve de maneira semelhante ne- cessariamente natural, se precisaria pensar propriamente ‘em uma meta derradeira como algo que se exterioriza, ‘em uma agao — teria sido um rumo peculiar de minha ‘esséncia 0 fato de que o mesmo teria sido desviado por meio de seu desenvolvimento intelectual das metas que ‘exigem ages” -, ele experimenta sua meta como algo por assim dizer a ser tolerado. Nestes dois pontos: no fato de que, pelas razdes indicadas, sua meta se mostra como algo pensado sepa- radamente dele mesmo e como algo a ser tolerado - ou seja, no fato de que a entrega aparece como uma auto- aniquilagdo, eu encontro a explicagao para a concepgao, nietzschiana do heréico. ( sacrificio de si por parte do martir em nome de sua ideia religiosa era herdico, porque essa ideia se encontrava para ele em um lugar elevado. Nao sei exa- tamente até que ponto a palavra herdico é admissivel ‘sem significado moral. Em todo caso, ela pressupde um, sofrimento infligido a si mesmo em fungi da meta. Esse sofrimento é em Nietzsche a vida mesma. Trata-se da per- sisténcia na vida em fungao do conhecimento. Aos meus olhos, 0 heroismo nao reside no fato de que ele inflige a si mesmo esse sofrimento em fungao do conhecimento, pois essa meta do conhecimento precisaria ter um juizo, de valor moral. Naturalmente, nés podemos fundar uma auto-religiao e uma auto-mgral, mas elas permanecem de qualquer modo enfiadas em nés, mas no podem realizar metas herdicas, pois elas s6 visam aquilo que nos é mais querido, ou sea, felicidade, ainda que por meio da volipia da dor. Se, porém, a palavra heroismo 6 ainda admissivel sem um significado moral, entio vejo seu heroismo na forga da auto-conservagio ~ naquela forga, que assume livremente sobre si o sofrimento da vvida, porque ela sempre sente em si uma vez mais a forca do criador para transformar tal sofrimento em um meio ‘como uma meta, na qual ela se sente levaca para além de sofrimento e dor. Vejo seu heroismo na forga do criador, para a qual o material mais duro e mais frégil também. ni ¢ tio duro e tio frégil, porque ela Ihe é, ndo obstante, superior, apesar de ser capaz de cinzelar a partir dele ‘suas imagens dos deuses. — Para nés livres pensadores, que nao temos mais nada sagrado, que poderia ser louvado como religiosa ou ‘moralmente grande, ainda hé, apesar disso, grandeza, que nos impée a admiracao, sim, a veneragao. Eu pressenti essa grandeza em N. jé quando eu disse a vocé sobre ele 1nos lagos italianos: seu riso é um ato. Nao ha nenthum juizo de valor das corregées mais, que ohomem siga ~ mas hd uma grandeza da forsa.

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