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Copyright © 1994 by Tony Fry Tito ling: Remakings: Eclogy, Design, Philsophy Edicto ha Cat Tecnico do efi elborada pelo Departamento ma Interado de Bibliotecas da USP Fry, Tony. Reconstrugdes: Ecologia, Design, Filosofia Tony Fy; tradugso de Gilson César Cardoso de Sousa, ~ Sto Paulo: Editor da Uni versidade de Sto Paulo, 2009, 232 p21 cm, ISBN 978-85-314-10703, 1. Design (As (Chaar Cardovo de, pp. 745.4 ee alee et sp Eton iada segundo 0 nove Acoxdo Ortogrifico da Lingua Portuguesa Sumério Preficio 9 Prefiicio do autor’ Introdugio 25 1. Contra uma teoria essencialista da necessidade: algumas consideragoes paraa historia do design 59 Odesejoeodesejado 79 Aconservagio do artificial 103 Maos verdes contra conhecimentomorto 113 Arquiteturado cuidado 131 Design sagrado II: agora, o sagrado, comunidade, objeto ea mao Neuma, animae animagao: uma questo de educagio e ecodesign Economia ednica: pensamentos iniciais 193 Zero+ 217 Posficio 229 143 175 1. Contra uma Teoria Essencialista da Necessidade: Algumas Consideragées para a Histéria do Design* © ecadesign nao pode propiciar a reconstrugao por meio da técnica, Dar vida, digamos, a produtos, processos ou espagos ambientalmente ‘limpos” ndo € chegar a uma solusao, pois a mudanga material no ocorrerd a menos que o “limpo” seja desejaco e desloque 0 que ora ocupa o lugar. A implica- $20, aqui, € que ertar das “necessidades” que nos pren- dem a produtos e “estilos de vida" responsaveis pelo dano ambiental. Sem examinar a fundo os desejos gerados pelo marketing, a propria necessidade terd de ser instalada na érbita do redesenho. Esso, por seu turno, exige que a“necessidade” em si seja mais bem entei Necessidade é aquilo que temos; faz parte de nosso estar-no-mundo. A necessidade chega aténés de fora denés, nao de dentro de nds. uma exigén- cia cultural dada, junto da qual nascemos e crescemos (a cultura, nesse contexto, assume sentido organico ¢ antropolégica). O design modela boa parte do mundo que moldamos ¢ nos molda. Nosso ser,0 mundo do nosso ser, a necessidade e 0 design: tudo isso deve ser pensado em conjunto’ Por diversos caminhos retéricos, quase todo tipo de pritica de design Perfilha, secunda faz apelo utilidade eas nogoes estéticas da “necessida- * Artgo(revisto) ~ Design Issues, Boston, MIT Press, segundo trim, 1992 1. Acsséncia desss observagdes indica que a abordagem a set adotada deve ppensamento de Martin Heidegger. ecoustaugoss de” — aquelas necessidades reivindicadas como préprias de certas culturas ‘ou subculturas. Ouvimes falar das “necessidades” do mercado — consumi~ dores, proprietirios, donas de casa, mulheres em geral,jovens, velhos, pes- sous ativas, sibaritas, gordinhos, executivos etc, As empresas de marketing aperfeigoam, como uma de suas fungies eomerciais basicas, modos de investigagao para discernir essas “nevessidades” em prol de seus clientes. Os proprios designers por forma;so coco, edquirem eempregam conhe- cimentos aceitos que encerram modelos de “necessidade”.[ss0 equivale a dizer, pura e simplesmente, que eles reproduzem em parte a materialidade € 08 valores da cultura de onde provieram tomando-a, bem como as suas configuragSes da necessidade, como o espago proprio da.atividade de design, ‘Talvez seja de interesse hist6rico lembrar que, sombra de mista do design’. Em todos os casos passados ¢ presentes, a “necessidade” é invocada como se fosse uma referencia empirica autoevidente. No entanto, qualquer invocagao da necessidade coexiste necessariamente com. taécita que a constitui. Portanto, meu objetivo € desautorizar suposigdes a respeito da necessidade e impedit que se apele para cla. Além disso, e ainda de um modo bastante geral, existem atualmente alguns imperativos que exigem o esclarecimento da natureza da “necessidade” Isso se vé, com frequéncia, pelo modo problematico como a categoria costuma ser invocada, mobilizada e explicada, nos discurses tanto culturais como eco- nomicos—a prépria nogio de" design por necessidade”é, jd desi, um exem- plo claro disso. Mais especificamente, para quem esta interessado em saber ue papel o design desempenhara na modelagem das materialidades futu- 2.*Daign por necelad in vcd wn og de emi de rao e 1970 que pest uma reform facarais de isn. "O deg bear ne ferramenta inovador 5 ‘2 sd0 90 Royal College oF Art, ~ Julian Bicknell eLiz MeQuiston (eds), “Design for Need”: The Social Contribution of Design, Oxford, Pergamon Press, 1976 0 [CONTRA UMA TEORIA ESSENCIRLISTA DA NBCESSIDADE as, hi cares ainda mais prementes pars repensar o que se entende por iddeias de “necessidade”, Esti af implicito 0 fato de que a “necessidade” é ¢ ‘cada vez mais seré uma categoria polemica: as “necessidades” ecolégicas da ‘vida neste planeta destoam francamente das praticas econdmicas ¢ cultu- sais de muitos de seus habitantes; citando com mais simplicidade, as “ne- ‘eessidades’ dos pobres nao sio as “necessidades” dos ricos. Por exemplo: no se pode comparar as doencas da afluéncia com as da miséria. Se continuarmos encarando a “necessidade” como um valor fixo € ‘universal, passivel de reducao quantitativa ereivindicagao, entio por certo nao conseguiremos identificar e encarar os problemas mais urgentes da humanidade, Aos olhos dos membros de sociedades industriais avancadas, ‘uma coisa é clara: se nao reexaminarmos nossas “necessidades’, arrastare- ‘mos a todos para a morte, Pois o que em geral achamios necessério a maioria denés é,na verdade, a negagio de nossos meios de sobrevivencia. Separar as necessidades que amparam a vida das que a destroem néo deve ser visto como preocupagao moral e sim como imperativo ecolégico. Nessa argu- ‘mentagio, bom versus mau nao se baseia no apelo a um sistema socialmen- jo de julgamento cultural, mas numa projecio dos efeitos biofisicos sobre a biosfera, os quais aumentarao ou diminuirao a capaci de de sobrevivéncia de todas as criaturas. Em nosso esquema, se a referén- cia é gerada pelo humano, mas nao se concentra s6 nele, cabe presumir que ‘julgamento se destina a preservar o “set” para que todas as diferengas do “ser” se tornem possiveis. Vale notar também que ocorre um vigoroso movimento ontolégico quando o enfoque da “necessidade” passa do mo- derno sujeito da cultura industrial tardia para as preocupagdes ambientais. Nesse movimento, a “necessidade” deixa de ser “necessidade humana” para ganar foros de “necessidade da vida em si” “Tornar visivel a necessidade, arrancando-a do sentido e do nao-exami- nado, é sem duivida tarefa dificil, que exige um ato de desconstrugao: des- truir para reedificar. De infcio, hé também alguns problemas especificos no uso do conceito de “necessidade” que precisam set identificados e explorados. Devemos, além disso, questionar a base de qualquer forma de avaliagao e 0 modo 6 RECONSTRUGDES como ela repousa sobre algum tipo de comparacio entre a percepgaio da “necessidade” ¢ 0 alcance de uma solucao técnica, cientifica, social ou de design. Nessa relagao, “solugdes” sio empregadas para, funcional e retorica- ‘mente, atuarem como evidéncia capaz de asseverar que determinada “ne- essidade” (expressa como “querer” ou percepsio de uma exigencia nao atendida) foi satisfeita. Reivindicagdes desse tipo, porém, nunca devem ser tomadas por seu valor ostensivo, nao apenas em termos de resolusdo de “necessidade’; mas também com respeito ao grau em que a consciéncia da construgio da “necessidade” & ou n2o manifestada. Nao bastasse isso, as “solusdes” tém de ser vistas como ainda mais infundadase fabricadas que a “necessidade”. Segue-se que a solugao, para merecer tal nome, precisa ser da frente a uma avaliagao da necessidade estabelecida como real. Voltando ao design, qualquer assercao referente a sua qualidade encer- ra um apelo implicito a resolugdo de padrées estéticos ou funcionais de natureza performativa que deviam, por presungio ou especificagio, ser confrontados com o design, Portanto, qualidade e padroes mantém um telacionamento especifico, pois ambos os conceitos foram historicamente associados como marcos normativos que atestam a saisfagao pretendida de “necessidades’ A implicagao, nesse contento, esta: quando o status original da “necessidade” se desloca, deslocam-se de igual modo suas categorias de- pendentes, Este ensaio |. Nenhum discurso ‘embora os especi (antropologia, economia, filosofia, psicologia, histéria etc.) constituam mo- delos particulares dela por meio de suas préprias teorias de conhecimento da sique, ser, cognigao, eu, tema, troca, soci tudo, discernir a “necessidade” como objeto singular, qualquer que sejaa perspectiva. El ta, mistura-se- outras categorias—exigéncia, necessidade, desejo, caréncia, pobreza e por ai além, Buscar a esséncia da necessidade ¢, pois, empreender uma procura redutiva que nao tera fim, Em sera as narrativas nao alardeiam autoridade absoluta nem vulnerabilidade com respeito ao modo segundo © qual outras narrativas dao corpo a necessi- dade. Considerem-se, por exemplo, as relagdes entre a “‘necessidade" de grati- CONTRA UIA TRORA ESSENCIALISTA DA NECESSIDADE. ficagao sexual e a maneira como é encarada, digamos, na biologia, na so- iologia ena psicandlise, A unica e usualmente nao-articulada metanarrativa dda “necessidade” € aquela que reconhece sua existéncia. “Todos os problemas do pensamento metafisio afloram nas maneiras diversas de pensar a “necessidade” Evo digo ontol6gica ~a concretude on iminéncia de uma caréncia sentida ou nfo sentida ~, que é, por seu turno, apenas uma instincia da disjungao entre: conhecer e ser; descrever e ser descrito, Por exemplo, uma formagao antropocéntriea da necessidade configura-a como ge- nérica da esp 1a-a como “minha” ~ uma exigencia do cu particularizado, Em caso contrario, a“necessidade” ¢ desnaturalizada, reificada e transformada em objeto/objetificada por exigencia de um siste- ma biolégico, conceitual, social ou econdmico, De qualquer manei atos de nomear ¢ em seguida ident outro, embora nao plenamente. A “necessidade’; portanto, repousa na ao de fundamentos que a confirmam enquanto se confirmam a si prépri- 0s, Expor o modo pelo qual o caréter autoconfirmador da tradigao metafisica 10s na forma como 0 conhecimento 1 0 nomeado fundem-se um se inscreveu (os pres do Ocidente se declarou cada ver mais seu questionamento ¢ mesmo a contestagdo de sua autorida- rente quando pretendia propalar a verdade. Os problemas 10 podem ticulares (como “necessidade”), encarando-se os conhecimer dos tanto como construgdes do que descrever quanto como revelacoes. com suas pretensdes transcendentais, ensejou ois, ser explorados, em geral ou em instincias par- 3 divulga- cognoscivel para além da razio. B insepardvel do Ser sentido (aberta, por- jo na qualidade de condig2o ontolbgica). O mais dificil na tanto, a0 eser tentativa de compreender a “necessidade” & que ela s6 se deixa conhecer u como auséncia pela ciéncia como projecdo aprioristica (uma teori lida, s6 podendo ser identificada pela reificacio de uma abstragdo gerada pelo conhecimento, c isso gragas a concretizagao de um sinal sintomitico: ‘como “necessidade” por meio dizer que, embora buscada, no pobreza, abrigo, seguranga sio de um ato interpretativo. Isso equival os Reconstuedes ‘existe cortespondéncia forgosa entre “necessidades” reais e representacoes de “necessidades': Elas podem se coadunar, mas candigo e descricio no se funder. Assim, a “necessidade” estd sempre perto e sempre longe; a distincia € mantida pelo hiato entre que vivenciamos ¢ 0 modo como articulamos 0 vivenciado. Mesmo a partir dessa introducdo apressada, fica clare que interrogar ‘em minticia a “necessidade” étarefa essencial ~- sobretudo quando a forma 0 de modos apropriados de pensar a “necessidade” se dissolve no recurso sexigéncias complexas e extraordinariamente disparatadas de nossa ép0- cahist6rica de construsao plural. A essa luz, nosso objetivo nesta obra é dos ‘mais modestos. Ele consist, primeiro, em registrar algumas manciras pe- !as quaisa“necessidade” vem sendo explorada por um nimero reduzido, luente, de modernos teGricos da cultura e depois em contemplar os problemas de tornar mais Sbvias as questées de avaliagio do design, com base na satisfagao da “necessidade” A partir da exposigdo em curso mais as abservagdes que serio feitas en ecessidade’, como figura cultural invocada e mobilizada, pode + Um coneeito extremamente importante, de modo geral e para os inte- esses clo design, a ser compreendido melhor no ambito de seu exerci- cio ¢ razao pritica. + Uma categoria que jamais pode ser aplicada de modo indiferente ou objetivo, pois sempre hé algo em jogo na sua “presentificacao” (seu ser ido conhecido no presente). + Uma abstragao implicita nas mudancas fundamentais provocadas pela «titica contemporanea, tanto quanto pela abrangéncia vel, do pensamento do luminismo (em particular, a c como razio deveu-se a tradigdo metafisica). Pata maior clareza, demonstrarei o seguinte: + O cardter miltiplo e complexo da “nec + Os perigos de encaré-la segundo uma visio reducionista. C7 ‘CONTRA LMA TEDRIA ESSENCIALISTA DA NECESSIDADE. + Por que éimportante vislumbrar a “necessidade” sempre numa condi- «do material varivel, enquadrada por diferentes registros éticos. Qualquer aplicagao, passiva ou ativa, de realmente satisfaga a “necessidade’, que va cxftica, tem de petceber sua propria atividade como reagio ou geracio de formacies especificas de“necessidade” A construcao legivel da“necessida- de” sentida (que pode ser a também captada realmente como “material e cireunstancialmente concreta” ou como a realidade do “real imaginado”) € uma Jacuna na historia e na teoria tanto da cultura como do design, Essa lacuna, conforme se ver4, delimita a compreensio do campo perceptivo de idade de design por ocasiao do advento da cultura industrial. Ela registea igualmente a falta ea necessidacte de uma teorizagao ontologica do design e da manufatura. A incapacidade mencionada de expor um senso de necessidade é, ela insepardvel da I6gica interna da cultura tecnocratica que nega 0 Ser do eu (a“‘necessidade” se desgarrou, pois, do Ser e depois se eapresentou a0 eu como uma faceta da subjetividade manufaturada pronta a satisfazer- se por obra do mercado). Novamente, 0 ponto é:as necessidades da condi- fo existencial do Ser e as que sto trazidas a esse ser do Ser nao s6 nao correspondem ao sentir do ser como as iiltimas Ihe ficam alheias. Ver-se-4 quea “necessidade” que tem o Ser de ser para “necessitar” assinala ao mesmo tempo a transicdo da cultura para a economi ‘edo eu para sujeito. deslocamento e a recolocagao da necessidade no mercado, promovidos pela transicdo, ocorreram concomitantemente a elevagao do sujeito individuado a condicao de “consumidor’, Paradoxalmente, 0 proprio surgimento do desejo (conforme o indica a recente utopia de consumo disseminada pela Europa Oriental) ou da liberdade de acalentar sonhos igados por necessidades denuncia a perda de soberania do eu —embora ue que o mercado deixe de atender a“necessidades” “real- mnhecimento do design que de sua designasao no- is-nos, de novo, as voltas com o problema da distingio. ‘Do mesmo modo, todos os apelos a uma dinamica de processo evolutivo, classificado como modernidade, desenvolvimento ou progresso, nao lo- a Econsrinigoes graram pela maior parte identificar o grau em que esses arcabousos ¢teo- rias da historia evidenciam o completo deslocamento estrutural das “ne- cessidades™ contingentes. Em suma, as formagdes pragmiticas

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