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HeceL a \ HEGEL (r770\1831) \ Grorc WitneLm Frieprick Hxce1, filho de um pequeno funciondrio de finangas, nasceu em Estugarda em 1770. Entre 1778 © 1793, fre- quentou o seminétio teolégico da Universidade de Tubinga, tendo-se entio familiarizado com as obras de Rousseau e Kant; em especial as obras de Kant causaram-lhe profunda impressio. Depois de ter sido tutor em Berna e em Francoforte, Hegel foi professor na Universidade de Jena entre 1801 e 1806. Com a vitdria de Napoledo ¢ a dispersio temporaria da universidade, Hegel foi para a Bavaria onde editou a Bamberger Zeitung (1807-1808), tendo em seguida sido reitor da escola de latim de Nuremberga. Em 1811 casou, ¢ cinco anos mais tarde ocupava uma cétedra em Heidelberga. Hegel, sucedeu a Fichte como professor de filosofia em Berlim em 1818, posto que ocupou até ao fim da vida. Morreu de célera em 1831. Um dos seus editores (") dei- xou-nos uma descrigio de Hegel a leccionar: é af descrito sentado «todo encolhido e de cabega pendente.... As suas constantes hesitagdes € tosse perturbavam a fluéncia do discurso, cada frase existia por si s6 € surgia apds um esforco... desligada ¢ desordenada». Desde a sua morte, Hegel tem sido objecto, tanto de elogio extra- vagante como de dentincias e ataques mordazes. FE todavia impossivel negara amplidao e a profundidade da sua influéncia no desenvolvimento do pensamento do século XIX — tanto no que diz respeito 4 filosofia, como 4 teoria social e politica. Através das suas varias obras principais —a Fenomenologia do Exspi- rito (1807), A Ciéncia da Légica (1812-16), a Filosofia do Direito (1821) ¢ as Conferéncias sobre a Filosofia da Histéria (proferidas nos ultimos anos da sua vida) — Hegel construiu um complicado sistema metafisico em grande estilo, sem aparentemente s¢ deixar perturbar pelas vigorosas objecgdes de Kant ao empreendimento de projectos desta natureza. As principais nogdes sobre que este sistema se construiu foram a nogio da realidade como sendo (de um modo que é dificil descrever com pre- cisio) inteligivel em termos racionais ou «ideais», ea nogio de realidade como processo evolutivo, dinamico. Assim, sob um ponto de vista, Hegel pensava que a estrutura subjacente ao mundo podia ser compreen- rat wy A Interpretagdo do Processo Histdfico dida mediante a apreensio do contetdo de certbs conceitos ou cate- gorias fundamentais, os quais se encontratiam/relacionados uns com os outros de modo a formar uma série ou progréssio autodeterminante. Seria todavia um erro supor que Hegel acreditava que as relacdes entre estes conceitos eram relagdes de necessidade/légica no sentido aceite. Em vez disso, as conexdes conformam-se ag padrao da famosa «dialéc- tica» hegeliana. O raciocinio dialéctico parte do pressuposto de que se pode dizer que um conceito geta o sed oposto ou «contraditério», dando 0 conceito e 0 seu oposto, em ¢onjunto, origem a uma ideia posterior que representa o que é essengial em ambos. Mas esta, por sua vez, geta 0 seu oposto, e assim re¢omega o processo de transigao dialéctica. Como 0 mundo fenoménico se considera interpretavel como a expressao das relagdes «ideais» que compete 4 légica (enquanto con- cebida por Hegel) articular, segue-se que tanto a «Natureza» como o «Espirito», a matéria e 0 espirito devem ser tratados como conformes a leis semelhantemente dialécticas. Embora esta doutrina possa parecer obscura, € essencial tomé-la em consideragio quando se tem em vista a teoria da histéria de Hegel. Como os excertos que se seguem elucidam, Hegel insiste em que a his- téria humana representa um processo racional, que expoe empirica- mente e em fases distintas os resultados das implicagdes de uma certa ideia, a «Ideia de Liberdade». Diz-se que a liberdade é a esséncia do «espirito», e a filosofia da historia é parte da filosofia do espirito. Assim, desde 0 inicio, o assunto da histéria distingue-se radicalmente do assunto das ciéncias — objectos ¢ organismos «naturais». A histdria apresenta-se também no pensamento de Hegel como um desenvolvimento progres- sivo em direcgio 4 realizagio de um certo alvo aprovado — uma con- cepgao que relaciona a sua teoria com as teorias do Iuminismo. Mas, ao contrério de, por exemplo, Condorcet, Hegel nao encara o estabele- cimento deste principio como uma questio puramente empirica, demons- travel por um apelo aos factos conhecidos da histéria e as leis que pre- sidem ao desenvolvimento do espirito humano. A concepgio de Kant de um principio intencional agindo por detras dos factos empiricos, a énfase de Herder no cardcter ou génio individual de povos ou nagdes determinadas — estas nogdes encontram também o seu lugar no sistema de Hegel. Além disso, se bem que Hegel considerasse que o fim para que se movia a historia humana era a tealizagio de «liberdaden, 0 sen- tido de «liberdade» que ele tinha em mente nfo era estreitamente and- logo ao sentido em que a palavra foi usada pelos fildsofos do Ilumi- nismo; a «Liberdade», afirma Hegel, «ndo é senao o reconhecimento € a adopcao de objectos substanciais universais, tais como Direito e \ \ Heoxn | Histéria Pilosdfica De tudo isto ethergiu um grupo de ideias que provaria ser alta- mente influente. A \histéria desenvolve-se em fases determinadas, estando cada fase intimamente relacionada com a precedente. O con- ceito central em fungdo\do qual se deve entender o desenvolvimento histético € © conceito de grupo de «nagio»: cada nacio tem o seu proprio contributo particular a dar para progresso histérico, ¢ cada nagio deve ser entendida ¢m fungio do principio, ou «idiossincrasia de espirito», que determina\e relaciona os diferentes aspectos da sua vida — religioso, politico, moral, legal, cientifico ¢ artistico. Além disso, 0 papel desempenhado\ em histéria por pessoas particulares sé parcialmente se explica mediante a consideragio dos seus interesses imediatos e conscientes; deve fazer-se referéncia as poderosas forgas histéricas de que elas sio tanto os instrumentos como (até certo ponto) os intérpretes. As accoes dos individuos devem assim set julgadas dentro do contexto histérico que «exige», ou torna necessdria a sua realizagio. Semelhantes consideragdes se aplicam a instituigdes ¢ for- mas de governo. Deste modo, nogdes como as «necessidades de uma época» assumem uma importincia crucial para a compreensio dos fenémenos histéricos e sociais: € através da sua utilizagio que o movi- mento inexordvel da histéria se pode apresentar, um movimento que pode anular as pretensdes de ideais morais ¢ politicos determinados, por mais sinceramente que eles sejam mantidos. Com efeito, Hegel sugere que nao é somente destituido de sentido mas também errado lamentar a frustragio ou ineficicia de tais ideais em histéria; fazé-lo revela uma m4 compreensio do verdadeiro caracter do processo his: t6rico, uma impossibilidade de reconhecer que ele é a corporizagio daquilo a que chamamos «a razio divina universal». a Histéria Filoséfica O Espirito Cosmico e a Historia Deve-se observar desde inicio que 0 fenémeno que investigamos —Histéria Universal — pertence a0 dominio do espirito. O termo «Mundo» inclui tanto a Natureza fisica como a psiquica. A Natureza fisica também desempenha o seu papel na Histria do Mundo, ¢ impor- 4 A Interpretagio do Processo Histéyico objectivo essencial. A nossa tarefa ndo requer {ue contemplemos a Natureza como um Sistema Racional em si mesmo —se bem que no. seu prdéptio dominio prove sé-lo —, mas simp}esmente aa sua relagdo com o Espirito. Na posicgio em que a gbservamos—a Histéria Universal —o Espirito manifesta-se na sua/mais concreta realidade. Nao obstante isto (ou antes, para o proprio objectivo de com- preender os principios gerais que isto—ja sua forma de realidade concreta — corporiza) devemos mencionar algumas caracteristicas abstractas da natureza do espirito. Tal explicacio contudo nio pode ser dada aquia nao ser sob a forma de simples assergio. No presente nio € oportuno expor a ideia de Espirito especulativamente, porque tudo que tenha lugar numa introdugio deve, como jd se observou, ser tomado como simplesmente histérico; algo considerado como ja tendo sido explicado e comprovado noutro lugar, ou cuja demonstragio aguarda a confirmagio da propria Ciéncia Histérica. ‘Temos portanto de mencionar aqui: 1) As caracteristicas. abstractas da natureza do Espirito. 2) Os meios que o Espirito utiliza para realizar a sua Ideia. 3) Por ultimo devemos considerar a forma que assume a corpo- rizagio perfeita do Espirito —o Estado. Basta um relance ao seu oposto. directo —a Matéria — para se poder compreender a natureza do Espirito. Tal como a esséncia da Matéria é a Gravidade, podemos assim afirmar por sua vez que a subs- tancia, a esséncia do Hspirito, éa Liberdade. ‘Todos admitirio sem hesi- tar a teoria de que o Espirito, entre outras propriedades, também ¢ dotado de Liberdade. Mas a filosofia ensina que todas as qualidades do Espirito existem apenas através da Liberdade; que todas elas nao passam de meios para atingir a Liberdade; e que é isto € apenas isto que procuram e produzem. Resulta da Filosofia especulativa que a Liberdade é a unica verdade do Espirito. ‘A questdio dos meios pelos quais a Liberdade se desenvolye num Mundo conduz-nos ao fenédmeno da prdpria Histéria. Embora a Liberdade seja em principio uma ideia incoativa, os meios que usa sao externos e fenoménicos e oferecendo-se na Histéria a nossa visio sensivel. O ptimeiro relance & Histéria convence-nos de que as acgées dos homens provém das suas necessidades, paixdes, caracteres e talentos, e impée-nos a convicgio de que tais necessidades, paixdes € interesses sio as unicas fontes de acgio—as causas eficientes neste teatro de acgio, Entre estas talvez se possam encontrar propésitos de tipo liberal ou universal — como, por exemplo, a boa vontade ou 0 nobre patriotismo. Mas tais vittudes e perspectivas gerais nao passam \ Hecerx | Histéria Filo: 75 objectivos, ¢ dentro\ da sua esfera de influéncia, mas € irrisétia a proporgio que transmitem 4 grande massa do género humano; e assim fica limitado o alcance, da sua influéncia. As paixdes, os objectivos particulares ¢ a satisfagio de desejos egoistas sie, por outro lado, molas de acgio bastante |eficientes. © seu poder reside no facto de nao respeitarem qualquer das limitagdes que a justiga e a moral Ihes imporiam, ¢ de estes impulsos naturais terem uma influéncia mais directa sobre 0 homem do que a disciplina artificial e enfadonha que visa a otdem e autolimitagio, a lei e a moralidade. Esta vasta acumulagio de vontades, interesses e actividades cons- titui os instrumentos e os meios que o Espirito césmico usa para atingir o seu objectivo, tornando-o consciente e efectivando-o. E este objectivo nao passa de um auto-encontro — um chegar a si mesmo —e de'uma autocontemplacio em realidade concreta. Mas poderia pér-se em diivida que essas manifestagdes de vitalidade da parte de individuos e povos, nas quais eles procuram e satisfazem seus préprios fins, fossem ao mesmo tempo os meios e€ instrumentos de um fim mais alto e vasto, do qual nada sabem— que realizam inconscientemente—; tem mesmo sido posto em davida, e rejeitado, vitupetado e subestimado de todas as maneiras como pura fantasia e «filosofice». Mas sobre esta questao, logo no inicio anunciei 0 meu ponto de vista ¢ defendi a nossa hipétese — que, contudo, aparecerd na Sequén- cia sob a forma de uma inferéncia legitima —e a nossa’ convicgio de que a Razio governa o mundo e tem, consequentemente, governado a sua histéria.. Em relagio a esta existéncia universal e substancial- mente auténoma—tudo o mais se lhe subordina e submete, bem como os seus meios de desenvolvimento. [Depois de uma descrigao geral da forma como o Espirito césmico opera através da historia, Hegel discute o papel especial daqueles que ele apelida de «individuos histérico-césmicos». E considera a seguir os que se entregam a uma subjectiva hipercritica ¢ lamentam o facto de em histéria os ideais que a muitos pareceram de validade e mérito universais terem «sossobrado nas tochas da dura realidade».] Individuos Histrico-Césmicos. César, em perigo de perder uma posigio nao. talvez de superiotidade, na altura, mas pelo menos de igualdade com os outros que estavam 4 testa do estado, em perigo de sucumbir aos que estavam exactamente 4 beira de se tornarem seus inimigos, —pertence essencialmente a esta categoria. Estes inimigos — que na meal oe Pie Se Pees Be ae ee ey Die oe 76 A Interpretactio do Proceso Histérfico César lutava para manter a sua posigdo, honra e séguranga; ¢, uma vez que o poder dos seus adversarios incluia a sobetania sobre as provin- cias do Império Romano, a vitoria assegurava-lhe a conquista de todo esse Império. E assim ele se tornou— se bem que abandonando a letra da constituigao —o Autécrata do Estado. Aquilo que lhe asse- gurou a execugio de um plano que, em primeiro lugar, era de signi- ficado negativo—a Autocracia de Roma, foi contudo 20 mesmo tempo uma caracteristica autonomamente necessdria na histéria de Roma ¢ do mundo. Nao foi, pois, apenas o seu lucro particular, mas um impulso inconsciente que motivou a realizagio daquilo para que a época estava pronta, Assim sio todas as grandes individualidades histéricas — cujos fins particulares envolvem os vastos caminhos que constituem a vontade do Espirito césmico. Pode-se chamar-lhes Heréis, na medida em que os seus fins ¢ a sua vocacao niio os derivam do curso regular e calmo das coisas sancionadas pela ordem em vigor, mas sim de uma origem invisivel — que nao chegou a aflorar a exis- téncia presente e fenoménica—, daquele Espirito interior sempre oculto sob a superficie, que, embatendo no mundo exterior como numa concha, o desfaz em pedagos, por nao ser o contetido adequado a essa concha. Sio, pois, homens que parecem arrancar de si mesmos © impulso da vida, ¢ cujos feitos produziram uma nova ordem de coisas e um complexo de relagdes histéricas que parecem set apenas 0 sei préprio interesse ¢ obra sua. ‘ais individuos nao tinham consciéncia da Ideia geral que desdo- bravam enquanto prosseguiam os objectivos deles; pelo contrario, etam homens praticos, politicos. Mas ao mesmo tempo eram homens de pensamento, com apreensio das necessidades da época-—o que estava maduro para a colheita. Esta era a verdade auténtica para a sua época e para o seu mundo; a forma que devia seguir-se, por assim dizer, ¢ que ja estava engendrada no ventre do tempo. Cabia-lhes coihecer este principio emergente; 0 passo necessétio e imediatamente subsequente no progresso, que o seu mundo ia dar; e fazer desse passo seu objectivo e despender toda a energia em promové-lo. As individua- lidades histérico-mundiais — os Herdis de uma época —devem por- tanto ser reconhecidos como os seus filhos de mais ampla visio; as sas acgbes, as suas palavras, sio as melhores desse momento. Os gran- des homens conceberam os seus objectivos para se satisfazer a si mesmos, niio a outros. Quaisquer que fossem os planos e conselhos. sensatos aprendidos de outros, esses seriam os tragos mais limitados e inconsis- tentes da sua carreira, pois foram eles quem melhor apreendeu os assun- tos, e foi deles que os ostros aprenderam e cuja politica aprovaram = Ted ee Ne pat Hecex | Histéria Filosdfiea 77 num estado de inconsciéncia que os grandes homens em causa agi- taram. Os seus companheiros, portanto, seguem estes condutores de espititos porque sentem assim corpotizado poder irresistivel do seu prdptio Espirito intimo. Se continuarmos a langar um olhat ao destino destas figuras histérico-mundiais, nascidas para agentes do Espirito Césmico, verificamos que nao foi destino feliz. Nao encontraram satis- fagao calma; toda a sua vida foi de labor ¢ inquietagao; toda a sua natu- reza nada mais foi do que a sua paixio dominante. Quando atingem © seu objectivo, desprendem-se, como as cascas vazias caem do fruto. Morrem cedo, como Alexandre; so assassinados, como César; exilados para Santa Helena, como Napoleio. Bista temerosa consolagdo —a de os homens histéricos nao terem tido 0 prazer do que se chama felicidade, ¢ da qual s6 é susceptivel a vida particular (e isto pode acontecer em circunstancias externas muito varidveis) — esta consolagio podem buscé-la na histéria os que tam necessidade dela; e é ambicionada pelo Desejo — excitado pelo grande ¢ transcendente — que, portanto, se esforca por apouca-la ¢ encontrar nela alguma falha. Assim, tem-se demonstrado nos tempos modernos, ad nauseam, que os principes sio geralmente infelizes nos seus tronos, em vista do que se tolera a posse de um trono € os homens concordam em que sejam no eles mesmos mas as personalidades em causa os seus ocupantes. O Homem Livre, podemos observar, nao inveja; antes reconhece com satisfagio o que é grande ¢ elevado e muito se alegra com a sua existéncia. F A luz destes elementos comuns, que constituem o interesse ¢, portanto, as paixdes dos individuos, que se deve considerar estes homens historicos. Sao grandes homens porque souberam querer € realizaram algo de grande; nao uma simples fantasia ou mera intengio, mas aquilo que era adequado € de acordo com as necessidades da época. Este modo de os considerar também exclui o chamado ponto de vista apsicoldgicon, que—setvindo muito eficazmente ao objectivo da ambi- cio — pretende assim reférir todas as acgdes a0 coragio para as colocar sob aspecto subjectivo, pelo qual os seus autores parecem ter feito tudo sob impulso de alguma paixio, mesquinha ou grandiosa — um veemente desejo mérbido —, € no terem sido criaturas morais devido a estas paixdes € obsessdes. Alexandre da Macedénia subjugou parcial- mente a Grécia e depois a Asia; portanto estava dominado por um desejo mérbido de conquista. Afirma-se que ele agiu movido por uma exigencia de fama e conquista. E a prova de que eram estes os motivos impulsores € que ele fez aquilo que 0 tornou famoso. Qual o peda- gogo que nao demonstrou quanto a Alexandre Magno ou Julio César dstpadne nar tais naixdes. € eram., por consequéncia, cria- ag Ser TES ag A Interpretagto do. Processo Histérico pedagogo, é melhor que eles, pois nao esta sujeito/a tais paixdes. Uma ptova disso esta no facto de ele nao conquistar/a Asia, vencer Dario e Poro, mas antes, enquanto goza a vida, deixaque os outros a gozem também. Estes psicdlogos gostam especialmente de contemplar nas gtandes figuras histdricas as singularidades que lhes pertencem enquanto seres particulares. © homem tem de comer/e beber; mantém relages com amigos e conhecidos; tem impulsos passageiros ¢ explosdes de temperamento, «Nenhum homem é herdéi para o seu criado de quarto» — éum provérbio bem conhecido. Eu acrescentei — ¢ Goethe repetiu-o dez anos depois: «nao porque o primeito nao seja herdi, mas porque © segundo € criado de quarto». Ele descalga as botas ao heréi, ajuda-o a deitar-se, sabe que ele prefere champanhe, etc. As personagens his- téricas servidas na literatura histérica por estes criados de quarto psicé- logos emergem bem empobrecidos. Sao rebaixadas por estes seus criados ao nivel, ou, antes, alguns degraus abaixo do nivel da moral destes requintados esmiugadores de espiritos. O ‘Tersites de Homero que maltrata os reis é uma figura dominante de todos os tempos. Gol- pes, isto é, pancadas com sdlido bastio, no os apanha em qualquer época como na homérica. Mas a sua ambigio, o seu egotismo, é 0 espinho que tem de transportar na carne; e o verme imortal que o corrdi é a ideia angustiosa de que as suas excelentes opinides ¢ vitu- périos permanecem sem o menor resultado no mundo. Mas a nossa satisfagio com o destino do tersitismo também talvez tenha o seu lado sinistro. Uma personagem histérico-mundial nao tem tao pouco senso que se permita uma variedade de desejos que dividam a sua atengao. Con- sagra-se ao seu Objectivo Unico sem atender a nada mais. EK mesmo possivel que tais homens tratem outros grandes e mesmo sagrados interesses, sem Ihes prestarem a devida atengdo, conduta que € efecti- vamente susceptivel de repreensio moral. Mas um complexo tio poderoso tem de esmagar muitas flores inocentes, despedagar muitos objectos no seu caminho. O interesse especial da paixdo é desta forma inseparavel do desenvolvimento activo de um principio geral, porque é do especial ¢ limitado e da sua negagio que resulta o Universal. A par- ticularidade luta com o seu semelhante, e daf resulta alguma perda. Nao € a ideia geral que est envolvida em oposigao ¢ luta, ¢ exposta ao perigo. Ela permanece no background, inatingida e ilesa. Pode-se chamar a isto o ardil da razio — dispée as paixdes em seu beneficio, enquanto aquilo que lhe desenvolve a existéncia por meio de tal impulso paga a pena e sofre o prejuizo. Pois é um ser fenomenal que assim € tratado, e do qual uma parte nao tem qualquer valor e outra parte : viele ee Hecex / Histéria Filosdfica 79 abandonados. A Ideia paga a pena da existéncia limitada e da corrupti- bilidade, nao de si mesma mas das paixdes dos individuos (...) Ao contemplarmos a parte que cabe, na histéria, 4 virtude, 4 mora- lidade e até 4 piedade, nao devemos cait num coro de lamentagées: que os bons e piedosos muitas vezes — ou na maior parte — nao pro- gtidem no mundo, enquanto os mal intencionados e os maus pros- peram. © termo prospetidade usa-se numa quantidade de sentidos: riquezas, honras exteriores, ¢ coisas idénticas. Mas falando daquilo que em si e por si mesmo constitui um objectivo da existéncia, o cha- mado bom ou mau sucesso destes ou daqueles individuos isolados nao pode ser considerado elemento essencial na ordem tacional do universo. Com mais justiga do que felicidade —ou um ambiente favoravel para os individuos — exige-se do-grande alvo da existéncia do mundo que ele acalente, ou antes que envolya a execugio ¢ confirmagao dos fins bons, morais ¢ justos. O que torna os homens moralmente descon- tentes (um descontentamento, incidentalmente, de que se orgulham um tanto) € néo acharem o presente adaptado a realizagao dos objecti- vos que eles tém como rectos € justos (sobretudo nos tempos moder- nos, os ideais das constituig6es politicas). Contrastam desfavoravel- mente as coisas como elas sdo com a sua ideia das coisas como deviam ser, Neste caso nao se trata de interesse particular ou paixio que deseje recompensa, mas de Razio, Justicga, Liberdade. E revestida deste titulo, a exigéncia em causa assume um ar sobranceito e toma prontamente uma posigio nao apenas de descontentamento mas de revolta aberta contra o estado de coisas vigente no mundo. Para avaliar tal senti- mento € tais opinides com justica tem de se examinar as exigéncias em que se insistiu ¢ as bem dogmiticas opinides declaradas. Em nenhuma outra época como na nossa esses principios e nogdes gerais progrediram tarito ou com seguranga maior. Se em tempos idos a his- téria parece aptesentar-se como uma luta de paixdes, no nosso tempo —apesar de nao faltarem manifestagdes disso —apresenta em parte um predominio da luta de nogdes que assumem a autoridade de prin- cipios, em parte o de paixdes e interesses essencialmente subjectivos, mas sob a mascara dessas sangdes mais elevadas. As pretensdes assim defendidas como legitimas em nome do que se declarou sob o fim ultimo da Razdo, passam, portanto, por fins absolutos —da mesma forma que a Religiao, a Moral, a Etica. Como ja se notou, nada € hoje mais comum que a queixa de que os ‘ideais que’ a imaginacio ergue nio se efectivam — que estes sonhos magnificos sio destrufdos pela fria realidade: Estes Ideais — que na viagem da vida se afundam nas rochas da dura realidade — podem em primeiro lugar ser apenas subjectivos 80 A Interpretagaio do Proceso Histérico sabio. Esses nao pertencem propriamente a esta categoria. Porque as fantasias em que o individuo no seu isolamento se deleita nao podem servir de modelo para a realidade universal, da mesma forma que a lei universal nio é planeada para as unidades da massa. Estas, como tais, podem até ver os seus interesses definitivamente langados para plano secundario. Mas pelo termo «Ideal» também entendemos o ideal da Razio, do Bem, da Verdade. Poetas como Schiller pintaram esses ideais de forma tocante e com forte emogio, e com a convicgio profunda- mente melancélica de que nao podiam ser realizados. Ao afirmarmos, pelo contrario, que a Razo Universal de facto se realiza a ela mesma, nada temos que ver com o individuo considetado empiricamente. Isso admite degraus de melhor e pior, uma vez que 0 acaso e o parti- cular receberam da Ideia autoridade para exercer 0 seu monstruoso poder. Por conseguinte ha muita critica a fazer a aspectos de pormenor do grande fenémeno. Esta subjectiva hipercritica — que, contudo, apenas tem em vista 0 individuo e a sua deficiéncia, sem tomar conhe- cimento da Razdo que impregna o todo — € facil; tanto quanto afirma uma intengio excelente em relagao ao bem do todo e parece ser produto dum bondoso coragio, sente-se autorizada a dar-se ares de assumir grande importancia. FE mais facil descobrir faltas nos individuos, nos estados ou na Providéncia, do que ver o seu verdadeiro valor ¢ importancia. Porque nesta Aipercritica puramente negativa toma-se uma posigao de orgulho — uma posigao que passa por alto o objecto, sem nele ter penetrado— sem ter abarcado 0 seu aspecto positivo. A idade geralmente torna os homens mais tolerantes; a juventude é sempre impaciente. A tolerincia da idade é resultado da maturidade de um critério que, nio apenas como resultado da indiferenga, se satisfaz mesmo com o que é inferior, mas que, ensinado mais profundamente pela experiéncia séria da vida, foi levado a apreender o valor real e firme do objecto em causa. Portanto a agudeza a que—em contraste com esses ideais —a filosofia nos conduz, é que o mundo real é como devia ser — que 0 verdadeiramente bom —a divina raz4o universal — nao é mera abstracgao mas antes um principio vital capaz de se auto- -tealizar. Este Bom, esta Razdo, é, na sua forma mais concreta, Deus. Deus ditige 0 mundo. A acco real da sua direcgio —a execugio do seu plano —é a Histéria do Mundo. A filosofia esforca-se por com- preender este plano, porque sé o que se tem desenrolado como seu efeito possui realidade bona fide. O que nao esta de acordo com ele é existéncia negativa e inutil. Perante a luz pura desta Ideia divina — que nao é mero Ideal — desaparece por completo o fantasma de um mundo cujos acontecimentos sie um curso incoerente de circunstancias for- tuitas. A filosofia deseja descobrir 0 significado real, o lado verdadeiro Hecen / Historia Filosdfica 81 Porque a Razio é a compreensio da obra Divina. Mas no que diz tespeito A perversio, corrupgio ¢ ruina dos objectivos religiosos, éticos e morais, e dos estados da sociedade em geral, tem de se afir- mar que estes, na sua esséncia, séo infinitos e eternos, mas as for- mas que revestem podem ser de ordem limitada e consequentemente pettencer ao dominio de simples natureza, estar sujeitas as flutuagdes do acaso. Sao portanto pereciveis, ¢ estio expostos a decadéncia ¢ a corrupgao (...) [A tertceira questao a ser discutida ¢ 0 problema da natureza do fim a qué a histéria, concebida como um processo racionalmente orde- nado, conduz. A efectivagao deste fim encontra-se no Estado.] O Estado como Fim da Historia. © terceiro ponto a analisar é, portanto, qual o objectivo a alcangar-se com estes meios, Quer dizer, qual a forma que ele reveste nos dominios da realidade. Falémos de meios. Mas na realizacio de um objectivo subjectivo e limitado, também devemos ter em consideragio um elemento maserial, j4 presente ou que tem de se obter. Assim surgiria a pergunta: em que material se concretiza o Ideal da Razio? A Resposta elementar seria —a propria Personalidade — os desejos humanos —a Subjectividade em geral. No conhecimento e na vontade humanos, como seu elemento material, a Razao alcanga existéncia positiva. Consideramos a vontade subjec- tiva nos casos em que tem um objecto que é a verdade e esséncia de uma tealidade, viz., nos casos em que constitui uma grande paixio histdtico-mundial. Como yontade subjectiva, ocupada com paixdes limitadas, é dependente, e s6 pode satisfazer os seus desejos dentro dos limites desta dependéncia. Mas a yontade subjectiva também tem uma vida substancial —uma realidade — dentro da qual se move na regiio do ser essencial, e tem o proprio essencial como objecto da sua existéncia. Este ser essencial é a unido do Querer subjective com o racional: & 0 Todo moral, o Esfado, que € a forma de realidade em que 0 individuo tem a sua liberdade ¢ a goza, mas com a condig&o de reconhecer, acte- ditar ¢ querer aquilo que é comum ao Todo. E nao se deve isto entender como se a Vontade subjectiva da unidade social alcangasse a sua reali- zagio e satisfagao através desta vontade comum; como se isto fosse um meio concedido para seu beneficio; como se o individuo, nas suas relagdes com os outros, limitasse assim a sua liberdade, a fim de que esta limitagio universal —o constrangimento miituo de todos — asse- gurasse um pequeno espago de liberdade para cada um. Pelo contra- rio, afirmamos que a Lei, a Moral e o Governo, e sé eles, sao a reali- 82 A Interpretagdo do Pensumento Histérico mesquinha ¢ limitada é um mero capricho que se realiza na esfera: dos desejos privativos € limitados. Na histéria do Mundo apenas podem atrair a nossa atengio os povos que constituem um estado. Porque é preciso compreender que este representa a realizagio da Liberdade, isto ¢, do objectivo ultimo € absoluto, ¢ que existe apenas para a assegurar. Além disso deve-se com- preender que tudo 0 que 0 ser humano tem de valioso, toda a realidade espititual, ele o possui apenas por intermédio do Estado, Porque essa realidade espiritual consiste em a propria esséncia do ser humano —a Raziio — estar objectivamente presente nele, ter para ele existéncia objectiva imediata. $6 assim ele é plenamente consciente; s6 assim ele participa na moralidade — numa vida social ¢ politica justa ¢ moral. Porque a Verdade é a Unidade da Vontade universal ¢ subjectiva. E 0 Universal encontra-se no Estado, nas suas leis, nas suas disposigoes universais e racionais. O Estado é a Ideia Divina, como ela existe na terra. Nele temos, portanto, o objectivo da Histéria de forma mais definida que antes: a forma em que a Liberdade alcanga objectividade e vive na satisfagio desta objectividade. Porque a’ Lei é a objectividade do Espirito; a vontade na sua forma verdadeita. Apenas o querer que obedece A lei é livre; porque obedece a si mesmo — é independente € portanto livre. Quando 0 Estado ou o nosso pais constitui uma comu- nidade de existéncia, quando o querer subjectivo do homem se submete as leis, desaparece a contradigao entre a Liberdade e a Necessidade. © Racional tem existéncia necessiria, na medida em que € realidade substancia das coisas, e temos a liberdade de o reconhecer como lei € de © seguir como substancia do nosso préprio ser. O querer objectivo € subjectivo entio reconciliam-se e apresentam um todo idéntico € homogéneo. Resumindo o que se disse acerca do Estado, vemos que fomos levados a chamar ao seu principio vital, enquanto move os individuos que 0 compéem — Moralidade. © Estado, as suas leis, os seus planos, constituem os direitos dos seus membros; as suas caracteristicas naturais, as suas montanhas, ar e 4guas, sio 0 sew pais, a sua patria, a sua proprie- dade material externa; a histéria deste Estado, os seis feitos; 0 que os seus antepassados realizaram pertence-lhes e vive na sua memoria. ‘Tudo é propriedade deles, exactamente como eles so possuidos por tudo isso, potque isso constitui a sua existéncia, 0 seu ser. A sua imagina- Gao est4 ocupada pelas ideias assim apresentadas, ao mesmo tempo que a adopgao destas leis ¢ de uma patria assim condicionada € a expressio do seu querer. Fi esta totalidade amadurecida que assim constitui vm Ser, 0 espirito de wm Povo. Os membros individuais pertencem-lhe; ie eee RE all oi in lined Baie lA ay Hucen / Histéria Filosdfica 83 fica exchuido, ¢ ainda menos avanga para além dela. Este Ser espiritual (0 Espirito do seu Tempo) é seu; é um representante dele; é aquilo em que € originado ¢ no qual vive. Entre os Atenienses a palayra Atenas tinha um sentido duplo, sugerindo em primeiro lugar um complexo de instituigdes politicas, mas nao menos, em segundo lugar, a Deusa que tepresentava © Espirito do Povo e a sua unidade... A observacio a seguir é que cada génio nacional deve ser tratado apenas como um individuo no processo da Histéria Universal. Porque essa histéria é a manifestagio do desenvolvimento divino, absoluto, do Espirito nas suas formas mais clevados —a gradagio pela qual ele atinge a sua verdade ¢ a consciéncia de si mesmo. As formas que estes graus de progresso assumem sio os caracteristicos «Espiritos Nacionais» da Histéria; 0 curso peculiar da sua vida moral, do seu governo, Atte, Religiio ¢ Ciencia. A realizagio de estes graus é 0 objectivo do ilimi- tado impulso do Espirito Césmico —a meta da sua pressio irresistivel; porque a sua Ideia é esta divisiio em membros organicos e o pleno desen- volvimento de cada um. A Historia Universal ocupa-se exclusivamente em mostrar como o Espirito chega a um conhecimento e adopgio da verdade: surge a alvorada do conhecimento, comega a descobrit ptin- cipios eminentes ¢ por fim atinge a consciéncia plena. [Na ultima parte da sua Introdugio Hegel sugere que se pode esta- belecer distingao entre o estudo de certos fenémenos naturais e 0 estudo da histéria, comparando as diferentes implicagdes que os conceitos de mudanga e desenvolvimento tém nos dois contextos. Enquanto os organismos naturais se desenvolvem e transformam de forma cega ¢ inconsciente, isso njio acontece no caso dos fenédmenos histéricos, que sio as expressoes do espirito autoconsciente e autodeterminante. Desta forma Hegel parece em parte estabelecer © principio de que é errado transferir para a histéria, sem alterar, processos e conceitos validos nas ciéncias naturais: o assunto da histéria exige as suas. formas especiais de representagio e interpretagio. Sio estas que Hegel tenta descrever.] Mudanga e Desemolvimenta O principio do desenvolvimento envolve também a existéncia de um getme latente de ser — uma capacidade ou potencialidade que luta para se realizar. Esta concepgao formal encontra existéncia real no Lispirito, que tem por teatro a Histéria do Mundo, 0 seu dominio e 84 A Interpretagio do Processo Histérico juiz absoluto das coisas, inteiramente indiferente a contingéncias, que, pelo contririo, ele adopta ¢ maneja para os seus prdprios fins. O desen- volvimento, contudo, é também uma propriedade de objectos naturais otganizados. A existéncia destes apresenta-se nao como existéncia exclusivamente dependente, sujeita a transformagio externa, mas sim como existéncia que se expande em virtude de um principio interno imutavel. Uma simples esséncia cuja existéncia, isto é, germe, é inicial- mente simples, mas que desenvolve subsequentemente uma quantidade de partes diferentes que se envolvem com outros objectos, e vivem consequentemente através de um proceso continuo de transformagoes; um processo que, nao obstante, resulta no préprio contrario de transfor- magio e se torna mesmo uma vis conservatrix do principio organico e da forma que o corporiza. Assim o individimm organizado produz-se a si mesmo; expande-se realmente, no que foi sempre potencialmente. Desta forma o Espirito é apenas aquilo que atinge pelos seus prdprios esforgos; a si mesmo se faz na realidade, aquilo que sempre foi em poténcia. Esse desenvolvimento (0 de organismos naturais) verifica-se de forma directa, sem oposigio nem estorvo. Entre a Ideia e a sua realizagio — a consti- tuigio essencial do germe original e a conformidade com ele da exis- téncia que dele deriva—nenhuma influéncia perturbadora se pode introduzir. Mas em relagio ao espirito é outra coisa muito diferente. ‘A realizagio da sua Ideia é medida pela consciéncia e pela vontade. Estas mesmas faculdades estio, em primeiro lugar, mergulhadas na sua vida priméria meramente natural. © primeito objecto ¢ finalidade dos seus esforcos € a realizagio do seu destino meramente natural, mas que, uma vez que € 0 Espirito que o anima, contém amplas atracgies ¢ mostra grande poder ¢ riqueza (moral). Assim o Espirito esta em guetta consigo mesmo. Tem de se vencer como seu mais formidavel obstaculo. Esse desenvolvimento, que, na esfera da Natureza, é um cresci- mento pacifico, na do Espirito é um conflito severo € poderoso consigo mesmio. Aquilo por que o Espirito realmente se esforga é a realizagio do seu ser ideal; mas ao fazé-lo, esconde esse objectivo da sua propria visio, e fica orgulhoso e bem satisfeito neste alienar-se dele. A sua expansio, portanto, nio apresenta a tranquilidade inofensiva do simples crescimento, como o da vida organica, mas uma acco de firme resisténcia contra si préprio. Além disso, nao apresenta a mera concepgio formal de desenvolvimento, mas sim a obtengio de um resultado definitivo. O objectivo a atingir ja o determinamos a principio: é o Espirito na sua plenitude, na sua natureza essencial, quer dizer, Liberdade. Este é 0 objectivo fundamental, e portanto também o A te 4 a tia ay | Histéria Pilos 85 A historia universal — como j4 se demonstrou — mostra 0 desen- volvimento da consciéncia de Liberdade por parte do Espirito e da consequente realizagio dessa Liberdade. Este desenvolvimento implica uma graduagio — uma série de expressdes ou manifestagdes de Liber- dade cada vez mais adequadas, que resultam da sua Ideia. A natureza légica ¢ —ainda mais importante — dialéctica da Ideia em geral, quer dizer, que se determina a si mesma — que reveste formas sucessivas que sucessivamente transcende; e por este mesmo processo de transcender os seus primitivos graus, adquire uma forma afirmativa e, de facto, mais rica e concreta — , esta neces idade da sua natureza, ea série neces- saria de puras formas abstractas que a Ideia sucessivamente toma — fica exposta na secgio da Légica. Aqui precisamos apenas de aceitar um dos seus resultados, isto é, que cada passo do process, diferindo de qualquer outro, tem o seu principio determinado e proprio. Em his- toria este principio é idiosincrasia do Espirito —Génio Nacional caracteristico.. F dentro das limitagées desta idiosincrasia que 0 espi- tito da nagao, concretamente manifestado, exprime todos os aspectos da sua consciéncia e vontade — todo o ciclo da sua realizagio. A sua religiao, governo, moral, legislagao, e mesmo a sua ciéncia, arte e capa- cidade mecanica, todos tem a sua marca. Estas caracteristicas especiais tém a sua explicagio nessa peculiaridade comum— o principio espe- cial que caracteriza um povo, como, por outro lado, se pode descobrir esse principio caracteristico comum nos factos que a Histéria apresenta em. pormenor. 2.0 espirito concreto de um povo que temos de reconhecer dis- tintamente, € desde que é Espirito, sé pode ser compreendido espiti- tualmente, isto é, pelo pensamento. E ele que tem a primazia em todas as acgdes € tendéncias desse poyo, e se ocupa em realizar-se — em satis- fazer o seu ideal e tornar-se autoconsciente — porque a sua grande fungio é produzir-se a si mesmo. Mas para o espirito a mais alta rea- lizagio é 0 conhecimento de si mesmo, um avango em relagio nao sé 4 intuigao mas também ao pensamento — a concepgio clara de si mesmo. Isto deve ele conseguir € a isso esta também destinado. Mas essa obten- gio é a0 mesmo tempo a sua dissolugio, e 0 surto de outro espirito, de outro povo histérico-mundial, de outra época da Histéria Universal. O espitito—consumindo o inyélucro da sua existéncia — nio passa simplesmente para novo invélucro nem se ergue rejuvenescido das cinzas da sua forma anterior. Emerge enaltecido, glorificado, um espirito mais puro. E. certo que ele luta consigo mesmo — consome a sua propria existéncia; mas nesta mesma destruigio transforma essa existéncia numa nova forma, e cada fase sucessiva torna-se por sua vez saci a ait Naa et dk 8 eee | ok el 86 A Interpretagiio do. Proceso Histérico nao apenas como transigdes remogadoras, isto é, regressos 4 mesma forma, mas antes como automanipulagées pelas quais ele multiplica © material para futuros esforgos — vemo-lo empenhando-se numa varie- dade de modos e direcgdes, desenvolvendo os seus poderes ¢ satisfa- zendo os seus desejos numa variedade inesgotavel, porque cada uma das suas criagdes, em que ele j4 encontrou satisfagio, Ihe vai de novo a encontfo como material e € um novo estimulo para actividade plas- tica. A concepgio abstracta de simples transformacio da lugar ao pensamento do Espirito que manifesta, desenvolve e aperfeigoa os seus podertes em todas as direcgdes que a sua miiltipla natuteza pode seguir. Da variedade de produtos ¢ formagées que origina ficamos a conhecer os poderes que Ihe sao inerentes. Nesta actividade aprazivel ele sé tem que ver consigo mesmo. Quando envolvido em condigées de mera natureza — internas e externas — encontrard nelas nio sé oposigio ¢ obstaculo mas também muitas vezes vera por isso os seus esforgos falhar, frequentemente afundar-se nas complicagdes em que é enredado ou pela Natureza ou por si mesmo. Mas em tal caso sogobra na rer lizacio do seu proprio destino e verdadeira fungio, e mesmo assim apresenta o especticulo de auto-exibigdo como actividade espiritual. A propria esséncia do Espirito € a actividade. Realiza a sua capa- cidade — faz-se accio e trabalho de si mesmo — e assim se torna objecto para si proprio, e se contempla como uma existéncia objectiva. Assim sucede como Espirito dum povo: é um Espirito de caracteristicas tigorosamente definidas que se ergue num mundo objectivo, que existe € persiste numa forma religiosa especial de adoragio, costumes, consti- tuigio e leis politicas — no complexo integral das suas instituigoes — através dos sucessos € negociagdes que compdem a sua histéria. Esse € 0 seu trabalho — isso é o que esta Nagao é. As Nagdes sio 0 que sto os seus actos. Todo o inglés dir: «Somos os homens que navegam © oceano, detém o comércio do mundo, e a quem pertencem as Indias Orientais e as respectivas riquezas; os homens que tém parlamento, juris, etc». A relagio entre o individuo ¢ esse Espirito é que ele se apropria desta existéncia substancial e se torna © sew caracter € capa- cidade, permitindo-Ihe assim ter um lugar definido no mundo — ser aleuma coisa. Porque ele ji encontra o ser do povo a que pertence um mundo estabelecido ¢ firme —que lhe & objectivamente presente — no qual tem de se integrar. Neste seu trabalho, portanto—o seu mundo —, o Espirito do povo goza a sua existéncia e encontra a sua satisfagao. Uma Nagao é moral, virtuosa, vigorosa, enquanto est4 empe- nhada na efectivagao dos seus grandes objectivos ¢ defende o seu tra- balho contra a violéncia externa enquanto durar o processo de dar aos SI a ld oe asta Nai s Hern | Mistéria Filoséfice 87 secas—e 0 seu Servea/. Atingiu realidade plena, colocou-se perante cla objectivamente. Mas uma vez isto atingido, a actividade exibida pelo Espirito do povo em causa ja nao € precisa. Obteve o seu desejo. A Nagio pode ainda realizar muito na guerra ¢ na paz, aquém € além fronteiras. Mas a alma viva e substancial, essa pode-se dizer que ces- sou a sua actividade. O interesse essencial e supremo desapareceu consequentemente da sua vida, pois 0 interesse s6 esta presente onde ha oposigao... Ja discutimos © objectivo final desta progressio. Os prineipios das fases sucessivas do Espirito que anima as Nagdes numa graduagio obrigatéria sio, eles mesmos, simples passos no desenvolvimento de um espirito universal que através deles se eleva e completa numa /ofa- lidade que a si mesma se abrange. Enquanto estamos assim exclusivamente interessados na Ideia de Espirito, e na Histétia do Mundo consideramos tudo apenas como manifestagao dele, sé temos que ver, ao percorrer o passado — por extensos que sejam os seus periodos —, com o que é presente. Pois a filosofia, na medida em que se ocupa do verdadeito, tem que ver com © eternamente presente. Nada no passado se acha perdido para ela, pois a ideia é omnipresente. O Espirito é imortal; para ele nao ha passado nem futuro, mas um agora essencial. Isto implica necessitiamente que a forma presente do Espirito compreende dentro dela todas as fases anteriores. Na verdade estas desenrolaram-se em sucessio indepen- dentemente. Mas 0 que o Espirito é, foi-o sempre essencialmente. As distingoes sio apenas o desenvolvimento desta natureza essencial, A vida do Espirito omnipresente ¢ um circulo de corpotizagoes pro- gressivas que, olhadas de um Angulo, existem junto umas das outras, ¢ 86 quando consideradas sob outro ponto de vista surgem como pas- sado. Os niveis que o Espirito parece ter deixado para tris, ainda os contém nas profundezas' do seu presente. [Nestes extractos torna-se clara a imagem hegeliana do desenvol- vimento histérico, As nagdes crescem ¢ morrem, mas morrendo pro- movem ao mesmo tempo o nascimento de algo novo. A tealizagio do principio ou destino particular de uma nagio & também (Hegel sugere-o num passo assis macabro) 0 fruto que por fim a envenena. ‘Mas ao aniquilar-se a si mesma a nagio dé vida a um novo principio que se manifesta na vida de um novo povo. Por meio deste movimento «dialéctico» a natureza humana revela-se em formas de vida e experiéncia em permanente mutagio. O reconhecimento da variedade essencial tel ee ee ere See cee 88 A Interpretagdo do Processo Histérico modelo que Ihe subjaz.\ A insisténcia de Hegel neste poato pode-se contrastar com a crenga num cardeter humano imutavel, com capaci- dades e necessidades fixas, que estava implicito em grande parte do pensamento antropolégico dos séculos 17 € 18].

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