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aareies) A ESPACIALIDADE PLASTIC, PERCEPCAO E EXPERIENCIA ESTETICA — UMA TRAJETORIA DE PESQUISA VERA M. PALLAMIN* Resumo Critica de uma abordagem experimental sobre a ques- to da espacialidade plastica, realizada.a partir do ponto de vista fenomenolégico. Abstract ‘This paper presents a criticism on an experimental method to treat the spatial plasticity, from a phenom- enological point of view. ‘Sinopsos S30 Paulo n. 20 p. 5 - 12 dez. 1993 © tema da espacialidade plistica tem sido determi- ante em nossa pesquisa, desde 0 mestrado, o qual se delineou segundo uma abordagem experimental Questées relativas & percepgio da forma e suas impli cagées estéticas, tratadas nos contextos da Psicologia, Arte, Estética Experimental e Arquitetura, subsidia- vam, entéo, a possibilidade de uma averiguagao ob- jetiva e metédica, cuja prépria sistematizagéo, em tilti- ma anilise, pretendia converter-se num desejado apoio didético, de modo pratico e efetivo. Em sfntese, a estrutura daquele trabalho fundamen- tou-se nas seguintes caracteristicas (Pallamin, 1985): na consideragao da percepgdo a partir de bases psi- cofisiolégicas, expressa por fatores esponténeos de es- truturagao visual, na qual os estimulos si organiza- os sempre do modo mais simples e claro possivel; — na consideragio das implieagées destes prineipios sobre a percepgao plistica da forma, efetivando-se a possibilidade de empregé-los como subsidio A sua ava- liagaos na intengio de se trabalhar num campo de univer- sais em relagio a0 humano, a fim de embasar e legit mar 0 enfoque didatico pretendi —na crenga da influéncia de condicionamentos # des- viarem o comportamento espontdneo na apreensio plas tica da ‘boa forma’, e na possibilidade de recuperé-la, por meio de um trabalho didético. Dentro deste contexto, foi elaborada uma série de ox- perimentos, de cunho didético, os quais, em termos gerais, orientavam-se de acordo com as seguintes condi- goes: a. criag&o, pelo aluno, de uma organizacio formal- espacial, a partir de elementos dados (variéveis para, cada experimento): b. reuniio do conjunto das obras produzidas, em cada caso, para uma selegio preferencial, realizada por com- paragio e exclusivamente pelos autores dos trabalhos, visando-se destacar as melhores solugses (Fig. 1). A partir desta situagdo buscava-se verificar a hipdtese de que os trabalhos, selecionados pela maioria dos alunos, como sendo os melhores, seriam, comparati- vamente,as estruturagSesde maior pregndncia’ plastica. Econsiderava-se, ainda, a possibilidade de que taissolu- g6es, assim como a prépria diferenciacio preferencial entre os demais trabalhos do conjunto € a anélise critica Gai decorrente, poderiam ser explicados, justifieados fundamentados pelos prineipios da Psicologia da Forma, pelos quais se poderia elucidar o modo de organizagio, formal-espacial das resultantes comparadas, A confirmagio desta hipstese ocorreu em todos os, experimentos feitos, incluindo-se aqueles onde as es- truturagées foram alteradas propositalmente pelo pes- PRIMEIROJULGAMENTO =n? de alunos participantes: 11 =n de alunos que nao escolheram o préprio trabalho: 6 1 de pontos de cada trabalho: nel 0 nes; 2 22: 3 n° 6; 10 3: 4 ne7; 1 nod: 4 ne8: 1 SEGUNDO JULGAMENTO =n® dos trabalhos reestudados: 3 ¢ 6 nde alunos participantes: 23 —n® de pontos de cada trabalho: 23 uma opcdo 226: trés opgdes 83:10 m6: 8 83.1: 13 n°6.1: 10 commen Pre : Se . gum at a WH ty eB Fy OW Ya a th OR be vavavavay fT “A aka Ba / MOU OE 4o T akegead ae = wwe OBE cee : WA eae See = = Bh Dyer Sine oe ANA aden a? 9: 1 ne 13; 1 210: 0 ned: 1 nl: 0 ne 15: 2 ne 12: 1 n? 16: 0 2262: 9 n26.3:12 096.415 ‘Abordagem experimental quisador, visando-se minimizar sua plasticidade, a fim de se verificar se tal desqualificacéo seria apontada nos julgamentos preferenciais. ‘Na anélise geral dos resultados observou-se que 50% os sujeitos, em todas as situagdes, desaprovaram seus préprios trabalhos, excluindo-os de suas selecées. E, considerando-se 0 desempenho do grupo como um todo, houve alteracdes bruseas na qualidade de certas organizagées plasticas, mesmo aquelas realizadas pelos alunos aparentemente mais talentosos. Esses fatos foram interpretados & luz dos paradigmas iniciais, como sendo decorrentes da intensa carga de condicionamento visual e da auséncia de uma edu- cago especifica na Grea, a qual os experimentos de- munciavam e, ao mesmo tempo, apresentavam-se como sendo um recurso para sua superacio, isto é, uma con- tribuigdo para sua abordagem, na esfera didética. As confirmagées obtidas ¢ as conclusdes derivadas, no entanto, embora coerentes no ambito restrito das con- digGes dos experimentos, caracterizavam-se por sua fragi- Tidade conceitual ante a percepedo ¢ a experi ticas af presentes. As generalizagoes inviabilizavam ‘uma reflexio mais préxima da sensibilidade dos sujeitos cem pesquisa, afetando a abrangéncia ¢ o entendimento ‘Stnopses S80 Paulo n. 20 p. 8-12 der. 1993 da propria plasticidade por eles produzida, visto que esta se fundamenta numa subjetividade a qual nio se teve acesso por essa via metodol6gica, Nesta visio objetivista, tanto da plastica quanto da percepgio, a investigagdo foi identificada com uma anélise isolada da questio de sua génese e de suas rela- ges com sou criador. As obras foram vistas como uma realidade estitica, impetrando-se-lhes uma eesura formalcontetdo, perdendo-se, com isso, seu ‘sentido. Foi assumida ums atitude ‘explicativa’ no confronto dos trabalhos, balizando-se todas as organizagoes veri- fieadas pela aplicagao de principios ‘gestélticos’, ‘num estruturalismo a insistir em certas ‘coincidéncias’ & a desdenhar divergéncias e contrastes. Assim, embora aparentemente calcado em conceito de totalidade, este compromisso com a busea de um rigor que fosse ‘objeti vamente verificdve’ assentado sobre relagdes de causa- lidade, desearacterizou aquela andlise pretensamente estrutural, pois a "afirmagao de que 0 todo nao é a sint- ples soma das partes, ou de que a formaé anterior a seus, elementos, nada nos diz ainda quanto a estruturainterna desta forma ¢, sobretudo, quanto as modalidades pre~ cisamente sob as quais ela pode aplicar-se a estes cle- mentos. Deste modo, a forma aeaba por caracterizar-se por principios reguladores puramente ‘externos’. Segue se daf o fato de, justamente na medida em que é pressu- posto, mas nao explicado, isto é, no analisado em seus ‘nexos constitutivos, o conceito de forma (oudeestrutura) se prestar a qualquer extrapolagao" (Bonomi, p. 98), podendo ser concebido tanto em termos de uma causalidade restrita ou de uma interdependéncia dialética, além de deixar em aberto a questio sobre a relagio com a experiéncia concreta (Bonomi, p. 122). Este distanciamento foi acompanhado por uma descon- sideragio da temporalidade das obras, tomando-se-as como articulagées congeladas, nas quais se buscou tra- balhar, tanto quanto possivel nas condigSes experi mentais, no Ambito das generalizagées, evitando-se 0 contato com os seres que elas promoviam, o que signi- ficou, em outros termes, ndo ver nas obras as inseri- ges dos seus sujeitos criadores, mas sim a preseatifi- cago de uma hipétese te6riea, © reducionismo a que foi sujeita a percepgio, nesta abordagem, decorreu de seu comprometimento teérico emetodolégico com o objetivismo cientifico, 0 qual pro- duz.um distanciamento do fendmenoem pesquisa, de sua dimensao real, reduzindo-o ao fatual, ao mensurivel. Suas raizes estio no modo de conhecimento inaugurado pelo racionalismo cartesiano, que se caracteriza pela exterioridade entre sujeito e objeto, tomando-se-08 como entidades cle naturezas separadas € diferentes. AS relagdes entre ambos sio determinadas pelo sujeito do conhecimento, 0 qual toma.a ‘coisa’ externa como inerte a transforma numa ‘idéia’, num objeto de conheci- mento, de modo que este substitua aquela satisfatoria- mente. Neste proceso de conhecimento, a garantia de ‘Sinopses Sio Paulo n. 20 p. 5-12 dez. 1993 que se dispde para que as operagées deste sujeito se- jam consideradas verdadeiras, € dada pela sua obe- digncia a um método, estabelecido previamente a0 ato deste conhecimento, sendo que o "bom método é aquele que permite conhecer verdadeiramente o maior niimero de coisas com o menor nimero de regras. Quanto maiores a generalidade e a simplicidade do mé- todo, quanto mais puder ser aplicado aos mais diferen- tes setores do conhecimento, melhor seré ele" (Chat Filosofia modema, p. 77). Este conhecimento, eontudo, 36 pode aspirar a verdade, se for 0 conhecimento das eausas, as quais possuem trés sentidos concomitantes: ‘algo real’ que produz um ‘efeito real’ (causa. efeito sio, enntes, seres, coisas); b) a causa € a ‘razio’ que explica a cesséncia ea existéncia de algumacoisa, desua.explicagio verdadeira ¢ de sua inteligibilidade: a causa é 0 ‘nexo I6gico’ que articula necessariamente uma realidade a uma outra, tornando possivel nfo s6 sua existéneia mas também seu conhecimento. Conhecer pela causa é, pois, conhecer entes, seres ¢ vinculos necessérios” (Chaut, Filosofia moderna, p. 75). A verdade torna-se dependente da explicacao causal, sendo entendida como a ‘adequacio’ da representacéo produzida pelo sujeito a coisa representada, Nesses termos, o método & ‘um instrumento para certificartal adequagio, envolvendo. © controle passo a passo das operacées intelectuais tra- balhadas neste proceso, permitindo "que se possa de- duzir ou inferir de algo jé conhecido com certeza 0 conhecimento de algo ainda desconhecido" (Chaut, Filosofia modema, p.76). Ordem e medida sio elemen- tos fundamentais neste estabelecimento metédico das causas entre os seres, fornecendo a geandeza ¢ a seriagdo dos termas nas relagSes consideradas. A estas separagdes entre sujeito ¢ método, verdade e conheci- mento, associa-se uma dicotomia relativa ao real, o qual € entendido em termas opostos, tais como idéia-fato, ‘mundo-consciéncia. A percepgio af 6 tida como frdgil, nao confidvel, campo do erro, porque se refere a quali- dades sensoriais varidveis sentidas diferentemente, de individuo para individuo. Esta fragilidade permeia a divisio do real em duas grandes regides: uma ci tifica, cujo conhecimento é caracterizado pela objet vidade, positividade e universalidade, ¢ outra ‘acien- \ifiea’. Na cientifiea, os daclos so ‘Tatas’ observiveis dentro de um quadro minimo preestabelecido e sio submetidos ao critério experimental da verdade, no qual se busca « ‘pureza’ do conhecimento, entendida como a nfo interferéneia do sujeito no funcionamento do objeto em questo, Derivando desta tradigdo racionalista, do métado ex- perimental do sée. XVIT, do empirismo inglés, do posi- tivismo dos sées. XIX e XX, 0 método empregado na referida etapa de pesquisa delineou-se segundo um projeto estabelecido a priori, baseado em proble- ‘na /hipétese fexperimentacio /quantificagao /aceitagio ou rejeigdo da hipstese formulada, Mediante leis tesri cas, controle experimental das relagées e generaliza- ges, pretendeu-se verificar as explicagées causais do ‘fato’ entdo em pesquisa. "O pésitivismo entende “fato' comosendo tudo aquilo que pode se tornar objetivo « rigorosamente estudado, enquanto objeto da ciéncia” (Martins, 1989, p.21), submetendo-0 a0 principio bisico, dos empiristas, pelo qual 0 conhecimento deve ser provado pela observacao sistemética que garanta a objetividade. Considera-se-o como um acontecimento repetitivo, que pode ser segmentado ¢ trabalhado em laboratério, envolve relagéo de causa ¢ efeito, tipo y = (8), cujos resultados podem ser configurados em eixos cartesianos. A repetitividade permite exercer 0 controle sobre o ‘fato’, buscando-se eliminar todas as variaveis aleatérias que possam nele interferir. E este controle exigido é externo, em geral dado pelo de- lineamento estatistico. O verdadeiro, ai, "6 0 ‘objetivo’ fo que logrei determinar pela medida, ou mais geral- mente, pelas ‘operagdes’ autorizadas pelas varidveis, ou entidades por mim definidas a propésito de uma cordem de fatos” (Merleau-Ponty, O Visivel ¢ o Invisivel, 1-25). ‘fato’, nesses termos, é um recorte da realidade tratf-1o como sendo a propria realidade, isto é, tomar- se esta construgao ideal do mundo pelo mundo mesmo, refere-se a uma das questées centrais para a Fenome- nologia. Nos primérdios desta, conforme apontado por Merleau-Ponty em Ciéncia do Homem e Fenome- nologia, ressaltava-se que um dos elementos respon- siveis pela ‘crise’ das ciéncias humanas, na virada do século, referia-se prejudicial defasagem que esta nocio de ‘objetivo’ acarretava em relagéo & pesquisa do ‘hu- ‘mano’ propriamente dito, néo quantificdvel por excelén- ia, implicando em reducionismos existentes em varios ‘campos do conhecimento, nos quais se descnvolvia tal abordagem cientifica. E, situando a propria Fenome- nologia enquanto corrente filos6fica neste contexto, Merleau-Ponty apontava que esta "nfo poderia se constituir antes de todos os outros esforcos filos6ficos, que a tradigéo racionalista representa, nem antes da constituigao da ciéncia", pois "ela mede o afastamento entre nossa experiéneia e essa ciéncia” (Merleau- Ponty, 1990, p. 70). Criticando esta nocao cientifica, a0 iniciar O Olho ¢ o Espirito, um de seus textos nos ‘quais aborda questées pertinentes aarte e A estética, Merleau-Ponty afirma: "A ciéncia manipula as coisas © renuncia habité-las. Fabrica para si modelos internos delas e, operando sobre esses indices ou varidveis as transformagées permitidas por sua definigao, 56 de Jonge em longe se defronta com o mundo atual. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, ‘engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como ‘objeto em geral’ isto é, a um tempo como se ele nada fosse para nés e, no entanto, se achasse predest nado aos nossos artificios” (Merleau-Ponty, Os Pensa- dores, p. 85). Este ‘objeto em geral’ da ciéncia é de- terminado ‘em si”, em suas propriedades intrinsecas, pretensamente conhecidas por um espectador abso- Tuto que ‘sobrevoa’ a realidade, numa visio que néo exprime um ponto de vista, mas sim a unidade de todos os pontos de vista. Nela, hé a abstragio da particular dade, ou, em outros termos, hi a abstracéo da in- sergio do sujeito no real. Esta expressio ‘pensamento de sobrevéo" foi cunhada por Merleau-Ponty em sua critica radical a0 objetivismo cientifico ¢ ao subjeti- vvismo filosofico, enganos complementares do que ele denomina como humanismo: "a filosofia outorga a0 su- jeito cognoscente 0 poder de se apropriar da realidade exterior e heterogénea a ele. As coisas se convertem em ropresentagoes constitufdas pelo sujeito. O pen- samento sobrevoa 0 mundo, transformando-o em i ou conceito do mundo. No pélo oposto, aciéncia outorga, a0 objeto o poder de recriar a relacéo com o sujeito, exercendo sobre este iiltimo uma influéncia do tipo causal, cujo resultado é a presenca do exterior na cons- ciéncia por meio de sensagdes. O subjetivismo en- ‘caminhe a filosofia para o idealismo: pouco @ pouco as coisas exteriores vao se convertendo em realidades cada ‘vez menos reais, vio se tornando sombras da verdadeira realidade, e esta se reduz, finalmente, a realidade do sujeito cognoscente ¢ de suas operagées. O objetivismo cientifico, por sua vez, segundo eaminho inverso, v duzindo a consciéneia a uma realidade cada ver mais fugaz, até que se converta num mero epifendmeno de acontecimentos fisico-fisiolégicos observéveis e objeti- vos" (Merleau-Ponty, Os Pensadores, p. 10). Esta dicotomia entre sujeito e objeto pela qual a cién- cia, a Psicologia e, nela, a Psicologia da Forma, estabe- leceram seus Lerritérios, foi posta em questo pelo seu proprio desenvolvimento: "essa ¢ a histéria da Psicologia, deh 50 anose, em especial da Psicologiada Forma. Quis ela constituir seu dominio de objetividade e acreditou descobri-lo nas formas de comportamento" (Merleau- Ponty, O Visivel e 0 Invisivel, p. 30). Tratou-0 com os mesmos métodos da Fisica, definindo-o funcional- mente, ‘de fato’, precisando em laboratério as condi- gSes de que depende. "Hoje, porém, 40 anos apés 0 inicio da ‘Gestaltpsychologie’ temos de novo o senti- ‘mento de estarmos no ponto morto" (Merleau-Ponty, O Visivel e 0 Invisivel, p. 31). Seus trabalhos sio eficazes nas condigdes de laboratério, casos privilegiados, ‘cuja vigncia nao suporta extrapolacao para niveis supe- Fiores onde "cada vez menos as condigées dio conta do condicionado" (Merleau-Ponty, O Visivel ¢ o In- vistvel, p. 31). Nao se pode ‘explicar’, por exemplo, 0 campo visual, pois sua ordem nao permite estabelecer condigSes separadas. Umarelacio de ‘largura aparente’ que se possa estabelecer ao se olhar uma estrada que se distancia na paisagem, s66 possivel num processo ‘mon- tado’ de ‘medidas’, dependentede variveis funcionais. Quando olhames livremente a paisagem, esta estrada possui sempre a ‘mesma’ largura, porque € a ‘mesma’ estrada, sem se negar, contudo, que haja um enco- Sinopses So Paulo n. 20 p. 8-12 dez. 1993 Ihimento perceptivo. Esta, entretanto, no é uma de- formacio, pois, "a estrada proxima nao é ‘mais verda- deira’s © préximo, 0 longinquo, o horizonte em seus indescritiveis contrastes formam um sistema, ¢ suas rela~ ‘ges no campo total € que constituem a verdade percep- tiva" (Merleau-Ponly, O Visivel e o Invisivel, p. 32). Na perspectiva objetivista a percepeio & explicada em funedo de varidveis exteriores, como a relagio de algo fisico a agir num corpo que tem como resultado ‘interno! © percebido, passfvel de decomposi provessos objetivas. Porém, embora 0 mundo pereebido nos aparega devido as condigées do niosso corpo, nao sfio estas, por outro lado, que o ‘explicam’. Isto no equivale a afirmar que a realidade deste mundo percebido eseapa & determinagio cientifiea, mas sim que 0 "fracasso da psicologia ‘objetiva’ deve ser um apelo a revisio de nossa ontologia, ao reexame das nogies de sujeito © objeto" (Mericau-Ponty, O Visivel e o Invistvel, p. 33). Nesta revisio, Merleau-Ponty empregou a nogio de ‘Gestalt’, porém, sem ter se influenciado pelo realismo “gestaltista’, utilizando-a, inicialmente, no sentido de es- tabelecer uma nova compreensio das relagées entre natureza ¢ consciéneia; "o que hé de mais profundo na ‘Gestalt’ de onde partimos, nao € a idéia de significagio, mas aidéia de estrutura’,ajungio de umaidéiaede uma cexisténcia indiscerniveis,o arranjocontingente pelo qual, 08 materiais se "poem diante de nés a ter um sentido, a inteligibilidade em estado nascente” (Merleau-Ponty, A Estrutura do Comportamento, p. 239). A estratura no esté ‘no’ pensamento, nao é nem coisa, nem idé tas reuniao de ambos: & qualidade, quantidade e ficagao. Tal unidade inaugura um novo modade ver aser € as relagées entre objetivo e subjetivo. A estrutura é unidade e devir de uma forma e de uma significacio como indeterminagao ¢ determinagao simultaneas, isto 6, como temporalidade” (Chaul, 1974, p. 31). A Forma nio existe ‘na’ natureza, 0 que equivaleria & coisificé-la, Ela € um objeto de percepcio, isto , existe nna natureza que se nos apresenta,¢ nao comoinfra-estru- tura do mundo. Como objeto percebido ela é uma signi- ficagdo estruturada entre 0 corpo reflexionante ¢ 0 mundo. Na estruturagio destas relagSes Merleau-Ponty consiclera trés ordens distintas, vinevladas entre si e di- ferenciadas segundo seus modos de equilfbrio: a ordem fisica, a vitel e « humana, Na primeira, o equilfbrio estrutural & definido por sua trajetéria em diregio ao repouso e, quando pertur- bado, na transformagio de suas relagdes no sentido de restabelecé-lo. "A estrutura fisica se define, portanto, como conservacéo de uma ordem dada” (Chaui, 1974, p. 40). A ordem vital caracteriza-se pela reagio do orga- smo as condigdes do ambiente, gerando-se um equilt jo que se expressa, nio através de leis, como o fazem as estruturagées fisicas, mas sim através de normas de comportamento, referentes & efetivagéo do poder ‘Sinopses S80 Paulo n. 20 p, 6 - 12 dez, 1999 adaptativo deste organismo ao meio. Esta conduta & diferenciada por Merleau-Ponty em duasvertentes: uma, centralizeda nas agdes instintivas do organismor outra, denominada conduta-de-sinal, na qual é capaz de dotar certos objetos de valor-de-uso, reorganizando "a totali- dade das relagées adaptativas, transformadas em rela ges de apropriagio” (Chaui, 1974, p. 43). A ordem humana inaugura a esteuturagio simbélica, na qual 0 equilibrio € obtido na criagio de uma situagio nova, percebida como possivél, a partir da situagéo dada: a agio visa o ausente. Ha uma ‘negegio’ do imediato em diregéo ao possivel, dada a variagdo de perspectivas ede pontos de vista de que se faz a percepgio. Nesta ordem a relagéo entre meios e fins nao é fixa, como ocorre na, ‘conduta-de-sinal’, mas sim mével, tornando possivel, apenas nesta dimensio, falar-se em trabalho, em histé- ria, "A estrutura simbélica esté polarizada pelo corpo, enquanto unidade de condutas e nticleo de significa- Ges, e pelas coisas, enquanto qualidades expressivas, isto é, dotadas de sentido. A presenca da significagéo, nos dois pélos da estrutura permitiré compreender que na ordem humana o comportamento néo ‘tem’ significacao, mas‘ significagio. Por outro lado, como as significacSes esto postas no nivel perceptivo, a estrutura é estrutura da percepcio” (Chaui, 1974, p. 46). Esta percepedo revela um mundo de coisas opaeas, espessas, para um olhar cuja visada sempre & parcial, contrapondo-se, portanto, ao espectador “puro” que eré ver o mundo em transparéncia. Este corpo que percebe est preso no tecido do mundo, vendo e podendo ser visto, ouvindo e ser ouvido, tocando e ser tocado, Esta sua caracteristica reflexionante destréi aquela dicotomia entre sujeito e objeto, visto ser, ele mesmo, ambos. "A propagacio da reflexio corporal nas coisas desdobra a interioridade que o sentido presenta nelas como nele* (Chauf, 1974, p. 47). O sujeito per- cipiente est investido, cravado no mundo, no 0 so- levees; Beate eujeitn; que: nmaisbrarda.catyrena, que € interrogado por Merleau-Ponty em sua obra Fenomenologia da Percepedo, onde ele examina a estruturacéo da experiéncia vivida a partir da cons- cigncia perceptiva, fundante na relagao de ser-a0- mundo. Segundo Merleau-Ponty o percebido é pluridi- mensional, policromético e poliforme. Ter perfis e ser pereebido sao sinénimos, pois a coisa sensivel & opaca, isto €, revela-se pouco pouco, sendo passivel de ser visada por infinitas perspectivas sem que nenhuma a esgote. Esta questio da identidade na multiplicidade, ou da unidade na diversidade, constitui o cere da problemética da percepedo. O que faz com que eu per- ceba algo na sua identidade, apesar das eventuais mudangas a que esto sujeitas suas propriedades? Organizagio interna, ‘pregnancia’ so evocadas por Merleau-Ponty nesta compreensao, entendendo esta ditima como um sistema de equivaléncias pelo qual a parte transgride as suas fronteiras em diregdo 90 todo. A ‘Gestalt’ que se di na percepedo, a transcen- déncia da totalidade em relagio as suas partes, encerrando uma signifieacio, 6 génese permanente da sentido da coisa percebida, sentido este que é temporal- mente constituido na relagéo da coisa com 0 olhar ‘que a visa, Através de parcialidade percebemos ‘to- dos quese estruturam de umadimensiovisivel ede uma invisivel. O sensivel no se limita ao que aparece na superficie. Assenta-se numa armadura invisivel, como uma presenca latente ou uma auséncia que estd no modo mesmo de sua presenga. A sintese de uma coisa perce- bida ndo é uma unidade conceitual, mas est ligada a sua propria presenca. O campo da visio se dé ‘entre’ aquele que vé ¢ aquilo, ou aquele, que é visto, no pertencendo, exclusivamente, nem a um nem a0 outro: exterior e interior so, nesta estruturacio, inseparé- veis. Sendo o corpo um sujeitosituado—o que implica em considerar na nogio de ponto de vista ou de pers- pectiva, todo 0 contexto individual, edueacional, so- cial € bistériea de quem percebe — este no pode, pois, sobrevoar o mundo, Eleo penetra com seu corpo, que Ihe é a possibilidade de todas as situagdes. Neste mundo vivido hé prolongamento entre o corpo e os objetos, entre 0 corpo ¢ outros corpos, e nestes, uma existéncia que habita ambos. A corporeidade & qual Merleau-Ponty se refere é, no fundo, intercorporeidade. 0 corpo reflexionante é um corpo jé constituido pela intersubjetividade, sendo estaintegrante da estrutura do seu ser. O espago que © corpo ocupa é muito maior que. aquele ‘individual’. E alargado por sua intencionalidade, sua criacio, sua presa no mundo. Merleau-Ponty recusa a espacialidade ¢ a temporalidade como externas a0 sujeito © a0 objeto. Estes nio estio ‘no espago ¢ ‘no! tempo — reduzidos as suas dimensées geométrica e cronolégica, respectivamente — mas sio ‘do’ espago, € ‘do’ tempo. Entre corpo © mundo ha invasio reci- proca e a espacialidade faz-se desta constituigao cor- p6tea das coisas, sendo comprometida pela tempora- lidade. Estas nogées fundamentam a questo da construgio da espacialidade plastica, a qual deixa de ser traba- Ihada, em pesquisa, como um ‘fato’ segundo acepgio, anteriormente mencionada, passando a ser eonsiderada como win “fendmeno’. "0 significado de ‘fendmeno’ vem daexpressio grega fainomenon e deriva-se do verbo fainestai que quer dizer mostrar-se a si mesmo. Assim, {fainomenon significa aquilo que se mostra, que se mani- festa. Fainestai € uma forma reduzida aue provém do faino, que significa trazer & luz do dia. Faino provém da raiz Fa, entendida como fos, que quer dizer luz, aquiloqueé brilhante. Em outrostermos, significa aquilo onde algo pode tornar-se manifesto, visivel a si mesmo. 10 A expressio fendmeno tem o significado de aquilo que se mostra a si mesmo, o manifesto. Fainomena ou feno- ‘mena € 0 que se situa & luz do dia ou que pode ser trazido a luz. Os gregos identificavam os fainomena simplesmente como ta onta que quer dizer entidades. ‘Uma entidade, porém, pode mostrar-se a si mesma de virias formas, dependendo, em cada caso, do acesso que se tem a ela" (Martins, 1989, p. 21). A relacdo Fatual, que é uma segmentacio do acontecimento, fecha-se, conclui-se na causalidade. O fenémeno, por outro lado, é inesgotavel, ‘perspectival’, é a totalidade do acontecimento tal comose mostra, Este apresenta-se numa infinidade de visuais cuja compreensio nio se re- uz a relagdes de causa ¢ efeito. Esta compreensio “diz respeito a uma forma de cognigio que diverge da expli- cacéo, compreender diverge, ainda, da intelecgéo, pois esta se restringe & natureza verdadeira e imutavel das, coisas. Compreender é tomar o objeto a ser compre endido na sua intengao total, no apenas naquilo que as, cosas sio na sua representacio (..) eompreender é ver ‘© modo peculiar, especifico, tinieo do objeto existir” (Martins, 1989, p. 76). Compreender, segundo Mer- leau-Ponty, é "traduzir em significagdes dispont- veis um sentido inicialmente cativo na coisa e 0 mundo" (Merleau-Ponty, O Visivel eo Invisivel, p.44).. Assim sendo, na compreensio do fendmeno busca-se sua qiiididade, sua natureza propria, sua existéncia real e ontol6gica, isto é, seu ser proprio, aquilo que dé ao fendmeno a possibilidade de sé-lo. E para atingi-lo néo basta observé-lo. B preciso interrogé-lo, ouvir 0 discurso das pessoas que o vivenciam, ir de en- contro ao que acontece com ossujeitos ao experiencis-lo, € no restringi-lo a0 que uma teoria prevé ou afirma acontecer a seu respeito. Por esta interrogagio busca- se ir A coisa mesma, atingir a compreensio desta cexperiéncia vivida pelo sujeito, seus atributos, suas, qualidades. Esta vivéncia torna-se a matéria-primadeuma pesquisa, quando trabalhada sob a perspectiva metodolégica, qualitativa. O objetivo desta no é a busea de uma resposta para os fatos, envolvendo correlacées quanti- ficdveis e generalizagées, mas dirige-se & compreensio, do fenémeno, a qual sempre envolve uma interpretacéo dos dados em pesquisa, voltada para a direcionalidade, do sujeito em relagdo aquilo que ele faz. Na abordagem qualitativa quer-se ir além do horizonte imediato. de ‘modo a atingir aintencionalidade da pessoa frente aquilo que ela executa, realiza ou produz. Em sua trajetéria, lida-se, fundamentalmente, com a intersubjetividade, Seu objeto de investigacéo "nao € 0 acontecimento em si, ‘mas a natureza subordinada & maneira humana de pér o problema” (Martins, 1989, p. 75). Os fendmenos sao, abordadosem suas dimensdes pessonis, ¢ a comunicagio entre os sujeitos ¢ o pesquisador, fundamenta todo seu desenvolvimento. Sinopses S80 Paulo n. 20 p. 5- 12 dez, 1993 Neste sentido, a continuidade da investigagio citada significa, pois, uma profunda alteracio em sua abor- dagem com relagéo aquela inicial (Fig. 2). Sua questo Fig? ‘Abordagem fenomenolégiea central referente & construcio da espacialidade plés- tica, deixa de ser tratada ‘fatualmente’, sendo expl cada por leis da pereepedo visual, para ser enfocada Deserigdo n° f: No primeiro instante pensava em wma escultura horizontal, pordin achei que as hastes apoiadas wna na outra se susten- tavam verticalmente fonmando uma estrutura estivel, 0 iin sulo.A partir dat eu “levantei’ a fomna deitada, Repeti afomea 2a intengao de criar un espaco, nao um pértico como ficara se 56 tivesse um. Neste primeiro trabalho as formas nto aravam em pé e foi necessério as hastes de apoio que tentei integrar no conjunto, ligando uma forma com a outra. Porém no resultado final ahaste de apoio €fraca em comparagiiocom resto do conjunto. A escala humana foi deteminada para que o visitante pudesse atravessar 0 conjunto-e sentir 0: varios elementos. Na execucto o resultado fot um pouco diferente do plangjado, Todas as hastes deveriam chegar ao chao, garan- indo assim a esiratura, Descrigiéo n® 2: A partir do primeiro procurei resolver basicamente irs coisas: ‘@ encontro entre 0 grupo das duas hastes que compoan cada portico, afastando da extremidade e resolvendo melhor a Jungiio. Depois a estrutura do elanento em si para que pudesse ‘ficar em pé sem a necessidade da haste do primeiro, com isso ‘afastei 08 grupos de dois um do outro para que no conjunto indo fieasse tio pesada a parte superior (como acontece no ‘Sinopses Sho Paulo n. 20 p. 5 - 12 dex. 1993 u primeiro) ¢ wabalhei as hastes de diferentes tamanhos (apesar de exvar um pouco devido a algumas ndo chegarem ao chao como era a intengao). A terceira coisa que procurei resolver Soi uma "saturagio” demadeira que acontece no primeiro pelo crizamento, No segundo evitei 0 cruzamento dos elementos, san deivar a preocupagio de criar um espaco. como um fendmeno, a ser desvelado, Quer-se af tentar ‘uma fenomenologia concreta e compreensiva de sua di- mensio enquanto experiéncia estética, feita de atitudes pessoais, contingéncias do gosto dos sujeitos envolvidos ¢ critérios formativos, experiéncia esta que no pode ser definida normativamente. Abordagem fenomenolégica — Exemplo de trabalhos realizados e de suas respec tivas descrigdes, feitos pelo aluno, seguidos da ‘com- preensio’ de seu processo, conforme realizado em pesquisa (Pallamin, 1992, p. 280). Compreensio: A construcio plastica da forma foi se dando pouco a pouco, pelas descobertas graduais das possibilidades de apoio e sustentacéo na organizagéo do material em tra- batho. Determinou-se uma relagio bésiea entre os elementos, repetindo-se-a com uma variacdo contfnua, estru- turando-se dois grupos, cuja espacializacao preten- deu evitar que fossem caracterizados como pérticos. Organizou-se uma estrutura aberta, a ser percebida internamente, intencionando-se propiciar, através dese caminhar, o desvelamento de suas diferencia ges. Seu sentido promoveu-se a partir desse olhar mu- tante, ao se permear a formae seu entorno. Na montagem dos elementos, no trabalho n® 1, gerou-se uma instabilidade no conjunto, atenuada por hastes de apoio, as quais foram criticadas, posteriormente, como poueo integradas ao todo. No segundo momento efetuou-se uma reconstrugéo plastica e estitiea a nfvel da articulacdo dos elementos entre si, dos grupos e do conjunto. Superou-se a insta- bilidade inicial, definindo-se umanovaimplantacio, de modo a tornar mais clara a leitura de cada grupo formal de suas interseegées visuais. Neste processo de trabatho revelow-se a busca de um entrosamento no considerar a forma, sua estabilidade 12 e escala de visualizagdo. Os compromissos de um foram verificados com relagao aos demsis, conju- gando-se-os em sua totalidade. Bibliografia BONOMI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. Trad. J.P. Monteiro; P.Piazzi; M. A. Alves. Séo Paulo: Perspectiva, 1974. CHAUL, marilena de Souza, Filosofia moderna In: Primera Filo- sofia. 8i0 Paulo: Brasiiense, 1987. ——.A nogio de estrutura em Merleau-Ponty: Esperanga ‘malograda? Sao Paulo: FECLH-USP, 1974 (Conferéncia mimeo.). MARTINS, Joel; BICUDO, Maria Aparecida. A pesquisa quali- lativa em psicologia — fundamentos e recursos bésicos. Sao Paulo: Moraes, EDUC, 1989. MERLEAU-PONTY, Maurice. O primado da percepeio ¢ suas conseqincias filosdficas. Trad. C. M. César. Campinas: Papirus, 1990. ——. A esinutura do comportamento, Trad.J. A. Corréa. Belo Horizonte: Interlivros, 1975. ——. 05 Pensadores — textos selecionados | Maurice Mer- Teau-Ponty; selecio de textos de M.S. Chau; tradugdes notas de M.S, Chau; N. A. Aguilar; P. S. Moraes. S4o Paulo: Abril Cultural, 1984 ——.0 vistvel e 0 invistvel. Trad. J. A. Gianottiy A. M. Oliveira. Sao Paulo: Perspectiva, 1984. PALLAMIN, Vera M. Principias da Gestalt na organizacizo da forma — Abordagem bidimansional. Si0 Paulo, 1985, Disser- {acio (Mestrado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Si0 Paulo. A construgio da espacialidade plastica — plano e volu- ‘minasidade s0b abordagem fenomenoldgica. Sé0 Paulo, 1992, ‘Tese (Doutorado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanis- smo, Universidade de Sio Paulo, (*) Proft. Dr*, do Departamento de Tecnologia da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. ‘Sinopses S30 Paulo n. 20 p. 5 - 12 doz. 1993

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