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PLURALISMO, DIREITO E JUSTICA DISTRIBUTIVA Elementos de Filosofia Constitucional Contemporanea PREFACIO De todos os ramos do diteito, talvez seja 0 constitucional 0 mais atingido pelas transformagdes econdmicas ¢ politicas destas trés iiltimas décadas. Fruto da engenharia politica liberal-burguesa do século XIX, que desenvolveu a ideia de constitui ‘centro emanador do io como) ordenamento juridico”, 0 diteito constitucional comegou o século XX encarado como sindnimo de seguranca € legitimidade, delimitando 0 exercicio dos mecanismos de violéacia monopolizados pelo Estado, institucionalizando seus procedimentos decis6rios, legislativos € adjudicatérios, estabelecendo as formas de participagio politica definindo 0 espaco soberano da palavra e da acio em contextos sociais marcados pelo relativismo ideolégico e em cujo fimbito o poder do Estado depende de critérios externos aos governantes para ser aceito como vilido. No limiar do século XI, contudo, a ideia de constituigao cada vez mais é apontada como entrave ao funcionamento do mercado, como freio da competitividade dos agentes econdmicos ¢ como obsticulo i expansio da economia. O que ocorren ao longo desse period? O que explica a metamorfose softida pclas constituigdes contemporineas, deixando de ser accitas como condigio de legitimidade da ordem juridico-politica para se converter em objeto de um amplo processo de reforma e enxugamento? © que levou a esse refluxo do constitucionalismo e do proprio direito puiblico © a retomada das pretensdes hegeménicas do direito privado, especialmente o civil? Ao final do século passado, os principios e mecanismos bisicos forjados pelo constitucionalismo, como as liberdades fundamentais, o equilibrio dos poderes e a seguranga do dircito, alimentavam um projeto juridico-politico considerado capaz de enfrentar a crescente complexidade sdcio-econdmica gerada pelo capitalismo mercantil. Hoje, com a globalizagio dos mercados ¢ a internacionalizagao do sistema financeiro, valores como ganhos incessantes de produtividade, acumulagao ilimitada ¢ livre circulagio de capitais converteram-se em imperativos categiricos, transcendendo os limites da economia e contaminando todas as demais esferas da vida social No campo politico, essa contaminaciio atinge a ordem juridica forjada pelos Fstados-nagio com base nos principios da soberania e da territorialidade, ambos vitais no contexto cultural e ideolégico da formagao e expansio do constitucionalismo. Com o desenvolvimento da informatica ¢ 0 advento de estruturas mais flexiveis de producio, as fronteiras econdmicas se dissolvem. A capacidade dos governos de gerir livremente seus instrumentos de politica monetiria, fiscal, trabalhista previdencidria € relativizada. Fo exercicio de suas fungdes alocativas, corretivas ¢ distributivas fica comprometido, minando assim a efetividade das “Constituigd = aquelas que, além de consistir num estatuto organizatério definidor de competéncias e regulador de processos, atuam também como uma espécie de estatuto politico, estabelecendo 0 gue, cono © quando os legisladores € governantes devem fazer para coneretivar as diretrizes programiticas e os principios constitucionais Se no plano politico esse encolhimento do Estado tem provocado uma diminuicio do tamanho c do aleance do dircito piiblico, no plano social o que se tem é a progressiva substituicio do trabalho humano_ pela microeletrOnica. Ao ampliar a qualidade, a rapidez e a preciso dos bens € servigos, a informatica potencializa as bases de expansaio da riqueza, mas também altera_radicalmente as _esiruturas ocupacionais € expulsa sucessivos contingentes de trabalhadores da economia formal. Quanto mais a economia produz excedentes, mais o desemprego se converte em problema estrutural, provocando © aumento da desigualdade social ¢ 0 surgimento de subculturas associadas a atividades informais ou mesmo ilegais. Com a busca incessante de novos ganhos de produtividade, os valores do individualismo se sobrepoem ao da solidariedade, desuma- nizando a sociedade, levando a redugio da responsabilidade coletiva e, por consequéncia, abrindo caminho para a destruigao das bases do contrato social. Isto porque, ao provocar uma ruptura nos padrdes da reciprocidade entre os diversos atores sociais, 2 exclusio econémica alimentada em progressiio geométrica pelo desemprego estrutural inviabiliza até mesmo a partilha de uma cultura comum, onde todos possam ver-se como iguais. Com a ampliacao da pobreza ¢ dos diferentes ¢ perversos dualismos, nem mesmo 0s valores como 0 do pluralismo ¢ principios como o do respeito a diferenca sio compartilhados, o que inviabiliza o reconhecimento do outro enquanto ser moral, protegido pelos mesmos direitos e pelas mesmas garantias que cada cidadao reconhece para si. Crescimento da produgio, pleno emprego e difusio de beneficios por meio do Estado, principios correntes entre o pds-guerra e os anos 70, acabam, como se vé, sendo postos em xeque nas décadas finais deste século. A ideia de justiga viabilizada por instrumentos fiscais, por exemplo, substituida pela condenacio sistemética dos tributos progressivos. Os gastos sociais, fundamentais para a correcio das desigualdades, sio atingidos mortalmente por discursos canonizadores da austeridade mo- netiria. Os mecanismos de protecio ao trabalho sto submetidos a um processo de flexibilizacio, deslegalizagio ¢ desconstitucionalizacio. A revogacio dos monopélios pablicos ¢ os programas de privatizacio convertem obrigagées do Fistado e direitos dos cidadios em negécio empresarial. A’ transferéncia de servigos essenciais da esfera governamental para a iniciativa privada leva seus beneficiarios a serem tratados como simples consumidores. E. atividades como educacio, sade e previdéncia tornam-se produtos redutiveis a0 conceito de mercadoria, passando a ser objeto de contratos privados de compra e venda. Com tamanho prevalecimento da logica mercantil ¢ a ji mencionada contaminacio de todas as esferas da. vida social pelos imperativos categéricos do sistema econdmico, a concepgio de uma ordem constitucional subordinada a um padrao politico ¢ moral se esvancce. Anseios e expectativas formadas ao longo de tensos e conilitivos processos de construgio e reconstrugiio politica, em cujo imbito o tipo de sociedade por eles constituido corresponde a uma certa concepgio de moralidade, sio sumariamente desqualificados ¢ desconfirmados. Dai, cm reacioa todas essas mudancas, a tentativa de se recuperara ética no centro das discusses, a0 menos do ponto de vista teérico. Mais precisamente, de se retornar 4s questdes sobre o reconhecimento da dignidade humana, da manutengio das redes sociais de produgao, dos direitos dos pobres ¢ das minorias, da atribuicio ao poder ptblico da responsabilidade pela equalizacio de oportunidades — enfim, as velhas, porém muitas vezes esquecidas questées de justica distributiva e do bem comum, que vinculam, Esiado e cidadania. ‘Todas essas transformacbes s6cio-econdmicas e politico-jusidicas ¢ as discussdes tedricas delas resultantes ja estavam em andamento quando a Constituigio brasileira foi promulgada, em outubro de 88. Mas até que ponto clas foram devidamente percebidas ¢ compreendidas em todo 0 seu aleance pela Assembleia Nacional ‘esse, justamente, o ponto de partida deste trabalho de Gisele Citta- dino sobre pluralismo, direito justia distributiva. na ordem constitucional brasileira, originariamente apresentado como tese de doutorado no Instituto Universitétio de Pesquisas do Rio de Jancito (IUPER)). O objetivo de Gisele nao foi fazer um levantamento histérico das posigdes entio assumidas pelas principais liderancas partidrias e pelos proprios doutrinadores nacionais na claboracio da atual_ordem constitucional. Hoi, isto sim, realizar um trabalho analitico 4 luz do importante debate te6rico atualmente travado no ambito da filosofia politica entre pelo menos quatro correntes tedricas: © os ibertérins, como Robert Noxick e Friedrich Hayek, para quem (a) © aparato coercitivo-juridico do Estado modemo tem sido utilizado para pressionar 0 individuo ¢ violar seus direitos, inclusive quando © obriga a ajudar © prdximo ou o proibe de desenvolver determinadas atividades para se proteger contra roubos e fraudes, (b) as ideias de justica social em principio sio um contra-senso por comprometer as liberdades inerentes ao homem, (© a livre apropriagao seria o Gnico principio de justica, ¢ (d) 36 0 Estado minimo, limitado as funcdes restritas de protec contra a forca e fiscalizacio do cumprimento de contratos, é justificavel; © os /iberais contratualistas, como John Rayels ¢ Ronald Dworkin, que tratam de questées como as rclativas 4 efetividade © 20 reconhecimento dos direitos civis dentro da wadi¢gio kantiana, vendo a sociedade como uma combinagio da afirmagio de identidades e da eclosio de conflitos entre distintas concedes individuais acerca do bem e da vida digna; © 08 eomunitaristas, como Michael Walzer, Charles ‘Taylor, Michael Sandel ¢ Alasdair MacIntyre, que recuperam a tradigio aristotélica ao (a) por em xeque a pressuposicio de um sujcito universal ¢ nao simado historicamente, (b) enfatizar a multiplicidade de identidades sociais e culturas étnicas presentes na sociedade contemporinea e (c) conceber a justica como a virtude na aplicagao de regras conforme as especificidades de cada meio ou ambiente social, criticando os liberais por nio serem capaves de lidar com as situagdes intersubjetivas e de ver os diilogos apenas como uma “sucessao alternada de mondlogos”; © © os onitio-deliherativas, como Jiiegen Habermas, formados na tradigdo hegeliano-marxista, para quem (a) os valores normativos modernos s6 podem ser compreendidos por meio de leituras intersubjetivas, (6) 0 principio do universalismo moral foi encarnado de modo imperfeito nas instituicdes do Estado constitucional, endo definhado a ponto de nao ser mais do que uma simples palavra, (€) s6 a razio comunicativa possibilita “acordos sem constrangimentos” em condicées de se irradia para toda a sociedade, ¢ (d) a diversidade das concepedes individuais a respeito da vide digna, apregoada pelos /iberais, ¢ a multiplicidade de formas especificas de vida que compartilham valores, costumes © tradicdes, enfatizada pelos comiarisias, esdo presentes nas democeacias contemporineas, nto havendo como optar por uma em detrimento da outra. Em seu trabalho, Gisele deixa de lado os liberidrios paca concentear sua atengio basicamente nos liberals, nos connnitaristas © 208 critco-deliberativas, postulando que, apesar de suas diferencas, eles acreditam na possibilidade de se formular um ideal de justica distributiva compativel com o pluralismo do mundo contemporineo. Ao resenhar as divergéncias entre essas trés correntes acerca do que é uma sociedade justa, 2 autora procurou examiné-las na perspectiva da implementagio juridica de suas respectivas concepgdes de justica, discutindo a efetividade do direito constitucional em matéria de garantia dos direitos fundamentais, promogao da igualdade material, equilibrio do jogo econdmico e disseminacio de um “espitito de fraternidade”. Esse tipo de andlise permite esaminar de modo mais agucado quer as ideias e propostas formuladas por ocasiio da Assembleia Constituinte, quer a ordem constitucional por ela promulgada, configurando uma das ctapas mais importantes da redemocratizacao brasileira. A abertura politica ¢ a reordenagao juridico-institucional do Pais, como é sabido, foram um processo complexo ¢ com muitas etapas ambiguas, sendo dificil distinguir com precisio 0 que foi efetivamente conquistado pelas diferentes liderangas da sociedade € 0 que foi dado pelo regime burocritico-militar como simples concessio ou por ter perdido as condigées de neutralizar as distintas pressdes apis duas décadas de autoritarismo. E evidente que o desafio da redemocratizagao brasileira exigia algo mais do que a mera reconstitucionalizagio da ordem institucional. Requeria, a0 lado do fortalecimento do Poder Legislativo, da restauragdo da autonomia do Poder Judicidrio, da redefinigdo das competéncias do Poder Executive © da propria modernizagio do arcabouco da sistema juridico, 0 adensamento de formas de participacio politica capazes de propiciar aos grupos oprimidos e classe marginalizadas maior acesso aos circulos decisérios, conversio de sua representatividade em poder concreto, corregio das diferentes formas de desigualdade ¢ asseguramento de um “minimo social”, isto numa época em que a transnacionalizagio dos mercados ¢ a internacionalizacio do sistema financeiro ja vinham exigindo, nos Estados Unidos, na Europa e na Asia, cortes dristicos dos gastos publicos para equacionamento da crise fiscal, privatizagdes de empresas piiblicas conjugadas com abertura comercial ¢ implementagao de processos de flexibilizacio e destegalizacaio de determinados direitos, principalmente no ambito trabalhista © previdenciario. Ao examinar como o proceso constituinte da década de 80 enfrentou tal desafio, Gisele identifica as proposigdes tedricas dos iberait, dos eritico- comunicatins © dos comumitaristas que teriam sido de algum modo incorporadas na Constituigao de 1988. Filtrando criticamente tradigoes rupturas, temas classicos ¢ temas novos, questdes classicas ¢ problemas originais, a autora faz um trabalho analitico competente, instigante e, acima de tudo, oportuno. Se na Europa e nos Estados Unidos, filésofos politicos, fildsofos do direito e constitucionalistas tém conseguido estabelecer uma proficua discussie sobre estrutura normativa mais adequada ao ideal de uma sociedade justa no mundo coatemporineo, entre ads esse didlogo interdisciplinar ainda continua incipiente. Presa ora a um jusnaturalismo de cartilha ¢ cursilho ora a um normativismo de almanaque, a filosofia do direito vive em terreno pantanoso ¢, a0 menos nos cursos juridicos, dele parece nao ter condigdes de sair tio cedo. Nao por acaso as contribuigdes mais significativas nesse campo. tém, ultimameate, vindo dos cursos de sociologia, ciéncia politica ¢ Lilosolia. Até certo ponto, o diseito constitucional também enfrenta 0 mesmo problema, pecando, quando circunscrito 20s cursos juridicos, pelo apego a abordagens excessivamente descritivas, no plano metodoldgico, pela falta de criatividade e adensamento no plano teérico, pelo atrelamento a concepgdes rigidamente normativistas no plano técnico-aplicado e por continuar sendo fortemente influenciado por uma cultura juridica de influéncia privatista, no plano ideolégico. Para um Pais cujo primeiro imperador conheceu uma de suas esposas as vésperas das bodas de matriménio, que teve Academia de Letras antes da universalizagao do ensino basico e forjou lucrativas bolsas de valores sem que a economia estivesse sequer consolidada, nao chega a causar tanta estranheza o fato dea Constituicao brasileira ser continuamente interpretada — ¢ aqui, mais uma ver, refiro-me aos cursos juridicos — pelo ingulo e pelo viés ideo- logico-doutrinario do Cédigo Civil, quando este, na verdade, é apenas um de seus sistemas. Consciente disso, Gisele, que & professora da P6s-Graduagio em Direito da Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro, nao hesitou em fazer no IUPERJ seu doutorzdo sobre um tema situado no intercruzamento da filosofia politica, da filosofia do direito e da teoria constitucional, afastando-se assim do circuito estritamente juridico no Ambito da pés-graduacao. O resultado dessa compreensivel € corajosa “rebeldia” é esta belissima e¢ convincente discussio sobre bem comum, pluralismo ¢ justica distributiva, questdes a meu ver ha muito tempo adormecidas cm nosso pensamento juridico, em nossas faculdades de direito € mesmo em nossos tribunais, ¢ que 86 agora — com o impacto desorganizador da —transnacionalizacio = dos mercados, da internacionalizacao do sistema financeiro e do advento de estruturas mais flexiveis de produgio, e de suas perversas consequéncias sociais, em termos de desemprego, conceniracio de renda e multiplicacio da pobreza — comecam a despertar. INTRODUCAO O pluralismo é uma das marcas constitativas das democracias contem- porancas. Quando Jiirgen Habermas desereve a “moralidade pés-conven- cional”! ou quando Claude Lefort menciona a dissolugao dos “marcos de referéncia da certeza”,? ambos se referem ao fato de que no mundo moderno jé no ¢ possivel configurar uma ideia substantiva acerca do bem que venha a ser compartilhada por todos. O pluralismo, entretanto, pos. sui, pelo menos, duas significagses distintas: ou 0 utilizamos pasa des ver a diversidade de concepcdes individusis acerea da vida digna ou para assinalar a multiplicidade de identidades sociais, especificas culturalmente “fe € tinicas do ponto de vista histérico. No Ambito da filosofia politica contemporinea, os representantes do pensamento liberal — John Rawls, Ronald Dworkin ¢ Charles Larmore, dentre outros — adotam o primeiro significado do pluralismo e descrevem as democracias modernas como sociedades onde coexistem distintas con- cepgées individuais acerca do bem. Quanto a segunda significagao do plu- ralismo, sA0 os representantes do pensamento comunitirio, Charles Taylor ¢ Michael Walzer,’ dentre outros, que a utilizam para salientar a justice and Solidarity: Oa the Discussion 1 Ver, a sespeito, Jiiggea Ha Conceming Stage 6”, in The Moral Domain Pscays in the Ongoing Discusion between Philosophy and the Socal Scenes, Taomas I, Ween (ed.), Cambridge, MIT Press, 1990. 2 CE. Claude Lefort. Pensands 0 Politio, Ensains sobre democracia, revolugdo ¢ liberdade, Tra- ducao de Eliana M. Souza, Sao Paulo, Paz e Terra, 1991, p. 52. leer tem mencionado seu desconforto com o rétulo + Resaltese que W: “comunitirio” 2 ele atribuido. Afirma que gostaria de ser visto apenas como america 0, judeu, intelectual ou socialisia demoeritico. Reconhece, no entanto, que 0 fato de ser constantemente classificado como “comunirétia” nao se deve a0 acaso. Ver, a sespcito, “Conversicion coa Michael Walzee” (Chantal Moufie entrevista Michael multiplicidade de identidades sociais ¢ de culturas étnicas e religiosas que estio presentes nas sociedades contemporineas. De outra parte, Jiirgen Habermas ~ debatendo com liberais e comunitirios ¢ representando o que aqui designamos por pensamento critico- deliberative,’ — acredita que as duas dimens6es do pluralismo ~ isto é,a diversidade das concep¢des ind- viduais acerca da vida digna e a multiplicidade de formas especificas de vida que compartilham valores, costumes ¢ tradigo fo presentes nas democracias contemporineas € nao hé como optar por uma em detri- mento da outra. No entanto, ¢ a despeito das diferentes maneiras através das quais descrevem ¢ compreendem as sociedades democraticas contem- poriineas, liberais, comunitirios ¢ critico-deliberativos acreditam que & possivel formula e justificar um ideal de justica — especialmente de justica distributiva —adequado ao pluralismo do mundo moderno. 0 longo deste trabalho, pretendemos examinar como liberais, comu- nititios ¢ critico-deliberativos, em face das significagées de pluralismo que adotam, nao apenas elaboram diferentes concepsdes a respeito do que é uma sociedade justa, mas também propdem distintos entendimentos sobre qual éa estrutura normativa mais compativel com a heterogeneidade € a complexidade das democracias contemporineas. Afinal, parece nao restar dtividas de que o debate sobre justica adentra inevitavelmente no mundo do direito. Fm outras palavras, todos reconhecem a impossibili- dade de configusar e justificar um ideal de justica distributiva sem ao mesmo tempo enfrentar a discussio quanto o papel da Constitui¢io, da efetivacdo do seu sistema de direitos fundamentais e da atuagao do Poder Judiciirio, especialmente da jurisdigao constitucional Fi preci 80 yue, hoje, o debate sobre o ideal de uma socie~ dade justa e da sua estrutura normativa— que teve inicio com a publicagio, mente por Walzer), tradugio de Santos Toledo, in Leviaidn, Revista de Hedos¢ Ideas, no 48. Verio de 1992 4 Optamos por caracterizar 0 pensamento de Habermas como “critico-deliberativo”. Esta designacio faz referéncia, por um lado, & “teoria critica”, que Sérgio Paulo Rouanet descreve como um “corpo asistemtion de idéias sobre 0 bomem ¢ a sociedade”, orga nizado em torno do Trstituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, “e cujos porta-ouges principuis sae Adorno, Horkbeimer, Marase ¢ Habermas”. (CA. Sérgio Paulo Rouanet. Teoria Chia ¢ Psicandiise, Rio de Jancito, Tempo Brasileiro, 1983, pig. 11); por outro lado, © termo deliberativo refere-se, como veremos a0 longo deste trabalho, a0 amplo pro- cesso de ddiberagio publica do qual depende a “formas raconal da vonsade”. em 1971, de A Theory of Justices de Rawls ¢ passou a ocupar um lugar cen- tral no Ambito da filosofia politica a partir dos anos 80° — envolve nao apenas filésofos politicos, mas também filésofos do direito ¢ constitucio- nalistas.’ De outra parte, este debate nao ultrapassou apenas determinadas frontciras tematicas, mas também fronteiras geograticas, pois, como vere- mos, dele participam atualmente autores norte-americanos e alemi como portugueses. € espanhdis, cujosrabalhos — influ decisivamente boa parte do atual constitucionalismo brasileiro. Com efeito, uma parcela sigaificativa dos constitucionalistas brasileizos — contraria & cultura juridica positivista e privatista prevalecente e influen- ciada pelos trabalhos de varios representantes do constitucionalismo por- tugués e espanhol contemporineo — participou ativamente do processo constituinte brasileizo nos anos 80, procurando contribuir com a clabora- cio de uma Constituicao adequada 4 conformagio de uma sociedade justa no Pais. Como veremos no Capitulo 1, “Constitucionalisme Comunitario 5 A Theory of Justice. Cambridge, Harvard University Press, 1971. «Parece nao haver diividas de que a pastic dos anos 80 0 debate acesca das relagves cenire ética, diteito e politica acapa uma posicia privilegiada no Ambito da Flosofia politica. Desde as primeiras critieas comunitirias 4 teoria da justiga de Rawls, passando ppelas reformulagdes propostas pelos liberais na segunca metade dos anos 80 e inicio dos anos 90, até 0 sec te ingeesso de Habermas no debate, iberais, comunitirios e critico-deliberaiivos enfrentam a tarefa de formular um ideal de justiga compativel com o pluralismo do mundo contemporineo. No entanto, esses autores, a despeito da marca de contemporancidade que o debate possti, no dialogam apenas entre si Na verdade, trata-se de uma discussio que também envolve os principais represen- tantes da filosofia politica clissica. Com efeito, se Kant é referéncia fundamental para Rawls ¢ Habermas, é indiscutivel a importincia de Hegel para os trabalhos de Walzer ¢ Taylor. Ao mesmo tempo, também ¢ significativa a influéncia de Marx, Weber ¢ Freud, dentre vitios outtos autores, no debate contemposinea. No entanto, é impor- tante salicntar que, ao longo deste trabalho, o (0 foi aossa intencio realizar qualquer atividade genealégica ou arqueolégica que viesse a estabelecer as vinculagoes tedricas ‘oumetodoldgicas entre a filosofia politica contemporinea e a clissica. Como julgamos ser demasiadamente ampla esta tarefa e, portanto, incompativel com os limites deste trabalho, so racas ¢ esportidicas as seferéncias aos representantes da filosofia politica clissica neste texto. Ressalte-se, desde logo, que nestes tltimos anos filésofos politicos, filbsofos do ditei- toe constitueionalistas tém estabeleeido uma sdlida trea de impresses a respeito da cesirutura normativa mais adequada 20 ideal de uma sociedade justa. De resto, é exda dia mais dificil definis com precisio estas fronteiras. Os trabalhos de Bruce Ackerman ¢ Ronald Dworkin, autores que abordaremos mais adiante, sio reveladores desta difi- culdade, no Brasil”, esses constitucionalistas ndo pretenderam apenas participar do processo de reconstrugao do Hstado de Direito apés anos de autoritaris- mo militar, mas fundamentalmente procuraram, contra o positivismo ¢ revelando 0 seu campromisso com os ideais do pensamento comunitario, dar um fundamento ético 4 nova ordem constitucional brasileira, toman- do-a como uma estrutura normativa que incorpora os valores de uma comunidade histérica concreta. Neste processo, € tio significativa a influéncia do pensamento comunitério nos trabalhos desses autores — ainda que a adogao das concepg6es ¢ compromissos comunitirios derive do constitucionalismo ibérico® — que nos pareceu razoivel designd-los como representantes do “constitucionalismo comunitario brasileiro”? Ressalte-se, de outra parte, que este “constitucionalismo comunitirio”, em face da atuagio decisiva de seus representantes ao longo do processo cons- lituinte, registrou a sua marea em nosso ordenameato coastitucional. Na verdade, € possivel identificar na Constituicio Federal nio apenas uma linguagem comunitaria, mas um compromisso com o idedrio comunitatio. Ao adotar 0 ideario comunitario ¢ lutar por sua incluso no ordena- mento constitucional do Pais, os “constitucionalistas comunitarios” brasi- lciros se envolvem no debate acerca de como € possivel conformar uma sociedade justa ¢ uma estrutura normativa a ela adequada. No entanto, como referimos, esta discussfio tem seu inicio no ambito da filosofia polt- tica contemporiinea ¢ organiza-se em torn dos debates sobre relacoes entre ética, direito e politica. © Capitulo TT deste trabalho ~ “A Justiga Distributiva entre o Univ: salismo ¢ o Comunitarismo” — pretende precisamente analisar como libe rais, comunitarios € critico-deliberativos configuram o ideal de uma socie- dade justa ¢ enfrentam a dificil articulagio entre as duas dimensées de um como veremos a sezuit, o constitucionalismo portugués € espanhol, cujo impacto & decisivo sobre uma parcela do constitucionalismo brasileiro, € fortemente influencia- do pelo constitucionalismo alemao, Por outto lado, ainda que nao se possa identificar, por razbes adiante abordadas, um debate entre constitucionalistas americanos ¢ ale- mies, é possivel observar um nitido compromisso com as concep¢des comunitirias tanto por parte de constitucionalistas norte-americanos, como de alemies, °F. necessicio calientar que esses constitucionalistas nfo se apresentam como repre~ sentantes de um ‘“constitucionalisma ‘comunitario’, ainda que, como veremos, Carlos Roberto de Siqueita Castro faga referéncia ao “wonstifucenalismo socio € comunitirio””. Cf. Carlos Roberto de Siqueira Castro. “A Constituigio Aberta € Atualidades dos Direitos Fundamentais do Homem”. ‘Tese apresentada i UERJ n0 macusso para Professor Titular. Rio de Jancito, 1995, p. 38 regime democritico liberal," ou sea, a logica liberal da liberdade e a logica democritica da igualdade ou, em outras palavras, os direitos humanos e a soberania popular, mo assinalamos, na origem das concepgdes de justiga que liberai comunititios e critico-deliberativos formulam se encontram visées distin- tas acerca do pluralismo que caraeteriza as sociedades democraticas con temporaneas. No que diz respeito aos liberais, na medida em que o plura- ado A compreensio contemporineas como sociedades onde ha uma multiplicidade de concepedes individuais a respeito do bem, o ideal de justia delineado busca assegurar a cada indi- viduo a realizacao do seu projeto pessoal de vida. Ao mesmo tempo, é possivel conformar, segundo os liberais, uma concepgio de justiga que, a despeito do “fato do pluralismo”, de que fala Rawls — ou do “desacordo razofivel” para usar 2 expressio de Charles Larmore — possa no apenas demoeraci mo esti asso WRessalte-se, desde logo, qa rativos, um compromisso com a sociedade demoeritica liberal, Em primeizo lugar, todos defendem as instituigées do Estado liberal, oa seja, império da lei, separscio dos poderes ¢ direitos fundamentais, ainda que possam configuré-las de forma distin- ta, Ao mesmo tempo, também € evidente o compromisso de todos com a defest da democrcia, representada pela soberania popular e pela regea da maioria, ainda que aqui também variem as intespretagdes. Sabemos, entretanto, que a ideia de sociedade democritica liberal evoca ainda a defesa do mercado enquanto forma de regulame: tacio da escassez. O liberalisino de Rawls € evidentemente compativel com a devesa do mercado; sua teoria da justica, no entanto, busca oferecer, como veremos, meca- nnismos que possam restringir as desigualdades decorrentes das relagdes mercantis. De ‘outra parte, embora se defina como socialista, o compromisso comunitirio de Walzer io 0 coloea contra o mercado, enquanto crtério de distribuigao de hens sociais ado tado por uma comunidade especifica. Ele, contudo, defende a ideia de que, em uma democracia, uma sociedade civil foremente organizada deve atuar para conteabalan- car as desigualdades decorrentes deste eritério de distribuigio de bens sociai Finalmente, Habermas, por seu turno, adota uma postura critica em relagiio A socie- dade capitalsta, ressaltando que tanto o mercado quanto a burocracia instrument zam niio apenas o espagn da vida privacla, como a esfera da opinito pablica. ‘Todavia, por mais que a influéncia do peasamento de Marx seja decisiva sobre o teabalho de Habermas ~ dai sua postura critica em relagio a0 mercado — 0 seu compromisso com uum processo deliberativo democratico o impede de indiear a légiea de onganivzagio contemporineas devem adotar. Fim rest. econdmica que as sociedades demo ‘mo, nos trabalhos de todos esses autores, podemos identificar, ainda que em graus, istintos, extieas a ligica mercantil, De qualquer forma, nem os mais severos eriticos, do mercado — Walzer ¢ Habermas — vishimbram mudangas significativas ou oferecem modelos alternativos. garantir a autodeterminagao moral dos individuos, mas também ser com- partilhada por todos. Por seu turno, a argumentacao comunitatia se volta precisamente contra esta ideia liberal de que é possivel claborar uma con- cepcio de justica que represente uma solucao imparcial dos conflitos de interesse. Ao descrever as democracias contemporaneas como sociedades em que o pluralismo se caracteriza pela diversidade de identidades sociais, € culturais, os comunitérios — adotando uma metodologia particularista — pretendem conformar uma concepgio de justiga que nao se vineula a ideia de imparcialidade, mas, a0 contrario, ao estabelecimento de um consenso ético, fundado em valores compartilhados. Finalmente, em seu didlogo com liberais e comunitarios, Habermas — de vez que recorre a uma con- cepeao de pluralismo que inclui nao apenas as subjetividades das concep- Ges individuais acerca da vida digna, mas também as intra-subjetividades das identidades sociais ¢ culturais — ndo tem a necessidade de estabelecer qualquer relagio de prioridade ow ordenacio hierarquica entre a auto determinagio moral defendida pelos liberais ¢ a auto-realizacio ética, tio cara aos comunitarios. Ao contrario, Habermas pretende demonstrar que a autonomia privada — vinculada 4 autodeterminagao moral — ¢ a autono- mia publica, associada a auto-realizagao ética, pressupdem-se mutuamen- te. Configurando 0 modelo de uma “sociedade pés-convencional” — em que tanto as conceps6es individuais relativamente ao bem, como os valo- res que configuram as identidades sociais devem ser submetidos a um -amnplo_debate_niiblico. aue_estabelecerd_as_normas_cuios destinatirios serio os scus proprios autores ~ Habermas, tanto quanto Rawls, recorre a uma metodologia construtivista e compartilha com os liberais a ideia de que & possivel conformar um ponto de vista moral imparcial que, 20 seu caso, se ttaduz nas regras procedimentais de uma ampla pritica argumen- tativa. Estes argumentos parecem ser suficientes para revelar como liberais, comunitirios ¢ critico-deliberativos articulam a légica liberal da liberdade, representada pelos direitos humanos, ¢ a légica democratica da igualdade, representada pela soberania popular. Com efeito, os liberais, porque con ferem prioridade & autonomia privada, privilegiam os direitos fundamen- tais, pois sio cles que asseguram a configuracao de um Estado neutro € evitam interferéncias indevidas em relacdo as visdes individuais acerca do bem. Ou, de outa forma, a neutralidade estatal é uma exigéncia que decor re do prdprio pluralismo. Afinal, ainda que comprometidos com os idcais, democriticos, os liberais preocapam-se em proteger as diversas visdes substantivas individuais das interferéncias resultantes de qualquer proces- so deliberativo publico. Daia necessidade de que os direitos fundamentais limitem a soberania popular ¢ a legislagao democratica dela decorrente, Os comunitirios, ao contritio, conferem prioridade 4 soberania popular, enquanto participacio ativa dos cidadios nos assuntos puiblicos, precisa- mente porque, segundo eles, a autonomia publica é mais adequada 4 exis- téncia dos diversos centros de influéncia social e poder politico que con- figuram o pluralismo das democracias contemporineas. Mais do que isso, como o pluralismo significa diversidade de identidades sociais, nao se pode esperar que o Estado trate igualmente cidadios que possuem distin- tos valores sociais ¢ culturais. Por seu turno, Habermas pretende demons- trar que ha uma relacio de co-originalidade entre os direitos fundamentais € a soberania popular, de vez que, nas sociedades pés-convencionais, os individuos s 10, a mesmo tempo, autores ¢ destinatitios do seu prSprio direito. Neste sentido, a instituicio do direito legitimo sé € possivel se, conjuntamente, esto garantidas nio apenas as liberdades subjetivas que asseguram a autonomia privada, mas também a ativa participacao dos cida- dos através de sua autonomia pitblica. Do esiabelecimento de uma relagio de prioridade entre os direitos humanos ¢ a soberania popular ~ ou, no caso de Habermas, da auséncia de uma ordenagio hierirquica entre a autonomia privada e a autonomia publica — decorrem as distintas concepcdes que iberais, comunititios ¢ critico-deliberativos formulam — quando enfrentam 0 mundo do Direito — sobre o papel da Constituicao com seu sistema de direitos assegurados, € aatuacio do Poder Judiciirio, especialmente no que diz: respeito i her- menéutica constitueional. O objetivo do terceiro Capitulo deste trabalho — O Dinvito entre 0 Univervalivmo 0 Comunitarismo — é exatamente analisar como liberais, comu- nitirios ¢ critico-deliberativos buscam, contra o positivismo, encontrar um fundamento para a ordem juridica, integrando aquilo que Pierre Bouretz designa por srorimento de retorto ao direio."' Ressalte-se, desde logo, que se no segundo capitulo optamos por privilegiar, no Ambito do peasamento liberal, os teabalhos de Rawls, é Ronald Dworkia, ao entanto, quem ocupa © lugar central ao longo do terceiro capitulo — dada a profundidade com © Como veremos, Pierre Bourez (La Force de Droit. Paris, 1 tions Esprit, 1991) se efere 20 mwimento de relorno ao dieito encanto via através da qual se evita a violencia, ‘em face do pluralismo que caracteriza as democsacias contemporineas. que enfrenta 0 debate sobre o direito — ainda que as consideragies de Rawls sobre 2 Constituicao € 0 papel da Suprema Corte americanas se facam presentes. O mesmo ocorre em relagiio aos representantes do pensamento comunitirio, pois em fungiio das suas minuciosas anilises sobre o direito, os trabalhos de Charles Taylor e Bruce Ackerman”? tém primazia no ambito do terceiro capitulo, ainda que os argumentos de Walzer, centrais no segundo capitulo, também sejam considerados. Habermas, por seu turno, esta igualmente presente em ambos os capitulos, especialmente porque atribui uma importincia essencial ao debate acerca do ordenamento juridico adequado ao pluralismo do mundo contempo- Parece niio haver diividas de que 0 monimento de retorno ao direito integra- do por liberais, comunitirios e critico-deliberativos, a despeito das pro- fundas divergéncias que os sepacam, privilegia alguns temas, especialmen- 2 No Ambito da filosofia politica norte-americana, Bruce Ackerman integra o chama- do “grupo republicano”, que se opoe ao “liberal”, sem que isto signifique o seu des- vinculamento do liberalismo. Ao contritio, Ackerman se apresenta como um liberal republicano. Compartilha com os liberais a idéia de que o Estado deve ser neutro em relagao as concepgdes individuais de bem, mas contere prioridade a autonomin pibli- cae, neste sentido, 20 lado dos comunititios, atsibui um lugar central aos direitos de paricipacto politica, recusa a existéncia de principios morais universalmente v. € tampouco admite que a identidade indiv idos lual possa estar desvinculada dos valores € tradigdes comunitarias. F. possivel, pelo menos no que diz respeito aos temas aborda- dos neste cxpitulo, situar Ackerman ao lado dos comunitérios, porque as diferencas que separam os republicanos dos comunitirios naa sio mais significativas do que aguelas que sepream os proprios comunitirios ou mesmo os libesais. [. peccisamente porisso que Habermas, em Betueen Facts and Norms, Contributions ta Discourse Theory of Law ané Denocray (taducao de William Rehg, Cambridge, Massachusetts Institute of ‘Vechnology Press, 1996), por exemplo, se refere indistintamente a republicanos comunitirios. Optamos, no terceiro capitulo, por seguir esta orientagao. De resto, € como ja assinalamos, tampouco se pode desvincular as representantes do pensimento comunitirio ou mesmo o proprio Habermas de certos compromissos com 0 ideério iberal. A defesa da tolesincia, dos direitos fandameniais, da autonomia e da liberdade revela este compromisso por parte de todos. [, finalmente, ainda que nem todos defendam 6 me Jministracko da escasse7, ou chboram analises criticas sobre a légica mercantil — dai a defesa da justiga distributiva em Rawls Dworkin —ou se abstém de oferecer modelos econdmicos alternativos, optando mais pela defesa de um Habermas. ade coma forma de stado de Bem-Fstar, como parece ser 0 caso de Walzer & te o papel atribuido a Constituicio ¢ ao sistema de direitos por cla assegu- rados € os limites fixados ao processo de interpretacao constitucional Com efeito, como veremos ao longo do terceiro capitulo, os ber ‘optam por uma concepgdo de “Constitui¢do-garantia”, que tem a fungdo de preservar 0 conjunto das liberdades negativas que, por sua vex, assegura a autonomia moral dos individuos. Neste sentido, a interpretacio da Constituigao deve ser orientada pelas normas e princ'pios constitucionais, cujo sentido de validade é deontolégico, pois, dado o “fato do pluralismo”, © direito tem prioridade sobre qualquer concepgéio de bem. Os comunité- rigs, a0 contririo, optam por atribuir um sentido de validade teleoldgico As normas ¢ principios constitucionais e concebem a Constituico como um projeto social integrado por um conjunto de valores compartilhados, que traduz um compromisso com certos ideais. Dai aideia de que os ditei- tos constitucionais asseguram as liberdades positivas enquanto capacidade de determinagao ¢ controle de uma existéncia conjunta. Nesta perspectiva, a hermenéutica constitucional nao poderia estar orientada sendo pelos valores éticos que a comunidade compartilha. Habermas, por sua parte, acredita que a Constituigio, especialmente porque configura um sistema de direitos fundamentais, tem a funcao de contextualizar principios universalistas c, desta forma, se transformar na Unica base comum a todos 08 cidadios. Atribuindo, como os liberais, um sentido deontolégico de validade is normas e principios constitucionais, Habermas estabelece a concepgio de patriotiomo consituional, procurando demonstear como com- promissos morais com normas universalmente vilidas — os direitos fun- damentais — podem scr vinculados aos compromissos éticos de culturas politicas particulares, Dai a rclacio entre hermenéutiea ¢ histéria, de vez que as normas ¢ princfpios constitucionais, abstratamente previstos nas Constituigées, apenas adquirem densidade por via de um proceso inter- pretativo associado ao paradigma de direito vigente Este debate entre liberais, comunititios e critico-deliberativos acerca do papel da Constituigao, do seu sistema de direitos fundamentais ¢ do modo como a jurisdi¢o constitucional deve interpreta as normas ¢ os principios constitucionalmente estabelecidos ultzapassa, como assinala- mos, 0 fimbito da filosofia politica e envolve filésofos do direito e, espe- cialmeate, constitucionalistas, seja nos Estados Unidos, seja na Europa. Com efeito, boa parte do constitucionalismo alemio, representando aquilo que se designa como “jurisprudéncia de valores”, compartilha mui- tos dos compromissos do pensamento comunitirio ¢ influencia decisiva- mente o consiitucionalismo ibérico que, por sua vez, éa fonte de inspira sao dos “constitucionalistas comunitatios” brasileiros, A dimensiio comunitiria do constitucionalismo brasileiro revela-se seja quando adota uma concepcio de Constituicio enquanto “ordem concreta de valores”, seja quando estabelece um conjunto de instrumentos proces suais adequados a0 exercicio da autonomia piblica dos cidadaos, seja, enfim, quando atribui um papel preponderantemente politico ao Supremo. ‘Tribunal Federal, que deve recorrer a “procedimentes interpretativas de litina- cade aspiragies sociais ¢ orientar a interpretagio constitucional pelos valo- res éticos compartilhados. De outra parte, todos estes compromissos, em funeao da ativa participagao dos constitucionalistas “comunitérios” ao longo do processo constituinte, foram incorporndos i Constituigio Federal. O constitucionalismo “comunitério” brasileiro ea “dimensto comu- nitiria” que caracteriza 0 nosso ordenamento constitucional sio os temas que trataremos a segnir.

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