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We I g Lo aa Seilimesegr3" © Roden Aamiaego. 201000; Rio do saree, GB ‘Seer ESMENAZ Pen Ore iareos hanguces et cen © cementvie 1972 deiindbste ten permeate pee Sen Smangae ase cal 1972 — Sesquicontendrie de Indopendéncia do Brasil 1972 — Ano Intornacional de Livro Sumario Odyto Cosa, fithe: Tr2s poems, iadizos Origencs Lessu: Eva (ou 0 Livro de Genesis, esevite difereate- mented Farsito Orphew Spat: Paralelignos literdrios (um eurioso este do sabre a inconsiéicia eno nome é masher) Francisco A. Déria: Corpoldessjolanguistia (rudlver come objet. de Filosofia) Marcos Margulies: X versus ¥, ow o Paraiso perdido (ome xe est ‘laa muller por metos serninticos) Vilém Flusser: A vonsunidora consumidea (isto é: a mulher visa ela sociedacde que a fas consunir ¢ que a consomne) Marina Colasarai: A guerra serypre peride (e senipre pelus mu theres) Heloneita Stuart: A mulher brasileira 0.4. Meira Penna: Eros versus Loxas (wobre abgames solugies rie sileiras dos problemas aliures iasoliveis) Teresinha Saraiva: O papel da mulher m9 provesse de desenvolvi Puio Reina. As de Balzee (i106, simplesmente: ex bal zaytienas!) Fernanda de Camiorgo ¢ Almyeide: Do otho w da mio Elisa Lispecior: Despedide (um sive conto aque deverve da trie coutigéo da muier) Maria Heloisa Fenelon Costa ¢ Rosct Wigdorvwies vel Zohuds Deieuhes esponraneos indigenas (ducs pesauizadires deseubrrna 4 Ante eure os selvagens) Resenha Bibtiografica (feta poto Embaixador do Peru) Francisco Correa Neto: Convibuigdes do hebeaice i Higa porte guese (3. parte) © bare pap (ao editor) 7 18 24 35 48 52 56 72 74 79 84 86 a 92 94 ‘Um dos chavoes que poluem a atmosfera mental e ameagam sufo- ear 05 nossos intelectos € 2 expres- so sociedade de eonstmo. Como todo chavio, este também encobre a realidade que procura captar, cconter ¢ transmitir de modo sinté- tico, embora, a0 definila (© que faz apenas aparentemente),crie tio 56 uma ilusio de tea revelado, De modo que, a0 dizernos sociedade de consumo, damos provas da nos- sa tucider (pois enquadramo-nos no conterto, isto €, somos “pra frente"), e, 20 mesmo tempo, esta- ‘mos sendo dispensadlos do penoso esforco de realmente pensar sobre as profundas e violenias modifica 90es que estio ocorrendo na cir- cunst’nciae que nos cerca. sta dupla vantagemn do chavao explica a “explosto demografica” de tais expresses na “sociedad das pala- vras". Mas urge-um certo controle da natalidade linguistica, se é do nosso interesse € Intuito orientar ‘nos na circunstaneia, ao invés de desconversivla Nao se pretende negar, com tais afirmativas, que 0 consumo efet vamente representa um problema eeniral da atualidade. Apenas pa- rece que o problema do consumo 35 VILEM FLUSSER aconsumidora consumida € exatamente oposto ao sugerido pela expresso sociedade de consu- ‘mo. Com ests observagiia ficam constatados dois fatos: 0 obvio — ‘a geracio atual consome mais que as precedentes ¢ gosta mais tempo ‘em empresa de consumnir; # 0 me- nos dbvio — a geracio atual_nao € capaz de Consumir uma parte | Snsidertvel dos progutes (anEIe ‘Fiais “6 ideals), que ela se ‘PFESENIED verdadeiro problema do consumo, de modo que uma ex- pressio mais adequada & captagio da situagao seria: sociedade impo- tente para © consumo. A histOria da humanidade serve. Ao caso, apenas para confundir ‘nos, prova que a histéria ensina a- penas que nada ensina, Porque, a0 longo do seu curso, desde 0 pale litico até # Segunda Guerra Mun- dial, 0 bens produzidos nunca conseguiram suprir a avider da de. ‘manda, ¢ eram, portanto, consumi dos praticamente todos. Eram pou- coos 0s bens que, guurdados e niio consumides imediataments, exi- giam que se freasse 9 avidez do consemo (por exemplo pela virtw de burguesa da poupanga, impos- 12, chviamente, no tanto aos prc = prior: urgueses, mas a “dos por eles). Em tal situacao problema da impoténcia para o consumo nem sequer pOde ter sur- os domina- gido, e uma assercao tacitamente aceita por todos rezava: a_capaci- dade consumidora_ hur pre maior gue sua capacidade pros dutora. | seguinte modelo de cultura: a P (ora. Em conseqiiéncia disto, a histd- ria da humanidade nos oferece © ont tura & uth processo que devora | ando). a (produzinido bens), excte- éza (consumi ““Prodizir significa: arrancar pe- dagds & natureza, e dar-lhes valor res e formas e devolver os pedagos desvalorizados e desinformados a nal da, informada — isto ture7: Poupar significa: armazenar va- lores e formas. A sintese da cultura & pois a armazenagem crescente de valores e formas. Engajar-se em cultura significa: engajarse em valores formas e assimir a posico contré- ria_a qualquer sem-valor e& tendén- cia desinformante da natureza; sig- nifica, portanto, engajar-senadigni- dade humana (no bem [valor] e no belo (formaj). E a meta do processo todo (da qual a histéria se aproxima assintoticamente*) é um estagio no qual a natureza é transformada em cultura, valoriza- zada” Mas 0 modelo esbogado € atual- porque atual- mente existem ilhas crescentes na cultura (principalmente nos Esta- dos Unidos © na Europa Ociden- tal), nas quais a evidéncia € apro ximadamente esta: 2 circunstancia humana nessas ilhas estd repleta de produtos (sejam eles “durdveis” mente inaplicdvel, ou “pereciveis”, distincao : “humani- esta i ido bens), ¢1 que cresee apesar da natureza (pou-} muito relativa). Estes produtos for- mam um labirinto no qual se movi- mentam os homens parcialmente ocupados na tarefa de produzir mais produtos, parcialmente na ta- refa de transportar os produtos de um lugar para outro, parcialmente (sempre mais desesperadamente) na tarefa de consumir os produtos e fazé-los desaparecer do ambiente, parcialmente na tarefa (sempre mais dificil) de encontrar mutua- mente € dar-se as maos a despeito dos produtos que interferem e obstruem os caminhos do homem para o homem, e parcialmente na tarefa de encontrar um caminho que conduza para fora do labirinto, quicd rumo & natureza que desapa- rece no além do horizonte. E em todos os cantos do labirinto esté-se amontoando_lixo, merece ina atcngao mais apurada, isto 6: restos este Tixo qué terminante da condigéo humana. © lixo que esta inundando a culfura fia forma de grodutos mal. digeridos_e_vomitadgs, (produtos materiais e ideais), nao apenas per- turba os passos dos homens que perambulam no labirinto, corta as plantas dos seus pés com seus ca- cos, infectd com as bactérias de podridao os seus pulmées € suas mentes, mas ainda atrai os homens com sua moleza informe de lodo. Uma parte da gerago mais nova revolve-se no lixo, tomada de uma nostalgie de la bone, reminiscente da saudade da natureza do roman- tismo. (Tomam eles, por engano ontolégico, 0 lixe por natureza?). Cont tal inundagao, nada pode o Sistema de canalizacao © esgotos instalado por nossos antepassados vitorianos. Porque nac inundacao catastrofica de rata de ida a fa- tha do sistema (como 0 foi 0 nazis. mo); trata-se, pelo_contrario, de “endémica, 2 Assinots & na Mates eanaima.reta"tal que a ie tisela dein ponte de uma furva a eau rea tende para Eee, quando o ponte se stas iS iedefintdscente na cor 6 sutor se rere 9 est tor fdencs para dee, * 0 segundo principio da tr smodisimies for astm forme {io por Seal ‘Carnot em Tae. "Gina maquina terme $8. pode realize trabalbos sustde xten dae err Sontequentee fons f llse — sinbolo do socedade de contms, Ov noel? consumidora humana em acompa- thar @ sua capacidade produtora. Para compreender-se Isto, € preci- $0 aprofundar-se Tih pouco no pro- ‘Blema_do consumo. ‘Consumir, no modelo sugerido pela hist6ria, significa: gastar valo- res ¢ formas dos prodiitos ¢ devol- vé-los a natureza desvalorizados e desinformados. A idéia que funda- menta tal concepgao do consumo seria esta: a natureza nao tem valor € tende, pelo segundo principio da termodinmica*, a desinformar-se; a cultura impoe valores e formas € opée-se, portanto, & natureza. E 0 produto, ja consumido, perdeu va- Jor e forma, ¢ voltou portanto a ser natureza. O erro desta idéia fundamental este: nao é que a natureza careca de valor, nao possua valor, (seja wertlos), carente de valores, mas ela 6 isenta de valor, (¢ wertfrei), livre de valores, e, como tal, desa- fia a valoracio humana. Assim, sendo desafio, a natureza é 0 fu- turo da cultura. Mas o produto id consumido nao é isento: de va- lor (wertfrei): € desvalorizado, (entwertet), ¢, como tal, atesta a efemeridade da valoracio humana. Assim, sendo atestado, ele ¢ 0 pas- sado da cultura. Portanto, nfio vol- tou a ser natureza, nao pode ser confundido com natureza, .nfo foi devolvido. A natureza nfo é informe mas desinformante, e como tal desafia a criatividade humana. Mas o produ- to j4 consumido nao é desinfor- mante, é desinformado, e como tal problematiza a criatividade huma- na, Nao € natureza, é lixo. Em suma: a natureza nao é como deve ser, e, portant, provoca aculture, a qual procura fazer com qiie 2 natureza seja como deve ser. Eo produto consumido € como néo deve ser, e, portanto, pe em questo a cultura (a qual, ao consu- mir produtos, néo faz com que a natureza seja como deve ser, mas, pelo contrario, faz com que aquilo que nao deve ser, seja). Q produto consumida nfo ¢ na- tureza, € lixo. Isto é: anti-natureza ¢ também anti-cultura. Na sua an- ematuralidade oTixo se parece com a‘cultura, e na sua anti-culturali- dade cle se pareeé cof a nature?a, mag nao sé confundé com nenfium dos dois retnos- De former que con- sumir nao significa devolver algo a natureza, mas estabelecer um ter ceiro reino da realidade: 0 reino do lixo. A impoténcia humana para 0 ciiisumo pode, portanto, ser assim formulada: embora 0 homem seja mbém incapaz de éli- ie 08 Valores e as forinas gastos. Se quisermos cha- Fa natureza “futuro”, a.cultura ente™, € © Tixo “pasado”, a impoténicia humana para 0 consu- mo pode ser reformulada existen-} cialmente: © homem € capaz de} apresentar o futuro, mas incapaz de manter presente 0 presente, e também incapaz de assumir o pas- sado como futuro. ‘ Estas consideragdes, impostas pela observacio da situacao atual, sugerem um modelo da cultura ra: dicalmente diferente do anterior: a cultura é um.canal.que transfor" ndtureza em 1ixo; ela 0 faz produ- zindo bens. Pélo consumo trans. formia-o8 em antdnimos, isto é, em males. efémero negativamente entr6pico, que assenta sobre 0 processo uni- versal entr6pico*, e serve para ace- leré-lo. Engajar-se em cultura sig- nifica engajar-se em tarefa autodes- trutiva. E a meta do pracesso todo (da qual a historia se aproxima 38 ° Eatropia-— concrito wade ta Tetmodininien ae tou, come lermo, para a Fi letdds onde defn x posts tmorte"é Universo pele ‘Belo total dar wandetness feadicas que’ 0 impulse = mute ow autodat 4 imani ha como, éScapar a tal modelo maniqueista para quem observa as ilhas ditas “desenvolvidas” na cultura da atua- lidade, ¢ as quais sao as metas do resto da cultura da atualidade. Para sorver, no entanto, o im pacto do problema do consumo ern toda a sua dramaticidade, é preciso considerar rapidamente um outro aspecto. reza The. Mas 0 lixo ¢ um passado rec ido 4 tona apenas recentemen- te, quando a cultura ja entrow em idade avancada (senilidade, pds: historia, plenitude dos tempos). Com efeito, a cultura tem dois pas- sados: uma t@nue camada superfi- cial de valores e formas armazena- das, ¢ as grossas camadas recalca- as € subjacentes do lixo, A ténue mada € 0 passado assumido, isto & guardado (na meméria, nos si- los, nos arquives, portanto sempre apresentavel e disponivel). Fe © pass 6 tito 39 O lixo € 0 passado_da, “consumido “CO Fato de que tal passado consu- mido, embora nao apresentavel por nds, passa a apresentar-se de modo espontaneo, como que sorrateira- mente € subrepticiamente, pro- va de maneira existencial a nossa impoténcia para © consumo. De forma que, atualmente, 0 consu- mido € espontaneamente apresen. tado condiciona-nos muito mais que 0 armazenado e deliberada mente apresentado. mais condicionados por carcacis jogados_fora.—por sigue comporlamentos salcados, por colonia en mido nos condiciona muito mais que o passado histérico ¢ apr tavel, estamos perdendo o interes pela hist6ria e adquirindo o inte resse pela arqueologia (que € a pesquisa do lixo). Nao apenas pel arqueologia sensu stricti, que pes- ese quisa lixos esporddicos e periféri-} cos MES FaMbEM or arqUeoTOzias | sais penctrantes, como a ceologia, Hpsicandlise, ise, 4 etimologia, a mito- Togia etc., que pesquisam_lixos| iis atuantes. Ao elaborarmos tas isciplinas temos esperanca de que 0 lixo rememorado deixe de condi- cionar-nos, Que, se nos tornarmos conscientes da ‘nossa impoténcia para © consumo, essa impoténcia passe a ser mais um dado a ser por 163 manipulado criativamente. Como_a _natureza nosTibertam paulatinamente do de- ferminismo natural, como asci s-da.cultura pretende -nos_do_determinismo_cultural, assim as ciéncias arqueol6gicas de ‘Vern libertar-nos do. determinism G&_Tixo. O futuro mostraré até ue ponto tal esperanca é justifi- cada, mas nao resta diivida que ela & uma das poucas esperancas que temos. E tais disciplinas arqueol6- gigas sio.co-responsiiveis pelas ma- dificagdes revoluciondrias que_¢ t#e-ocorendo atualmente. 3b este enfoque deve star a mulher no seu as Gonsuimidora. Porque as tentativas atuais de muitas mulheres no senti- do de assumirem & sua feminilids de para depois modificé-la, tentat vvas essas j4 espantosas, embora a- penas esbocadas, resultam no tan- sa Camadas de lixo. °~"Assim, tornou-se irrespondivel a questo: “Que 6, na realidade, ser mulher?” Tantos aspectos de femi- nilidade tém sido gastos e consu- midos pela cultura por valoragio e formulagio e a subseqiiente desy: loracao e deformacio, ¢ 0 ike ge ado por esses aspectos gastos co- briu téo densamente a realidade, que a tornou praticamente inating vel. De maneira que a questio nao parece ter sentido. No entanto, os aspectos consumidos tia femminilida- ‘de-Condicionam atualmente @ mu- Ther (e, em conseqiiéncia, 0 homem) muito mais que aqueles aspectos que so apresentados deli- beradamente pelacultura, como va- lores e formas vigentes. O que nos espanta na nova mulher, portanto, no é a sua recusa dos valores deli- beradamente apresentados, mas a sua_retomada revoluciondria dos Panta, em outras palavras, nao é que_a_nova_mulher se recuse a votar nas eleicdes présidencia americana’, mas que se recuse a usar os cosméticos americanos, os quais, obedecendo a um valor con- sumido (mas que nos condiciona), transformam a mulher em produto de consumo para o homem. Espan- ta-nos, pois, que se recuse a consu- mir para ser consumida, € que co- Gite. Consumidora produtiva, E pode fazé-lo, em parte porque as diciplinas arqueol6gicas comecam a desenterrar, no fundo de detritos imemoriais, cminili- dade ha tempos eliminadas, esque- Cidas e julgadas como “superadas”. Expiicagbes hist6ricas do papel e da funcdo da mulhér na socie Gade obviamente nio faltam. Mas tais explicagées — como a dialé- tica que diz respeito & divisio de trabalho e subseqiiente dominagio da mulher pelo homem —-embora provavelmente corretas, no moti- yam a revolugao feminina atual. E isto € motivo para um otimismo reservado: talvez a revolugio atual (endo apenas a feminina) nao falhe como falharam as vitorianas (inclu- sive a russa)*, porque a atual visa mudar o homem ¢ a mulher, nao apenas superficialmente (substi- twindo 0s valores deliberados por outros, igualmente deliherados), mas radicalmente (transvalorando 40 tioeaen cerulenin pounttea 30 fides Rovaieto’ Rises pers insets, "ee 1 "ae metieats, “wat Sous do onde rents sus SesRgureso com reluglo + Anttico & um sestogi. 1aa, Ttlade pelo autor, ae Serve "do sorantivo ort todos os valores, inclusive os consu- midos)- Ewalvez 4 révolucao atual possa fazé-lo, na medida em que se da conta de que o homem e a mulher so impotentes para valo- rar permanentemente e desvalorar permanentemente. ‘Tampouco faltam explicagdes bioldgicas da funcaio da mulher na sociedade. Mas, felizmente, expli- cages do tipo bioldgico (que sao as mais degradantes, porque redu- zem fendmenos humanos ao nivel animalesco), estéo perdendo rapi- damente seu impacto, na medida em que as ciéncias em geral, e as biol6gicas em particular, libertam a humanidade da determinagao do corpo humano. A pilula anticon- cepcional separou para a mulher a funcao libidinosa do sexo da sua funcao procriativa, a inseminagao artificial brevemente separard para ela a procriagéo do préprio ato sexual, e num futuro previsivel os métodos incubat6rios separaro a procriagio da gravider. (a qual se tornaré to arcaica quanto atua mente é arcaico devorar animais vivos). Demaneira que tais caracte- risticas biolégicas da muther deixa rio de condicionar sew papel na sociedade, como ja deixou de con- diciona-la o peso do seu corpo € 0 comprimento de seus cabelos. A revolucdo atual,-que nio-€ mati vada nem jente nem bis- torieament ical_e_penetra profundamente © ndoapenas nas anteriores. Pois a mu- Iher € determinada na sociedade por fatores muito mais fundamen- tais que 05 econdmicos e biolégi- cos, embora esses fatores estejam, todos eles, encobertos pelo lixo do esquecimento. _Escondem-se na- queles depésitos de lixo chamados: “inconsciente” ou “mito”, ¢ de la ressurgem espontanea ¢ periodica- mente para terrorizar mulheres 4a homens, nas formas impudicamen: te nuas como 0 é a mie devorada e © amante castrado, ou nas formas castamente mascaradas pela simbo logia feminina: patria, justica, ver- dade, vitéria. Desenterrar esses fa- tores, assumi-los enquanto determi- nantes embora ha muito consumi- dos, ¢ depois tentar informé-los valorizé-los, esta parece ser a meta da revolugao ora em curso. E um desses fatores em vias de ser desen- terrado é aquele que determina a mulher enquanto consumidora. De uma perspectiva fenomeno- Wogica (e @ fenomenologia é um método potente da nova arqueo- logia), revela. cto fundamental E necessario notar, no entanto, 0 seguinte: hé formas convexas na mulher ¢ cn cavas no homem (tanto nos seus corpos, quanto nos seus gestos, quanto nas suas formas mentais). A oposigao masculino:feminio n20 & oposicao homem:mulher, mas oposicao maseulinidade:feminili- dade dentro da préria mulher e do proprio homem. F banal dizer que concavidade © convexidade sao complementares, ¢ que, quando conjugadas, formam um todo. igualmente banal dizer que conca- vidade e convexidade sao antiteti- cos’, e que a sintese de ambos é su peragao de ambos. Muito mais sig- nificativo é dizer que a concavida de © a convexidade se’ sobrepéem mutuamente, de maneira que a prdpria conjugacao de ambos pode ser vivenciada’ e comprendida apenas do ponto de vista da conca vidade ou da convexidade. A tragé- dia da mulher na sociedade € exata- mente esta: a conjugacao de conca: vidade e convexidade é vivenciada e comprendida pela cultura exclusi: vamente do ponto de vista da con vexidade, j4 que 0 ponto de vista da coneavidade foi consumido ¢ joga do no lixo no fim do paleolitico (ou até antes). De maneira que a mu- Ther pode assumir a sua feminili- dade apenas do ponto de vista mas- culino. Até muito: recentemente (até a revoluco do lixo), ponto de Vista feminino sobre a feminili- dade (¢ a masculinidade) nao cra apenas indisponivel, mas inimagi navel. E isto € twagico nao s6 para a mulher, mas igualmente, embora em segundo grau, para o homem. Atualmente, no entanto, embora 0 ponto de vista feminino continue inacessivel, tornou-se pelo menos nebulosamente imaginavel O ponto de vista masculino pode ser elaborado com relativa facili- dade a partir da observacao do ambiente cultural no qual vivemnos, i4 que nossa cultura foi projetada desse ponto de vista. E aprox: damente este: a concavidade & isto mesmo # concavidade é o lu- gar do engajamento e a meta da convexidade, © € na concavidade que a convexidade se realiza. “En- cher 0 vazio” é, portanto, 0 leina que inspira toda @ nossa cultura, e este lema pode ser lido tanto negatt- vamente como o_horror_do_va- cuo”, quanto positivainent®’ como “a conquista do espaco”. Ao nivel nedlitico o Tema pode ser visuali zado como semente lancada no sul- co do campo, € a0 nivel tecnolé. gico como foguete lancado no cam- po gravitacional de Venus. Trocan: do em mitidos tal lema, pode dizer- se que a masculinidade produz pa- ra 0 consumo pela feminilidade, E esta sera talvez uma resposta ingé nua & pergunta: “Qual € o papel da mulher na sociedade de consumo?” “Consumir 0 produzido pelo ho- mem” Bem no fundo isto implica que a mulh vezes glorificada, Em termos caté- licos, ela € ora célice do pecado, ora cheia de graca, mas sempre vasilhame. E por ser lata, cla é mero objeto para o homem, embo- ra seja talvez o objeto exclusivo para o homem. A tragédia justa- mente é que ela é necessariamente também objeto para si propria, ja que ela pode ver-se apenas do pon- to de vista masculino. Tal auto- ~coisificacto da mulher é trégica nao apenas para ela, mas também para o homem que por isto € inca- paz de encontrar nela seu comple- mento. O que nela encontra € ape- nas uma realizacio parcial de si préprio, realizagio essa na qual ele proprio € consumido. Porque a mulher, por ser lata de lixo, nio consome apenas os produtos do homem, mas, com isto, 0 proprio homem pouco a poucd, e, mais ainda, o homem inteiro de corpo e alma. Ela € 0 precipicio no qual 0 homem se langa no seu engajamen- to cego contra 0 vazio, De maneira que a mulher é consumidora nao apenas dos produtos do homem, mas do préprio homem, e 0 ho- mem vive para ser consumido por ela. Ela é 0 futuro do homem, contra 0 qual se ditige, mas tam- bém a morte do homem, e serd Aevorado por ela, : E claro que 0 ponto de vista Seal ¢ ° pepe! de mua? masculino, que determina sorratei- Fanon me te ramente a existéncia de todos nés, homens e mulheres, implica nao apenas atitudes existenciais, mas também teorias. Nao apenas agi- mos ¢ sofremos de uma forma im- posta pelo ponto de vista masculi- no, mas também explicamos as nossas agSes ¢ sofrimentos desse mesmo ponto de vista. Com isto, estamos fechando ao nosso redor € em nosso intimo um circulo vicioso. Criamos ideologias (religiosa, filo- s6fica, artistica, politica, cientifica) a sustentar a nossa praxis masculi- nista. As revolucionérias atuais chamam a essas ideologias “chauvi- nismo masculino”, sem se darem conta, na maioria das vezes, do quanto é profunda e onipresente tal ideologia, e do quanto o chauvi- nismo masculino permeia a pré- pria atividade revoluciondria des- sas mulheres. A revolugao, se for sucedida, nao acabaré apenas com estas ouaquelasreligives, filosofias, artes, politicas e ciéncias, mas com todas as religides, filosofias, artes, com toda politica, © talvez com toda ciéncia (0 que é mais penoso). Porque acabara com todos os nos- sos conceitos de produsao e con- sumo, de acdo e paixdo, portanto de vida, como nés a concebemos. E, no entanto, felizmente, e tal- vez necessariamente, no instante mesmo em que o ponto de vista masculino comega a esgotar-se na forma da sociedade de consumo, do lixo onipresente, e tambem na forma do esvaziamento de todas as ideologias, comeca a tornar-se ima- gindvel, embora ainda de maneira nebulosa, © ponto de vista femi- nino. Talvez seja este: a concavi- dade é a origem da convexidade. (E preciso alertar contra o peri- go de imaginar 0 ponto de vista feminino como paralelo ao masculi- no. Isto seria uma forma sub-repti cia de chauvinismo masculino.) © convexo 6 convexo, porque expelido do céncavo, ¢ mantém, 43 portanto, a forma do céncavo em negativo, como a matriz impée, em sua concavidade, a forma convexa origem cavexidade, 1 mas tam- bém o lugar da aferi¢ao: 0 conve- XO Volta para 0 Concavo, para Veti- ficar 0 quanto se manteve fiel na sta forinia,“€"O quanto gastou’ la {ora de sue forma. O concavo € a verdade_do_conyexo. Portanto 0. cBRAVE, embora oco, no € vazio. , ‘Vaio EO tspago para 0 qual o céneavo expele 0 convexo, e quan doo convexo volta para o concavo, este o salva da vacuidade. Este ¢ 0 engajament6 da concavidale: expe- lir corajosamente © convexo (por- tanto parte de si mesmo), e retomé- lo, a fim de salva-lo da perdicao, destarte salvando-se a si mesmo. O homem é, para a mulher, aquela parte de si prdpria que ela lanca, wifi Sactificio corajoso, ao nada que € 0 mundo, ¢ que ela retoma, facque-oNomem€-a forma da mulher viver. O homem pertence & mulher no mesmo sentido em que se diz: “minha vida”. E no homem que a mulher se realiza, e nao tem sentido, deste ponto de vista, dizer “se que o homem se realiza. Admitamos que esta tentativa de imaginar 0 ponto de vista femining &Cxtremamente nebulosa € possi- velmente falha. Nao por ter sido feita por homem, jé que ha femini- lidade também nele, e j4 que ele pode reconhecer-se na mulher que ama. Mas por nunca ter sido reali zado este ponto de vista, © por serem portanto os seus aspectos inteiramente imprevisiveis, Mas, a despeito disto, algumas afirmativas podem ser arriscadas. Por exemplo esta: uma cultura projetada do pon- to de vista feminino nfo seria his- térica como o é a nossa. Nao o seria, porque nao visaria a morte, | tiias 6 eterno retOrno~Ge"ATOFTE ec | rarcada'por ‘dade (progress), mas por ule eas Na que-riao-témn do formulavel, por ser ini- maginavel). De nada adianta ai as culluras matriarcais do paleolitico para encontrar mode- 168, porgue tais culturas nao foram Tanrcaddas de mrpomntG de vista Tent nino; mas ve~uma posicag cifusa Anterior a dicotomia, Outro exem- ‘plo de uma afirmativa a ser arrisca- da: uma cultura projetada do pon- to de vista feminino no seria pro- dutiva como 0 € a nossa, € no resultaria em sociedade de consu- imo. Nao 0 seria pela mesiaa falta de lineatidade. Do ponto de vista ‘MaSculiiiG produgao leva ao con- sumo do produzido. Também do ponto de vista feminino ocorre © mesmo. Mas com algo a mais: © consumo presupoe a produicio, do | pressupoe produz o homem, para consumi-lol, nitre cae e Consumo, ato ¢ paixao, tao nitida do ponto de vista masculino, torna- pois ambivalente do ponto de vista feminino. Do ponto de vist feminino, “quando constimo, © ‘WoAaaC%0, para ser agao, © paisional ¢ toda paixao, Hiqile uma cultura assim formada nunca poderia ser captada pelos conceitos liberais e marxistas de “produgiio” & “consumo”. E isto equivale dizer que ela nao seria dialética, nem economicamente. hem sob outros aspectos. Muitas outras afirmativas quan- to a. uma possivel cultura feminina poderiam ser arriscadas, em tent tiva desesperada de querer prever uma cultura que talvez venha a substituir a nossa, para salvar-nos do lixo. Sao tentativas desespera- das, porque, se fosse previsivel, tal cultura ja existiria ou seria imagi- nada. E a mais arriscada de todas seria aquela que procurasse res- ponder a pergunta: “Qual seré 0 papel do homem em tal cultura? Se- r4 ele to auto-alienado quanto 0 & a mulher na nossa?” Devemos, com humildade deixar aos futurdlogos, esses chauvinistas masculinos extremados, a tarefa de prever o futuro. Mas embora nés ngo possamos prever o futuro, po- demos © devemos espetar por ele. F esta é uma das nossas esperan- as, seno a tinica que nos resta: & nossa cultura, ao encalhar nas praias da plenitude dos tempos (is- to € no lixo onipresente do nosso ambiente € no nosso intimo), pode- 14 ser salva por uma reformulac3o ,fevolucionaria do ponto de vista feminino. Mas nao sera esta pro- pria esperanca manifestagao do ponto de vista masculino, por ora L escape? Por certo: a revolucao feminina é apenas um entre os muitos aspec tos que caracterizam a revolucao que varre a atualidade. Talvez ndo devamos exagerar este aspecto. Mas nao sera verdade que todo fendmeno se revela inteiro sob no importa qual dos seus aspectos? De modo que podemos ver toda a revo- Juco atual sob o aspecto da “revo- hugo feminina”, como também po- demos vé-la, toda, sob nao importa que outro aspecto. Uma das limi- tagdes humanas é a de no poder ver o mundo simultaneamente sob varios aspectos. Como talvez “Deus” possa. E 0 aspecto aqui oferecido nao é pior nem melhor que os outros possiveis. O titulo deste ensaio é, no 0 esquecamos, “A consumidora con sumida”. Na sua primeira parte foi 44 empreendida a tentativa de escla- recer um pouco o problema da mulher que consome. Resta agora tentar juntar os fios ¢ levar o argu: mento apresentado a bom termo ( que se aceite a palavra bom” com muita reserva). Talvez possa ser dito o seguint A nossa sociedade é rotulada, por chavao gasto, leviano, mente duvidoso, como sendo “de consumo”. O que tal chavo impli Uma sociedade de telespectadores. Pode ser que o implicado pelo cha- vo seja 0 caso. Mas mesmo se 0 for, nao é isto que caracteriza fun- damentalmente a nossa sociedade. Oque a caracteriza, pelo contririo, € a sua impoténcia para fazer desaparecerem do ambiente os pro- dutos gastos, isto é: para consumir num sentido radical do termo. De forma que se trata de sociedade muito mais caracterizada por um passado nao digerido que por aber: tura para o futuro. Em suma: uma sociedade do lixo. Tal situagao se revela, sob a ana- lise empreendida, a partir do ponto de vista da equacao masculinidade : feminilidade = ? como resultado: derradeiro, € quig inevitavel, de uma realizacio milenar de uma visio masculina do mundo. Com efeito: se a visio masculina implica na tentativa de tapar buracos, ta- pé-los com lixo € 0 método mais efi- ciente, (mais “racional”, como se diz atualmente). E 0 resuiltado, ob- viamente, é angustiante, pois a an- gustia é 0 clima que surge quando todos os buracos forem tapados. Dentro de tal situagao angustian- te cabe & mulher um papel especi- fico de consumidora. Este: no fun- do é ela 0 buraco a ser tapado. De maneira que, & primeira vista, cla & a grande consumidora dos pro- dutos da cultura, A segunda vista, ela € a grande consumidora, ja que, para o homem, ela propria nao passa de objeto, produto de cultura, E & terceira vista ela volta a ser a grande consumidora, mas desta vez a consumidora_do mem. Em‘ suma: @ Cultura, re zagao de um projeto masculino, termina naquilo que projetou no inicio: no grande buraco tapado. Neste final de cultura. a mulher. Morte E sob este aspecto que ela é 0 sentido ea finalidade da vida do homem. E de sua prdpria vida, pois ela” se vé apenas do ponto de vista, do ho- mem. De maneira que podemos( dizer que o engajamento em nossa} cultura esté se revelando atualmen-} te como paulatina busca da morte um suicidio que se.est4.consuman- do (e consumindo) rapida e inevita- velmenté. Talvez unt dos miles bE silares da nossa Cultura seja_o da Grande“ Mae devoradora. E esse “mite se Tealiza ataalmente na for- ma da Grande Bomba, da Grande Poluigao, da Grande Cosmondu- tica, (talvez da Grande China). Em suma: A Grande Noite inicial ¢ a Grande Noite final esto cercando © dia efémero da nossa cultura, Mas a mulher pode ser consumi- dora também em sentido radical- mente diferente deste. Em sentido que foi profundamente recalcado por nossa cultura. A saber: pode ser consumidora no sentido de sal- yadora: Como o possa ser é muito “dificil dizer, pelo simples fato de cla nao 0 ser, e nao ter sido autori- zada, por nossa cultura, a sé-lo. ‘Mas ha sintomas no mundo atual de que esta potencialidade latent na mulher comece a ser desenter- rada de debaixo de toneladas de lixo acumuladas pelos milénios, a fim de tapar também este buraco. ‘Talvez nao seja inteiramente perdi- da a esperanga de que, exatamente no_momento no gual a Grande Noite ameaga'a devorar-nos, seja. mos salvos pela Grande Mae sub- J¢e, Embora, paradoxalmente, ET Grande Noeea Grande Mag se jam idénticas. E, "para continuar o patadoxo, ser Salvo €0 mesmo de .ser_consumido. Mas, antes qué se caia em misticismo, perigo sempre latente quando se contemplam si- tuagées de limite, € melhor parar aqui sem penetrar nas regides, que até os anjos tem medo de abordar.

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