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#35-36 Bstenco rnc Toxo) Gere Da tes oes eae mera Cones RUN) aos eTS Drei Satta Oe Cs esta! Bedro Moreira Salles Doatrees ere ey Diet sete Danes Teun Merce G CCG) Dr) ee Soo raretey bentixennat) DIRETOR ExECUTIVO (ore OL eae eee) Peon oe oven pase eee ee) Con cen eee eee oe eee eee Sieararaes eters noes erry SSUES aN inc ee eR eA Peco ra finer esupeiey rerun eet een Goer Cis aan rn ee re EOUe Reo RN Coe tanec Tea PI as Pen RS ey Goer er eat re re Greet ent itete aeceeevin Setar Rapeerrery Nas roaees Newensehwander Brecon isa ener tara tees tren Diino neem eens rey Cover eee rect Nes era ea ee A ee eee os eee Scceeecine Sane osIny hoa Tees recA Ri atc Ser on tees aoe ere Pearce rem rene er en CSS nikce ae eastern Dinca Seer enone at ea reeR S Pe oan pr eLearners Ramey ere Yee vee ee questi trés vee por ano: marso,julhe enovembro. Poe OL Sarr ey Drees eisai Done re ercetni rss Coo ear tenet Eyre oe aero Cen omer reve arKer ery See Gets ere Le Havio Cintra do Amaral, Huendel Viana, JalianaMiasso, ICSE Buea on SRA gee Corer gett EET SO EL TUN Conte a ry Instituto Moreira Salles Pa nie eee aes Rewer ctirere es Cobiee eens ater eet Sees Deana ee a ere ates responsabilidade exclusiva dosautores. Os originais CVn owen tare eee eet SSN BOLT Pees Tene ano Tania Rassaeecenn ering 40 Afropessimismo Frank B. Wilderson m Bianca Leite Dilaceragies coloniais,2020 © BiancaLeite Uma agenda negra radical apavora a maior parte da esquerda porque emana de um sofrimento parao qual no h4 reparacio ou redencaio imaginaveis 1 ‘Um surto psic6tico nio é brincadeira, especialmente se vocé sabe que nao pode chamaraquilo de loucura, porquea loucura presume uma mudanca de clima, uma temporada de sanidade. Eu gemia. Chorava. O lengol amarrotado sobre a maca ras- Pava quando eu me mexia. Sentei quando eles entraram no quarto. Ninguém ia me amarrar. Mas no desci da maca por medo de dar motivo a cles. No brilho da fluorescéncia, eles omédico ea enfermeira—eram brancos como pé. A maca cha- coalhava enquanto eu tremia e chorava. Eles nao se aproxima- ram, Nao pediram ajuda, nem para eles nem para mim, um monstro afisico preto demais para que alguém se importasse. Era assim que eu enxergava o jeito que eles me enxergavam. Eminha necessidade de livrar os dois de mim eclipsava meu desejo de ser curado. Mas eu nao conseguia falar. Nem para dizer que queria protegé-los de mim. Bombas de fragmentacao explodiam no meu coragdo. Apertei meu peito e gritei. Eles deram um passo atrés? E 0 seu coragao?, o médico perguntou. Eu queria tir. O engragado da boca é que ela precisa fechar, e também abrir, para que uma palavra se forme. A minha nfo fechava; se fechasse, eu sabia que nao ia abrir. As dobradicas da minha mandibula produziam gemidos ow uivos, mas nao palavras. Pensei: que engracado isso! Respondi para ele com as palavras de um passaro degolado. Vocé fica apertando o peito, ele disse. Est com alguma dor forte, algona re- io do coracdo? Fiz que sim com a cabega, Me conte mais, ele disse. Mas senti meus labios se retorcerem de um jeito grotesco; nfio queria cair no choro de novo. Ele disse que eu nao precisava ter pressa. A enfermeira sacudiu a cabeca gravemente, como se olhasse um filhote com nariz de pug numa jaula. Eu sen- tiaanecessidade de responder a seu olhar com um latido de filhote com nariz de pug. A medida que minha necessidade crescia, a tristeza dela aumentava, Meu latido e os discos tristes dos olhos dela estavam em rota de colisiio, Au! Au! Me dé wm biscoito! Minha cabeca estava rachando, e meus flancos também, mas ndo no mesmo registro de emogio. Dom Barriga-Sorridente se ergueu de meu torso e encontrou o sr, Por-Que-Caralho-Eu-Estou-Vivo, que desli- zara por meu crénio enfurecido e aterrissara em minha garganta. A tristeza secou nos olhos da enfermeira, Bla voltou a ser a mulher amedrontada de antes. O amor pelo filhote se metamorfoseara em sua necessidade de auto- Preservacdo contra a enorme massa negra com cabelos emplastrados ¢ des- penteados, e globos de fogos de artificio explodindo nos buracos onde deviam estar os olhos. O médico se sentou numa banqueta, com um dos pés na barra inferior, ou- tro no chio. Mas a enfermeira continuou de pé. Ele massageou uma exube- rante sobrancelha com o indieador e esperou. Rirébom, ele disse. Por que vocé no conta o que é to engragado? Eu queria dizer: tudo bem se eu latisse? Per- cebi, porém, que ia parecer mais doido se pedisse permisstio para latir do que se mostrasse um pouco de iniciativa e simplesmente latisse sem fazer maiores Ninguém tinha me levado para a clinica estudantil. Fui até lé por conta prdpria. Enquanto estava sentado na maca, chorando, com medo do medo do mundo nos olhos domédico e da enfermeira, s6 consegui responder a uma das perguntas deles (tem alguém com vocé?) sacudindo a cabega. Como vocé che- gou aqui? Quem trouxe vocé? Lagrimas cicatrizaram meu rosto em resposta. Voce veio dirigindo?, um deles disse. Sacudi a cabeca. Eles notaram as chaves decarro na minha mio, Eles ainda nfo tinham medido meu pulso nem minha pressio. 0 médico me mandou descansar. Disse que voltava dali a pouco. Quando eles sairam, as luzes fluorescentes perfuraram meus olhos como adagas de gelo que ficavam penduradas nas mansées durante os invernos 43 da minha infincia, Bu ndo confiava o suficiente no meu senso de equilibrio para deslizar para fora da maca e apagar as luzes. Ndo queria ficar deitado de brugos tendo apenas esse lengol enrugado e descartével entre a parte da frente do meu corpo e um colchio frio, que me repreendia como uma tosse seca quando eu me mexia. Portanto, fiquei de costas, Rosas explodiam quan- do eu fechava as palpebras contra 0 clard Sera que eu estava me barbeando hoje de manha quando surtei? Eu es- tava de barba, entio nfo, nao estava me barbeando, Mas eu sabia que tinha comecado diante do espelho. Estava lavando 0 rosto quando a estrofe de um. poema me veio cabega. Comecou com uma sensagio de calor no rosto e um aperto no peito. © mesmo que eu sentia na infiincia naquelas manhis ‘em que nio conseguia encarar o dia de insultos em uma escola fundamental para brancos afastada das éguas de um longo lago pontilhiado por salgueiros. Minha carne zumbia como se minha camiseta fosse feita de insetos, ea pele das minhas costas se rearranjava do mesmo modo que fazia quando minha mie fechava a porta atrés de mim toda manhi. A meméria daquele menini- nho apavorado que respondia pelo meu nome gemia nos meus ouvidos como © eco de remos num mar calmo, deserto. Remei para a praia, onde todas as. dores da minha infancia estavam a espera, Sou um aluno de pés-graduagio de meia-idade, eu disse para a imagem que o espelho arruinara. Eu. Tenho. Tudo. Sob. Controle. Mas a pontada de dorno meu peito nao escutava. Ela queria lembrar e ouvir o poema que, um momento antes, fluiu para dentro e para fora da minha cabeca. Eusabia que tinha que sair antes que morresse de infarto sozinho no meu banheiro. Andar parecia me fazer querer desmaiar. O apartamento era pe- queno, s6 um banheiro, depois um quarto, uma cozinha e uma sala, Em cada cémodo, encontrei algo para minha mio segurar—a porta do closet, o fogio, © encosto de uma cadeira na cozinha, as filas de prateleiras de livros que aca- bavam na porta da frente. A porta da frente se fechou atrés de mim. Fui tomado pela vertigem, olhando aqueles sete degraus da descida, co- ‘mo se estivesse olhando um barranco ingreme. O impulso de desmaiar e o impulso de vomitar trocavam socos no meu corpo. Carma ruim, pensei, através de olhos timidos, borrados. Achei que ia apagar. Meu Honda Civic dormia no meio-fio como um pequeno lagarto azul. Minhas chaves arranha- ramo corrimao de ferro forjado enquanto eu cambaleava na descida. Vamos pedir doces de Halloween, pensei sorrindo, lavamos 0 rosto e estamos com o uniforme da escola. Um animal em acesso de firia insana lutava para se libertar, rasgando minha pele numa chuva de sangue e bile. Ele queria rir. Bu queria chorar. A palma de uma mao pressionou o vidro da janela. Dedos ‘mexeram nas chaves. “alguém me ajude”, solucei na minha garganta, torcendo para nenhum, branco escutar. “Por favor, alguém me ajude.” Agora, deitado na maca, eu lembrava dos fios de vmito prateados se en- rolando no capé do meu carro. Depois, sem saber como ou por que, eu estava num Gnibus rumo ao centro de Berkeley. Eu conseguia me ver me vendo pelos olhos dos passageiros do énibus, enquanto eu tombava para um lado e chorava de mansinho. Faga eles se sentirem seguros, pensei, embora jamais tenha me sentido tao vulneravel. Eu pensaria isso novamente na primeira vez em que a enfermeira e o médico entraram neste sepulcro branco em que estou deitado. Faca eles se sentirem seguros, a regra primordial da di- plomacia do negro. Agora, sozinho na clinica, trombones de luz faziam bolhasnos meus olhos, ea sala esfriava, Mas se eu os fechasse, uma série de vidas passadas derra- ava pelo meu crdnio como um trem que houvesse descarrilhado sobre um barranco. Cada vagio daquela cascata era uma carruagem de tempo. A lo- comotiva era o tempo do agora, o tempo deste momento na maca. Depois, vinha tombando uma carruagem de tempo que transportava minha vida no apartheid da Aftica do Sul, onde as promessas de Mandela cintilavam e se asfixiavam como os iltimos suspiros de postes de luz. Todo o derramamento de sangue por uma nacio com bandeira ¢ hino, a neblina da mitologia ¢ 0 amor firme de seus amigos, que censuravam a chamada extrema esquerda com: “Agora, camaradas, vocés tém que entender que principios nao enchem bartiga”. 0 vagio que despencou no desfiladeiro a seguir era os anos 1980: um compartimento de primeira classe de nervos ¢ ilceras. Bu cra um estu- dante recém-forjado pela faculdade que achava que a dor, como qualquer outra coisa na vida, podia ser negociada no pregiio da bolsa de valores. Por ito anos, da formatura em Dartmouth até emigrar para a Africa do Sul para combater o apartheid, trabalhei como corretor de ages no varejo. O primeiro corretor de ages negro no Minnesota, segundo me disse o gerente de vendas que to orgulhosamente me contratara. 2 Aqueles oito anos quase arruinaram minha satide. Um lado do rosto se con- traia ¢ tremia. Uma tilcera queimava meu est6mago. Minha médica nio foi a primeira a fazer esse prognéstico. Jasmine, uma secretéria no escritério central da Merrill Lynch em Wall Street, que conheci num verdo, durante ‘um treinamento, também disse que eu estava na profissao errada. Bla tinha Tazo, e eu sabia na época, mas o dinheiro é um grande motivador; agora eu tinhaa chance de gastar todo aquele dinheiro num longo tratamento caso nao fizesse algo rapidamente, 46 “Vocé nfio é um capitalista”, minha médica disse. “Vocé no tem estOmago pra isso.” “Eu quero dinheiro. Eu preciso de dinheiro.” “Vocé toma oito xicaras de café por dia. Sua bochecha pisca igual a uma lampada de eddigo Morse. Vai esperar a tilcera ficar do tamanho do meu min- dinho, é esse o plano?” Tentei diminuir o ritmo, o que significa que minhas vendas cairam, e logo ficou claro que era melhor sair antes que o gerente de vendas me cons- trangesse e me botasse para fora. Consegui um emprego de garcom num clube exclusivo a beira do lago ~ que sé tinha aceitado judeus no final da década de1960 e 6 teve seu primeiro s6cio negro em meados dos anos 1970. A clientela ia desde Dan Aykroyd e Jim Belushi, cuja entourage deixava 0 saldo de festas precisando de obras, para dizer o minimo, até as velhas fa- milias de sangue azul que haviam tentado manter meus pais fora do bairro em 1962. Um dia, entrei no salio de festas equilibrando uma grande ban- deja com nove saladas Caesar no meu ombro. A bandeja balangou e quase caiu quando vios rostos na mesa para a qual eu tinha sido mandado. Eram colegas ~ antigos colegas - da empresa de corretagem que eu tinha largado dois meses antes. Aos poucos, fui lembrando da mentira que contei a eles quando sai. “Cansei de trabalhar pro sistema, meus camaradas. Vou ver 0 que acontece trabalhando por conta propria vendendo aces e fazendo planejamento financeiro.” Uma a uma, pus as saladas na mesa. Meu nome explodiu na boca deles, “Frank?” ~ uma pergunta envolta em sobressalto. Pedi demissio uma semana depois — 0 que nao fazia sentido, eles tinham me visto, a mentira tinha sido revelada ~ e fui trabalhar ganhando menos num museu de arte, ‘Trabalhei como orientador de ptiblico no Walker Art Center, que tinha vista para o centro de Minneapolis, e lambi minbas feridas do Calhoun Beach Club e de oito anos de faléncia moral como corretor de agdes. A Pri- meira Intifada tinha acabado de comegar na Palestina, ¢ eu tinha um amigo muito querido de Ramala que também era orientador de ptiblico no museu, Onome dele era Sameer Bishara. Ele era fotégrafo e tinha estudado no Insti- tuto de Arte de Minneapolis. Nés tinhamos a mesma politica: revolucionéria; 0 mesmo signo: dries. Duas pessoas que frequentemente estavam erradas, mas que nunca tinham diividas. “Se a gente estivesse num avio”, Sameer me disse uma vez, “e 0 avido caisse no deserto, eos sobreviventes formassem um ‘grupo, algunas pessoas seriam encarregadas de encontrar agua, outras, de achar comida e lenha, ¢ a gente precisaria de uma equipe para construir um abrigo com o que pudesse ser usado dos destrogos. Mas vocé, Frank, vocé seria cara queia ficar sentado dando ordens pra gente.” Preferi nao estragar o seu prazer dizendo que ele mapeara em mim caracteristicas que se aplicavam. igualmentea ele. ‘Unido Nacional Afkcana do Zimbabuee ‘Unido Popular Africana do Zimbibue (an ez, nas sigs er ings) foram ‘organizagSes militantes que combsterara ‘odominio branco no pais depois que o {governocolonial britnicocriouo Estado dda Rodésia, e965, para evitar um govero afticanonatvo.Coma Independénea, onquistadaer1980, tornaram-se partidos politics. 8. do] 47 Amaior parte dos orientadores de piiblico era artista, escri- tor ou estudante. Mas Sameer era 0 tinico que compartilhava minha politica de insurrei¢ao. Criamos rapidamente um vin- culo e mantivemos distancia dos outros. Contei para ele dos meus sonhos de faculdade: ir para o Zimbabue e lutar pelo ZANU/ZaPU; ow ir para Nova York e me unir a Assata Shakur no Exército Para Libertagio dos Negros. Sameer desejava vol- tara Ramala para dar uma contribuigao & Intifada, que consi- derava mais significativa do que as palestras que fazia para os. progressistas de olhos marejados em Minnesota. Ele tinha 25 anos. Eu tinha 31. Em cinco anos, eu teria a mesma idade de Frantz, Fanon ao morrer sob custédia da cia. Quando morreu, em 1961, Fanon tinha fugido da Martinica, sua terra natal, en- trado parao exército de De Gaullee se ferido em combate com 0s nazistas. Ele também tinha completado a residéncia em psi- quiatria e medicina, entrado para a FLN na revolugio argelina e escrito quatro livros sobre revolugio e psicandlise. Eu tinha cinco anos para alcane4-lo — um sarrafo alto imposto pelo de- ménio encarregado de me fazer passar vergonha. A vaidade dos lugares inferiores era meu habitat. Em grande parte, isso valia também para Sameer. Que desperdicio, ele me disse, fo- tografando escandinavos e mergulhdes quando devia estarem. casa fazendo bombas. Nossos pés eram diferentes, mas tinham os mesmos calos. Fiquei convencido disso quando, certa ma- nh, ele apareceu para trabalhar sorrindo, embora seu olho direito estivesse ligeiramente inchado e fechado. “Ontem a noite”, ele esclareceu, “um amigo da Palestina e eu encontramos duas mulheres lindas. Brancas, claro”, ele acres- centou baixinho, e nao me importei em questionar o “claro”, porque tinha certeza de que ele nio estava errado. Que“branco” significa belo, obviamente, é a mensagem com que somos ali- mentados durante toda a vida. Protestar contra isso é como di- zer “o problema nao 0 dinheiro” depois que alguém te deu o troco errado. Sameer disse que ele e o amigo podiam ter levado as mulhe- res para casa se trés leuwaitianos ndo tivessem entrado no salio, Quando um dos kuwaitianos passou uma cantada na mulher com quem Sameer estava conversando, Sameer disse, gentil- mente, que ele devia voltar para sua mesa, Osujeito zombou: “Voeé nem tem um pais”. Mas ele se afastou. A medida quea noite avancava, os kuwai- tianos mandaram champanhe para a mesa de Sameer, Depois, 48 os trés se aproximaram. Eles se ofereceram para levar as mulheres para uma festa exclusiva em uma cobertura no subirbio de Edina. “$6 vooés duas”, disse o kuwaitiano que Sameer tinha mandado passear, “no esses dois apatridas.” Como os kuwaitianos eram trés contra Sameer € amigo, os kuwaitianos acei- taram a oferta de Sameer de discutir os “detalhes” da festa no estacionamento, Os dentes do relégio de ponto perfuraram o cartio de Sameer. Fui atrés en- quanto ele vestia o blusao azul do museu que todos usévamos. Andamos juntos até a galeria central. Enquanto eu continuava caminhando, para assumir minha posi¢do no nivel do mezanino, ele sorriu e sussurrou: “Batemos naqueles kuwai- tianos até cansar”. Oestopim para a briga no estacionamento nao foi exatamente o orgulho de machos se enfrentando pela posse de duas fémeas proibidas — embora isso fi- zesse parte também, claro. O que mais irritou Sameer foi os kuwaitianos tira- rem sarro dele por nao ter patria. Bu achava que estévamos na mesma situagao, porque imaginava que meu sofrimento era andlogo ao dele. Na época, eu nao era um afropessimista. “Também teria batido neles”, eu disse. Uma colina alta coberta de grama ficava ao lado do prédio que abrigava o Walker Art Center. A colina nao existe mais, foi removida, como num trata- mento de canal, para dar lugar a um restaurante. Mas quando ainda era uma colina, Sameer eeu almogavamos la, Na primavera, quando o frio cessavaeocéu limpava, 0 topo da colina oferecia um panorama dos cisnes brancos que dese- nhavam o lago do Loring Park, Carros distantesnnas ruas do centro da cidade fais- cavam como lantejoulas ao sol. E.daquela colina dava para ver a cdipula de cobre dabasflica de Santa Maria, corroida pela neve derretida e pela chuva violenta até ficar com um brilho verde-azulado que me fazia pensar queas ruinas so 0 tinico objeto genuino do amor. A colina também era um pontoa partir do qual vocé via amorte acontecer. Logo abaixo dela, ficava o Gargalo, um pontoem que trésruas convergiam para se transformar numa s6, um lugar onde alguns dos acidentes mais horrendos ocortiam. Quando adolescente, lendo romances de espionagem, eu imaginava o Gargalo como um trecho da Autobahn alema onde o infeliz es- pido de John le Carré, Alec Leamas, viu duas criangas acenarem alegres da janela de um carro pequeno; e, no momento seguinte, viu o carro ser esmagado entre dois grandes caminhées. Foi naquela colina que Sameer me contou do primo morto em Ramala~explodido enquanto fabricava uma bomba. Mas ele no era um homem-bomba. Foi um acidente. Sameer se sentia culpado, como os sobre- vviventes tantas vezes se sentem, independentemente de quio longe no espagoe no tempo estejam de seus mortos. Ele sobreviveu por estar aqui, eno lé. Enquanto meu amigo desabafava, a vida continuavaa correr la embaixo, sem. dar a minima para nés. A certa altura, Sameer falou sobre ser parado ¢ revis- tado nos postos de controle israclenses. Falou de uma maneira que parecia nao 50 2-2. David Marriot, Haunted Lif Visual Culture and Back Modernity Newt ‘Brunswick: Rutgers University Pres, 2007. {David Marriot, On Black Men, Nova ‘York: Columbia Univesity Press, 2000. exigir minha presenga. Nunca tinha visto esse nivel de con- centragdo e distanciamento nele. Estava tudo bem. Ele estava passando pelo luto. “Ojeito vergonhoso e humilhante de os soldados passarem. as mios pelo seu corpo”, ele disse. Depois acrescentou: “Mas, a vergonha e a humilhacio sio ainda maiores se 0 soldado is- raelense for um judeu etiope”. A terra tremeu. A ideia de que meu lugar no inconsciente dos palestinos lutando por sua liberdade era o mesmo lugar vergonhoso que eu ocupava na mente dos brancos nos Bsta- dos Unidos e em Israel me deu calafrios. Me controlei e disse a ele que aquele era um sentimento estranho, levando em consideracao que os palestinos estavam em guerra com os israelenses, e com israelenses brancos, na verdade. Como era ossivel que as pessoas que roubaram as terras dele e que as- sassinaram seus parentes fossem uma ameaga menor na ima- ginago dele do que judeus negros, que muitas vezes eram ‘meros instrumentos da loucura israelense, fazendo de vez em quando o seu trabalho sujo? O que, eume perguntava em siléncio, tornava os negros (0 que me tornava) tio intercam- bidveisa ponto de podermos ser misturados como uma salada nas mentes de opressores e oprimidos? Eume vi diante da descoberta de que, no inconsciente co- letivo, os insurgentes palestinos tém mais em comum com 0 Estado e com a sociedade civil israclenses do que com os ne- gros. O que eles compartilham é um consenso, em grande me- dida subconsciente, de que a negritude é um locus de abjecao® a ser instrumentalizado num capricho. Em um momento, a negritude é um fenémeno fobico desfigurado ¢ desfigurador; ‘em outro, a negritude é um instrumento autoconsciente a ser alegremente utilizado® a favor de motivos e agendas que pouco tém a ver com allibertagio dos negros. Ali estava eu, de- sejando, solidario ao desejo de meu amigo palestino, a plena restauracao da soberania palestina; lamentando, solidario a0 lamento do meu amigo, a perda de seu primo insurgente; desejando, quer dizer, a redengio histérica e politica daquilo que eu imaginava ser uma comunidade violada a que ambos ertenciamos - quando, de repente, meu amigo vasculhou as, profundezas do inconsciente de seu povo e encontrou um té- nis suado para atirar na minha cabega: a descoberta assom- brosa de que no apenas eu estava barrado, desde o comego, do desenlace da redengio histérica e politica como também ‘4.Brantz Fanon, Pele negra, mscaras Tramoas. Trad Renato da Silveira Salvador Edulba, 2008,p.146. ‘Jared Sexton desereve economia Tipidinal como “s economia, ou istebuigio earranjo,do desejo eda fdentfeapio (sua condensaeioe seu

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