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Estudo Sumirio da Representacdo do Tempo na Religido € na Magia 31 Estudo sumdrio da representacao do tempo na religido e na magia problema ao qual a presente memoria se dedica foi colocado no tomo V de I’Année sociologique'. Nés suptnhamos que 0s atos € as representacées da religido, e a eles podem ser associados os da magia, comportam nogdes do tempo e do espaco bastante diferentes da nogdo normal. Dado que, diziamos, os ritos € 0s episédios miticos transcorrem no espaco € no tempo, é preciso perguntar como se pode conciliar em relacao a cles a fragmentacao tedrica do tempo e do espaco com a infinitude ¢ a imutabilidade do sagrado, onde eles igualmente se passam. Para simplificar nosso vocabulério, damos & palavra sagrado toda a extensio possivel. Nos entendemos por ela a0 mesmo tempo o sagrado religioso © sagrado magico, o sagrado propriamente dito e 0 mana, ainda que ja tenhamos feito a distingdo em outro local’. Até o presente momento, nés aceitamos a hipétese de que o sagrado, sem levar em conta suas espécies, se cle esté sujeito a uma infinidade de limitagées, teoricamente indivisivel e que, no instante em que se realiza, realiza-se integralmente’. Gracas a isso nds explicamos sua efetiva presenga no sacrificio, bem como as virtudes indefinidas das coisas e dos atos magicos. 1. Année sciologique,t.V, p. 248, 1900-1901 2. Henri Hubert & Marcel Mauss, “Esquisse d'une théorie générale de la magie", em: Année sociologique, t. Vil, pp. 108 e ss, 1902-1903. {Em portugues, cf. H. Hubert fe M. Mauss, “Esboco de uma Teoria Geral da Magia", em M. Mauss, Sociologia e Antropotogia, op cit, pp. 142-173) 3H. Hubert & M. Mauss "Essai sur fa nature et la fonction sociale du sacrifice’, em Année sociologique, tll, op. 29¢ ss, 1899. Em portugués, ef, H, Hubert & M. Mauss, “Ensaio sobre 2 Natureza ea Fungo do Sacrficio", em: M. Mauss, Ensaios de Sociologia, op. cit) idem, o |, ibidem,t. Il, pp. 1 € ss. [Em portugués, ef H, Hubert & M. Mauss, “Esboco de uma Teoria Geral da Magia", em: M. Mauss, Sociologia eAntropologia, op. cit]; M. Maus, "Lorigine des ouvoirs magiques dans les sociétés australiennes”, 1904, passim. Fstudo Sumdrio da Representacao do Tempo wa Religidu € na Magia 33 Tendo me proposto a estudar neste ano, em meu curso, 0 que se sabe das divisdes primitivas do ano entre as antigas nagdes ger- manicas, busquei agrupar, na forma de um prefacio, as anomalias que a contagem do tempo na religiao geralmente apresenta. Essas anomalias, as quais revelam a contradicdo entre os caracteres re- lativos ao tempo normal ¢ ao sagrado, podem nos colocar na pista da nogao de tempo religioso. Eu supunha que essa nogiq religiosa de tempo é aquela que orienta a elaboracao dos calendarios. Com efeito, néo é necessdrio demonstrar que eles foram constituidos nas religides. Além disso, os calendarios comportam, na distingdo e na determinagao das datas e dos periodos, uma confusa rede de par- ticularidades, das quais nem a observacao das duracées concretas nem a ideia abstrata que temos do tempo - quer dizer, a ideia de uma grandeza continua, divisivel ao infinito em partes sucessivas, homogéneas e impenetraveis - poderia dar conta perfeitamente. Essa ¢ a substancia das ligdes que dou aqui. Nao se trata, no presente texto, de psicologia, nem, por con- seguinte, de descrever os julgamentos varidveis que os individuos carregam, cada um por si, sobre as duracées, ou entdo de explicar a incoeréncia desses julgamentos. As representagées 4s quais meu estudo se dedica tém algo de conceitual e também de convencional: elas sao partilhadas por coletividades ¢ tém uma espécie de rigidez legislativa. Eu nao tenho a pretensio de levar a anilise da ideia de tempo até a metafisica. Procuro simplesmente saber o que ela foi de fato e isso apenas em certas modalidades de julgamentos e de raciocinios que, até certo ponto, provém da religido ¢ da magia. Os fatos sobre os quais estéo fundadas minhas conclusées séo aqueles cuja escolha foi imposta pelo proprio enquadramento de meu curso. Para néo ampliar as dimensées deste texto, nele reduzi a exposicdo o quanto me foi possivel. As religides grega ¢ roma- na, bem como o cristianismo, forneceram-me exemplos ¢ pontos de comparacéo. Eu estava naturalmente inclinado a me preocupar antes com os fatos produzidos nessas religides em fungao das apro- ximagoes historicas que se deram entre clas ¢ as dos povos germa- nicos. Seria interessante ampliar essas pesquisas, especialmente nos diversos dominios da etnografia. | Nés estabeleceremos como principio que o tempo é uma con- digdo necessaria dos atos ¢ das representagdes magicas ¢ religiosas. Ja se destacou, em diversas ocasides, 0 fato de os ritos se realiza~ rem em condigdes temporais, constantes para um mesmo rito, que Esiuda Sumdrio da Representagio do Tempo na Religido ¢ wa Magia 35 contribuem para a definigéo de seu meio especifico*. Os ritos peri- 6dicos estdo, por definigdo, associados a datas fixas do calendario ou a recorréncia regular de certos fendmenos. Os ritos ocasionais realizam-se igualmente em momentos determinados. Muitos forne- cem 0 pretexto para interpretagdes de hordscopo, as quais algumas vezes sao complicadas para além do verossimil. Ocorre ainda que as exigéncias a esse respeito se reduzam ao extremo, muito embora 0 rito guarde sempre um minimo de determinagao temporal, a qual Ihe proporciona sua relagao com a ocasiao que 0 provoca. 0 exa- me de um ritual qualquer sera suficiente para mostrar que os ritos variam em fungdo de suas circunstancias de tempo, sendo em sua estrutura essencial, ao menos em suas particularidades acessérias, nas preparacées, nas precaucoes e na atitude’que eles exigem. E certo que os episédios miticos transcorrem aparentemente fora do tempo ou, 0 que da no mesmo, na extensao total do tempo, pois, como 0 atesta em particular sua repeticao nas festas, eles logram ser igualmente contemporaneos de datas espagadas no tempo normal. Ainda assim, todas as mitologias se esforcaram por situar tal eterni- dade na série cronolégica. Ela foi situada, em geral, no comego do tempo e, algumas vezes, no fim. E por essa raz&o que os mitos, quais sejam eles, so mitos de origem ou mitos escatoldgicos. Eles dio conta da origem ou do fim das coisas nao porque essa seja essen- cialmente sua fungao enquanto mitos, mas porque eles existem no tempo. Alias, eles so indiferentemente fixados em um ou em outro lugar e diferenciam-se apenas secundariamente. Com efeito, obser- you-se com muita justica que os mitos da origem e do fim do mundo comportam elementos comuns®. Uma decorréncia desse fendmeno ¢ que os mitos, onde quer que existam, tendem a se sistematizar sob a forma de tradicées relativas & origem das sociedades que os produ- zem. 0 corpo dos mitos constitui uma pré-histéria da humanidade, da tribo ou da nacdo; os deuses sao a origem das familias humanas. A sintese das diversas correntes de representacdes religiosas se rea~ liza sob cssa forma nao porque os mitos em geral sdo provenientes da divinizacao dos ancestrais, mas porque cles séo pensados sob o igno do tempo. E por essa mesma razao que as festas so geralmente apresentadas como a comemoragao dos mitos a clas associados. Elas 4. H. Hubert &M. Mauss, “Essai sur le nature et la fonction sociale du sacrifice’ ||. p. 56 [Em portugués, ef. . Hubert & M, Mauss, “Ensaio sobre a Natureza e a Funcao do Sacrificio’, em: M. Mauss, Ensaios de Sociologia, op. cit, p. 162]; idem, "Esquisse d'une théorie générale de iL, p47 [Em portugues, cf. H. Hubert & M. Mauss, “Esboco de uma Teoria Geral "em M, Mauss, Sociologia e Antropoiogia, op. cit. p. 86] 5. _H.Gunkel, Zum religionsgeschichtlichen Versttindniss des Neuen Testaments, p. 22 Estudo Sumirio da Representagdo do Tempo na Religido ena Magia 37 reproduzem indefinidamente um evento que, supostamente, tenha ocorrido em algum ponto do tempo, em uma data fixa. Situar os mitos na origem dos tempos, “na noite dos tempos”, nao é, porém, uma simples € grosseira figuragao de sua eternidade? Poder-se-ia pensar assim caso nao se produzisse outro fenémeno, igualmente frequente, qual seja, o rejuvenescimento dos mitos. Nés possuimos exemplos oriundos de festas que sao providas dé muitos mitos, ou cuja instituigo esta ligada sucessivamente a causas e a datas diversas, escalonadas no tempo. Em Roma, as Poplifugia comemoraram sucessivamente a fuga da popula¢ao por ocasido da morte de Rémulo, outra fuga dos romanos em uma guerra contra os fidenates e, a partir de 42 a.C., em decorréncia de um senatus con- sultum, o dia do nascimento, talvez convencional, de Julio César*. Na Europa Crista, os santos patronos das festas paroquiais foram rejuvenescidos com frequéncia: um santo mais jovem se justapoe ou por vezes substitui um santo envelhecido. E por tal razo que, em Sicilia ¢ na Provenca, por exemplo, 0 culto de Francisco de Paula’ se difundiu. Em Lezoux (Puy-de-Déme), o patrono da pard- quia estd em vias de ceder seu lugar a um jesuita, seu homénimo, martirizado na China ha cinquenta anos. Os combates rituais das festas populares se tornam figuragdes dramaticas de combates hi toricos, lembrangas das invasdes arabes e normandas na Sicilia, arabes e inglesas na Franga8*. Numerosas festas, tidas como aniver- sarios da fundagao de igrejas paroquiais, parecem provir de antigas festas agrarias de funcdes complexas - ao invés de comemorar um fato mitico, recuado a origem dos tempos, elas comemoram um fato histérico. Além disso, 0 mito rejuvenescido ¢ sempre o ponto de partida da celebracao periddica do rito. Isso porque ou bem a lembranga dos periodos anteriores é abolida, ou bem se imagina uma consagragdo nova e mais eficaz da data escolhida. - Para além da historia de festas, os exemplos do mesmo fenémeno sao igualmente abundantes. No Pais de Gales, a figura semi-historica de Artur tomou o lugar de algum deus adormecido nas cavernas das montanhas? e, na mesma diregdo, Frederico Barbarroxa substituiu, em um tema andlogo, personagens miticos”. Warde Fowler, Roman Festivals in the Time of the Republic p. 176. Pitré, Feste Potvonali in Sicilia, p. 49, passim. CF. Année sociologique, t.V, pp. 246 € ss. Ct R. Wansh, Das Frihingsfest der Insel Malta, p. 29. (Substituigso da festa de So Joao pela festa de Sa0 Gregério} 8. EK. Chambers, The Mediaeval Stage, cap. IX (The sword-dance);Pitré 0, passim. 9. JLRhis, Celtic Folklore, cap. Vill (Welsh cave legends), pp. 473 € ss 10. EH. Meyer, Mythologie der Germanen, p. 386 Estudo Sumario da Representacio do Tempo na Religido ena Magia 39 Desse modo, os mitos se rejuvenescem ao longo da histéria. Eles tomam dela elementos de realidade que consolidam a crenga da qual sao 0 objeto enquanto mitos. Mas nao é porque a verdade mitica se distingue mal para os crentes da verdade histérica que os mitos se evemerizam!, e sim porque eles pedem para ser situados no tempo com uma precisao que deve aumentar com a preciso crescente da representaciio das coisas no tempo. 0 rejuvenescimento dos mitos nao é um fendmeno diferente do fendmeno geral de sua localizacéo no passado, mas uma forma particular do mesmo fendmeno. Mas isso nao € tudo. Os fatos magicos ou religiosos, sejam eles ritos ou imagens, nao sao simplesmente concebidos como se trans- corridos antes, apds ou durante outros fatos. Eles sao situados em um tempo-meio, relativamente abstrato e descolado das coisas que duram. A bem dizer, a imagem dessas coisas se mescla ainda a sua nocao. Representacao semiconcreta, ela conserva a lembranca das duragoes reais. 0 ritmo do tempo ideal ¢ talvez indicado, original- mente, por algumas dessas durag6es. Ainda assim, ele nao deixa de domina-las, impondo a todas elas limites, tedricos ou praticos. A ideia desse entre-tempos entra como um elemento particular nas especulagées da magia e da religiao. 0 tempo é usualmente representado como um sistema de datas. € de duracées sucessivas, sistema que se reproduz periodicamente e cujas diferentes grandezas supdem-se iguais por séries e simétri- cas de periodo a periodo. A notacao dos pontos e dos intervalos, compreendidos em um periodo limitado e passivel de ser repetido, constitui o calendario. Seria o calendario, para a religido e¢ a magia, um sistema de mensuracdo do tempo? Seriam os atos religiosos ou magicos pas- siveis de serem nele repetidos do modo como parecem ser os atos de nossa vida civil? Teriam a religiéo e a magia encontrado em um sistema elaborado para outros fins pontos de apoio cémodos para a realizacdo dos atos que devem ser repetidos? Nao acredito nisso. Com efeito, existem calendarios que foram divididos especialmente para regular a periodicidade dos atos religiosos ou magicos ¢ s4o ou foram empregados, paralelamente aos usuais, para esse fim especial: tal ¢ o caso do tonalamatl de 260 dias que, entre os Astecas, corria em paralelo ao ano solar; tal é ainda o caso do calendario de sema- nas que serve para estabelecer entre nds a data da Pascoa, 0 qual se tornou o modelo do calendario civil na Islandia". A existéncia desses 11, G.Bilfinger, Untersuchungen der Zeitrechnung deralten Germanen, |, Das altnordische Jahr, pp. Tess. Estudo Sumdrio da Representagdo do Tempo na Religide ¢ na Magia 41 sistemas atesta a necessidade de um ritmo especifico, o qual preside a dispersio dos atos religiosos no tempo. Para a religiio e a magia, © calendario nao tem por finalidade medir 0 tempo, mas ritmé-lo, Desse modo, por um lado, os ritos esto necessariamente re- partidos em um tempo dividido por pontos fixos, regularmente espacados; por outro lado, as representagdes religiosas, além de fixar limites as eternidades divinas e de deixar morrer os deuses, sup6em igualmente um ritmo para o tempo, no qual desenrolam-se as duragdes de toda espécie e as duracées divinas em particular. Os diversos milenarismos - 0 judaico-cristio, 0 dos zoroastristas e 0 sistema dos kalpas hindus - sao provas disso. Nossos contos de fadas, sobretudo aqueles em que ha um rapto, permitem pensar que os espiritos repassam periodicamente pelos mesmos locais: é nto que se desatam os feitigos que antes estavam ai atados. As princesas de castelos submersos" podem ser desenfeitigadas em uma hora ma- gica, a qual ressoa de tempos em tempos. Em suma, as eternidades miticas sao periddicas’, N&o se quer dizer com isso que tais eternidades tenham uma medida e, menos ainda, uma medida comum com o tempo normal. As comparagées revelam uma diferenca profunda. 0 calculo do tempo apresenta, em particular nos contos, incriveis incoeréncias. Um narrador macedénio assegura, sem titubear, que um herdi que demorou trés anos para ir ao outro lado do mundo e doze anos para voltar, sem ter ficado por la um tempo consideravel, permaneceu trinta anos longe de seu pais"’. A contradicao nao o choca, pois se trata de um conto de fadas, ard ‘vat wapayi6u", Gragas a semelhantes contradigdes concilia-se a antinomia do tempo divisivel e do sagrado indiviso que se dispersa no tempo. Mas, poder-se-ia pensar, essas sinteses sao feitas talvez por meio de um simples truque com o rigor quantitativo da nocéio comum de tempo. Nés nao acreditamos nisso, mas supomos, ao contrario, que clas de- notam a existéncia de outra no¢ao, cujas caracteristicas, constantes ¢ definiveis, so aproximadamente as que iremos descrever. I Considerando sucessivamente os elementos diferenciados da representacao do tempo, datas criticas e intervalos, iremos estabe- lecer certo numero de proposigées, relativas as suas propriedades 12. Limitagao periddica da estada entre os espiritos: Mannhardt, Germanische Mythen, pp. 172, 177. Sebillot, Le folklore de France, t. I, pp. 365, 463 etc. 13. G.F. Abbott, Macedonian Folklore, p. 277. Estudo Sumério da Represemtacdo do Tempo na Religido ena Magia 43 intrinsecas ou as suas relacées reciprocas, que nos servirao para caracterizar a totalidade da nogdo. Nao avancaremos essas pro- posigdes como absolutas, e seria desperdicio de energia procurar excegdes que as invalidem. Nao pretendemos que a nogao de tempo, em religido e em magia, difira sempre da nog&o comum. Basta que cla seja diferente com frequéncia e que as diferengas em questao sejam regulares. Seu exame mostrar que, para a magia ea religiZio, as partes sucessivas do tempo néo sdo homogéneas, que as par- tes que nos parecem iguais em grandeza nao sao necessariamente iguais, nem mesmo equivalentes; sdo homogéneas e equivalentes as partes consideradas como semelhantes em fungao de seu lugar no calendario. Disso decorre que a nogdo do tempo nao é aqui a de uma quantidade pura, mas que ela ¢ mais complexa que sua nocéo correspondente no curso ordinario de nossa vida mental. Nao € possivel estuda-la in abstract. As propriedades das partes do tempo se deduzem de suas relagdes com as duragées concretas que elas enquadram. ‘Acrescentemos, para maior clareza, que neste estudo nao se trata apenas das divisdes do calendario. Por datas criticas, nao en- tendemos somente os limites extremos das secdes de um calendario, mas todo momento que é objeto de uma consideracao especial. 0 ciclo dos termos do calendario é apenas um dos sistemas particula~ res de datas criticas € de intervalos que passam no tempo. 1° As datas criticas interrompem a continuidade do tempo. - E © que se pode provar mostrando que elas interrompem as duracées particulares. Uma sociedade que divide o tempo em periodos - cuja extensdo é expressa por um mimero, sete ou nove, por exemplo, de dias, meses ou anos" -, impée as mesmas rupturas ritmicas as du- ragdes, que sao assim limitadas e separadas unicamente em funcao da lei antes enunciada. Se as duragées em questo ndo se encerravam efetivamente na data critica, sua interrupcdo real era por vezes formalmente expressa por ritos. Em Esparta, os reis cram, de nove em nove anos, submetidos a um ordalio. Os éforos se reuniam ao longo de uma noite de lua nova para observar 0 céu: se uma estrela cadente 0 atravessasse, 0 rei, suspeito de falta religiosa, era provisoriamente deposto até que 0 ordculo de Delfos se pronunciasse sobre seu caso1515. Esse ritmo nonario, ao capricho do qual o poder dos 14, W.H.Roscher, Die enneadischen und hebdomadischen Fristen und Wochen der dltesten Grie~ chen, Abh. d ph. h. Kid. kgl sachs, Gesellschaft der Wissenschaften, t. XX 1. F. Graf, Uber Zohlenabergiauben, pp. 16 ss. 15, Plutarco, Agis, 11. Estudo Sumério da Representagde do Tempo na Religido ena Magia 45 reis de Esparta estava submetido, parece ter sido utilizado com frequéncia na esfera de influéncia da civilizagdo cretense. Ora, a tradicao afirma que Minos foi igualmente constrangido a se apre- sentar a cada nove anos na gruta do Monte Ida para ai renovar seu mandato real1616. Esse € apenas um entre uma infinidade de exemplos possiveis, pois o fendmeno ¢ geral. Ao término das magistraturas no fim do ano € preciso acrescentar a extingdo anual ou ciclica de fogos, a renova¢ao das lougas ou das vestimentas, 0 consumo completo ou a destruig&o das provisdes e passar disso a série das representagées. exemplo foi escolhido deliberadamente, pois, nesse caso, a data critica nao é uma festa, no sentido estrito da palavra - que poderia ter, como tal, consequéncias desse género -, mas simplesmente o fim de um periodo, cuja observacao nao parece mesmo ser deter- minada por um sistema cronoldégico dominante. Ele mostra que as datas criticas do tempo-meio interrompem as duracées concretas - as quais, por elas mesmas, sao independentes dessas datas -, com uma espécie de necessidade. Por uma razdo ainda mais forte, elas interrompem a duragio abstrata, da qual fazem parte. Elas sao realmente criticas e perigosas: para os médicos antigos, as doen- cas e a vida humana em geral se conectavam, desconectavam ou reconectavam a intervalos periddicos de sete dias, de sete meses ou de sete anos'”. Em suma, 0 tempo no qual se passam as coisas magicas € religiosas é descontinuo. Existem interrupgées bruscas em sua marcha. Isso nao é tudo. Vé-se desde ja que as partes distinguidas nao sao homogéneas. Com efeito, o momento que constitui a data cri- tica difere por essa mesma razio de um momento qualquer das duragdes que o precedem ou o sucedem e, além disso, as duracGes separadas pelas datas criticas diferem entre si, pois atos ou aconte- cimentos cessam ou comecam apenas gracas ao seu aparecimento. 2° Os intervalos compreendidos entre duas datas criticas asso- ciadas sdo, cada um por si, continuos e indivisiveis. - Um primeiro indicio de sua continuidade € fornecido pelos ritos de entrada e de saida dos quais cles foram com frequéncia o objeto. Esses ritos, comparaveis aos que marcam o comeco ¢ o fim das ceriménias reli giosas, dao a eles a aparéncia de um todo continuo, no qual todas as. partes so solidarias como aquelas de um sacrificio. 0 ano romano 16. Roscher,o.|, p.22. CFO, Miller, Die Dorier, p. 100, ~ Outros exemplos da mesma periodicidade imposta &s magistraturas: A. B. Cook, The European Sky-God, Folk-Lore, pp. 394.¢ ss, 1904. 17, Roscher,o. |, passim, Estudo Sumirio da Representagao do Tempo na Religido ena Magia 47 se iniciava no primeiro dia de marco com uma série de augtirios; e ele se encerrava em janeiro e em fevereiro com uma série de dias nefastos e de cerim6nias expiatérias"’. A forma mais notavel e mais significativa desses ritos € realizada nos casos, presentes em grande quantidade em nosso folclore europeu, em que 0 ano, a estagio que come¢a € a que termina sao personificados para ser dramati- camente introduzidos ou expulsos”. Aqui, a individualidade das partes do tempo atinge a personalidade. A animagao e a extingao de fogos por ocasiéo da passagem de um periodo a outro, ja aqui mencionadas, sao igualmente ritos de entrada e de saida compa- raveis aos precedentes. Esses ritos, alids, valem ou podem valer ao mesmo tempo para as proprias duragées e para as coisas que nelas se passam: apaga-se um fogo que o uso profanou; expulsam-se as faltas cometidas durante o ano; inauguram-se os trabalhos sazo- nais. Seria muito demorado demonstrar que tal confusdo nao deve preocupar-nos por ora. Duracées abstratas ¢ duragdes concretas identificam-se de fato. Além disso, associagées ideais so estabelecidas entre as diversas modalidades de periodos e de coisas que duram, associagées em que © periodo-forma € a unidade de tempo da duracéo-matéria. Essa observagao nos serve de ponto de apoio para dar um passo adiante. Procura-se néo somente equiparar a duracao dos fatos e das coisas a dos periodos do tempo, inaugurar os atos no comeco des- tes”, como também se evita ou se proibe o inicio de certas empresas graves, tal como uma guerra, ao longo de um periodo. Existem exemplos famosos disso. E 0 caso de Ariovisto, que adia as hos- tilidades em curso até a lua nova’; é 0 caso dos espartanos, que esperam a lua cheia para entrar em campanha militar”, e dos ate- nienses, que esperam o sétimo dia do més”, Essas interdigdes atestam a preocupagdo de dar ao tempo no qual se passam os ritos o carater espasméddico, que deve resultar da sucessio de pontos de interrupcao descritos acima e de seus intervalos indivisiveis. Os homens, temendo perturbar a ordem das 18. Warde Fowler, o. |, pp. 33 € ss. (mensis Martius); pp. 277 e ss. (mensis Januarius), - Carac~ teristica premonitéria dos ritos do inicio do ano: Macrébio, |, 12, 6; Ovidio, Fast Il, 135, 19. J.G. Frazer, The Golden Bough, 2. ed, t. I, pp. 70 ess. t Wl, pp. 95 ess. 20. Por exemplo, o ritmo setendtio da educagao na Grécia: Plato, Axfoco, 366 D; Alcib, |, 121 e;Quintil, 1, 1,15. 21. César, DeB Gall, | 50. 22. Herédoto, VI, 106. 23, Zendbio, Il, 79: évtdg EBSSpns "ate o sétimo (dia)" (N.T)]; cf. Hesiquio, Suidas. - Cf. Xeno- fonte, Anab, |, 7, 18: 0 adivinho Silanos assegura o jovem Ciro 6 Bactaaiig ob ayetran Séxa Hyepav ["que o rei nao [utaria em dez dias” (NTI) Estudo Sumério da Represeniagdo do Tempo na Religidae na Magia 49 coisas por uma iniciativa infeliz, impoem-se regras para preservar, © quanto depender deles, essa mesma ordem necessaria, cuja perfei- ta realizagdo no mundo Ihes € mostrada por suas crengas. Trata-se, com efeito, de uma ideia geralmente constatada - que domina e perturba a experiéncia e da qual nossos ancestrais fizeram uma verdadeira lei cientifica -, qual seja, a de que certo mimero de fe- némenos, se eles comegam no inicio de certo periodo, duram todo 0 periodo, ¢ que eles esperam o inicio de um periodo para comegar. Qs ditados meteorologicos sio um exemplo bastante bom dessas tradigdes pseudocientificas”. Desse modo, ao se admitir que uma associacao formal se esta- belece entre a duracio de certas coisas concretas ¢ certos periodos do tempo abstrato - tomados como sua medida, como sua unidade de tempo -, constata-se que os periodos sao preenchidos totalmente pelas duracdes em questiio ou que as excluem em absoluto. 0 ex- tensdo das duragGes concretas é inteiramente assimilado aquele dos periodos correspondentes. Pode-se sempre, para explicd-lo, recorrer a hipotese de uma necessidade magico-religiosa determinando arbi- trariamente o comprimento das duragées. Mas explicamos a propria necessidade se supusermos, como o enunciamos, que as diversas unidades de tempo sao concebidas como indivisiveis - pois, nes- se caso, 0 periodo-forma coincidird integralmente com aquele da duraco-matéria do qual cle é a medida ritmica. Trata-se, com efeito, de duas grandezas, que nao poderdo ser divididas, uma em relacao & outra, em grandezas menores. Ao impor a realizacéo de certos atos apenas no comeco dos periodos correspondentes, o ritual tenta simplesmente conformar a atividade dos homens ao habito de seus pensamentos. E evidente que os periodos podem ser representados como indivisos apenas quando considerados em separado e cada 24, Teofrasto, pp. 6,33:4iv Ewbev dorpiinen elite wabeddar rpitatos [5 vétos], of 5e 2201 sjurtatiot, 6Bdopaon, Ever sequndo os ritmos locais de divisio do tempo). [Em por- ‘tugués, "Se ha raios a0 amanhecer, (0 vento) tem o costume de se acalmar no terceiro dia; ‘outros, porém, no quinto, sétima ou nono dias" O primeiro sujeito ao qual o fragmento faz alusdo nao é 0 “vento”, como diz Hubert, mas o "vento sul” (NTJ]; idem, 6, 8, wetoBadAer ‘yap ts éxi 16 wWORd Ev THirerpasi, div BE kh €v TH OFA, ei BE wh Wavacdiive... [Em portugués, “uma mudanga geralmente ocorre no quarto dia o4, isso falhando, no citavo dia ‘ou na lua cheia..” ~ Nessas duas citagdes, Hubert se vale da edicdo de Teofrasto entao em evidencia, a Theophrasti Eresii Opera quae supersunt omina, publicada a partir da década de 1850 por Friedrich Wimmer, Os trechos citados provém do sexto fragmento do segundo volume ~ 0 que explica a indicago “p. 6° -, intitulado IIEPT EHMEIQN YAATON KAT TINEYMATON KAI XEIMONON KAI EYAION (ou, como € mais conhecido, Sobre os Singis).Embora se trate de uma grafia correta, Hubert preferiu utilizar no inicio das palavras tem grego citadas o sinal v no lugar do m, tal como consta em Wimmer, Ignoramos a razio de tal escotha. Que André Laks seja aqui agradecido por auxiliar-nos a localizar essa edicao de referencia, (N.T)] Estudo Sumdrio da Representacio do Tempo na Religido ena Magia 51 um por si, ou somente em sua relagéo com os acontecimentos cuja suposta natureza os deve preencher por inteiros. Cada intervalo de datas criticas ¢, de fato, dividido por outras datas criticas em interva- los menores. Desse ponto de vista, as duracées silo comparaveis aos ntimeros, que so considerados sucessivamente como a enumeragao de unidades inferiores ou como as somatérias capazes de servir de unidades para a composicao de mimeros superiores. A continuidade Ihes é dada pela operagdo mental que faz a sintese de seus elemen- tos. Nos admitimos que uma sintese mental similar englobe de uma s6 vez 0 comprimento dos periodos-forma e das duracées-matéria. Feita essa ressalva, concluiremos, em primeiro lugar, que as partes do tempo sao concebidas como nao sendo indefinidamente divisiveis em partes sucessivas e, em segundo lugar, que cada sub- diviséo € constante em relagdo a ela mesma ¢ heterogénea em rela- cdo as subdivisdes da mesma série que a precedem € que a sucedem. 3° As datas criticas séo equivalentes aos intervalos que elas limitam. - Deduzir-se-a da proposi¢éo precedente que, quando um fenémeno ou um ato se realiza em um momento qualquer do periodo, o qual Ihe é convencionalmente designado, ele deve preenché-lo, contamina-lo em sua integridade. As supracitadas in- terdigdes de iniciar uma série de atos graves, como a guerra, em periodo comegado, permitem pensar que essa conclusao foi, com efeito, tirada: péde-se temer, em virtude dessa contaminagao fatal, © choque de atos contraditérios em um mesmo tempo, de modo nao menos intenso que a ruptura de sua continuidade. O que é provavel para um momento qualquer de uma duracio nao pode ser menos provavel para os momentos caracteristicos dessa duragao. A hipétese é tanto mais forte a esse respeito, que os pontos criticos, os quais definem a respectiva duragio, constituem elementos essenciais de sua representacao. De fato, no comego de um periodo, realizam-sc ritos, ritos profilaticos”, votos”, béncdos”’”, ritos simpaticos que valem para todo o periodo”*. Em outra ordem de ideias, os fendmenos que se passam nessa hora decisiva fornecem prognésticos para a duragdo que ela inaugura®. O inicio engaja a 25. A Wuttke, Der deutsche Volksaberglaube, 75. 26. A Wuttke, |. | Mannhardt, Germanische Mythen, p. 519 (4 hora do vatoretornando a cada sete dias, slinsk aefintyri,p. 44), 27, A Wate, LL; Grimm, Deutsche Mythologie, 4.ed, t lin. 197, p. 441; cf lem, tll, pp. 563 €s. 28, A. Wuttke, |. L; Sidney Hartland, The Legend of Perseus, t. li, pp. 119, 125 etc.; Plinio, NL H., XXVIIl, 260; ef, Marcial, V, 29, 1; Mist. Aug, Alex. Sever, 38. 29. A. Wuttke, LL; Grimm, o.L, tll, no 374, p. 446; cf. Revue des traditions populaires, p. 22, 1904; Pineau, Revue des traditions populaires, p. 294, 1904; De Nore, Traditions des provin- ces de France, p. 263. Estudo Sumario da Representagdo do Tempo na Religito € na Magia 53 sequéncia. 0 que deve ser produzido em toda a extensio dessa du- ragio é realizado em sua abertura, ao menos em representacao, e de modo reciproco, A crenga na persisténcia, por um tempo definido, dos efeitos produzidos em um dado momento é 0 principio dos desloca~ mentos dos ritos e da concentracao em datas escolhidas dos que pode- riam ser indefinidamente repetidos. Essa crenca detém assim um lugar importante nas representacdes da magia e da religido. E indiferente a clas, em suma, que o rito seja realizado no inicio de uma duracgao ou em toda sua extensao. A data critica e 0 periodo que a sucede sao assimilados. Em outras palavras, eles sio homogéneos e passiveis de serem considerados como equivalentes, abstraidas suas dimensées. A razdo dessa assimilagao ¢ aquela que fornecemos anteriormen- te, Entre o fato em questio e o periodo ao qual ele ¢ mentalmente associado ndo ha mensuragao possivel. Algo similar ocorre entre 0 instante no qual ele se passa ¢ 0 periodo do qual esse instante faz Parte. Nao se trata nem de grandezas comparaveis nem de elementos antitéticos. Momento e duraco, fato ¢ duracio sao identificados em uma mesma operagdo mental, a qual ¢ absolutamente sintética. Uma prova dessa assimilagao perfeita das datas criticas ¢ de seus intervalos € fornecida pelos nomes do tempo que designavam originaria e pro- priamente as datas criticas”. Intervalos e instantes se interpenetram. Falta ainda descartar uma objecdo, segundo a qual os efeitos e os fenémenos em questao, posto que concebidos como duraveis, prolon- gam-se necessariamente para além do momento em que comecaram. Pouco importa! 0 essencial é que eles durem apenas o tempo de um periodo definido, no qual todos os momentos, em conformidade com nossa segunda proposigao, constituem um todo indistinto, e que eles cessem precisamente em uma dessas datas criticas que, em conformi- dade com nossa primeira proposicao, interrompem essa continuidade. Registramos entao um novo resultado: nado somente as dura- Ges nao s&o concebidas como indefinidamente divisiveis em partes distintas e homogéneas, como essas partes nao so impenetraveis. 4° As partes semelhantes sao equivalentes. - Podem ser defi- nidas como semelhantes entre si as partes simétricas do tempo, ou seja, aquclas que ocupam a mesma posicdo no calendario e, além disso, as duragées de grandezas diferentes que sio tomadas succs- sivamente como unidades de tempo: a semana, o més, a estagdo, 30. Mal:H, Paul, Deutsches Wérterbuch, p. 292; H. Kluge, Etymologisches Worterbuch derdeuts- chen Sprache, p. 257. ~ Dheihs, thing = tempus:cf. Fr. Kluge, English Etymology, p. 210. ~ Stunde:Grimm, Deutsche Mythologie, tI, p. 660. Estudo Sumério da Representacdo do Tempo na Religido ¢ na Magia 55. 0 ano, o ciclo de anos sdéo considerados semelhantes entre si em certas circunstancias. As datas criticas ¢ os intervalos que elas limitam — cujas ho- mogeneidade e equivaléncia nds acabamos de demonstrar, ocupan- do a mesma posicao relativa em um calendario - séo semelhantes. Trata-se de um primeiro ponto. Quanto ao resto, a equivaléncia das partes semelhantes é demonstrada pelo fato da similitude cronoldgica provocar ou permitir a repetic’o dos mesmos eventos. Ai se atrelam as mesmas representagoes, de tal modo que elas parecem a exata reproducao umas das outras: clas tendem a identidade. Nas lendas de castelos, cidades, monastérios ¢ igrejas submersos, a maldigdo nunca é definitiva; ela se renova periodicamente. Todos os anos, todos os sete anos, todos os nove anos, na mesma data-da catastrofe, a cidade ressuscita, os sinos tocam, a senhora do castelo sai de seu refligio, os tesouros se abrem, os guardas adormecem. Mas na hora prevista, 0 encanto se torna inacessivel e tudo cessa. Essas recaidas periddicas bastam quase para mostrar que as mesmas datas levam aos mesmos fatos. Toda a astrologia e uma parte da ciéncia antiga ou popular estéo fundadas sobre esse principio. Inversamente, os mesmos atos religiosos ou magicos se realizam nas mesmas circunstancias de tem- po, a saber, em pontos simétricos de um sistema qualquer de divisao de tempo, calendario comum ou calendario especial, astronémico ou outro. Prova suficiente disso ¢ o cuidado tomado, nos rituais com- pletos, para indicar a cada rito suas condi¢des temporais. As mesmas festas, enfim, so celebradas nas mesmas datas. Ha, porém, graus de similitude. Além disso, a exatidao da se- melhanga cresce com a importancia dos ritos. A intensidade da atencao, da qual ela é 0 objeto em certos casos, mostra bem qual preco lhe é associado ¢ qual eficacia religiosa ¢ nela suposta. Por tal razdo, a determinacdo da data de Pascoa foi uma das preocu- pacdes centrais do cristianismo nascente. A Pascoa crista - a qual perpetuava, de um lado, a Pascoa judaica e 0 sacrificio pascal, e, de outro, o sacrificio do Calvario e a ressurrei¢ao do Cristo - devia ser celebrada exatamente no mesmo ponto do tempo que os fatos por cla representados, ou seja, em um ponto exatamente simétrico Aquele no qual eles foram antes produzidos. Problema delicado! Afinal, era preciso encontrar esses pontos simétricos em dois calen- darios diferentes, cujo desacordo varidvel nao podia ser calculado rigorosamente. Infinitos escripulos associaram-se a op¢ao por uma solugao aproximada”. 31. H. Kellner, Heortologie, pp. 26 ess. Fstudo Sumuirio da Representacae do Tempo na Religido € na Magia 5: O domingo de cada semana comemora - ou seja, renova com menos solenidade, mas com tanta eficdcia quanto a festa anual de Pascoa - 0 sacrificio do Cristo. 0 que 0 domingo ¢ para a Pascoa, a semana o € para o ano e, & medida que o ano representa 0 curso completo do tempo, a semana o representa”. Na India, os doze primeiros dias do més equivaliam aos doze meses que se seguem. Com efeito, um sacrificio continuo, desenvolvido ao longo desses doze dias, era o equivalente a um sacrificio semelhante que teria durado todo o ano e valia para esse mesmo ano”. Quando todas as equivaléncias possiveis entram em cena, 0 tempo acaba por ser representado como uma sequéncia de pontos equivalentes, equivalendo eles mesmos aos intervalos que os sepa- ram, os quais se cquivalem entre si, e como uma sequéncia de partes de grandezas desiguais, encaixadas umas nas outras, que se equi- valem da mesma forma, cada ponto e cada periodo valendo res- pectivamente para 0 todo. E isso ocorre de tal maneira que os atos religiosos ¢ magicos podem cessar sem terem acabado, repetir-se sem mudar, multiplicar-se no tempo, e, ainda assim, sempre perma- necendo tnicos ¢ acima do tempo, que nada mais €, em realidade, que uma sequéncia de eternidades. 5° Duracées quantitativamente desiguais sdo tornadas iguais e duracées iguais, desiguais. - A expressao de duracées indeter- minadas por numeros precisos - 7, 9, 50, etc. - é um fato cons- tante ¢ bem conhecido, do qual é intitil dar exemplos. Os mime- ros convencionais, empregados dessa maneira, correspondem ao comprimento exato dos periodos determinados por certos sistemas usuais ou arcaicos de divisao do tempo*: as semanas de sete e de nove dias, interrupgdes do més ou da lunagdo, foram a expressiio tipica de periodos de sete ¢ de nove dias, de sete ¢ de nove anos, cujo comprimento € evidentemente convencional. Grandezas fixas e grandezas vagas so representadas como iguais. Além disso, € um lugar comum em mitologia e em folclore — fato que tem sua contra- partida em nossa experiéncia individual - que as duracées, segun- do as circunstancias, nao transcorrem com a mesma rapidez. Esta muda quando o sobrenatural afeta a vida normal dos homens”, 32, H. Kellner, 0.1, pp.255. 33. A. Weber, Oming et Portenta, p. 388; Indische Studien, XVl, p. 224; Sitzungsberichte d, kg. pr Ak. d, Wiss. Zu Berlin, ph, h. Kl, 1898, XXXVI, pp. 2 € ss. No admitimos a equivaléncia roposta por Weber entre os doze primeiros dias de todos os meses € 0 Dodekahemeran do ano cristo. 34. W.H.Roscher, 0. |, passim. 35. Mannhardt, Germanische Mythen, p. 446 (7 dia 1. pp. 257, 468. 7 anos); Sebillot, Le folklore de France, Estudo Sumério da Representagdo do Tempo na Religito ena Magia 59 Um pastor que adormece por uma hora acorda cem anos depois; ao retomar de uma visita as fadas, ele encontra na vila apenas as novas geracées. Ao contrario, os herdis podem viver anos de vida magica em uma hora de vida humana. O tempo nao conta mais que © espago em sua volta através do mundo. As partes numericamente correspondentes dos kalpas hindus nao sao concebidas como tendo a mesma grandeza”. MW Resulta desses fatos néo que o tempo, para a magia e a reli- gido, nao seja uma quantidade, ou algo suscetivel de ser consi- derado como tal, mas que ele ndo é uma quantidade pura, homo- génea em todas as suas partes, sempre compardvel a ela mesma e exatamente mensuravel. Nos julgamentos relativos ao tempo, insinua-se algo diferente de consideragdes de mais, de menos e de igual, pois nele também se fazem presentes consideragdes de aptidao, de oportunidade, de continuidade, de constancia, de similitude, e as equivaléncias, das quais j4 falamos, nao sendo igualdades. As unidades de tempo no so unidades de medida, mas unidades de um ritmo, no qual a alternancia das diversidades conduz periodicamente ao semelhante. As subdivisées do tempo nao sao grandezas definidas unica- mente por sua dimensao e por sua posigao relativa. Em sua nocao intervém outros elementos que explicam suas anomalias quanti- tativas, a saber, a nocdo de qualidades ativas, cuja presenga as torna, umas em relacaio as outras, homogéneas ¢ heterogéneas. Se, na representacao de cada uma das secgdes do tempo, intervier a de certa qualidade, cesta seré naturalmente concebida como igualmente distribuida em todas as suas partes. Cada periodo, ao se considerar nele apenas esta qualidade, sera entao necessariamente homogéneo cm relacdo a si mesmo. A homogeneidade do tempo deixara de existir no final de cada periodo, pois o seguinte traz consigo novas qualidades diferenciais. As partes semelhantes serdo equivalentes homogéneas ou ainda idénticas, pois elas terao a mesma qualidade. Enfim, 0 valor relativo das duragées nao dependera somente de sua grandeza absoluta, mas também da natureza e da intensidade de suas qualidades. Em resumo, as proposigées anteriormente enumeradas dei- xam de ser contraditérias desde que se deixe de considerar 0 tem- po como um ambiente sem qualidades. Ele tampouco ¢ um puro 36. CF. Thibaut, em: Grundriss der Indo-Arischen Philologic, t. Il, fase. 9, . 28. Estudo Sumério du Representacao do Tempo na Religido e na Magia 61 conceito, uma espécie de lugar geometrico, distinto abstratamente da massa das duragées particulares, mas uma espécie de coisa em si, cuja forma tem uma eficacia semelhante 4 de um ato magico - objetivamente distinta dos fendmenos sucessivos e duraveis, pois ela os interrompe de acordo com sua medida - ¢ cujas divisées nao so simplesmente ideais, mas reais ¢ efetivas, pois elas i interrompem brutalmente a matéria que elas enquadram. Para dizer a verdade, as qualidades de que falamos sio aque- las das partes do tempo. Cabe aqui perguntar se a nocdo de tempo em geral nado comporta também qualidades analogas, e mesmo se as particularidades que’ distinguem as partes sao algo diferente das diversas modalidades de uma qualidade comum do tempo. Ainda assim, em um primeiro momento, é dificil perceber quais podem ser as qualidades desse tempo religioso ¢ magico. Talvez, tomado em seu conjunto, ele tenha apenas uma aptidao a receber qualidades. Mas nos basta, por ora, iluminar a natureza qualita- tiva atribuida ao tempo em geral pela constatagao das qualidades reconhecidas em suas partes. Estas so bem aparentes e se fazem valer por meio de seus contrastes. As partes do tempo nao sao indiferentes as coisas que nelas se passam. Elas as atraem ou elas as excluem. Disso decorre, de um lado, uma inesgotavel série de prognosticos fundamentados unicamente na distincdo de datas e, de outro, uma série de prescrig6es positivas ou negativas relativas aos dias’”. As prescrigdes mais tipicas séo as negativas ou, dito de outra forma, os tabus do tempo. 0 que acaba de ser dito quanto aos dias vale para os periodos. Por exemplo, os meses tém, um em relacdo ao outro, um teor qualitativo constante, que Ihes da uma verdadcira individualidade”*. A rigor, seu lugar no ano solar, a diversidade das operagées, agricolas ou outras, que, pela forca das circunstancias ai ocorrem, pode passar pelo principio de sua diferenciagao. Mas, feita essa dedugao, subsiste um residuo de prescrigées diferenciais, tais como, entre outras, a interdigao do casamento no més de maio, onde as qualidades que hes so pré- prias se revelam. Nés admitiremos ento provisoriamente que as partes do tempo e¢ o tempo em geral sao concebidos como dotados de qualidades ou a elas suscetiveis. 37, Cf. Macrébio. Saturn, |, XV: AptidSes das Calendas, Idos e Nonas; Plutarco, Quaest. Rom, 100, festa de Diana Aventina fas mulheres lavam a cabeca}; De Nore, o. |, p.278 (dias a serem escolhidos ¢ evitados para as sanarias}. 38. Warde Fowler, 0, observacbes gerais sobre cada um dos meses. Esiudo Sumério da Representacao do Tempo na Religito ena Magia 63 Vv Nossa investigagéio se aproxima aqui de certas andlises filo- soficas que recentemente tomaram a representagao da duracdo na consciéncia individual como objeto de analise. Em seu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciéncia, o Sr. Bergson concluiu que a nocaéo de tempo nao ¢ unicamente a de uma quantidade, mas que ela é qualitativa. Nos sutis arabescos de Matéria ¢ Meméria, ele substitui, como elemento produtor da representagao do tempo, as nodes de grandeza, de posicao e de sucessio,por aquela da tensio ativa por meio da qual, de uma parte, realiza-se na consciéncia a harmonia das duragdes independentes dos ritmos diferentes e, de outra, distribuem-se ¢ circulam as imagens entre os diferentes planos dessa mesma consciéncia. Assim se realiza, em seu sistema, o transporte da ideia de tempo do dominio da quantidade pura ao da qualidade. Nés nos aproximaremos ainda mais dessa teoria do tempo con- siderado como escala de tensdes da consciéncia se tentarmos nos inteirar, com um pouco mais de preciso, de quais sao as qualida- des que, para a magia e para a religido, entram na composicéo da nocao de tempo. Para abordar tal estudo naquilo que ele tem de mais acessivel, consideraremos provisoriamente apenas as quali- dades diferenciais das partes do tempo. Momentos ou duracées, suas qualidades sao apenas definidas em fungo dos fatos com os quais eles estdo necessaria e constantemente em relacao positiva ou negativa. Ha, de um lado, fendmenos naturais, astronémicos ou outros, escolhidos como balizas do tempo, ou mimeros, os quais expressam a extensio tedrica dos periods”, bem como, de outro, representacoes, as quais sao incitadas ou rechacadas pela recor- réncia dos primeiros termos, € atos, os quais sao performados ou evitados para realizar, na medida do possivel, as associagées que se creem necessdrias. Os elementos assim associados estéo inti- mamente unidos, um incitando o outro, o primeiro durando tanto quanto o segundo4040. Esse sistema de relagées é, a bem da verda- de, um sistema de assinaturas. As datas sao, enquanto tais, 0 signo ou a assinatura das coisas que nelas se passam*!, do mesmo modo 38. Ci, para o simbolismo numérico, Jodo Lido, De Mensibus, |, 15; I, 6. 40, Talmud Babli, Sonhedr. 41 b, 42 a (hesitagdes relativas & extenséo real do periodo no qual se deve pronunciar a béngSo da lua noval: citado por Fr. Bohn, Der Sabbat im Alten Testament, .35.0s dois dias de Rosch haschana, tendo cedido lugar 4s mesmas hesitacbes, so con- siderados como sendo “de uma sé santidade”, Buxtorf, Synagoga Judaic, p. 494. 41, Jodo Lido, De Mensibus, Ill, 5,9, 10. Cf. a tentativa de fixagdo ds data de Péscoa em um dia determinado do calendario juliano, 25 ou 27 de marco: Keliner, 0. L, p. 39. Cf. Revue des traditions populaires, pp. 113, 218, 244, 248, 301, 432, 1904. Estudo Sumario da Representagido do Tempo na Religido ena Magia — 65 que certa conjuncao planetaria é 0 signo de tal acontecimento ou de tal rito. Desse modo, qualidades diferenciais do tempo e assinaturas temporais sao expressdes equivalentes. Ao procurar conceber 0 que podem ser os elementos qualitativos da representagdo do tempo na magia e na religido, encontram-se apenas, em um primeiro mo- mento, imagens associadas, cuja associagdo é retida em vista de atos possiveis. 5 Esse primeiro resultado esta de acordo com a analise do Sr. Bergson, a qual finda por conceber um tempo cuja representagéo se compée de imagens de desigual tensdo, seriadas em fungao do grau de tensao, e cuja tensdo é regulada pela agao e suas neces- sidades. Mas pode o exame superficial de uma sé ordem de dados nos assegurar de que entram apenas na representagdo do tempo, no momento de seu desenvolvimento em que nds procuramos compre- endé-la, aglomeragoes de imagens particulares e a tens&o varidvel As quais essas imagens sdo suscetiveis? Se assim 0 é, deixaremos de bom grado a ultima palavra aos filsofos, e pediremos a eles a explicacdo desses fatos que tomaram nosso tempo. Podem eles nos dar essa explicaga0? E natural, no fim das contas, que os filésofos reduzam os ele- mentos primordiais da nocéo de tempo a termos bastante sim- ples. Seu propésito nao é o de quebrar a carcaca pesada de nossas operagdes mentais para dela liberar 0 que ai se esconde do real? Essa vida profunda do espirito humano ¢ desvelada pelas inconse- quéncias as quais chega o jogo logico das nogées superficiais. No presente caso, 0 jogo de nogées, que traveste a realidade psicolo- gica de imagens sucessivas, consiste no ajustamento de duas séries de representacées. Uma delas ¢ constante e periddica: trata-se do calendario ¢ da cronologia com seus pontos de referéncia ¢ todas as particularidades que cles registram. A outra se constréi perpetu- amente gragas & contribuigao de representacées novas. O espirito trabalha constantemente na associacéo, em uma mesma tensio, de certos elementos dessas duas séries. 0 todo é dominado por nogdes gerais de duracio, de periodo, de data, as quais séo dotadas de cer- ta objetividade e entram, com essa objetividade, como clementos essenciais nas operacdes mentais em questao. Esse esquematismo artificial ¢ precisamente um objeto de estudo que nos interessa, enquanto socidlogos, pelo que ele comporta de fixo, de resistente, de conceitual, de apreendido. Limitando-nos, alias, a0 dominio da religido e da magia, 0 pro- blema que nos inquieta é saber se € possivel explicar sua forma- cao e seu funcionamento sem supor algo mais que as imagens Estudo Sumario da Representacdo do Tempo na Religita ¢ na Magia 67 registradas e a tensdo variavel das consciéncias individuais que as englobam; ou, entao, se ¢ necessario recorrer ainda a outro principio, nao integralmente dado na consciéncia individual, mas que se desenvolve e age ao longo da vida coletiva. Para excluir tal hipotese, seria preciso demonstrar que o calendario registra apenas experiéncias individuais ¢ que a tensdo das imagens em fungao da pratica da conta do acordo constantemente estabeleci- do entre as duas séries psicolégicas consideradas. Vejamos antes se, de fato, a constituicdo da série fixa das imagens classificadas no tempo supde apenas experiéncias individuais. Vv O senso comum pretende que a divistio do tempo seja dada a experiéncia por certos fendmenos astronémicos de facil observa- cao. De fato, existem duas maneiras, utilizadas concomitantemente, de determinar as divisdes do tempo. Por um lado, faz-se coincidi- rem os ciclos dos calendarios seja com os fendmenos que indicam aproximadamente a mudanga real das estaces - aparicao da pri- meira violeta*’, do primeiro besouro, da primeira andorinha*’, das cegonhas, 0 canto do cuco* etc. - seja com os momentos criticos da trajetéria de certos astros - lua, sol, Sirius, Vénus etc. Nes- ses diversos casos, nao se pode contestar que os signos escolhidos como indice do tempo sejam objetos de experiéncia. Por outro lado, marcam-se os pontos de diviséo ao se enumerar progressivamente um numero fixo de unidades de tempo. Nosso sistema de divisio semanal é um tipo perfeito de divisio habitual em periodos numeri- camente iguais. Nesse caso, o indice do tempo parece ser, a primeira vista, inteiramente convencional. Nao obstante, pretende-se que os numeros produtores de ciclos dos calendarios sejam sugeridos pelo conhecimento experimental do comprimento real de certos perio- dos astronémicos“. Alias, os dois procedimentos se combinam e, em um sistema completo de diviséo do tempo, encontram-se sem- pre indices numéricos associados a indices fenoménicos. O proprio emprego destes, no entanto, nao é viavel sem con- vencées. A escolha do signo é j4 0 objeto de uma primeira espécie de convengao. Esta parece reduzida ao minimo quando alguém se fia no curso do sol ou da lua. Ela ¢, ao contrario, preponde- rante quando se trata de escolher entre os diversos fenémenos da 42, Grimm, Deutsche Mythologie, tll, pp. 635 e ss 43. CF. Ateneu, Vl, 360 bc. 44, Grimm, o. |, pp. 605 € 55.¢ 636. 45, Roscher,0.|, pp. 1¢5. Estudo Sumario da Representayao do Tempo na Religiéa ena Magia 69 vida vegetal ou animal, os quais indicam os frouxos limites das estacdes. Uma convenco preliminar conecta a escolha a ando- rinha, ao cuco, a cegonha ou a violeta. Outras convencées tém por objetivo tornar valido aos olhos de todos 0 signo observado por poucos. Existiram regras para a observagao dos signos em questdo“, assim como existem regras para consagrar, legitimar e autorizar a observacio feita. : 0 emprego de indices astronémicos também deixa um grande espago ao arbitrario. No que diz respeito a duragao da lunagao, um primeiro motivo de incerteza provém do fato dela nao comecar sempre na mesma hora do dia. Além disso, a revolucio sideral ¢ a revolugao sinédica da lua diferem algo em torno de dois dias”. Essa diferenga realmente preocupou e incomodou os povos que estabeleceram 0 més lunar como base de seu calendario. Mui- tos se esforcaram para escolher entre os dados discordantes de sua experiéncia, ou entdo para concilia-los, atribuindo a lunacdo uma duracdo média. Os limites da revolugdo solar so de fixagao ainda mais dificil que os da revolucao lunar. Eles apenaspodem ser estabelecidos com a ajuda de certos pontos de referéncia, de verdadeiros instrumentos, e depois de demoradas observagées pa- cientemente acumuladas. A reputagdo astronémica dos assirios e dos babildnios leva a considerar seu calendario como o prototipo perfeito de um sistema de divisio do tempo fundado a partir do curso dos astros. Colocou-se recentemente em duvida que seu ano de 365 dias tenha sido, desde o principio, um ano solar puro, de base experimental". Correndo em paralelo a esse ano de 365 dias, sabe-se que eles conheciam um ano civil de 360 dias, do qual o elemento primordial é aparentemente um periodo de 60 dias, ao qual corresponde a base sexagesimal de sua numeracdo e de seu sistema métrico”. 0 ciclo anual, formado pela multiplicagao dessa base numérica, foi aproximadamente adaptado ao ano solar real. E assim que os ciclos mexicanos, fundados sobre as bases dos numeros 13 e 20, foram mais ou menos postos de acordo com o periodo venusiano e que os acordos convencionais se estabelecem 46. Grimm, 0. |, p. 636; Hans Sachs, N, 3, 43 e ss.; Falek, Neues Staatsburgerliches Magazin, | (Schleswig, 1832), 9. 655 (citado por Grimm, op. 636); Abbott, Macedonian Folklore, po. 16ess. 47, Roscher, 0... pp. 4€ $6. Talmud Babli, Pesachim, 111 a; ibid, Schabou‘ot, 9 a. 48. G.Kewitsch, Zneifel an der astronomischen und geometrischen Grundiage des 60-Systems, Zeitschrift far Assyriologie, 1904, pp. 73-95. 49. CF. H, Winckler, Die Weltanschauung des alten Orients, p. 20. CF. Ed. Meyer, Aayptische Chronologie, 1904. Estudo Sumério da Representasdo do Tempo na Religido ena Magia — 11 entre o més lunar de 29 dias ¢ 0 més esquematico de 30 dias®. A experiéncia - de onde nasceram as divisées do tempo fundadas a partir da astronomia ~ é facilitada pela existéncia de contagens convencionais prévias, as quais permitiram apreciar a extensio das revolugées astrais. Ela se apresenta, em alguma medida, como a verificagaio de uma previsdo. Para reduzir o papel desempenhado pelo arbitrario, alguns se abrigardo, sem diivida, em uma teoria da origem experimental dos numeros rituais. Dir-se-a, por exemplo, que os nimeros 7 € 9 sao obtidos pela divisio, respectivamente em quatro e em trés partes, da revolucio sinédica e da revolucao sideral da lua". Ja ha um bom tempo os americanistas nos ensinaram, contu- do, que esses ntimeros podiam ser obtidos de outra forma, ou seja, pela adigao dos pontos cardeais do espaco’. Tais somas de pontos cardinais eram representadas por diversos simbolos, os quais ser- viam para representar 0 espaco total no ritual. Os americanistas nos ensinaram ainda que a sudstica era um desses simbolos, aquele correspondente ao ntimero 9. Nada impede que se admita que, na Asia ocidental ¢ na Europa, esses mesmos mimeros possam ter sido construidos da mesma mancira. Alids, aqui também se encon- tra a suastica mistica e, justamente, o numero nove é igualmente utilizado como numero ritual em certos pontos do territorio onde a suastica é encontrada. 0 estudo da numerizacao dos primitivos coloca desde ja em duvida a ideia de que essa espécie de numeros e, em geral, todos os que servem de base aos sistemas de numeragio, todos os que, em suma, sio objeto de uma consideragao particu- lar, sejam contas fortuitas de objetos totalizados®. Ele nos conduz a pensar, ao contrario, que s4o sinteses subjetivas, operadas por sociedades inteiras, sinteses que, cada uma por si, sao capazes de Tepresentar um conjunto qualquer e mesmo o universo, sem que esse conjunto se decomponha naturalmente em tantas partes quan- tas o numero considerado abarque de unidades inferiores. Uma tal teoria supGe que os mimeros tenham, na origem, precisamente 0 mesmo valor que eles tem - até onde vai nosso conhecimento - na mistica aritmética tardia. Se assim for, nao se fara nenhum esforco para admitir que os mimeros, que presidem a divisao do tempo, sio essencialmente convencionais. 50. Joo Lido, De Mens, Il, 14 (Consideragdes de mistica aritmética sobre o niimero 30) 51, Roscher.o. | 52. CF Norte, Sul, Leste, Oeste, Zenite, Nadir, Centro = 7. 53, McGee, Primitive Numbers, 19th Annua’ Report of the Bureau of Ethnology, Il, pp.821-852. Estudo Sumério da Representagdo do Tempo na Religiéo ena Magia 73 Em suma, a divisao do tempo comportaria um maximo de con- vengao © um minimo de experiéncia. A experiéncia precisa viria, a seu tempo, dar-Ihe um suplemento de autoridade. Mas a preocu- pacéo com a exatidao experimental, a qual se aplica por vezes ao calendario, jamais é duravel. Do mesmo modo que, em astrologia™, as observacées efetivas cedem lugar a esquemas de observacées simplificadas, aplicadas mecanicamente, assim também, no que diz respeito ao tempo, a necessidade de verificar a coincidéncia de ciclos dos calendarios com os periodos astrais deixa de ser sentida progressivamente. Os limites do ano oficial se distanciam imper- ceptivelmente doslimites do ano real. Assim, a semana lunar dos caldeus se tornou a semana ordinaria dos hebreus. Nés nao podemos testemunhar as convengées primitivas que instituiram os limites fundamentais dos calendarios. Mas podemos nos aproximar delas constatando como a autoridade social inter- vém em seu funcionamento, As incertezas acerca do comeco real da lunacdo sao resolvidas, na Mesopotamia, pelos astrologos reais encarregados do registro de pressdgios®, na Judeia, pela autoridade sacerdotal € o concurso do povo’s, em Roma, por pontifices”. 0 que sabemos dos debates travados em sociedades que hesitaram entre varias marcacées do tempo™ nos ensina que a experiéncia nessa direcéo ndo se impunha necessarimente na regulagao das duragées. Enfim, temos uma ideia justa da autoridade dada a esses indices pelas convencées que os instituiam todas as vezes que vemos os velhos calendarios, caidos em desuso, sobreviverem longamente a eles mesmos na religido e na magia. Os dias que marcam os limites da diviséo do tempo nao sao os Unicos dias qualificados. Boa parte deles deve, ao que parece, suas qualidades a acontecimentos que se supée terem ocorrido na mes- ma data. Assim, no calendario romano, o aniversario da derrota de Alia é um dia nefasto. No cristianismo, como as qualidades dos dias dependem dos santos que os presidem, elas parecem resultar igualmente da comemoracao de eventos histéricos, tais como a morte ou a deposigao do santo, ou a fundacao de seu santudrio. Da mesma forma, a sexta-feira, sendo o dia da crucificagao, retém do fato entao celebrado uma parte de suas qualidades. A associacaio 54. Bouché-Leclerca, Lastrofogie grecque, pp. 517 € ss. 58. Thompson, The Reports of the Magicians and Astronomers of Nineveh and Babylon, Intro- dugao, pp. vill ess. 56. Schiirer, Gesch.djid. Volkes|,2.ed., pp. 616s. 57. Varrao, LL, 6, 27; Macrobio, Sat. | 15,9. 58, Concorréncia entre o sistema lunar € o sistema solar, Ben Siro, 43, 1-10; Livre des Jubiles, c \i, final; Talmud Babli, Soukka, 29 a, 6 Estudo Sumério da Representacdo de Tempo na Religiao ena Magia 75 entre as datas e suas qualidades é entdo, ao menos para o sen- so comum, fundamentada em experiéncias gerais nesses diversos casos - as quais, aparentemente, nada diferem das experiéncias individuais. Mas sempre cabe perguntar se uma festa de comemo- ra¢ao histérica nao é uma velha festa rejuvenescida, tal como a de Sao Martinho no dia 11 de novembro, ou se a qualificagio do dia considerado néo se deve a outras associacées. Sexta-feira, por exemplo, permaneceu o dia do planeta Vénus. Também por esse viés deparamo-nos com convencées. Assim, numerosas sio as datas nas quais se observam preceitos religiosos cuja instituicdo foi explicada por acontecimentos historicos, existindo pouquis- simas que nao tenham outras razées de ser. Em geral, nao s4o os fatos que fixam as datas. Estas séo os tempos marcados por um ritmo, o qual divide a duracdo imprecisa em duragées finitas. Um ritmo, de igual natureza, determina a repeticdo infinita de datas estabelecidas, sejam elas quais forem. A representacdo do tempo € essencialmente ritmica. Mas ja nao foi demonstrado que, no trabalho, na poesia e no canto, 0 ritmo era o emblema de uma atividade coletiva, tio mais fortemente caracterizado quanto mais desenvolvida e mais intensa a colaboracao social? Se isso for verdade, é licito supor que o ritmo do tempo nao tem necessariamente por modelos as periodici- dades naturais constatadas pela experiéncia, mas que as sociedades detinham em si mesmas a necessidade e os meios para institui-lo. Vi Se a escolha que determina os dias qualificados € arbitraria, sua qualificacao particular nao o é menos. Suas qualidades assim definidas, pela associagéo simpatica das datas e de seus efeitos, positivos ou negativos, séo convencionais, assim como o sao todas as outras espécies de associacdes simpaticas®. Entre a multipli- cidade de associacées possiveis, ¢ o arbitrario que decide. E esse arbitrario nao é o de um individuo que escolhe por si s6, mas o de sociedades inteiras. E ha mais: se aqui se trata de associagées simpaticas entre fatos considerados como necessariamente concomitantes, deve en- tar nessas associagées outra coisa além das imagens associadas. 59. K.Bilcher, Arbeit und Aythmus; Ft. B. Gummere, The Beginnings of Poetry, cf. M, Mauss, em Année sociofogique, t.V,p. 560 (resenha da obra recém-mencionada). 60. H. Hubert €tM. Mauss, Lo Magie, nEsquisse d'une théorie générale de la magica) ||, pp. 65 5. [Em portugués, cf. H. Hubert & M, Mauss, "Esboco de uma Teoria Geral da Magia’, em M. Mauss, Sociologia e Antropotogia, op. cit, pp. 103 € ss] Estudo Sumério da Representagao do Tempo na Religito e na Magia 71 Deve-se esperar ver ai a intervencdo, em alguma medida, da ideia de poder magico, de mana ou de sagrado, fundamento da crenga da qual sao objeto, em magia e em religido, as outras associagées da mesma espécic. E preciso que as associacées que definem as qualidades do tempo tenham um cardter sagrado, assim como os termos que as compéem. Em outras palavras, é necessario que as datas ou seus signos tenham um poder magico-religioso, bem como que as coisas significadas, fatos ou atos, participem da natureza desse poder. Essa coisa vaga, mas bem real, que nao €, como dis- semos alhures, nem substancia, nem qualidade, nem ato, mas ¢ ao mesmo tempo tudo isso", deve aparecer aqui, ao menos de relance, sob uma ou outra de suas possiveis formas. E o que iremos verificar de forma sumiaria. Ora, essa nogo de sagrado, rids ja demonstramos em parte, ndo pode se formar no espirito do individuo enquanto tal. Ela resulta de experiéncias subjetivas da coletividade. Constata-se que, em primeiro lugar, se a qualificagéo de uma data qualquer parece definida por um numero limitado de asso- ciagdes simpaticas, imperativas ou persuasivas, essa limitacio é apenas aparente. Existe para uma data especifica, em um dado local, um nticleo fixo de prescrigdes e de expectativas, sendo tal lista ampliada a medida que se amplia a base documental®. Na verdade, as datas atraem para si os atos e as imagens em funcao da consideragao da qual so 0 objeto. Elas sao investidas de um tipo de qualificagao geral que se expressa com determinagées particulares. Estas, alias, frequentemente se confundem e desaparecem por vezes por completo na gencralidade da qualificacdo comum. Sem comprometer 0 que haviamos dito da associagao neces- saria entre os fatos ¢ os tempos, devemos reconhecer que os dias qualificados sao intercambiaveis ¢ que os ritos passam de um a outro. Na historia das festas populares na Europa, observam-se interminaveis trocas entre S40 Martinho, Sao Miguel, Sao Nicolau, Natal, a Epifania, o Santo Anténio etc. As qualidades diferentes dos dias qualificados séo, em suma, os graus ¢ os modos de uma mesma qualidade. Essa qualidade é, alids, ambigua. Ela produz os efeitos contraditérios dos quais, como se observou anos atras, as coisas sagradas sao capazes. Ja chegamos alhures a uma conclusaio seme- Ihante no que diz respeito ao estudo das propriedades magicas. Des- se modo, por tras das qualidades distintivas das partes do tempo, 61. H. Hubert & M. Mauss, idem, p. 109. [Em portugues, cf, H. Hubert &t M. Mauss, "Esboro de urna Teoria Geral da Magia", em: M. Mauss, Sociologia e Antropologia, op. cit, p. 143] 62. Cf. Pineau, Revue des traditions populaires, pp. 430 ss. Touraine) Fstudo Sumério du Representagdo do Tempo na Religido ena Magia 79 encontramos uma qualidade comum, a de sagrado. As qualidades se reduzem precisamente ao sagrado desde que sejam abstraidas as. associagées especiais atreladas as datas ¢ aos periodos, ou a partir de sua multiplicagao ao infinito. Mas ¢ bom nos precavermos de pensar que a afirmacio desse traco comum equivale a negar sua heterogeneidade fundamental, pois sabemos que essa qualidade co- mum ¢ suscetivel de gradagdes e de modos que sio um principio suficiente de diferenciagao. Nés sabemos, além disso, que as coisas sagradas tém, por definigao, uma razdo de se separar e de se singu- larizar desse modo, pois elas s6 permanecem o que sio em fungao de um esforgo constante, ao prego do qual podem ser distinguidas do profano, em primeiro lugar, e, em seguida, umas das outras. Se considerarmos agora as prescri¢des imperativas das quais as datas séo objeto, constataremos outras indicagdes do carter sagrado que ai se encontra. Os ritos de entrada e de saida, dos quais falamos antes, siio um exemplo: as duragdes que eles enquadram sdio comparaveis, desse ponto de vista, as ceriménias sagradas. O que é proprio das coisas sagradas é o fato de elas serem cer- cadas de interdicdes. Ora, além das interdigdes especiais atreladas a certas datas qualificadas, existem interdigdes gerais de atividade que pesam periodicamente sobre 0 tempo. O saba” fornece um tipico exemplo. Sabe-se do periodo anual de impoténcia que imobi- lizava os guerreiros do Ulster*', Ao estarem concentradas em alguns pontos do calendario, € possivel considerar essas interdigdes - em funcao do fato j4 conhecido de o sagrado ser eminentemente des- locavel, bem como a causa das relacdes estreitas que unem as datas em questiio com as duracées que as seguem ~ como se elas resga- tassem essas mesmas duragées de uma interdicéo que igualmente as atingiria®. Disso se segue que as duracées aparecem, por seu turno, investidas de um dos tracos essenciais do sagrado. Dando sequéncia a esse raciocinio, chegar-se-d & nogdo de um tempo es- sencialmente religioso, importante e perigoso, que permaneceria imprprio a ago se a interdicdo que afeta scu todo nao pudesse ser suspensa momentaneamente e distribuida na integra sobre algumas de suas partes. Essa no¢do seria a representagao quase concreta de uma duracdo pura, existindo em si e, de fato, objetiva - ao menos 62. [63] Osaba ¢ propriamente, como a etimologia da palavra o indica, um término de periodo, cf. Fr. Bohn, 0.1, p.2 63. [64] E. Hull, Old irish Tabus, or Geasa, Folk-Lore, 1901, p. 58. Cf. G. Pinza, Lo Conservazione delle Teste Umane ele Idee e Costumicoi qualisiConnette, p. 78; cf. Archiv fir Religionswis- senschaft, il, 1904, p. 459, 65. Cf. Année sociologique, t. Il, p. 266. Cf. Lagrange, Etudes sur les religions sémitiques, 2. ed., 284. Estudo Sumdrio du Representacdo do Tempo na Religito € na Magia 61 quanto aos atos humanos, pois o ritmo de seu curso nao seria mar- cado pela sucessao de tais atos -, duracdo, alias, nado menos inerte, imével e apatica que o homem cujo adormecimento temeroso ela aprisionaria. Trata-se de uma verdadeira eternidade, onde apenas a necessidade de agir para viver engendraria o tempo, nele dividindo as eternidades sucessivas, imagens limitadas, mas substitutos per- feitos da eternidade maior. Enfim, os dias qualificados sao festas, e é talvez porque nao exista nenhum dia sem qualificacao que, em latim, a palavra feria findou por designar cada um dos dias da semana. Em todo caso, as datas criticas do calendario tm a mesma natureza qualitativa que as festas propriamente ditas. Constata-se que ou bem elas sao escolhidas para a celebragao dos ritos, ou bem elas sdo santificadas pelos ritos. Seu cardter religioso se manifesta, tal qual o das festas, por intermédio de ritos positivos, de interdicdes, da presenca do sobrenatural”, em uma palavra, por tudo o que constitui o anor- mal® e tudo o que pode distingui-las da massa dos dias que trans- correm sem se notar. Inversamente, as festas propriamente ditas foram ou tendem a ser as bases do calendario. Essa oscilagao, essa troca de caracteristicas e de fungées entre as datas dos calendarios eas festas, é particularmente facil de ser observada nas épocas de incertezas, tais como nos primeiros séculos da Idade Média, quando se estabelecia o equilibrio entre instituigdes romanas, cristas, ger- manicas e célticas, na Europa do Norte e do Oeste. Observa-se, por exemplo, o primeiro de janeiro, festa das Calendas’, tomar a feicao de uma festa de Sao Joao, ¢, por outro lado, festas que nao tinham de inicio fungao no calendario, Pascoa e Natal, progressivamente substituirem, como balizas da divisao do tempo, as velhas festas sazonais, tais como a de Sao Martinho. Desse modo, as partes do tempo em que transcorrem as coisas religiosas séo sagradas como as proprias coisas, Essa convencao essencial preside 4 formagdo das convengées antes enumeradas, que tém precisamente por objetivo definir as condigées nas quais se realiza essa qualidade do sagrado que se atrela ao tempo com as diversas modificagées as quais cla é suscetivel. Em resumo, 0 56. Wuttke, 0. , 75; Rawlinson, Western Asios Inscriptions V, 48, 49. 57. Poderes especiais de certos seres em datas criticas: Wuttke, I. Eckhart, Stidhannovers- ches Sagenbuch, p. 28 (poder das criangas nascidas em um domingo). ~ Circulagéo dos espiritos: Wuttke, |. |; Peal, Zeitschrift fir Ethnologie, 1899, p. 355 {retorno das almas, entre os Nagas, na Ilia nova de dezembro); Talmud Babli, Boba Batra 74 a (retorno das almas todos os trinta dias) 68, Interrupcéo da ordem social ao término dos periodos: cf. Gessert, Globus, I, 1698, p. 250.2 69. A Tille, Yule and Christmas, pp. 81 € ss. passim. Estudo Sumdrio da Representagao do Tempo na Religido ¢ na Magia 83 quadro qualitativo do tempo é formado por um grande niimero de convengées que estabelecem relagdes de causa € efeito entre os fenémenos que nele se passam e, por abstragao, o proprio tempo. Essas relacdes sao, em ultima anilise, relacoes de identidade. vil Ao reencontrar a nocao de sagrado na base das representagdes qualitativas registradas por esse quadro, contudo, chegamos a uma sélida conjectura - fundada a partir da concluso de nosso estudo precedente - de que as condigdes emocionais e logicas, nas quais pode se desenvolver a nogéo de tempo na magia € na reli- gido, so sensivelmente diferentes daquelas nas quais ela parece dever aparecer normalmente entre os individuos. Supondo-se que ela tenha surgido completamente formada em cada individuo es- pecifico, essas condiges sao tais que ela deve ter sofrido notaveis modificagées. E preciso considerar, com efeito, esses estados de agitagao coletiva nos quais nés supusemos antes que se formou a nocio de sagrado. As modificagdes profundas que nossas proprias emogdes produzem em nossa consciéncia da duragdo nos ajudam a imaginar como as emogdcs amplificadas de uma sociedade pu- deram afetar a da totalidade de seus membros da mesma maneira, mas com mais intensidade e por um tempo maior. Essas emocées primitivas, excepcionais e momentaneas, deixaram na sua esteira um residuo de crenca que renova ou mantém alguns de seus efei- tos quando a causa é atenuada. Elas se perpetuam € continuam a condicionar o pensamento por intermédio da forca logica das categorias e dos conceitos. Por todas essas razées, a nogo do sagrado entra como um elemento perturbador nos juizos relativos ao tempo. Ao introduzir entre scus termos a ideia de um poder magico que € limitado apenas por ele mesmo, ela justifica a priori todas as anomalias possiveis. Por outro lado, as propriedades que conhecemos dessa nocao per- mitem explicar analiticamente aquelas que identificamos, no inicio deste trabalho, como sendo as propriedades da nocéo magico-re- ligiosa de tempo. Nés vimos que elas deixam de ser contraditorias caso substituamos a nogdo de um tempo quantitativo por aquela de um tempo qualitativo, ainda mais se a qualidade, @ qual esse tempo é essencialmente suscetivel, ¢ a de ser sagrado. No que diz respeito a homogeneidade qualitativa das partes do tempo, nao é apenas um absurdo supor que essas partes, sendo distintas, podem nao scr, cada uma por si, qualitativamente homogéneas, como ainda é um ato criminoso, sacrilego, perturbar essa homogeneidade sagrada. E Fstudo Sumério da Representacdo do Tempo na Religida ena Mayia 8 o mesmo crime que infringir um tabu. As partes simétricas nao sao mais apenas equivalentes enquanto qualitativamente semelhantes, mas, em fungao da facilidade com a qual 0 sagrado se substancia- liza ao se objetivar, elas sio real e substancialmente idénticas. E natural que a parte de uma duracao possa ser tomada pelo todo, nao mais somente porque a qualidade da qual 0 todo foi investido encontra-se por inteiro em suas partes, mas porque, substancial- mente, a qualidade dessa duracdo pode ser retirada de sua parte € nela fixada. Enfim, as datas criticas interrompem as duragées, por um lado, porque, sendo sagradas, elas realmente sao o que elas sio verbalmente, ou seja, separadoras, ¢, por outro lado, pela mesma razdo, elas carregam as inibigées que trazem consigo todas as coi- sas sagradas, e cujo protétipo sao as interdicées do saba. A resposta a questo formulada no inicio deste trabalho é que a magia € a religido conciliaram a contradigao flagrante que existe entre a nocao de sagrado e a nogdo de tempo, as exigéncias das quais elas estavam igualmente submetidas, atribuindo convencio- nalmente ao tempo e as suas partes - momentos ou periodos - a qualidade de sagrados. Elas colocaram o sagrado no tempo e cons- tituiram assim a cadeia ininterrupta de eternidades, ao longo da qual seus ritos podiam se dispersar e se reproduzir permanecendo invariavelmente idénticos. Vill As expressdes das quais acabamos de nos valer sé podem ser satisfatorias se supusermos que, para além do trabalho coletivo que atribui ao tempo da magia e da religido seu valor qualitativo, os individuos sao providos de uma nocdo de tempo que cada um deles abstraiu, por si sd, de sua consciéncia. Ainda assim, entre as ex- periéncias subjetivas que os instruiram, é preciso necessariamente considerar as que foram produzidas no ambiente da coletividade exaltada, Sabe-se ja com qual objetividade a representagao subjeti- va, a consciéncia do poder magico, ¢ liberada por abstracéo desses estados de exaltagdo, sob formas semiconcretas ou absolutamente coneretas € pessoais. Tudo 0 que, nas mesmas condicées, ¢ objeto da mesma atengao intensa se presta aos mesmos fenémenos de abstracdo e de generalizacdo; podemos vé-lo se produzir na série de associacées simpaticas, mas com graus diversos de elaboragao”. 70. H. Hubert & M. Mauss, Lo Magi, KEsquisse d'une théorie générale de fa magies), 1. pp. 61 es. [Em portugues, ef. H. Hubert & M. Mauss, "Esboco de uma Teoria Geral da Magia", em: M. Mauss, Sociologia e Antropologia, op.cit, pp. 99 € ss Estudo Sumirio da Representagao do Tempo na Religido © na Magia 87 No que diz respeito ao tempo, tal como da consciéncia de eficdcias particulares surgiu a nogao geral do mana - que € da ordem de toda eficacia -, também da percepcao viva das concomitancias mutaveis é possivel que tenha surgido a nocao geral do tempo - que é da ordem das concomitancias possiveis. Os fatos de consciéncia de que se trata sao objetivados, pois eles se passam ao mesmo tempo na consciéncia de muitos, os quais ganham consciéncia, no mesmo instante, de seu acordo mutuo e de sua fatalidade. A objetividade desses fatos resulta de sua subjetividade partilhada e experimen- tada. Por outro lado, sua abstracdo é paralela a sua objetivacao. Enfim, a primeira nogéo, a de mana ou de sagrado, empresta sua realidade a segunda, a de tempo. Mas, dado que as condigées do ambiente mistico sao tais que toda concepgao ai se torna eficacia e realidade, todas as vezes que, nesse ambiente, trata-se de conceber a nocao abstrata e geral de tempo, esse tempo se encontra realizado em absoluto. Disso se segue que, mais uma vez, as coisas religiosas que se passam no tempo sao legitima e logicamente consideradas como se elas se passassem na eternidade. Nada sabemos acerca da possivel constituigéo da mesma abs- tracéo em outras condicées, embora nos abstenhamos de negar essa possibilidade. Pretendemos apenas mostrar que as condigées aqui mencionadas sao particularmente favoraveis 4 sua producao: em primeiro lugar, em funcao da objetividade que elas sao capazes de The dar, e, além disso, porque elas se prestam a formacio das convengées que criam as palavras, sem as quais nao existe abs- tragdo que se sustente. A abstragdo resultante responderia bem as caracteristicas da nogao de tempo, pois sua formacao seria paralela Aquela de um sistema de pontos sucessivos, definidos pelas conco- mitancias descritas ¢ cujas posigées relativas, reguladas pela lei do ritmo, ja que se trata de representagées sociais, constituiriam um quadro do tempo. Supondo-se que as condigées enunciadas antes - poder de abstrair e de generalizar, constatacdo em comum de coincidéncias, trabalho coletivo das consciéncias, nocées de sagrado e de poder magico - tenham sido suficientes para dar & magia e a religiio a nogao de tempo que elas encampam, acaso é preciso inferir que os mesmos fenémenos de atividade coletiva sejam necessarios a formacao da nocao de tempo que funciona em nossas conscién- cias, fora de toda preocupacao de magia ou de religiio? Estamos longe de pretendé-lo e nao temos nenhum interesse em especular nessa direcdo. Em todo caso, ao se considerar no mais 0 que ha de mais simples e de mais abstrato na nossa nogiio de tempo, Estudo Sumério da Representagao do Tempo na Religiéo ena Magia 89 mas a complexidade real daquelas nossas representagdes, na qual essa noco esta implicada tal como ela resulta do passado e da tradigdo, ¢ inconteste que as formas especiais dessa nogao recém- -estudada tenham contribuido em grande medida a elaboracao das outras. Além disso, nossa representagao real do tempo - que, como diziamos, supde uma espécie de quadro fixo cujos pontos parecem ter a propriedade de se elevarem, uns apés os outros, no presente de nossa consciéncia - separa-se mal (ou, ao menos, separa-se apenas por meio de uma abstracdo sempre imperfeita) de nosso sistema de medida do tempo e, em especial, do calendario. Ora, de fato, a verdadeira fung4o original dos calendarios ¢ religiosa ou magico-religiosa. Eles serviam essencialmente para prever 0 retorno dos fatos, que se acreditava trazerem com eles a celebra- cao de determinados ritos ou a produgéo de determinado fend- meno relevante para a religiao. Se é dificil provar que eles foram realmente instituidos para assegurar 0 cumprimento regular das concomitancias fatais de imagens e de ritos, pode-se ainda as- sim observar que as retificagdes as quais eles foram submetidos, mesmo muito recentemente, tiveram por finalidade reinstaurar a regularidade dessas concomitancias - 0 que constitui ao menos uma forte conjectura quanto & natureza de sua instauracao origi- nal. 0 objetivo das reformas julianas e gregorianas do calendario foi essencialmente religioso. Igualmente por motivos religiosos, quereformas nao foram aceitas sem oposicéio e que sempre sub- sista algo dos calendarios abolidos. A autoridade da convencao que criou o calendario Ihe da uma realidade igual 4 de fendmenos a partir dos quais se pretende regula-lo. Em suma, o calendario a ordem da periodicidade dos ritos. Sua historia nos ensina, além disso, que ele ¢ 0 cédigo das qualidades do tempo. Os primeiros calendarios sao almanaques que registram, dia apés dia, os prog- nésticos ¢ as prescrigées magico-religiosas” Desse modo, a instituigdo dos calendarios nao tem por fim Unico — nem, sem duvida, por fim primeiro - mensurar a passa- gem do tempo tomado como quantidade. Ela procede nao da ideia de um tempo puramente quantitativo, mas da ideia de um tempo qualitativo, composto de partes descontinuas, heterogéncas, ¢ que recai sem cessar sobre si mesmo, cujos caracteres expusemos an- teriormente. Em verdade, a frutificagdo continua dessa segunda nogao era propicia, no fim das contas, a produzir a primeira. A 71. Cf. Chabas, Le calendrier des jours fastes ct néfostes de lannée égyptienne. Estudo Sumério da Representagio do Tempo na Religido € na Magia 91 multiplicacao dos pontos qualificados, a diferenciag&o progressiva das partes enumeradas, a confusio mesma das qualidades, que ja descrevemos, devia conduzir 4 andlise das sinteses primeiras. Em suma, 0 trabalho de abstracao, do qual surgiu a nocdo de tempo objetivo, quantitativo e abstrato, é talvez a decorréncia daquele que retirou das coisas 0 tempo qualitativo, semiconcreto.

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