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2. 0 methor debate filoséfico esta nas premissas e pressupostos E no nivel dos pressupostos e premissas que pode- 1mos ter 0s melhores debates filos6ficos, pois, nesse nivel, podemos concordar ou discordar sobre a maneira como se exprime a experiencia do mundo, as vivencias ete. Ali, se concordarmos com as premissas e pressupostos, dificmente poderemos discordar das conclusbes. Dai a importancia radical da analise dos argumentos. Para visualizarmos como isso envolve nossa vida concreta, leia a seguinte histéria, publicada no jomal de uma escola do Ensino Médio: Sou o Carlos ¢ tenho 17 anos. Outro dia, durante o in- tervalo, estivamos conversando sobre a eutandsia, A Katia diseage era contra, porque, assim como niio con- seguimos crit a vida, também nao temos direito de tiré-la, Deveriamos aliviar 0 sofrimento dos doentes, ‘mas nunca abreviar a vida deles. 0 Maicon disse que 22 cra a favor, porque a eutandsia era um sinal de com- paixiio pelos doentes, sobretudo quando estes a solici- tam livremente. Fiquei confuso e estou me perguntando até agora: se no abreviarmos a vida dos doentes, no praticando a eutandsia, estaremos agindo sem compa x40? E, se quisermos ter compaixdo, teremos de prati- cara cutanisia? Para piorar, nosso professor de Biologia no conseguiu resolver nossa questio. A anglstia do Carlos ¢ muito verdadeira, pois ele procura entender com clareza o assunto, mas mistura as premissas e pressupostos dos dois raciocinios, sem perceber como eles sio muito diferentes ¢ inconcilié- veis. Para ficar de um lado ou do outro, era preciso ade- rir as premissas € pressupostos de cada um. Mas, para dar essa adesdo, baseamo-nos em nossas experiéncias, nossas historias de vida, nossas maneiras de sentir a vida ete. E no cabia ao professor de Biologia resolver esse impasse, pois 0 que esta em discussdo jé ndo ¢ o dina- ismo biologico, e, sim, posigdes existenciais, éticas, ligadas ao sentido da vida humana. Nesse campo, a pa- lavra eabe mais ao fil6sofo do que ao bidlogo ou qual- 23 quer outro profissional. Caso 0 professor de Biologia de Carlos quisesse esclarecer o dilema, ele teria de assumir uma atitude filos6fica, nao meramente cientifica. ‘Vamos montar 0s dois raciocinios envolvidos na historia e compard-los: ‘ARGUMENTO DO MAICON 2 favorda eutansa, Porque ndo temos odireto de | porque ¢ ela um ato de tirara vida de ninguém compaixdo ede liverdade. g gu Nao temas odireito de trar a vide de ninguém - Premisso ARGUMENTO DA KATIA E contra a evtandsia, bom ter compaixioe respetar a liberdade -Presuposto ‘Acutandsia significa tara | A eutandsia €compaixdo € vida de alquém - Pressuposto | — respito pela iberdade ~ Entdo, temos de ser conta & Premissa Entdo, temas de sera favor da eutanisia ~ Conclusdo eutandsia ~ Coneuséo A confusio de Carlos vem do fato de que ele mis- tura as conclusdes, como se fosse possivel considerd- -las a0 mesmo tempo ¢ isoladamente. Na verdade, mais do que se concentrar nas concludes, ele deveria ana- 4 | lisar as premissas: 0 que leva Katia a dizer que nio temos o direito de tirar a vida de ninguém? Faz sentido sustentar uma ideia como essa? E 0 que leva Maicon a dizer que a eutandsia representa um ato de compaixiio € respeito pela liberdade? Se por fim a vida é visto ‘como um ato ruim, por que chamé-lo de compaixio? E discutindo esses pontos de partida (premissas e pressupostos) que Carlos poderia alcangar uma com- preenstio melhor do tema. Ele poderia, inclusive, che- gar conclusio de que talvez 0 debate estivesse malfeito 86 com essas duas opinides. Em todo caso, é nesse mo- mento do argumento que podem ocorrer os melhores debates. 25 3. Montando e desmontando argumentos Fagamos, agora, 0 exercicio de identificar premis- sas € conclusdes nos textos transcritos a seguir, expli- itando também quais pressupostos fundamentam os argumentos. Fiquemos atentos as conjungées e expres- sbes que conectam as ideias e frases! Texto 1 Peca © mesmo para mim, pois amigos devem ter tudo em Pressuposto: Nos somos amigos. Premissa explicita: Os amigos devem ter tudo em comum. Conclusdo: Peca.o mesmo para mim, Texto 2 Como nada Pode ‘stir antes de si mesmo para se causar, centio nada pode Ser causa de si mesmo. Pressuposto: Para que algo seja causa de si mesmo, pre~ cisa existir antes de si mesmo, para se causa. 26 Premissa explicita: Nada pode existir antes de si mesmo para se causar a si mesmo, Conclusdo: Nada pode ser causa de si mesmo. Texto 3 ‘Se quiser ter certeza da sua opinido sobre uma pessoa, observe qual impressdo uma carta escrita por ela causa em voce. Premissa explicita: A impressto causada por uma carta produz a opinio que se tem sobre o autor del, Conclusdo: Para conhecer a opiniao sobre alguém, observe 1 impressfo causada por sua carta > Note que este raciocinio é um conselho, Por isso, nao demonstra a veracidade da conclusio, mas apenas es- tabelece uma relagio entre a premissa e ela. Cabe 20 Ieitor julgar 0 que esté dito. Porém & importante para nds a anélise de um raciocinio como este, para perce- bbermos a estrutura do pensamento que levou alguém a dar esse consclho, Falando rigorosamente, ndo deveria- ‘mos chamar essa méxima de raciocinio, mas o fazemos porque ela também implica uma correlagio de ideas. Texto 4 Como a amizade é uma parceria, o amigo trata seu amigo como trata a si mesmo, Ora, como alguém se satisaz sabendo de sua, propria existéncia, também se satisfaz sabendo da existén- 2 cia de seu amigo. E isso 56 se pode saber quando se convive. E por isso que, naturalmente, 0s amigos procuram 0 convivio. > Este exemplo contém um conjunto de raciocinios, vvisando sustentar uma conclusio principal. Para fa- cilitar nossa anélise, procuremos identificar essa con- cluslo para, em seguida, identificar os recursos em- pregados pelo autor para justificé-la. No caso deste texto, ndo é dificil identificar a conclusdo principal, Porque ela esté no fim: “Os amigos, naturalmente, procuram 0 convivio.” Ent, se reescrevermos 0 texto de tras para frente, usando a conjuncéo por- que, veremos como 0 autor justifica sua afirmagao: Os amigos procuram convivio, porque € quando se convive que se sabe da exis- téncia do amigo; © porque € sabendo da existéncia do amigo que al- sguém fica satisfeito, assim como sabe de sua pré= pria existéncia; porque, ~ gssim como alguém se trata a si mesmo, assim também trata seu amigo; final, a amizade € uma parceria, Nesse caso, cada uma das conjungies permite identift~ car um raciocinio. E a conclusao de um raciocinio se toma premissa do que vem em seguida. Seguindo a ordem do texto, temos: Premissa explicita: A amizade é uma parcet Pressuposto: Na parceria, os parceiros tratam um a0 ‘outro como tratam a si mesmos. Conclusdo 1: 0 amigo trata seu amigo como trata a si Premissa explicita: 0 amigo trata seu amigo como trata Premissa explicita: Alguém se satisfaz sabendo de sua propria existéncia, Conclusdo: 0 amigo também se satisfaz ao saber da existéncia do seu amigo. Premissaexplicita: 0 amigo se saisfaz a saber da exis- téncia do seu amigo. Premissaexplicta:£ quando se convive que se sabe da existincin do amigo. Conelusdo: Naturalmente, os amigos procram 0 convivi. Essas estratégias de montar e desmontar racioci- nios refletem nossa maneira de pensar. Também pode- 29 ‘mos dizer que nelas resume-se a metodologia da ar- gumentacio filosofica. Evidentemente, definir a me- todologia filoséfica ¢ algo muito mais complexo, mas, de modo geral, a atitude filoséfica consiste em analisar a estrutura das afirmagoes e negagées que fazemos em nossa leitura do mundo. E assim que desocultamos 0 que é implicito nos discursos, nas agdes etc. Hi fildsofos que defendem tipos no raciocinativos de argumentagao (preferem formas de convencimento por imagens, intuigdes poéticas, metaforas etc.), mas, ‘sempre que se procura justificar uma opinio ou qual- quer forma de conhecimento, operamos com premissas pressupostos. Explicitar esses mecanismos e interpre- tar nossa experiencia do mundo séo tarefas da ativi dade filoséfica. Vejamos, entdo, os tipos de raciocinio possiveis 30

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