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5. Analisando textos Os argumentos ou raciocinios aparecem em debates, conversas etc. No trabalho filos6fico, a principal fonte para conhecer os argumentos sio os textos escritos. Tam- bbém houve pensadores que preferiram exprimir seu pen- samento pela pintura, como ocorreu no Renascimento, Por exemplo, ou por meio de formas literdrias diversas, como sempre ocorreu ma histéria da Filosofia. Mas a forma mais comum € o texto escrito, no qual se apresen- tam as razées que sustentam as teses de cada autor. Por isso, a quem se aproxima da reflexio filosd- fica € necessirio conhecer 0 mecanismo da anilise de textos, assim como se da com os argumentos. Na ver- dade, o primeiro trabalho filoséfico consiste em iden- tificar os argumentos presentes nos textos, a fim de discutir seus pressupostos, premissas ¢ conclusdes. ‘Ao nos aproximarmos de um texto, devemos, antes de tudo, deixé-lo “falar”: Em outras palavras, isso quer 37 dizer que, antes de 0 interpretarmos ou de darmos nossa opiniao sobre ele, devemos Ié-lo € entendé-Io se- gundo a maneira como seu autor o construiu. ‘Vemos que a maioria das pessoas, quando 1é um texto, j4 comeca a falar sobre ele. Muitas vezes, elas nem sequer 0 entenderam segundo a ordem das razbes, do autor. Isso nao & aceitavel na atividade filoséfica Por isso, propomos cinco passos para a anélise: 0 primeiro passo consiste em ler o texto inteira- mente, mesmo que nao entendamos tudo o que lemos. E claro que, em se tratando de um livro, devemos ir por partes (por capitulos ou por pardgrafos). Nessa primeira leitura, devemos procurar identificar 0 assunto central do texto € fazer 0 levantamento do vocabulério que no conhecemos, marcando e anotando os termos desconhecidos. 0 segundo passo consiste em buscar 0 sentido dos termos desconhecidos. E preciso notar se 0 préprio texto nilo explica o termo, pois, muitas vezes, a defi cao & dada.por ele mesmo. Se o texto nao explica um termo, entdo rétorremos a um bom dicionario da Lin- gua Portuguesa, ¢, se necessério, a um bom dicionério de Filosofia. 0 terceiro passo consiste em reler 0 texto, em ritmo ‘mais lento, para identificar os argumentos ou racioci- nios do autor (seus pressupostos, premissas e conclu- sbes). E nesse ponto que comegamos a comparar nossas experiéncias do mundo com as experiéncias do autor. Chamamos a esses argumentos ou raciocinios “movi- ‘mentos” do texto, pois representam os movimentos do pensamento do autor. 0 conjunto desses movimentos compée 0 texto. 0 quarto passo consiste em enumerar esses movi- mentos, identificando a estrutura geral ou a armacao do texto. Trata-se de uma visio de conjunto muito esclarecedora. 0 quinto passo consiste em relacionar 0 texto ana- lisado com o restante da obra do fildsofo e com 0 con- texto histérico por ele vivido, pois isso amplia nossa compreensio, na medida em que podemos ver correla- ‘Ges com fatos, pessoas, teorias etc., importantes para esclarecer 0 pensamento do autor estudado. Iss0 nao equivale a explicar o texto em fungdo do contexto, como se alguém pensasse 0 que pensa apenas porque, no mundo da sua época, ocorresse alguma coisa que 0 determina. Se fosse assim, muitos filésofos e cientistas 39 nao se teriam adiantado com relagdo a seu tempo. ‘Trata-se apenas de, com 0 auxilio de dados jé bem as- sentados (histéricos, culturais, sociolégicos etc.) esta- belecer conexdes que aprofundem a compreensio do texto. Eis 0s cinco passos na andlise de textos: (1) leitura do texto, identificando o assunto prin- cipal e levantando 0 vocabulario desconhecido; (2) checagem do vocabulario, no préprio texto ou num bom diciondrio; (3) identificagao dos argumentos do autor; (4) enumeracdo dos movimentos do texto; (5) correlagao do texto com o seu contexto histé- rico. Somente apés esse trabalho de andlise que pode- remos dispor do texto para interpreté-lo, concordando com ele ou discordando dele. Como dissemos, as pes- soas esto acqstumadas a ler um texto € a logo falar dele, encaixandd-o num padrao preconcebido por elas. ‘Mas, para entender de fato um texto, € preciso ter a pa- ciéncia de descobrir seu mecanismo, sua estrutura. 40 Fagamos, entao, o exercicio de analisar um trecho extraido do capitulo 5 do livro intitulado Discurso do ‘método, de René Descartes (1596-1650): Por esses dois meios, podemos conhecer a diferenca que reside entre os homens € os animais: ¢ uma coisa bem observavel 0 fato de no existirem homens to aluci- nados nem tio estipidos ~ incluindo mesmo os doen- tes mentais -, que no sejam capazes de ajuntar algumas palavras e de compor com elas um discurso pelo qual tomem compreensiveis seus pensamentos. Por outro lado, também é observavel que nenhum outro animal & tao perfeito ¢ tio bem produzido, que pudesse ser se- melhante ao homem. E isso no acontece porque Ihes faltam érgios, afinal, vemos que as pegas e os papa- gaios podem dizer palavras tanto quanto nés, mas no podem falar como nés falamos, ou seja, falar dando uma prova de que eles pensam 0 que dizem. Isso nao ‘mostra somente que os animais tém menos razlo do que fos homens, mas que eles nao tém nada parecido com uma razio. DESCARTES, R. Discurso do método, 5 part, 6511, Trad. Juvenal Savian Filho, a partir da edicao Gallimard (Paris, 2008) a 18 passo 1.1 Lendo 0 texto todo, vemos que seu assunto princi pal é a diferenca entre os seres humanos € 0s ani mais, Isso quer dizer que o autor, René Descartes, procura saber 0 que toma os humanos diferentes dos animais. 1.2 Quanto ao vocabulério, nao ha dificuldades, pois 68 termos so bem conhecidos, com excegdo ape- nas do termo “pegas” (pronuncie /pégas/). 28 passo 2.1 Se procurarmos no dicionério 0 termo “pega”, ve- remos que € 0 nome de um passaro tipico da Eu- ropa € pertencente a familia dos corvideos. No cerrado brasileiro, encontra-se a gralha-do-campo, parecida com ele. Certamente, com uma pesquisa na internet, pode-se visualizar 0 passaro mencio- nado por Descartes (em francés - que ¢ a lingua do autor do texto ~ este passaro se chama pie). Ao depararmos'tom seu nome no texto, prestamos mais tengo no exemplo, Alias, vemos que ha dois exem- plos, 0 das pegas € 0 dos papagaios. Descartes cita 4 os papagaios para falar dos animais que podem imitar a voz humana. Quanto as pegas, ele as cita porque elas costumam imitar barulhos fortes, lem- brando gritos humanos. Descartes quer dizer que tanto os papagaios como as pegas podem nos imi- tar, mas nao sio capazes de organizar as palavras, produzindo um discurso concatenado, como nés fazemos, 2.2 Pensando ainda no vocabuldrio, também vale a pena prestar atencdo na diferenca estabelecida por Descartes entre “seres humanos alucinados” ¢ “seres humanos estipidos”. Uma pessoa alucinada € alguém alterado, com suas capacidades mentais fora do estado normal; jé uma pessoa estipida € alguém que insiste em no usar suas capacidades mentais. Ao procurar entender 0 sentido desses exemplos, veremos que mesmo uma pessoa que no usa suas capacidades mentais pode tentar or- ganizar as palavras para traduzir seus pensamen- tos. No caso de um doente mental, vemos que ele tenta exprimir os contetidos de sua mente, embora esta se encontre perturbada. Isso tudo nao ocorre ‘com os animais, pois eles imitam sons sem pensar. “a O ser humano é diferente; ele concebe, antes, em sua mente, 0 que depois exprime pela linguagem. 38 paso Buscando conhecer os argumentos do autor, vemos que eles consistem basicamente em dois. Ele inicia 0 texto dizendo que seu objetivo é tratar da diferenga entre seres humanos e animais, para depois raciocinar da seguinte maneir: {a} observamos que os seres humanos so capazes de ajuntar palavras e compor com elas um discurso para exprimir seus pensamentos; (0) observamos também que nenhum animal pensa ‘0 que diz (confirmagao pelo exemplo do papagaio ¢ das egas, que apenas imitam sons). Esses dois raciocinios consistem em indugées, obtendo a mesma conclusio: a diferenga existente entre seres humanos e animais esté na capacidade de pensar antes aquilo que se exprime pela linguagem, ou seja, na capacidade de organizar um discurso com pa- lavras articuladas, 48 passo ‘Ao enume F os movimentos do texto, veremos que o pensamento do autor estrutura-se em quatro mo- vimentos. Acompanhemo-los: {Por esses dois meios, podemos conhecer a diferenga que reside entre os homens e os animais:} {é wma coisa bem observavel 0 fato de nfo existir homens tio alu rnados nem to estipidos ~ ineluindo mesmo os doentes rmentais -, que nao sejam capazes de ajuntar algumas pa- lavras e de compor com elas um discurso pelo qual tor- nem compreensiveis seus pensamentos.} {Por outro lado, também é observavel que nenhum outro animal é tio perfeito e tio bem produzide, que pudesse ser seme Thante ao homem. E isso no acontece porque Ihes fal tam drgaos, afinal, vemos que as pesas € os papagaios podem dizer palavras tanto quanto nés, mas néo podem falar como nés falamos, ou seja, falar dando uma prova Ade que eles pensam 0 que dizem.} {Isso ndo mostra so- ‘mente que os animais tém menos razao do que os homens, ‘mas que eles ndo tém nada parecido com uma raz.) “5 18 movimento: comega com “Por esses dois meios” ¢ vai até “e os animais” ~ nesse movimento, Descar~ tes anuncia o assunto de que vai tratar no texto, ou seja, aquilo que diferencia os homens dos anima 0 movimento termina por dois-pontos; isso quer dizer que mostrara em seguida essa diferenca. 2# movimento: comega em “é uma coisa” e vai até “seus 3° movimento: comeca com “Por outro lado” e vai “6 pensamentos” - nesse movimento, Descartes diz que todos podem observar a caracteristica prépria do ser ‘humano, ou seja, a capacidade de onganizar as pa- lavras e formar um discurso, um conjunto de pala- vras relacionadas entre si e com sentido, Os discur- 508 exprimem os pensamentos humanos. “pensam o que dizem” ~ com esse movimento, Descartes faz um contraponto ao movimento an- terior, mostrando, agora, que nenhum animal, mes- mo 0 mais perfeito, € capaz de fazer 0 que o ser humano faz, isto é, pensar antes de dizer. 0 exem- plo do papagaio e da pega confirma que, no mi- ximo, esse8\passaros nos imitam, mas nao sao ca~ pazes de conceber um pensamento ¢ exprimi-lo com palavras articuladas. Eles tém ainda, no dizer de Descartes, os drgdos da fala, mas nao tém a ca~ pacidade de pensar. 4° movimento: comeca com “isso ndo mostra” e vai até “com uma razio” ~ com esse movimento final, Descartes sintetiza sua observagio dizendo que os animais nao tém nada parecido com que nés temos, ou seja, a capacidade de conceber, pensando, aquilo que exprimimos pelas palavras. Nese mo- vimento, ele da um nome especifico para essa ca~ pacidade: “razo” Se compararmos esse movimento com o primeiro, veremos que, no fundo, eles dizem a mesma coisa, afirmam que ha uma diferenga entre seres humanos e animais. 0 que o tiltimo mo- vimento tem a mais € que ele di um nome para essa diferenga: “razo” ‘Ao fazer um pequeno resumo do texto, podemos basear-nos nesses quatro movimentos, dizendo: “Des- cartes busca na observagdo empirica a diferenca entre 6s seres humanos ¢ os animais. Fazendo isso, ele cons- tata, por um lado, que os seres humanos podem cons- ‘ruir um discurso articulado, e, por outro lado, que os animais apenas imitam sons humanos, sem exprimir ‘um pensamento por meio de palavras. Assim, Descartes a ‘conclu que essa capacidade distingue os humanos dos animais, e a ela denomina razio.” 58 passo Se estudarmos um pouco mais sobre a filosofia de Descartes, veremos que ele viveu no século XVII, num momento em que as ciéncias modernas comecavam a consolidar-se. As ciéncias modernas insistem forte- mente nos procedimentos mateméticos como modelo de pensamento ¢ na necessidade das experiéncias em- piricas como fonte para a construcao de toda ¢ qual- ‘quer visio de mundo. E por isso que Descartes insiste na observacao sensivel para estabelecer a diferenca centre os seres humanos e os animais. Se estudarmos mais esse contexto, veremos como cresce nossa com- preensio do texto de Descartes. Esses cinco passos mostram a utilidade do método de analise, pois entendemos o texto a partir dele mesmo, num esforgo por nao transferir para cle apenas aquilo ‘que queremos, ver. ‘Um quimicd; quando pretende analisar uma subs- tancia, divide-a nas partes que a compéem, para, com preendendo cada parte, ter maior compreensio do todo. 48 Tomemos, entdo, como orientagio de nosso traba- tho a regra de “dividir para unit”: se dividirmos 0s tex- 1s filos6ficos nas suas partes (ou seja, nas unidades de raciocinio que eles contém), seré mais facil nossa com- preensio do conjunto. Essa estratégia pode ser usada tanto nos textos escritos como nos falados, ou seja, quando lemos um texto escrito ou quando ouvimos al- guém defender uma teoria ou opinio. Facamos 0 exercicio de analisar a argumentacéo presente no texto abaixo: “0 homem é um animal politico”, de Aristételes (385-322 a.C.). 0 homem é um animal politico, mais do que qualquer abelha ou qualquer outro animal gregario. Afinal, como ddizemos com frequen E somente os homens, entre os animais, sio dotados da fala, E verdade que a vor serve para significar a dor ¢ 0 prazet,€ € por isso que a encontramos também nos ani- ‘mais: sua natureza se elevou até a capacidade de perce- ber dor e prazer, e de signficé-tos. Mas a fala existe para manifestar 0 itil o nocivo, e também, por conseguinte, a Natureza nfo faz nada em vo. 49 6 justo e o injusto, Por isso, hit uma s6 coisa, tipica dos seres humanos, que os separa dos animais: a percepgio do bem e do mal, do justo € do injusto, e de outras nodes como essas. Eo fato de que essas nodes Sio possuidas em ccomum é que di origem as familias e is cidades. ARISTOTELES, Politica (1252b27-1253230). Trad. Juvenal Savian Filho, a partir da versio francesa de P. Pellegrin (Pars: Flammarion, 1990). Esse € um texto muito bom para provocar debates. Certamente, depois da primeira leitura, ja temos vontade de dar nossa opiniao, a favor ou contra Aristételes. Mas, para assumnir uma atitude autenticamente filoséfica, pre- cisamos aprofundar nossa compreensdo, deixando 0 texto falar primeiro, Uma simples leitura no basta para perceber as conexdes estabelecidas entre as ideias ex- postas pelo fildsofo. E preciso analisar seus argumentos. Seguindo os cinco passos da andlise de textos apre- sentados anteriormente, temos: 18 passo 41.1 Assunto principal: para Aristételes, o ser humano é um animal politico, ¢, pelo que pereebemos do texto, ser um animal politico nao significa apenas 50 Ie uma vida coletiva, mas ter uma percep¢ao comum das nogdes morais ou éticas. 1.2 Quanto a0 vocabulério, talvez tenhamos proble- ‘mas com 0 termo “gregario’. Mas também podemos prestar atengdo nos termos “nocivo”, “percepcao” €“nogdo", 28 passo Consultando um bom diciondrio, vemos que os sentidos mais adequados ao texto sio: “gregario = so- cial, que vive em grupo”; “nocivo = prejudicial”; “per- cepgio = conhecimento, identificagdo"; “nogdo = pen- samento, ideia’. Vale também prestar atengao no termo “politico”, que, de acordo com o texto, indica aqueles seres que dependem de seu grupo para sobreviver e tém uma percepcao comum das nogdes morais. A partir dessa ideia & que Aristételes falard das formas de go- verno etc. Nao podemos influenciar-nos pela maneira comum de falar, associando “politico” apenas com membros de partidos. Estamos falando da nossa de- pendéncia dos outros seres humanos para viver € per- ceber o que é bom para nds. Esse ¢ 0 sentido dado por Aristételes a politica. 51 38 passo Buscando 0s raciocinios do autor, vemos que ele co- mega seu texto afirmando que o homem & um animal po- litico € justifica dizendo que é pelo fato de os seres hu- ‘manos possuirem nogées morais (como 0 bom ¢ 0 mau, 6 justo € o injusto) que eles se retinem em familias ¢ ci dades, Essas nogdes sio expressas pela fala, diferente- mente do ocorrido com os animais, que s6 possuem voz, instrumento para manifestar apenas dor ou prazer. Como haveria uma finalidade na Natureza (expressa pela frase: “A Natureza nio faz nada em vio"), os seres humanos seriam politicos por natureza, ou seja, sua finalidade es- taria na sua realizagao por meio da vida comum. Orga- nizando os raciocinios de Aristoteles, terfamos: Natureza nao faz nada em Premissa explicita vo, [Esta premissa rege todos os argumentos] Pressuposto: A vor é produzida pela Natureza. Premissa explicita 2: A voz serve para significar a dor e 0 prazer. Premissa explicita prazer. 's animais manifestam dor e 82 Concluséo 1: Os animais, pela produgio da Natu- reza, possuem voz. Premissa explicita 4: A fala existe para manifestar 0 titil € 0 nocivo, o justo e o injusto (nogdes morais). Premissa explicita 5: Os seres humanos manifes- tam a percepgio dessas nosdes. Conclusdio pressuposta: Os seres humanos possuem naturalmente fala. Pressuposto: Os animais nao possuem fala, porque no tem nogdes morais. Conclusao 2: Apenas os seres humanos possuem fala (manifestam nogdes morais). Conclusao 3: A fala € o que distingue os seres hu- ‘manos dos animais Premissa explicita 6: As nogdes morais sio pos suidas em comum, Pressuposto: A vida comum equivale & vida em fa~ milia ¢ em cidades. Conclusdo 4: A percepso das nogdes morais da origem as familias e cidades. 53 Pressuposto: A percepcao comum das nogdes mo- rais € um sinal mais forte de natureza politica. Premissa explicita 7 (= Conclusio 4): Os seres hu- ‘manos possuem em comum as nodes morais. Conclusio § (principal): 0 homem é um animal po- litico mais do que qualquer animal gregario. 48 paso ‘A maneira como Aristételes compée esse texto di- ficulta um pouco a identificagdo de movimentos, pois ‘suas conclusdes estio todas entrelacadas. Guiando-nos pelos raciocinios que identificamos anteriormente, po- demos dividir o texto em quatro movimentos: {© homem é um animal politico, mais do que qualquer abelha ou qualquer outro animal gregério.} {Afinal, co- mo dizemos com frequéncia, a Natureza nao faz nada ‘em vio. E somente os homens, entre os animais, sao do- tados dat fala. E verdade que a voz serve para significar a dor eo prazer,€ & por isso que a encontramos também nos animais: sua natureza se elevou até a capacidade de perceber dor e prazer, ¢ de significé-los. Mas a fala 54 existe para manifestar 0 utile nocivo, ¢ também, por cconseguinte, 0 justo ¢ 0 injusto.} {Por isso, hé uma sé coisa, tipica dos seres humanos, que os separa dos ani- mais: a percepcdo do bem € do mal, do justo € do in- justo, e de outras nogdes como essas.} {Eo fato de que ssas nagdes sto possuidas em comum é que dé origem as familias as cidades.} 1° movimento: Aristoteles apresenta, de inicio, a ideia que pretende defender, ou seja, sua concepgdo do homem como um animal politico. Ele 0 faz por contraposigao as abelhas e a outros animais tam- bém conhecidos por sua vida grupal. 0 ser hu- ‘mano, no dizer do filésofo, seria mais politico do que qualquer animal gregirio. Na realidade, essa é a conclusdo de Aristételes. Ele a adianta, para jus~ tificd-la no decorrer do texto. 2" movimento: Aristételes busca provar sua afirmacao. Ele chega mesmo a iniciar a frase pela palavra “afi- nal’, indicando sua intengao de dizer o que tinha em mente quando fez a afirmagio inicial. Nese movi- mento, ele contrapoe voz e fala, animais e seres humanos. 3* movimento: Aristételes estabelece a diferenga entre seres humanos ¢ animais em tomo da fala como expresso de nogdes morais. 4° movimento: Aristételes amplia a discussao inicial, mostrando que a origem da politica esta na percep- ¢20 comum das nogdes morais. 50 equivale tam- bém a uma retomada da afirmacao inicial, feita no primeiro movimento, porque explicita a diferenga entre a vida comum dos humanos ¢ a vida comum dos animais. Nestes, a vida comum nao significa po- litica, diferentemente dos seres humanos, pois, no caso dos humanos, a vida comum nao nasce de ins tintos bésicos, como nos animais, mas principal- mente da percepcao comum das nogdes morai 58 passo ‘Agora, podemos dar o quinto passo e inserir Aris- {6teles emtseu contexto. Veremos que ele viveu num mo- mento muito Yertil, quando os gregos estavam dando acabamento a uma invengio iniciada havia alguns s culos por eles mesmos: a politica. Se estudarmos a or- 56 ganizacao € 0 funcionamento das cidades-estado gre- gas, com um pouco também das filosofias de outros pen- sadores, principalmente dos sofistas e de Plato, am- pliaremos nossa compreensdo do texto de Aristételes. ‘Agora, faca 0 exercicio de analisar a argumentagao dos textos a seguir, seguindo os cinco passos aqui apre- sentados. No final da andlise de todos eles, compare as ideias sobre os seres humanos contidas em cada um. Bom trabalho! Eis os textos: “E 0 medo que produz a vida em sociedade”, de Thomas Hobbes (1588-1679). ‘Se analisarmos de perto as causas pelas quais os homens se redinem e formam uma sociedade comum, veremos que isso s6 ocorre por acaso, e ndo por uma disposica0 necessiria da Natureza. Com efeito, se os homens se amassem naturalmente entre si, nao teria motivo para {que no améssemos 0 primeiro que aparecesse. Nao hia~ veria escolha nem preferéneia, Porém o fato € que ndo procuramos companheiros por algum instinto da Natu- 57 reza, mas pela honra ¢ utilidade que eles nos propor- cionam. Se nos aproximamos de alguém por obrigacio s, noha verdadeira amizade, como ou por boas mane acontece no palicio, onde muitas pessoas rivalizam tém medo umas das outras mais do que se amam, HOBBES, T. 0 cidaddo, Trad, livre Juvenal Savian Filho, a partir da versio. francesa de Sorbiére (Paris: Flammarion, 1982). “A origem das linguas”, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). 0 efeito natural das necessidades bésicas foi separar os homens; nfo aproximé-los. Dai segue que a origem das linguas nao é devida as necessidades biisicas dos ho- mens. Seria absurdo que da causa que os separa viesse ‘6 meio que os une. De onde, entao, pode vir essa ori- ‘gem? Das necessidades morais, das paixdes. Todas as paixdes aproximam os homens que, pela necessidade de sganhar a vida, sto forcados a fugir. Nao foi nem a fome as 0 amor, 0 édio, a piedade, a célera que Ihes arrancaram as vogas. Os frutos nio escapam das hnossas mios; podemos alimentar-nos deles sem falar. ‘uma presa que queremos aba~ Perseguimos em silénci ter. Mas, para emocionar um coragio jovem ou para afastar um agressor injusto, a Natureza nos dita sota- ques, gritos, lamentos. ROUSSEAU, JJ. Ensaio sobre a origem das linguas, cap. 2 Trad Juvenal Savian Filho, a partir da edigdo Harmattan, 2000. “0 Estado e a vida social”, de Simone Weil (1909-1943). Como certas fungdes do Estado server ao interesse de todos, temos o dever de aceltar de bom grado 0 que 0 Estado impde em relaglo a essas fungdes. (Exemplo: re- gulamentagio do transito.) Quanto ao resto, € necessi~ rio softer 0 Estado como uma necessidade, mas nio aceité-lo dentro de nés. Temos com frequéncia muitas dificuldades nele, principalmente quando fomos educa ddos numa certa atmosfera, Devemos recusar reconhecer as recompensas, utilizar ao méximo todas as liberdades que o Estado nos deixa. Também temos 0 direito de uusurpar, contra a lei, as liberdades que o Estado nao nos deixa, desde que isso valha a pena. Temos o dever, quando as circunstancias nos permitem escolher entre varios regimes, de escolher 0 menos ruim. 0 Estado menos ruim @ aquele em que somos menos limitados pelo Estado © aquele no qual os simples cidadaos tém maior poder de controle (descentralizagao; carster pii- blico € nao secreto dos negécios do Estado; cultura de ‘masse). Temos o dever de trabalhar pela transformagao da organizagio social: aumento do bem-estar material € instrugio téenica ¢ tebrica das massas. WEIL, S. Aulas de Filosofia I, 5. Adapt. da trad, bras. (Campinas: Papirus, 1991). “0 homem se conhece pelo diélogo”, Martin Buber (1878-1965). ‘Tomemos 0 caso de uma conversa verdadeira (quer dizer, uma conversa cujos participantes no se apegam 1 posigdes estabelecidas de antemo, mas que é espon- tinea, com cada um dirigindo-se diretamente a seu in~ terlocutor, provocando nele uma resposta imprevisivel), de uma aula verdadeira (quer dizer, no uma aula repe- tida mecanigamente, nem aquela cujo resultado ja é co- ihecido pelo professor, mas uma aula que se desenvolve com surpresas tanto da parte do professor como dos alunos), de um abraco verdadeiro, e no de pura for- tmalidade, uma correlagio de verdade, ¢ nfo uma mera simulagao: em todos esses casos, 0 essencial no ocorre em um ou outro participante, tampouco em um mundo neutro que envolve os dois lados, mas, num sentido pre- ciso, “entre” os dois lados, numa dimenso a que ape- nas os dois tém acesso. E unicamente na relagao viva que podemos reconhecer imediatamente a esséncia pe- culiar do homem. 0 gorila também é um individuo; um cupinzeiro também ¢ uma coletividade. Mas 0 “eu” e 0 “tu” s6 acontecem no nosso mundo porque o homem € “eu” existem através da relagdo com 0 “tu’; Podemos. dirigir-nos ao individuo € reconhecé-Io como homem segundo as suas possibilidades de relagio; podemos di- rigit-nos a coletividade ¢ reconhecé-Ia como o homem segundo sua plenitude de relagao. UBER, M. 0 problema do homem. Conclusto. Trad, Juvenal Savian Filho, a partir da edigdo mexicana (Que és el hombre? Cidade do México: FCE, 2002). 61

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