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Viagem pelo Brasil de Spix e Martius: Quadros da Na- tureza e Esbocos de uma Civilizagao RESUMO Tomando 0 relato da expedigao cientifica pelo Brasil (1817-1820) dos naturalisias bdvaros Spix e Martius, 0 artigo analisa como os preceitos da Historia Natural se conjugam com a visdo roméntica, permitindo aos autores uma dupla apreensio do mundo natural. Ao tratamento cientifico dos objetos naturais é sobreposto um sentimento pela na- tureza, que matiza as descrigaes “poéticas” das paisagens brasileiras. Ao mesmo tempo em que o ambiente natural dos trépicos € eleito como um espago para digressdes sentimentais e filo- séficas, 0 Brasil torna-se palco para projeyées civilizadoras. Herdeiros da Mustracdo, os autores esbocam us ve- redas para que seu anseia civilizatorio se conclua; a dominagdo da exuberante natureza e a miscigenagdo racial. Re- servando a raga “caucdsica” a “ fectibilidade humana”, justificam a sua superiovidade em relacdo a “etidpica” a “americana”, exctuindo-as, principal- mente a tiltima, da Historia. Karen Macknow Lisboa* ABSTRACT The article is based on the report of the scientific expedition through Bra- zil (1817-1820) by the bavarians natura- lists Spix and Martius. It analyses how the precepts of Natural History join the ro- ‘mantic view, allowing the authors a dou- ble apprehension of the natural world, The scientific approach connects with poetics descriptions of the brasilians landscapes. For the authors, the tropical environment becomes a place for sensi- ‘menial and philosophical digressions. At the same time, Brazil sets the stage for civilizatory projections. Inheritors from ie authors outline the way how their civilizing project would have become reat: the domination of the exuberant nature and the miscegenation. Spix and Martius keep the “human per fectibility” reserved to the “caucasian” race and justifie its superiority over the “ethiopian” and “american” races, ex- cluding them, mainly the last one, of Hi tory. “América, essa nova parte do mundo apenas conhecida de poucos séculos atrds, tem sido, desde a época de seu desco- brimento, objeto de admiragdo e predilegao da Europa. A feliz situagdo, a fertilidade e diversidade do seu solo, atra- em tanto colonos e negociantes, como pesquisadores cienti- ficos.” (Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820.) *Mestranda da Universidade de Sao Paulo. O presente artigo é parte integrante de uma pesquisa para dissertagdo de mestrado sobre a Viagent pelo Brasil de Spix ¢ Martius. Esta é uma versio ampliada do texto “A natureza brasileira no olhar de naturalistas alemies”, apresentado no Con- gresso Internacional América 92: Raizes e Trajet6rias (Sto Paulo, agosto de 1992). A literatura de viagem sobre o Brasil toma enorme félego com a abertura dos portos, em 1810, ca conseguinte entrada de muitos estrangei- ros no pais. Impulsionados por diversas raz6cs ~ comerciais, cientfficas, diplomaticas, aventureiras, militares, artfsticas ~ esses forasteiros palmilham vastas regides da desconhecida terra. Respons4veis por um “novo desco- brimento do Brasil”,' muitos deles publicam, na Europa, suas anotagées de viagem. As misses tragadas em nome da ciéncia, algumas delas plane- jadas por academias ¢ sociedades cientificas, bem como por museus de Hist6ria Natural, e financiadas por monarcas, ocupam, no Velho Mundo, relevante papel na produgdo intelectual sobre o Brasil. A expedi¢ao dos naturalistas bavaros Spix e Martius, motivada, a priori, pelos estudos da natureza, se insere nesse contexto. Tal qual outros naturalistas que nesse mesmo perfodo estiveram no pafs - como por exemplo, Langsdorff, Wied Neuwied, E. Pohl, Eschwege, St. Hilaire, entre outros - Spix ¢ Martius deixaram, por meio de suas narrativas de viagem, uma ri a documentagao para a historiografia, Com a preocupagio de se inferir a imagem que Spix e Martius cria- ram sobre o pais que viram, duas questées so tratadas no presente artig a partir do seu relato de viagem, procura-se primciramente perfilar a visdo de natureza dos autores, que se traduz nas descrigdes de pai isagens € Nos quadros naturais. A segunda indagagao pretende identificar as bases do “projeto civilizatério” que 0 olhar providente desses curopeus elabora para a jovem nagao, A discussao destes dois t6picos é precedida de uma breve apresentagdo dos autores, do itinerdrio da viagem e da obra. A VIAGEM E O RELATO Em 1815, 0 rei Maximilian Joseph I da Baviera solicitou a Real Academia de Ciéncias de Munique a organizagao de uma viagem cientifi- ca ao interior da América do Sul. Pretendia-se iniciar a expedigdo em Buenos Aires, ¢ de 14, por terra, chegar ao Chile, depois Quito e, via Cara- cas ou México, retornar 4 Europa, Para a realizagdo deste empreendimen- to foram nomeados 0 206logo Johann Baptist von Spix? ¢ o botnico Carl Friedrich Philipp von Martius,* ambos membros da citada Academia. Mas uma série de empecilhos atrasaram a realizagaio dessa expedigao. Em janeiro 1817, com a vinda da Arquiduquesa Leopoldina ao Bra- sil, em fungo de seu casamento com o principe herdeiro D. Pedro I, surgiu ~ gracas a ligagdes familiares do rei da Baviera com o imperador da Aus- 74 tria, Francisco I, de quem era sogro - a oportunidade de integrar Spix e Martius no séquito da noiva. Ao lado de outros naturalistas, que represen- tavam a miss4o austrfaca, organizada pelo diretor do Museu de Histéria Natural de Viena, Spix e Martius zarparam do porto de Trieste, a bordo da fragata Austria, em abril de 1817.4 Em junho, passam pelas Colunas de Hércules, rumo mar aberto, na ansiedade de encontrar novamente “a lenda da afortunada Atlantida (...) na fértil América, (So rica de maravilhas da natureza.’"* Em julho de 1817, a fragata Austria atinge “a grandiosa entrada do porto do Rio de Janeiro”(1, p.43). Uma longa permanéncia de Spix ¢ Martius na capital real facultou os preparativos da empresa exploratéria. Nio s6 aproveitaram os seis meses ali residentes para se aclimatar, mas também para travar contatos com outros naturalistas, que 14 se encontravam, e trocar experiéncias de via- gens. Quando ainda em Viena, Spix e Martius cogitaram realizar a expedi- ¢4o pelo interior do pafs em conjunto com a comitiva austrfaca, Mas o atraso da chegada dos naturalistas na esquadra da Arquiduquesa Leopoldina ao Rio ¢ a solicitagfo a estes de permanecerem por mais tempo na capital, foram a razio pela qual Spix e Martius resolveram iniciar sua expedigao independentemente. Considerando os trajetos seguidos por outros viajantes, eles elabo- raram um itinerdrio que alcancasse regies ainda pouco exploradas. Na- quela altura tinham noticia das expedigdes de John Mawe (Buenos Aires, Sao Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Diamantino), Wilhelm Ludwig von Eschwege (Vila Rica, oeste do Rio S, Francisco, Rio Abaeté), Principe Wied von Neuwied, G.W. Freyreiss e Friedrich Sellow (costa do Rio de Janeiro até Bahia), Auguste de Saint-Hilaire (Rio de Janeiro e Minas Gerais) e Georg Heinrich von Langsdorff (Vila Rica, provincia de Minas Gerais e Salgado, no S. Francisco). Tendo o Para como alvo, Spix ¢ Martius previam atingi-lo, cruzando o interior do pais. N&o obstante seus colegas, que conheciam o pais, compararem a trajetoria planejada “ao v6o de Icaro”, nao desanimaram. A partir das experiéncias obtidas em algumas expedigées feitas nas redondezas do Rio de Janeiro, acharam-na exeqiifvel (I, p.106). Em dezembro de 1817, abri- ram 0 caminho da peregrinagao cientffica, resistindo sob chuvas, insetos, seca, sede, febre, calor, noites dormidas ao relento, além do cansago pro- yocado pelo desconforto dos meios de transporte. Auxiliados por tropeiros © guias nativos percorreram mais de 10.000 Km pelo solo brasileiro. Pas- saram por Sao Paulo ¢ de ld deslocaram-se a Minas Gerais, visitando a regidio de Vila Rica ¢ do Distrito Diamantino. Seguiram sentido norte, pe- 75 netrando mais ainda no interior do pafs. Chegaram a transpor as margens do Rio Sao Francisco, aleangado 0 Vio do Paran4, na fronteira da provin- cia de Goids. Voltaram ao litoral, cruzando a provincia baiana. Visitaram em novembro de 1818 a cidade de Salvador. Por mar, viajaram a Ilhéus, pesquisando seus arredores. Apés.o retorno a Salvador, iniciaram nova etapa da viagem. Indo no sentido noroeste, conclufram, apés quatro meses, a travessia do sertdo das provincias de Pernambuco, Piauf e Maranhao. Assolados por febres e enfraquecidos, recuperaram-se em Sao Luis. No més de julho de 1819, navegaram a Belém, langando-se na extensa viagem pela Bacia do Ama- Zonas. Durante oito meses investigaram, em parte separadamente, as ime- diagdes dos rios Amazonas, Solimées, Negro ¢ Japurd, tocando a frontei da atual Colombia. Retornaram em abril de 1820 a Belém, de onde parti- ram para a Europa, levando uma enorme colegao de objetos zoobotiinicos, etnograficos ¢ mincrais que engrandeceram seus gabinetes naturais. De volta 4 Alemanha, em dezembro de 1820, Spix e Martius dedi- cam-se ao relato, ampliando ¢ organizando as anotagdes de viagem. Final- mente, no ano de 1823 é editado, em Munique, o primeiro volume da Reise in Brasilien (Viagem pelo Brasil). No entanto, o falecimento de Spix, em 1826, comprometeu a redagao da obra a quatro maos. Do segun- do volume, de 1828, somente os primeiros dois capitulos do quinto livro foram elaborados por ambos. O restante ¢ redigido por Martius, embora Spix seja considerado co-autor. No terceiro tomo, de 1831, Martius inse- tiu os apontamentos de Spix relativos as expedi¢des que fizeram indepen- dentemente. Este dltimo volume vem acompanhado de um atlas com litografias, retratando paisagens urbanas ¢ campestres, objetos colhidos, plantas, animais, tipos humanos ¢ cenas da vida cotidiana, acrescido de um compéndio de cangdes populares ¢ melodias indfgenas.* No Brasil, a tradugdo completa da obra foi promovida pelo Instituto Histérico e Geo- grafico Brasileiro, tendo sua primeira edig&o em 1938.7 POR UMA TAXONOMIA DA NATUREZA Ao leitor da Viagem pelo Brasil 6 explicitado, j4 no infcio da obra, a organizagio da expediga0 e os objetivos almejados. A incipiente espe- cializagao das disciplinas permite aos académicos Spix e Martius abragar um amplo campo tematico. Spix, experiente na pesquisa da zoologia, in- cluiria neste dominio, 76 “tudo que diz respeito ao homem, tanto ind{genas como imi- grados: as diversidades, conforme os climas; 0 seu estado fisico e espiritual, etc.; a morfologia ¢ a anatomia de todas as espécies de animais, (...) os seus hdbitos e instintos, a sua distribuigdo geogrdfica e migragées” (1, 26). Martius era um jovem botAnico, cuja carreira de naturalista estava para comegar. Ao sair da Alemanha, ainda era assistente do diretor da Real Academia de Ciéncias. Como tarefa principal foi-lhe incumbido pesquisar a flora brasileira em toda a sua extensdo, verificando a provavel origem das familias por meio de comparagdes, considerando-se fatores climaticos e geolégicos. Outrossim, deveria coletar dados a respeito do cultivo de plantas nativas, bem como das introduzidas, das que se prestam para “as artes c indistria” ¢ dos medicamentos vegetais (I, p.26). Também havia solicitagées de outros “ramos das ciéncias naturais”, oriundos da mineralogia, geologiae fisica. Ao lado desses campos mais especfficos, os “descobrimentos” feitos na viagem tinham como objetivo estender 0 “cir- culo da ciéncia humana”. Ao zodlogo e ao botanico também caberia “es- clarecer 0 estado de civilizagiio e histéria, tanto dos aborigenes como dos outros habitantes do Brasil” (1, p.27). Neste sentido, sentiam-se prepara- dos gragas as cadeiras de filosofia, histéria e filologia oferecidas na Real Academia. Neste amplo leque tematico, sao admitidos assuntos da hist6ria, da politica, da economia, da administragao piblica, da agricultura, da pecud- tia, do extrativismo, da hist6ria dos “costumes”, do cotidiano, da cultura e educagao, das relagdes de trabalho, da religiao, além da botinica, da geo- logia, da zoologia e da etnografia dos {ndios. A narrativa constréi-se a partir do deslocamento geogrdfico, que sugere a constante mudanga de assuntos. O olhar errante dos naturalistas procura focalizar as arestas mais reclusas da realidade do pats. No entanto, nesta abrangéncia de temas abor- dados, a natureza se revela como um dos principais focos de observacao. De “estranha” - tal qual a adjetivaram - ¢ por isso mesmo sedutora, capaz de motivar uma excursfo tao longa tragada em nome da ciéncia, é ela a grande anfitrid desses visitantes. Afinal, foi enxergando os fendmenos deste mundo natural que os autores, ao contemplarem a beleza celestial do Rio de Janeiro, garantiram: “No gozo de tais noites encantadoras ¢ pacfficas, lembra-se 0 europeu recém-chegado, com saudade, da sua pétria até a7 que a rica natureza tropical se vai tornando para ele uma segunda patria” (I, p.60). A maneira de perceber ¢ observar o mundo natural mediava-se por sua formagao cultural e seu preparo propiciado pelos estudos académicos, Nao resta diivida de que, para eles, a natureza dos trépicos era um objeto de obstinada pesquisa cientifica, que deveria ser dissecado sistematica- mente pelo olhar da Histéria Natural." Ao naturalista cabia “pousar (...) um olhar minucioso sobre as coisas e de transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e figis”. As esteiras teGricas de Lineu ditavam-lhes que “toda natureza pode entrar numa taxonomia” ? Portanto, para Spix ¢ Martius, era necessério coletar os “documen- tos” em fungdo da posterior escrita da histria: herbérios, coleges e ob- servagdes in locum com transposigdo iconogrifica. Os critérios do siste- ma lineano instrumentalizam-nos para descrever e classificar os seres da natureza, excluindo qualquer diivida sobre a identificagao dos mesmos." A natureza do Novo Mundo é nomeada e paulatinamente catalogada, per- dendo a sua estranheza ao ser transcrita nos compéndios da flora e da fauna universal. E assim comentam Spix e Martius, quando de suas pri- meiras expedigSes pelos arredores do Rio: “Numa dessas ilhas situadas na entrada da barra e que se chama Iiha Rasa, foi que Sir Joseph Banks [da comitiva de James Cook], descabriu a belaMoraea northiana (lirio-roxo), que, desde entao, é ornamento de jardins europeus. Também @ incansdvel Commerson [da comitiva de Bougainville] fez cotheitas botanicas nessas ithas e na terra firme (...), pisd- vamos entdo um solo cldssico. O viajante gosta de identifi- car as sensagdes com as de seus predecessores; assim fo- mos surpreendidos de modo muito agraddvel, quando acha- mos nessas ilhas (.,.) a Moraea, ¢ quando (...) avistamos os arbustos da Bougainville brasiliensis de floragao vermelha deslumbrante (...)” (1, p.89). Ora intercalada, ora anexada como nota de rodapé ou no final do capitulo, a nomenclatura lineana, na qual constam género ¢ espécie vege- tal ou animal, ordena um mundo que & primeira vista manifesta-se desorganizadamente: no “mato virgem”, diante de um “paincl da maxima opuléncia”, onde “a vegetagdo eternamente noya impele as arvores para TB altura majestosa” ¢ “a natureza enfeita cada tronco com uma nova cria- ¢40", nfo basta citar o nome popular das plantas e dos animais. Por exem- plo, o jacarandé € 0 ipé, cujas “flores cor amarelo-ouro (...) resplandecem luminosas no meio da folhagem verde-escura”, aparecem na nota como Jacaranda brasiliensis Juss ¢ Bignomia chrysantha Jacq, respectivamente. Oreino dos animais é tao extraordinério quanto o das plantas. “O natura- lista para af transportado pela primeira vez nfo sabe o que mais admirar, se as formas, os coloridos ou as vozes dos animais.” Mas a classificagao nao tarda: responsdvel, por exemplo, pelos urros matinais € 0 Mycetes fuscus, nob., vulgo bugio. Pererecas, sapos, cigartas, gafanhotos, formi- gas, cupins, hespérides, escaravelhos, lagartos, cobras, esquilos, macacos, passaros, jacarés ¢ tantos outros animais sao diferenciados pelos seus no- mes cientificos (I, p. 93-5). A NATURBZA: UMA DIMENSAO ANIMICA. Por outro Jado, a relagio dos autores com a natureza nao se encerra na concepgiio da taxonomia iluminista e 0 vido colecionismo, A observa- gio do ambiente natural é vertido em sentimentos, evocando-lhes sensa- ges que transitam do puro deleite paradisfaco até pavores infernais. Di- gressdes intimistas traduzem diferentes “estados de dnimo”"' dos autores, provocados pelo contato com a natureza, emprestando as descrigdes da Viagem pelo Brasil uma conotagio literdria, Se os pressupostos lineanos so um ponto de partida para a compreensdo inequivoca de um mundo natural universalmente classificdvel ¢ assim identificével, a relagéo dos estados de Gnimo com o ambiente natural possibilita uma particulariza- gio da descrigio dos fendmenos observados, diluindo-se com o idedrio romantico, proprio do inicio do século XIX.?? Nesse sentido, a forma de tratar a natureza brasileira lembra 0 que Alexander von Humboldt - estrela guia dos viajantes do perfodo e que intimeras vezes é mencionado na Viagem pelo Brasil - propusera numa carta dirigida a Goethe: “A natureza deve ser sentida; quem somente vé e abstrai, numa vida no turbilhdio do pulsar dos trépicos ardentes, pode dissecar plantas e animais, acreditando estar descrevendo a natureza, permanecendo, no entanto, eternamente alienado dela.” 9 No proprio relato, Martius insere uma passagem de seu didrio, um registro de uma digressdo mais intimista, revelando o que sentia naquele momento. Préximo da proposta humboldtiana, atesta a relago anfmica com anatureza: “Como me sinto feliz aqui [no Pard|\...) Parece-me compre- ender melhor 0 que é 0 historiador da natureza, Diariamen- te lango-me na meditagdo do grande e indizivel quadro da natureza e, embora seja fora do meu alcance compreender sua finalidade divina, ele me enche de deliciosas emogées” (UH, p.18). Além da forte presenga da obra de Humboldt, Spix e Martius tam- bém seguiram os passos de Goethe, Baseando-se na concep¢ao organicista da natureza, inaugurada por Herder, Goethe considerava o mundo natural como um “grande animal vivo, um organismo que jamais poderia ser tra- duzido matematicamente”, opondo-se desta maneira a qualquer “tendén- cia mecanicista”,'’ Igualmente a Naturphilosophie de Schelling parece encontrar ressonancia no pensamento destes naturalistas. Na sua concep- ¢40, tout court, 0 objetivo fundamental das cigncias € a interpretagao da natureza como um todo unificado, vendo no conceito de forga o fator que poderia conduzir a unificagao, Todos fendmenos naturais seriam manifes- tages de uma mesma forga, definida como atividade pura, “A natureza seria, assim, uma infinita auto-atividade jamais exaurida”.!6 Numa carta destinada a Goethe, datada de 1825, Martius confirma que, indo ao Brasil, pdde reiterar sua visio de reconhecer a “harmonia” no tom, nas cores ¢ na forma que se manifestam na magnificéncia da nature- za. Depositando confianga no seu sentimento, Martius considera-se susce- tivel ao desafio que 0 espirito do mundo natural provoca na alma humana Sendo assim, a natureza como objeto da ciéncia, tomada na “totalidade” de suas relagdes, torna-se semelhante a uma obra de arte."? Nesse sentido, pode-se inferir que a descri¢io do mundo natural passa por uma estetizago construfda pelo olhar sensivel do explorador. Seguindo a concepgao de Goethe, para o qual “a interpretagiio da natureza deveria obedecer ao consércio da ciéncia com a poesia”, o naturalista mune-se de uma linguagem poética, e em alguns momentos até iconogréfica, com 0 fito de traduzir a totalidade do seu objeto. O “tratamento estético dos objetos naturalistas”” do qual Humboldt jd falava na sua obra de 1807 se desdobra na definigaio do Naturgemiilde, isto é, 0 quadro da natureza. 80 Segundo Humboldt, qualquer representagdo da natureza, quer seja uma pintura, uma poesia ou um tratado cientffico seria um Naturgemdilde. E sendo a natureza dos trépicos o objeto a ser retratado, ao “quadro” caberia expressar uma imagem panordmica da natureza no todo, a prova da ago conjunta das forgas e a transmissao do prazer oferecido pela observaca0 imediata do ambiente natural.” A estetizagio naturalista da Viagem pelo Brasil permite entrever as varias maneiras de sentir o mundo natural. Essas experiéncias empres- tam forma e contetido as diferentes paisagens - desde a mais domesticada até a mais selvagem - que so geograficamente localizaveis. A territorialidade de um Brasil tropical é criada neste espectro de imagens, onde a natureza é interpretada por ambientes paradisfacos ¢ infernais.?! QUADROS DA NATUREZA Os prazeres € 0 encantamento sentidos pelos visitantes no contato com 0 mundo natural se fazem presentes ao longo de todo seu trajeto. Ainda nos arredores do Rio de Janeiro, quando de seu primeiro passeio pelo interior das matas, as sensages dos autores enalteciam: “o sussuro das asas dos colibris matizados, que voam de flor em flor e pelo canto mavioso de passarinhos estranhos e de insetos, tudo age com magia toda especial na alma do ho- mem sentimental renascido pelo espetdculo do delicioso pais” G, p80). Acaminho de Sao Paulo, a noite, durante a marcha ,”as altas 4rvo- res do mato (...) envoltas em sombras negras, e (...) estranhos sons de vozes noturnas, nunca antes percebidas”, os transportava “a um raro, tan- to quanto singular, estado de alma” (I, p.122) . J& no Rio Sao Francisco empolgavam-se com “regides quase nao tocadas pelo homem” (II, p.103). Passaram seis dias por um “territério deserto” como sendo “um pequeno perfodo, que transcorreu (...) sem re- sultados de real importancia, porém tanto mais rico em purfssimo encanto da natureza”. La nao notaram o “menor vestigio do homem” ¢ se impres- sionaram com a “idilica beleza”. No Rio Formoso achavam estar num “Jardim extenso, no qual a natureza reuniu tudo que a imaginacao de um poeta escolheria para morada de ninfas ou de fadas” (II, p.112). 81 A regido equatorial os deslumbrava por ser o lugar de “equilfbrio da mais bela harmonia de todas as forgas terrestres” (II, p. 294), onde se afirmava, “o conceito de que esta regio fora criada para doces saudades, contemplagées filos6ficas, sagrada paz, profunda gravidade” (III, p.139). Expressam “um misto de espanto e admiragao” diante da “monstruosa Pujanga com que se engendra a vida das plantas” (III, p.53). Ao projetarem nesse lugar alguns ensinamentos da Naturphilosophie, reconhecem todo 0 potencial da natureza: “jamais se nos apresentara tao majestosa a forga criadora da terra, como aqui, onde, em exuberante plenitude, 0 mun- do das plantas brota de todos os lados, fertilizado pelos raios do sol equatorial, acima das dguas fecundantes. Este cend- rio da forga criadora do planeta renovava-se continuamen- te aos nossos othos, na sua grandiosidade uniforme” (IL, p. 293). Esse encantamento propiciado pela observagaio do mundo natural dos uépicos parece querer resgatar, tal qual Humboldt, o entusiasmo,dos primeiros descobridores da América. Além disso, ele entra em choque‘com as concepg6es detratoras sobre o Novo Mundo, difundidas através dos pensadores iluministas, dentre os quais se destacaram Buffon, De Pauw ¢ Raynal. A crenga na inferioridade natural dos zonas torridas se perde com o minucioso estudo da natureza, cuja enorme diversidade da fauna e da flora se traduz em fascinio. No entanto, a empolgagao cientifica acoplada a percepgao animica, segundo a qual a natureza transmuta-se em estfroulo ao prazer e a digres- sdes metafisicas, é desafiada nos trépicos: se a alma romantica desses exploradores enxergava na natureza um “espetaculo envolvente, objeto de contemplagio ou lugar de refiigio para o individuo solitério”,® entio a “selvageria’ das densas florestas do Novo Mundo os langam em experién- cias limite. A relagdo encantada entre homem e mundo natural apresenta seu complemento, transpirando pavor e reptidio. As matas com as “formas fantdsticas, 4s vezes enganadoras” de trepadeiras retas ou enroscadas, de fetos ¢ maravilhosas orquideas “exci- tam a imaginagio do viajante, e inspiram nfo raro acessos de medo inquictante"(II, p.182). Na Serra de Sao Geraldo, “tétrica como a inferno de Dante fechava-se a mata, e cada vez se estreitava ¢ mais ingrime se tarnava a vereda, pelos 82 labirinticos meandros (...). Ao horror, que @ soliddo infun- dia na alma, acrescentava-se ainda a aflitiva perspectiva de um ataque de animais ferazes ou de indios malévolos” (1938, I, p. 333). Freqiientemente, os naturalistas se viam ansiosos para “sair das matas tenebrosas c voltar aos campos agradaveis”(I, p.240). Numa lagoa, nas proximidades do Rio Sao Francisco, vorazes piranhas os assustaram, Sentiram-se como que transportados “ao pafs da morte”(II, p.89). No Amazonas, os autores viram num jacaré um “monstro”, que nao se “dei- xou desviar” com uma cacetada, ao atacar o barco, conseguindo “arrancar aunhae carne de uma falange” de um dos remadores. Nem mesmo os tiros de tuzil, apesar de espanté-lo, o feriram (II, p.178), Naopinio de Martius e Spix, 0 horrendo aspecto desse réptil, com suas “goelas hediondas” (I, p.276), justificava o porque de muitos pintores os figurarem “como simbo- lo da mais baixa maldade e degradagio"(IL, p.89). As imagens infernais se reiteram com o constante “tormento dos mosquitos” (II, p.114), Entre “importuna bicharia” contam-se as baratas, que “costumam, as vezes, & noite, roer as pontas dos dedos do préprio homem. Sobretudo é doloroso o prejuizo que (...) causam ao naturalista; fregiientemente se encontra a cole- ¢G0, que se havia fechado muito bem e se julgava bem segu- ra (...), reduzida a nada, numa s6 noite” (I, p.103) Uma das mais “terrfveis pragas” eram os carrapatos (I, p.103). Tam- bém a infestagio de incontaveis pulgas perturbam muitas vezes o sono dos viajantes, quando nao pernoitavam ao relento (I, p.178). E “as ongas devoradoras, as cobras venenosas, lagartos, escorpides, lacraias ¢ aranhas” eram tidos como animais hostis (I, p.103). As “exalagdes mefiticas”, causadas pela decomposig&o vegetal nas matas, que “produziram logo influéncia maléfica” sobre um dos compa- nheiros de viagem, eram causas para fortes calafrios (II, p.183). Chuvas devastadoras, que comprometiam tanto as coleges como a satide dos inte- grantes da tropa, faziam parte do cotidiano. Outrossim, a seca do sertdo - “um deserto queimado” - cuja vegetagao de caatinga “parecia estarrecida pelo sopro da morte” ¢ “a solidao (...) da chapada de Santa Maria e as doengas do Vio do Parand nao eram para (...) animar a (...) viagem”(I, 83 p.101). Ao atravessarem o interior da provincia baiana, desabafa Martius: “de fato, sentiamos, (...) dia a dia mais pernicioso efeito das canseiras, emogées, e principalmente da diferenca sensivel da temperatura do dia para a da noite, quando, em geral, ficdvamos sem abrigo, expostos ao sereno. O Dr. Spix sofria de violenta dor de cabeca, ¢ eu tive séria inflamagdo no ou- vido direito, acompanhada de fortes dores e febre.” (Il, p.132) Os padecimentos sofridos durante a longa marcha, causando 0 des- gaste fisico ¢ psicol6gico dos pesquisadores sobrelevam-se gracas & “gran- diosa harmonia das forgas césmicas” (III, p. 22), exclusivas ao Equador, Mas 0 que de fato supera os ossos do oficio dos historiadores da natureza €0 paulatino aumento das colegdes, propiciado pelo atento olhar ¢ a dili- gente pesquisa de campo: na “solidéo da viagem” dedicavam toda a “aten- 40 a coleta de muitas plantas raras e Acaca de antas, tamanduds e araras”” (IL, p.104), E, em certos momentos, aludem a virtualidade de uma imagem edénica tao somente ao pesquisador da natureza: longe da “existéncia hu- mana” a riqueza do Distrito Diamantino ofusca “o viajante com os enxames de beija-flores (...) em volta das Mimosas e Acdcias, de folhas delicadamente penadas, das floridas Céssias e das perfumadas Paulineas. Para o botdnico e 0 zadlogo, esta regido deve ser um paraiso (...) quando tudo esté em flor” (IL, p. 53). A incompreensdo de um sertanejo do Arraial da Feira de Sant’ Ana, quando da travessia dos visitantes pelo seco sertéo baiano, traduz a obse: sao pelo investimento cientifico. Certo de que os naturalistas estariam dis- simulando a intengao de procurar prata, indaga: “como crer que, por causa de besouros e de plantas, alguém fosse expor-se ao perigo de morrer de sede?” (I, p.203). Nao sendo 0 eldorado que esses estrangeiros anseiam encontrar, e sim outro tipo de preciosidade natural, acharam o seu tesouro, Em Belém, nos contam das colegdes que fizeram na tltima etapa da viagem e que estavam em vias de embarque rumo a Europa. De “dimensao espantosa” elas “eram alvo da admiragao da gente da cidade, que peregrinavam em multiddo a nossa casa , para ver as riquezas de sua patria, tio pouco co- nhecidas deles préprios” (III, p.315).* 84 Mas 0 paraiso que se faz real aos olhos dos naturalistas esté legado a paulatina destruigao. Diante do “vigoroso progresso” da “atividade civilizadora’*- que no ver de Spix e Martius estava modificando 0 pais em muitos sentidos - advertem os “subsegiientes investigadores [para que], sem demora, se iniciem (...) investigagdes na terra fecunda, antes que a mao destruidora e transformadora do homem tenha obstruido ou desviado o curso da natureza” (Il, p.102) NATUREZA E CIVILIZACAO O foco no mundo natural, porém, nao exclui o homem. Muito pelo contrério, na concepgao de Spix e Martius, a natureza é incompreensivel sem o homem, pois é ele a maior obra da Criagdo na Terra, Para ele con- vergem todos os outros seres, “incitados pelo inato instinto de desenvolvi- mento € aperfeigoamento infinitos”. Sendo assim, o ser humano é conside- rado um “modelo inatingtvel”. Por representar a “lei para a transformagao ¢ enobrecimento paulatino”, no que tange a sua dominagao na superiori- dade do espirito e da mente, cle opde-se de forma hostil 4s demais criatu- ras da natureza. Essa oposi¢io sanciona a “histéria da humanidade” da vida vegetativa da flora e da fauna (1938, II, p.25). Essa hist6ria, quanto mais “completa e humana se mostra em cultu- ra, desenvolvimento ¢ conflito entre povos, tanto mais fortemente destréi a vida primitiva” das plantas ¢ dos animais. Martius e Spix conferem aesse processo 0 nome decivilizagdo. Proceso este que tem o poder de transfor- mar a superficie da terrae de expulsar, modificar ¢ extinguir os seres mais fracos. Os autores reconhecem o seu potencial destruidor, considerando a civilizagao como algo insacidvel, que, por fim, ameagando a prépria hu- manidade, arrasta toda a natureza na sua voragem (1938, II, p. 26 ¢ 1980, IIL, p. X-X), Nesse sentido, a contradic¢aio do processo civilizat6rio mani- festa-se quando considerado em relagao & natureza. A consciéncia dos autores face ao seu potencial destruidor, no entanto, no chega a questio- nar ou mesmo criticar o processo em si. Seguindo os preceitos enciclopedistas, a Histéria Natural visava ocupar-se de toda a natureza, desde os astros até os minerais, passando pela fauna e flora, incluindo o homem.* E a taxonomia, um instrumento basico da prdtica naturalista, dé margem para a reflexao filos6fica, mes- 85 clando variados fatores para classificagdio da humanidade. Como aponta- do acima, para Spix ¢ Martius, o grau de dominagio do homem sobre a natureza, grosso modo, denota 0 seu estado civilizatério. Esta condigao acaba por servir como um dos critérios para demarcar as diferengas entre aespécie humana, divididas em ragas. A concepeao de natureza engloba o homem e desdobra-se em teorias raciais, emprestando ao europeu a supe- rioridade em relago ao negro e ao indio. A visto eurocéntrica conjuga-se com idedrios racistas que tém 0 papel de justificar a necessidade do pro- cesso civilizatério do jovem pais. Evidentemente, estas reflexes de Martius ¢ Spix nao estao isola- das do seu contexto hist6rico, Eric Hobsbawm afirma que a preocupagio no tocante & origem ¢ ao destino das nagdes € a principal tematica que “nasceu da revolugdo dupla” [1789-1848]. A esse respeito havia basica- mente duas opinides: “a dos que aceitavam a maneira pela qual 0 mundo estava sendo conduzido ¢ a dos que nao aceitavam: em outras pa- lavras, os que acreditavam no progresso e os outros. Em certo sentido havia s6 uma ‘Weltanschauung’ de grande sig- nificagéo (...). Seus expoentes acreditavam firmemente (e com raziio) que a histéria humana era um avango mais que un retrocesso ou um movimento oscilante ao redor de certo nivel. Podiam observar que 0 conhecimento cientifico eo controle da técnica do homem sobre a natureza aumenta- vam diariamente” 2 Ea idéia de progresso e de civilizagio nio seria concebivel sem a nogiio temporal da perféctibilidade: “{é] no decorrer do século XVIII que esse conceito [o de civilizagao] vai-tomar corpo e assumir proporgées gigan- tescas, tornando-se a prépria esséncia das ‘Luzes’, apesar da idéia de progresso - seu correlato indispensdvel - jd estar presente no argumento maior dos ‘Modernos’ que justifi- cam a superioridade da época pela certeza de que o tempo aperfeigoa tudo”.” De fato, aos olhos europeus de Spix e Martius, o Brasil emerge como uma sintese das projegdes do proceso civilizatorio: 86 “Em espirito, perpassdvamos por todos os graus do seu de- senvolvimento, desde as condigGes de vida primitivas e como que patriarcais, até o estado que, no novo império, haviam alcancado burguesia, Estado e Igreja.” E se despedem do Brasil afirmando: “animava-nos 0 ardente desejo de que 0 magnifico pats, tao ricamente dotado, viesse a amadurecer, demorada e segu- ramente, para a meta de seu ‘aperfeigoamento”” (III, p. 316, grifo nosso). Contudo, essa convicgao da perfectibilidade e consegiiente civili- zagdio sofrem uma série de impactos quando da passagem dos naturalistas pelo Brasil. Apesar de reconhecerem que os colonizadores trouxeram “tan- tas sementes de destruigao” para o Novo Mundo (II, p.188) e enxergarem a face mais abatedora da civilizagao, ficam perplexos ao notar a morte dos indios na mao dos “brancos”. Se toda “cultura” e “salvagao” vém do Orie- nte (III, p.240), como entender que 0 “irmao do Ocidente” definha com as agoes civilizadoras, perguntam-se os autores. Se todo o ser humano traz em si o “germe da perfectibilidade”, como compreender a decadéncia dos indios? Spix ¢ Martius procuram responder as indagag6es armando-se dos Ppressupostos da Histéria Natural: ao lado de “muitos outros seres da natu- reza’’, os indios americanos esto “destinados a decompor-se”. Vistos como um “ramo atrofiado” da humanidade, sao condenados ao desaparecimento (II, p.47-8). Mas, se é esta constatagdo que poderia minar toda idéia da perfectibilidade civilizat6ria, os autores encontram uma solugao: a partir de um racismo transparente, apostam na miscigenagio racial. O europeu, ‘ou seja, o homem de raga cauedsica - dotado de um “desenvolvimento superior dos 6rgaos € forcas intelectuais” - deveria sobrepér-se “de modo todo especffico, tanto somatica como psiquicamente” ao negro (raga etidpica) e a0 indio (raga americana) (I, p.164). As “forgas criadoras” do pais concentravam-se, portanto, nos povos de “raca caucésica” de origem romanica, em conjunto com “as ragas anglo-germanicas ¢ etidpicas”(1938, TL, p. 91). Finalmente, louvando a exuberancia natural e neutralizando to- das as polaridades sociais, concluem os autores: “espléndidas sao as disposigdes naturais do grandioso pais, do povo inteligente, vivaz e forte, para cujo bem concorre a prépria mistura das ragas” (III, p. 316) 87 A idéia da miscigenagao como propulsora do processo civilizatério esbogada na Viagem pelo Brasil acaba por adquirir relevancia no meio dos pensadores brasileiros, principalmente, através da publicagdo do tra- tado Como se deve escrever a histéria do Brasil, elaborado por Martius. Vale lembrar que este texto foi destinado a um concurso promovido pelo Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, no qual, alias, foi premiado, em 1847. Nesse ensaio, Martius reitera que a mistura das ragas € uma vereda segura para a civilizagiio, No entanto, enquanto na Viagem pelo Brasil, 0 autor considera os indios um “ramo atrofiado” da humanidade e destinados a decair, no tratado historiografico eles adquirem uma posig&o positiva no caldeamento, na medida em que thes € igualmente atribuido o potencial da “perfectibilidade”. E, nesse sentido, tal qual M. Salgado Gui- maries observa, foi este naturalista quem langou os “alicerces para a cons- trugdo do nosso mito da democracia racial”, pois, preocupado em apre- sentar um método pragmético para a pesquisa hist6rica, o naturalista sy- geriu: “(...) devia ser um ponto capital para o historiador reflexive mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condigées para o aperfeigoamento de trés racas humanas, que nesse pats so colocadas uma ao lado da outra, de maneira desconhecida na Historia An- tiga, e que devem servir-se de meio e de fim” Depreendendo dessa mescla das ragas 0 “cunho muito particular” da hist6ria brasileira, Martius acabou por esbogar as linhas basicas de um “projeto historiogréfico, capaz de garantir uma identidade especifica A Nagao em processo de construgao.” E suas idéias ressoarem, num primei- ro momento, principalmente, na obra de Francisco Adolfo Varnhagen.” Enfim, retomando os quadros na natureza (na acep¢io humboldtiana) de Spix e Martius, pode-se interpreté-los como uma tentativa de registrar © que ja estava fadado & destruigo. Essas imagens do mundo natural intato e de seu habitante original tém como tela de fundo a crenga no inexordvel avango da historia, que projeta na barbarie dos tropicos a ucronia de uma nacio civilizada. Nesse sentido, se para os autores a ciéncia dispu- nha de métodos para conservar os objetos do mundo natural -em quadros, herbarios, colegGes, estudos, museus - entdo caberia a “influéncia da civi- lizag&o e cultura da velha ¢ educada Europa (...) remover (...) da colénia os caracteristicos da selvageria americana, e dar-lhe cunho de civilizagZo 88 avangada”(L, p. 46-7). Para tanto, justificam a intervengdo destrutiva da mio transformadora dos colonizadores: “quando os habitantes deitarem abaixo as matas, desseca- rem pantanais, rasgarem estradas por toda parte, fundarem aldeias e cidades, e, assim, pouco a pouco, triunfarem da exuberante vegetacdo e dos bichos daninhos, entéo todos os elementos virao ao encontro da atividade humana e a re- compensardo plenamente” (I, p.104) NOTAS " HOLANDA, Sergio Buarque de. A heranga colonial - sua desagregagao. In; HOLANDA, Sergio Buarque de, org. Histdria Geral du Civilizagdio Brasileira. 4ed. So Paulo, Difel, tomo II, v.1, cap. Ip. 13, 1976. * Johana Baptist von Spix nasceu em 1781, na cidade de Hochstadt an der Aisch. Estudou filosofia, teologia ¢ medicina em Wiirzburg. Dedicou-se 4 zoologia apés doutorar-se em medicina, Fez expe- digdes cientificas pela Franga ¢ Itilia. Foi membro de varias academias cientificas, Morreu no ano de 1826. * Corl Friedrich Philipp von Martius nasceu em 1794, na cidade de Erlangen. Estudou medicina, apresentando como trabalho de doutorado um estudo botinico. Foi membro. correspondente de va- rias academias cientificas, dentre elas o Instituto Hist6rico e Geogrifico Brasileiro. Em Munique, Jecionou na cadeira de botiinica da Universidade ¢ tomou-se secretiirio vitalicio da Real Academia de Ciéncias. Faleccu em 1868. * Por decistio do imperador da Austria, Francisca I, pai da Arquiduquesa Leopoldina, planejou-se uma expedigao para o Brasil, Além dos pesquisadores bavaros, faziam parte deste empreendimento: 6 pintores ‘Thomas Ender, Johann Buchberger, Franz Joseph Frihbeck e Frick, o cagador ¢ preparador Ferdinand Dominik Sochor, 0 jardinciro Heinrich Wilhelm Schott e es naturalistas Rochus Schiich, Johann Natterer, Johann Emanuel Pohl, Giuseppe Raddi e Johann Christian Milan. * SPIX, J.B, ve MARTIUS, C.F. Ph. von. Viagem pelo Brasil 1817-1820. Trad. Litcia Furquim Lahmeyer. Sto Paulo, EAUSP. vol. I, p. 34, 1981. Doravante as citagdes extrafdas desta edigio constaro no corpo do texto. entre paréntese, mencionando o nirero do volume da pagina. © |den, Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Mujestat Maximilian Joseph I. Kénigs van Baiern in den Jahren 1817-1820, Minchen, Lindauer/Lentner/Bei dem Verfasser, 1823-1831, Theil 1-3 mit Atlas. (A eeditora Brockhaus, de Stuttgart, publicou em 1966/7, e depois novamente em 1980, um fac- simile da primeira edigio da Reise in Brasilien.) Evidentemente, a produgao cientifica desses natu- ralistas nilo se encerra no relato de viagem, Spix, devido a sua morte prematura, nfio conseguiu concluir as pesquisas no campo da zoologia. Ainda assim chegou a publicar alguns trabalhos. J4 ‘Martius viveu mais 48 anos apés o retorno da expedi¢40, Dedicou-se & etnologiae principalmente aanestudo da flora brasileira, destacando-se como grande especialista em palmeiras, Publicou nume- r0s0s estudos, dentre eles os mais importantes so a Historia Naturalis Palmarumea monumental Flora Brasiliensis, Sobre os indios brasileisos, a obra mais abrangente ¢ a Beitrdge zur Ethnografie Amerikas zumal Brasiliens (2-vols.) de 1867. Martius também tinha uma forte inclinago para a literatura, Deixou algumas poesias, didrios ¢ 0 romance Frey Apollonia -ein Roman aus Brasilien, ‘cuja primeira edi¢io é somente de 1992. E até fez uma breve incursdo na historiografia com 0 89 tratado Como se deve escrevera histéria do Brasil, publicado pela Revista do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, em 1845, ” A primeira tradugo integral no Brasil da Reise in Brasiliené de Lécia Furquim Labmeyes, com revisiode Ramiz Galvao e anotagbes de Basflio de Magalhdes, promovida pelo IHGB e publicada pela [aprensa Nacional em 1938 (3 vols, e um atlas). Em 1961, a Companhia Melhoramentos publicanova edigdo da mesma traduglo. Em 1976, hé umaterceira edicdo, em colaboragio com o Instituto Nacional do Livro. A EAUSPYtatiaia (Colegio Reconquista do Brasil) reedita, em 1981, a ‘yerstio da Ed. Melhoramentos, porém sem atlas. (No presente artigo, maioria das citagSes foram cextrafdas da ittima edigio - 1981. Para evitar confusdes, optou-se acrescentar ano dapublicacao, somente quando se estiver uilizando outra edicio que no seja.esta mais recente, das acima men cionadas, inclusivea da edigdo fac-simile de 1980.) * De acordo com Michel Foucault, a Histéria Natural somente pode ser comprecndida no periodo anterior A repartig&o do saber, que se iniciou hi cerea de 150 anos. As palavras e as coisas. Trad, Salma Tannus Muchail. So Paulo, Fa. Martins Fontes, p:141, 1985, Os proprios autores, embora ccada um tenha uma especialidade, também se antodenominam naturalistas ou historiadores da.na- tureza ¥ Idem, op.cit, p. 145 140, respectivamente A respeito da plena aceitagao da nomenclatura lineana ea primazia de seu sistema no meio matt~ talista, v. THOMAS, Keith. O hamem ¢ mundo natural. Trad, Joao Roberto Martins Filho. Sao Paulo, Cia. das Letras, p, 102-3, 1989, LEPENIES, Wolf. Das ende der naturgeschichte. Munchen, Carl Hanser, p. 153, 1976. Também ver a introdugo de VANZOLINE, PE. The scientific and political context of the bavarian expedition to Brasil. In: SPIX, J.B. von e WAGLER, J.G. Herpetology of Brazil. .., Society for the study of amphibians and reptiles, p. IX, 1981 " A escothado termo baseia-se em Hinrich Hudde, que considera a nogtio de Stinimugsbeziehung (elago entre 0s estados de Animo do homer) com 2 natureza, como uma caracteristica dos autores da literatura romantica, HUDDE, Hinrich. Naturschilderung bei den Rousseau-Nachfolgern. In: HEITMANN, Klaus, org, Eurepdische Romantik, If. Wiesbaden, Atbenaiurn, v.15, p. 140, 1982. ® Aqui se apoiou em Nicolau Seveenko, a0 considerar que a “espécie de éxtase emocional”, vivido por Langsdorff nannatureza brasileira, est em perfeita sintonia com a “imaginage romintica”. E ilo por isso 0 naturaista entra em contradigo com os preceitos da pesquisa cientifica. Idem. O paraiso revelado pela cigncia ou o Dr, Langsdorifc o descobrimentc russo do Brasil. In: BECHER, Hans. O Bardo Georg Heinrich von Langsdorgf. Trad. Mario Nunes Jr. $40 Paulo, Ed, dis/Ed. UnB, p. 140, 1990. “ Sobre a importdincia de Humboldt, v. LEITE, Miriam L.M. Vigjantes Naturalistas. Sio Paulo, CAPHVUSP, mimeo.,p. 5-6, 1990; MARTIUS, Cal FP. v. Dankrede aufA.v. Humboldt. Munchen, Verlag der Akademie, p.26, 1860eNIPPERDEY, Thomas. Deutsche Geschichte, Miinchen. CH. Beck, p. 485, 1983 “HUMBOLDT, A. v. apud LOSCHNER, Renate, Humboldts Naturbild und seine Vorstellung von ‘kinstleriseh-physiognomischen Landschaftsbildern. In: KOHL, Karl Heinz, og. Mythen der Newen Welt Berlin, Frolich-Kaufmmann, p.246, 1982. " BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. O Romantismo, 2ed. S80 Paulo, Perspectiva, p. 96, 1985. “TORRES FILHO, Rubens R. Vidae obra. In: Schelling. 3ed, Sio Paulo, Nova Cultural, (col. Os pensadores), p. IX, 1989. Gerd Bornheim faz uina breve andlise da concepgio de natureza de Schelling, Segundo esta, a “idéia central da natureza (..) no é a do determinismo mecanicista, comp pretende a fisica clissicae o racionalismo, e sima vida". Seu ponto de paridaé a organicidade do inundo natural, impulsionada por uma evolugao dindmica, por “um sentido progressivo”, gra- dual, do mais inferior a0 superior. O Espirito absoluto, que se manifesta conscientemente nos homens, vive nanatureza, porém de forma inconsciente. Gerd Bombeim, op. cit, p. 100-1 90 "MARTIUS, CF. Ph. von apud MARTIUS, Alexander von. Goethe und Martius. Mittelwald, ‘Asthur Nemayer Verlag, p. 80-2, 1932. "“BORNHEIM, Gerd. op. cit. p.97. “HUMBOLDT, Alexander. v. Ansichien der Natur. Nordlingea, FranzGreno, p. 7, 1986. * Cf, LOSCHNER, Renate. op-cit., p. 247 251. * Byidentemente a iconografia referente d Viagem pelo Brasil merece uma reflexao particularizada, considerando-se a presente temtica. No entanto, essa questZo vai além dos limites deste artigo * Auui fazendo referencia & extensa andlise de Antonello Gerbi sobre as teses da “debilidade” ou “inferioridade” sobre a América, cujos debates iniciaram com a Histoire naturelle, générale et articuliére (1749) de Buffon. As pol’micas que emergem dai foram assunto para o pensamento filoséfico e naturalista até os meados do século XIX, quando entio os critérios filos6ficos sto supe- tados pelo evolucionismo biolégico. Para Gerbi, Humboldt foi um dos primeiros naturalistas euro- eus.a se opor a visio detratora a respeita do continente americano e a valorizaro interesse cientifi- ‘co pelo Novo Mundo. Sobre essa discusstio v. GERBI, Antonello La disputa del Nuevo Mundo, trad. Antonio Alatorre. Mexico, D.B. Fondo de Cultura Econdmica, 1960, Ver também DUCHET, Michele. Antropologia y historia en el siglo de las luces. Trad. F. G. Aramburo. Mexico, Siglo Vientiuno, 1975. = NUNES, Benedito, A visdo romantica. In: GINSBURG, J. org. op cit. p. 64. ™ Ao todo. colegdo de Spix e Martius contou 85 espécies de mamfferos, 350 de passaros, 130 de anfibios, 116 de peixes, 2700 de insctos, 80 de aracnideos, 80 de crusticeos ¢ 6.500 espécies de plantas, compondo um herbdrio de 20.000 exemplares. Além disso, levaram para a Europa plantas eanimnais vivos, numerosos minerais e muitos objetos etnogesficos. B para completar 0 “espdlio”, levaram quatro indios. Dois morreram durante a travessia no Atlintico. Os outros, uma menina ‘miranhae um garoto juri, chegaram em Munique, falecendo logo em seguida. *LEITE, Miriam LM, Naturulistas viaiantes. Texto mimeo. s.4.,p.1. Para citar um exemplo, 0 primeiro volume da Histvire naturelle, xénerale et particulidre de Buffon, de 1749, € dedicado 20 estudo naturalista sobre o homem. Cf. LEACH, Edmund. Anthropos. In: Enciclopédia Einaudi ‘Trad. Rui Pereirae Teresa Bento. Lisboa, imprensa Nacional, v. 5, p. 41, 1985. E pouco mais tarde, conforme a classificapio de Lineu, a espécie humana inclui-se no reino dos animais, *“HOBSBAWM, Eric. A eru dus revolugdes, 1789-1648. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira & Marcos Penchel, Rio de Janciro, Paz. Terra, p.255-6, 1982. ” ROUANET, Maria Helena. Erernamente em berco espléndido. Sao Paulo, Siciliano, p.31, 1991. ™ GUIMARAES, Manoel Lufs Salgado. Nagi e civilizagdo nos trépicos: o JHGB ¢ o projeto de uma histéria nacional. Estudos Histdricas. Rio de Janeiro, |:5-27, p.16, 1988. Ver também VEN- TURA, Roberto. Estilo Tropical, Sao Paulo, Cia, das Letras, p.42, 1991 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. 0 esperdculo dus ragas. Si Paulo, Cia. da Letras, p. 12-3, 1993, * MARTIUS, CE P. von. Como se deve escrever a historia do Brasil. (1843) Trad. Wilhelm Schuic, In: MARTIUS, CFP. von. 0 Estado do direito entre us autdciones do Brasil. Sao Paulo, EJUSP, p. 85-107, p. 89, 1982, Idem. op.cit.. p.87. “ GUIMARAES, Manoel Luis Salgado. op cit.,p. 16-17. 91

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