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| CONCEITOS DA PSICANALISE Castracao CONCEITOS DA PSICANALISE Castracao IVAN WARD Editor da série Ivan Ward viver tf _ &_ Ideas in Psychoanalysis - Castragao foi publicade no Reino Unido em 2003 por Icon Books Ltd., The Old Dairy, Brook Rd, Thriplow, Cambridge SG8 7RG Copyright do texto © 2003 Ivan Ward Conceitos da Psicanalise — Castracao é uma co-edi¢ao da Ediouro, Segmento- Duetto Editorial Ltda. com a Relurne Dumara Editora. Ediouro, Segmento-Duetio Editorial Ltda.: Rua Cunha Gago, 412, 3° andar, Sao Paulo, SP, CEP 05421-001, telefone (11) 3039-5633. Relume Dumardé Editora: Rua Nova Jerusalém, 345, Bonsucesso, Rio de Ja- neiro, CEP 21042-2385, telefone (21) 2564-6869. Copyright da edigao brasileira © 2005 Duetto Editorial Indicagao editorial Alberto Schprejer (Relume Dumara Editora} Coordenagao editorial da série brasileira Ana Claudia Ferrari e Ana Luisa Astiz (Duetto Editorial) Tradugdo e edigao Carlos Mendes Rosa Revisdo técnica Paulo Schiller Revisao Elie Silveira Cunha Capa Arte sobre a imagem da escullura Davi, de Michelangelo. Diagramagao Ana Maria Onofri CIP-Brasil. Catalogagdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. wasec Ward, Ivan Castragao / Ivan Ward ; tradug&o Carlos Mendes Rosa. - Rio de Janeiro : Relume Dumara : Ediouro ; SAo Paulo : Segmento-Duetto, 2005 (Conceitos da psicanalise : v.7) Tradugae de: ideas in psychoanalysis : Castration ISBN 85-7316-433-6 1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Klein, Melanie, 1882-1960. 3. Com- plexo de castragao. 4. Psicanalise. |. Titulo. Il, Série. 05-2538. COD 618.8583 CDU 616.89-008.44 ‘Todos os direitos reservados. A reprodugao n&o-autorizada desta publicagao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violagao da Lei n° 5.988. INTRODUCAO: A DEFINICAO DO COMPLEXO DE CASTRACAO O complexo de castracdo € uma diversidade de crencas e emocées infantis relacionadas com a consciéncia nascen- te de uma identidade sexual definida. No menino, estado entre elas a crenca de que a mae teve pénis, que o pénis foi decepado pelo pai ou por um substituto do pai e que 0 seu proprio érgéo sexual pode estar sujeito ao mesmo destino terrivel.! As emocdes vao da recusa inicial ern acre- ditar numa idéia tao absurda, por meio de contestacao in- dignada, a angustia aguda e eventual sujei¢ao. Como no complexo de Edipo, os efeitos da angustia de castracao misturam-se a vida de cada pessoa de um modo singular, e amaneira como a crian¢a lida com a idéia da castragéo tem implicagdes profundas no seu futuro. A castracdo pode ser negada, deslocada, projetada, sexualizada ou voltada para Casiqacan (© proprio > eu. Para a menina existe também a crenca de que ela teve um pénis que foi removido brutal ¢ injustamente. As repercussdes dessa castracdo imaginaria podem ser um sentimento agudo de perda ou uma sensacao perturbadora de que 0 corpo foi mutilado. Usando exemplos do cotidiano e referéncias cultu- rais comuns, este livro examina: * aimportancia do conceito na obra de Freud; * os sintomas que o conceito explica; * seu papel paradoxal no desenvolvimento da crianca; * os mecanismos pelos quais ele provoca efeitos: * sua funcao na sexualidade humana e no amor: * sua influéncia na criatividade e na inibicao da criati- vidade; * as preocupacées éticas que ele esclarece. A CASTRACAQ E OS PRIMORDIOS Freud escreveu sobre a castracao na historia do caso do “Pequeno Hans”, em 1909" e usou pela primeira veza expressao “complexo de castracdo” no seu ensaio “Sobre as Teorias Sexuais das Criancas” (1908)’. Ele se baseou nas palavras das criancas para elaborar 0 seu conceito mais controvertido e inverossimil A Castracad € 05 Pritanios Na ultima década de vida de Freud, a angtistia de castracao ganhou evidéncia cada vez maior — ela se so- brepos as outras anguistias € “situacdes de perigo” de separacdo, perda de amor e morte, que ele estabelecera como pedras angulares da psicandlise em 1926 e pa- reciam, em comparacao, tao ligadas ao senso comum.* Na época da ultima grande obra de Freud, 0 complexo de castracao praticamente se fundira ao complexo de Edipo e tinha a mesma importancia. “(Sob a influéncia do complexo de castragao”, escre- ve Freud, 0 menino “experimenta 0 mais grave trauma da sua vida ainda muito jovem”. Prossegue ele: Os resultados da ameaca de castragdo sGo variados e incalcula- veis; eles afetam todas as relagdes do menino com 0 seu pat ea sua mae e subsequefteprente com homens ¢ mulheres em geral.° O complexo de Edipo chegou a ser descrito como as “atitudes emocionais” que a crianca tem com os pais € os irmaos®, depois, essas relagdes passaram a ser motivadas e organizadas pelo complexo de castracdo. “O acontecimen- to todo”, diz Freud, “pode provavelmente ser encarado como a experiéncia fundamental dos anos da infancia”’. Casrragao, UMA NOTA EXPLICATIVA: CASTRACAO E BURACO NEGRO Mas que “experiéncia fundamental” pode ser essa que é inteiramente esquecida? “O acontecimento todo [...]”, prossegue Freud, “é tao completamente esquecido que a sua reconstitui¢ao durante o trabalho de analise é rece- bida pelos adultos com a mais completa incredulidade. Na verdade, a aversao a ela € tao grande que as pessoas tentam evitar qualquer mencao ao assunto banido e as lembrancas mais dbvias dela sao ignoradas por uma es- tranha cegueira intelectual”®. Como se costuma criticar Freud por ter proposto entidades invisiveis bizarras e apresentado explicacées nao comprovaveis e magicas, talvez seja bom fazer uma analogia com uma ciéncia “mais exata”. Como estudar uma entidade que € 0 equivalente psiquico do buraco negro na aslronomia? Em primeiro lugar, podemos estudar os seus efeitos nos terrenos adjacentes da experiéncia. Se 0 complexo de castracdo € t4o importante quanto Freud afirma, sua alracao gravitacional deveria distorcer o espaco mental e interferir na distribuicéo dos objetos mentais. O buraco negro no espaco pode refrear 90 movimento da estrela O Ursa Nota Expiicam: Casirac&er E Buraco Nica. proxima ou acelera-lo; tira-la do curso ou ocultar a sua existéncia. De modo parecido, as inibigdes ou a superex~ citacao, a perda de equilibrio mental ou a auséncia de faculdades mentais podem ser investigadas como efeitos possiveis do complexo de castragao. Melanie Klein demonstrou que as inibigdes na esco- la podem estar diretamente relacionadas com o “pavor de castragao”. O que para os professores parecia ser pre- guica ou falta de interesse ou inaptidao nos esportes e no atletismo revelou-se para Klein como uma “inibicao ” e uma sujeicao da crianga ao medo da castra- cdo. Era como se a crianca dissesse: “Se eu fizer X, serei castigado (com a castracao)”. (Por exemplo: “Se eu fizer algo que represente simbolicamente o meu desejo pela minha mae, serei punido com a castracdo”.) S6 quando a angustia de castracao fosse solucionada seria possivel comegar a superar a inibicdo. Igualmente, os interesses especiais e as sublimacées de uma pessoa podem ser um meio de escapar do fantasma da castra¢ao. Para Felix, de 13 anos, sexo e futebol se misturaram na fantasia. “O coi- to ja havia sido substituido pelo futebol”, relata Klein, “e absorvera seu interesse e sua ambicao por completo”. O futebol era “uma defesa contra outros interesses reprimi- CASTRAGAO dos ¢ inibidos menos consonantes com 0 ego”"* — ou seja, Os interesses que implicam o perigo de ataque Em segundo lugar, podemos investigar 0 buraco ne- gro por premissas. Se temos uma atracdo gravitacional X, uma massa critica ¥ e nucleos atémicos com caracte- risticas Z, teremos entaéo um objeto tao denso e compac- to que a luz nao conseguira escapar. Uma mulher num programa de televisao fez também hipoteses a respeito da castracao com base em premissas. Ela se lembrou de um amigo que mexia compulsivamente no escroto sempre que conversava empolgado com amigos. “Deve ser estranho ter do lado de fora um Orgao tac sensivel”, observou. “Eu teria medo de ele ser arrancado ou mor- wi dido por. um cachorro. ouaideed me (ou namorada) sabe do enorme inte- resse do menino pelo proprio pénis. Talvez ela também tenha consciéncia dos seus sentimentos complicados em relacdo a ele. Na Antiguidade, as pessoas tinham simbolos e amuletos falicos para usar ou tocar a fim de se proteger de perigos.’? Portanto, partindo de premissas, podemos di- zer que é inevitavel um objeto fisicamente tao significativo e precioso comportar o risco de perda. Assim, na época certa, segundo Freud, é preciso muito pouco para que se 10 desencadeie 0 sentimento de ameaca. Pode-se dizer que existe uma pré-concepcdio de castracéo na mente; ela parece nascer inevitavelmente no interior do individuo.”” Ao considerar © terceiro modo de investigacdo do complexo de castragao, as analogias com a astronomia perdem o sentido. O buraco negro existe nao porque o universo tem a idéia de um buraco negro, ao passo que o “complexo de castracao” é em grande medida uma questao de crenca Certo dia, Daniel, de 14 anos, me contou de um objeto curioso de que ele ouvira falar no bercario do Centro Anna Freud. Chamava-se “willy-cut”. Era como uma tesoura de jardinagem, mas com fungdes bem mais especificas. De- pois de lhe perguntar como ele chegara a essa conclusao, vim a saber que o garoto tivera tal conviccao com pouquis- simas evidéncias. Ele ouvira um dos terapeutas do centro dizer urna palavra enigmatica: “Winnicott”!” No tempo em que os psicanalistas usavam informacdes da sua vida como material de investigacao analitica, E. Pi- ckworth Farroy descreveu sua reacdo depois de se lembrar = Willy-cut seria um “corta-pipi". (Donald) Winnicott (1896-1971) foi um psiquiatra inglés muito famoso ¢ influente, autor de diversas obras. (N do Ty CasrRagag de uma ameaca brutal de castracao, que ele acreditava ser real: “Por alguns dias, este escritor sentiu-se profundamen- te infeliz e viu-se na época em que era uma crianca pe- quena que esperava impotente que os seus genitais fossem atrancados a qualquer momento”, escreve ele, “e ele nunca anles se sentira to s6 e perdido no mundo”, SINTOMAS REAIS E CASTRACAO: ALUCINACAO O desalento que acompanha a crenca na castracao é suficiente para expulsar esses pensamentos da conscién- cia. Apesar disso, as vezes vemos as idéias e os medos de castracao revelados nos adultos. Como um Leviata que emerge das profundezas, eles surgem para aterrorizar a mente consciente e predominar no quadro clinico. Quando crian¢a, o “Homem dos Lobos”, paciente russo de Freud, desacreditava a possibilidade de castracéo, mas era dominado pela visdo alucinada de um dedo seu dece- pado e pendurado por um fio de pele. Isso também ocor- reu com Daniel Paul Schreber, célebre juiz do Tribunal de Apelagoes da Alemanha, que talvez tenha sido o paciente mais famoso da historia da psiquiatria. A fama de Schre- ber vem da publicagdo em 1903 das suas Memorias de um 12 Sivtomas Reas £ Castaagaun ALUONACAD Doente dos Nervos, que ele compilou de anotacdes num dié- rio e de outras notas feitas durante o confinamento de nove anos em varias clinicas psiquiatricas e hospfcios de Leipzig e Dresden. A andlise de Freud desse “livro inestimavel” ga- rantiu 4 obra um lugar na historia da psicanalise. As Memorias sao um livro de uma religiao e uma fi- losofia pessoais escrito para responder alguns dos enig- mas da tragica vida de Schreber e para dar explicagoes a sua mulher e a familia. Foi também uma obra de justifi- cagdo, provando que era a pura realidade “o que as ou~ tras pessoas pensam Ser delirios e alucinagdes”. Como todas as grandes historias, o livro de Schreber descreve uma via-sacra. Da saida do estado de virtual catatonia, assolado por angustia, tremendamente iludido e tortu- rado por alucinacées horripilantes com 0 seu corpo e os ambientes em que vivia (os assim chamados “milagres”), Schreber comecou aos poucos a compreender a catas- trofe que se abatera sobre ele e a retomar 0 contato com o mundo exterior. Numa passagem sugestiva € bonita, ele fala do momento crucial da sua compreensao: O més de novembro de 1895 marca uma época importante na historia da minha vida e das minhas idéias a respeito do 13 CastRApto posstvel tracado do meu futuro. Lembro-me do pertodo com clareza; coincidiu com varios dias lindos de outono, quando havia uma névoa matinal cerrada no Elba. Durante esse tem- po, os sinais da transformacdo em mulher tornaram-se tao marcados no meu corpo que eu nao pude mais ignorar o fim iminente para o qual todos os desdobramentos apontavam.* A partir desse momento, Schreber pode construir outra realidade das ruinas da vida mental anterior. Para escapar de outro “fim terrivel”, ele se contentou com a idéia de ser transformado em mulher. Existiam ainda elementos sobrenaturais empenhados em reverter a sua conduta para o estado anterior — ou a “renunciar” a ele. “Raios” mal-intencionados fariam “apelos hipdcritas” ao seu “senso de honra masculina” € o insultariam com sarcasmo: “Vocé nao fica envergo- nhado perante a sua mulher?”, ou, em palayreado ainda mais vulgar: “Imagine uma pessoa que foi presidente do Senado deixar-se ser f...”. Schreber manteve-se resoluto e inabalavel no seu proposito: Por mais repulsivas que fossem essas vozes, por mais que eu tenha tido a oportunidade de exprimir minha justa indigna- 14 Swromas Reas & Gas iRagae: ALWUCINACAG ¢ao de um modo ou de outro nos milhares de vezes que essas frases foram repetidas, nao me permiti desviar do comporta- mento que eu reconhecera ser essencial e salutar para todas as partes — eu mesmo e os raios.” Desse modo Schreber esquivou-se do horror indizi- vel da castracdo. Ele nao mais enfrentou a perspectiva de ser um homem castrado, mas uma “mulher determi- nada”, destinada a grandes feitos. Na elaboracao derra- deira de afirmacao da vida em meio ao delirio, ele seria fecundado por Deus a fim de criar uma nova raga de seres humanos. Schreber, que certa vez fora forcadoa se fingir de cadaver, tornara-se o salvador da humanidade. A partir da compreensao, ele voltou a viver. Eu gostaria de conhecer um homem que, vendo-se diante da alternativa de se tornar um demente com roupas masculinas ou uma mulher determinada, ndo preferisse a tiltima.'® Talvez uma virada mental parecida tivesse poupado do impacto tragico das alucinacoes de castracaéo um pa- ciente menos célebre, do qual ouvi falar ha alguns anos. Encontraram-no enforcado na garagem de casa apos o CAsTRAGAD jantar, mas nenhum dos familiares se dera conta de que ele vinha sendo atormentado fazia anos pela sensacao de que o seu pénis era cortado vezes seguidas e unido a outras partes do seu corpo.” O psicanalista Samuel Ritvo escreve sobre um caso parecido em que a alucinacdo se refina e é substituida pela fantasia: Ele sofria de angustia de castragdo intensa e consciente, fan- tasiando muitas vezes por dia que era vitima de castracao acidental ou intencional.*° Esse sujeito nao imaginou, como outras pessoas imaginariarn, que o cachorro da casa do outro lado da rua correria até ele e lhe morderia a mao, nem que ele mesmo poderia cair de uma escada e quebrar a perna. Em vez disso, imaginava que 0 cachorro abocanharia o pénis dele e, quando ele estivesse caindo da escada, seus genitais se prenderiam em alguma coisa e lhe seriam arrancados do corpo. Era como se todos os outros sinto- célicas mas dele ~ crises de angtistia, nausea, anorexi abdominais, sintomas {6bicos e obsessivos ~ fossem um afloramento da ameaca principal de castragao. 16 Desenvo.MmeNTO DA CRIANGA E GaSTRAGAG! REGORDACOES Ce INFANGIA A historia de pessoas como essas revela uma conca- \ tenacao de traumas precoces e relacdes transtornadas. ' Doencas somaticas recorrentes, separacdes precoces, \ pais perturbados ou neurdticos (ansiosos, agressivos ou * demuimidos) — tudo isso contribui para a intensidade do de castragao e a incapacidade de supera-lo. To- mado de uma angtistia mérbida da qual poucos estao inteiramente isentos, era um homem que vivia precaria- mente no limite. DESENVOLVIMENTO DA CRIANCA E CASTRACAO: RECORDACOES DE INFANCIA As lembrancas de infancia nao s6 remetem ao pas- sado, mas o representam simbolicamente. Leonardo da Vinci lembrava-se de um incidente estranho de quando era crianca. Estava deitado no bergo quando uma ave de rapina desceu: “[Ela] abriu a minha boca com o rabo e bateu intimeras vezes com ele nos meus labios”! Na sua psicobiografia do artista, Freud interpretou a histo-/ | | tia como uma manifestacéo do complexo de castracdo. | Memiorias de infancia surreais como essa foram rela- tadas recentemente no programa de radio da BBC Desert Island Discs, em que convidados famosos contam remi- Castragac niscéncias da sua vida e escolhem as oito musicas predi- letas que levariam para uma ilha deserta imaginaria. A cancao que Timothy Spall, ator muito admirado, associou & sua primeira lembranca foi New Fangled Tango [Tango Moderno], cantada por Lena Horne. E uma cancao cheia de insinuagées sexuais a respeito de uma nova danca em que “vocé nao precisa saber oS passos”. Quando eu era pequeno, a sala da frente da casa estava sempre fechada e era reservada para ocasides especiais. Fu entrava ld escondido para tocar os discos da minha mae.** A segunda historia, que tem as frases cativantes “eu era um pouco hipocondriaco” e “eu tinha_uma imagi- nacao fértil”, fala dos medos horrendos orpo que poucos conseguem nao sentir. Eu era um pouco hipocondriaco. Um homem com um narigdo costumava passar diante da casa, e alguém disse que 0 nariz era feito das nadegas dele porque ele tivera cancer. Como eu tinha uma imaginacao fertil, eu achava que sentia uma dor no nariz ¢ teria de por as minhas nadegas no lugar dele.” 18 A ultima historia desenvolve uma situacao clas: do terror dos adolescentes, a do monstro no sétao.** Minha avé morava no andar de cima da casa. Ela adore queijo gorgonzola e o deixava num prato no quarto dela. Parecia podre. Meu irmdo e eu entrdvamos de fininho neo quarto ¢ tirdvamos a tampa do prato de queijo. Nos dizt mos “huuummm!”, faziamos cara de susto e caiamos fora.” Nao surpreende que um gorgonzola, com um cheiro fétido e veios de mofo esverdeado, também lembrasse carne putrelata, De qualquer modo, era isso que 0 jo- vem ator parecia ver. Juntas, as trés lembrancas formam uma narrativa de tematica unica. Uma historia de tentacdo, desobedién- cia, castigo e sofrimento. O garoto entra no espaco proi- bido da mac e é ameagado com uma punicao de mutila- cao. A perspectiva faz surgir uma visao de carne em de- composi¢ao e ele é langado numa espécie de purgatorio. compelido a olhar para 0 terror da sua imaginacao. No telato de Freud sobre o desenvolvimento, a memériz (a memoria de tela) repercute e substitui um momento mais antigo. Com seus decididos esforcos edipiano CasTRAgao garotinho descobre que a mae, considerada ha muito tempo idéntica a ele, nao tern o fator mais reverenciado da identidade dele. “Como muitos de nds, Timothy Spall lembra-se dos terrores da sua infancia com uma nostalgia feliz. Freud pegava essas lembrancas € reinjetava nelas a emocao: todo instante, toda imagem fugaz, toda virada na narrativa ga- nhava o peso de uma experiencia de infancia significati- va. Esses sao os “lembretes inconfundiveis” da angustia de castracéo de que ele fala: a visao repugnante de um pedaco de queijo ou o terror de um nariz inflamado. DESENVOLVIMENTO DA CRIANCA E CASTRACAO: CRESCIMENTO Ai vai um jogo: qual o trago comum dos incidentes a seguir? O cachorro aguarda ofegante enquanto o garotinho Joao agarra-se a bola. Os adultos ao redor nao conseguem convencer o menino a jogar a bola para o cachorro. Um incorporador de iméveis acusa o seu filho, Chris Carson, de ter uma imaginacdo fértil demais e lhe diz que é hora de crescer. Ele tenta ajudar o filho rasgando os 20 Dest 9 o4 Cranca e CasiRecho: Crescenta desenhos que comprovam que o menino ainda acredita em fantasmas. Fanaticos politicos e religiosos lancam avides contra o World Trade Center e 0 Pentagono. Os comentaristas classificam os terriveis acontecimentos de “um toque de despertar” para a nacao americana. Cada um desses incidentes diz respeito as dificulda- des normais do amadurecimento. Ao crescer, renuncia- mos a parte do narcisismo, Abrimos mao de certos ob- jetos, crencas e formas de gratificacéo. A megalomania e as fantasias infantis de auto-suficiéncia se desfazem. Somos obrigados a perceber que existem outras pessoas no mundo e que nem todas sdo como eu Em poucas semanas, Joao vai chamar a atencado da mae jogando objetos no chao e esperando que ela as pegue. Mas por enquanto a bola é do Joao e ele nao vai larga-la assim tao facil. A bola parece ser parte dele, eo seu maior impulso talvez seja colocar a bola na propria boca. Sob o olhar benevolente dos adultos, ele esta numa zona neutra do desenvolvimento e se mos- tra confuso e aflito: pée a bola na boca ou a joga para poder brincar? 24 asin Claro, como se trata de Hollywood, o fantasma Gas- parzinho logo se torna amigo até do papai e juntos eles salvam Chris, que iria pelos ares com a casa que 0 pai queria explodir. Para Chris, crescer era superar algo que o intimidava fisicamente e oferecia risco. A destruicaéo provocada pelos ataques de 11 de se- tembro de 2001 foi interpretada como sempre pela metafora do “crescimento”, como se a investida contra esses simbolos de poder — as torres gémeas, 0 prédio do Pentagono, o Capitolio - de alguma forma lembrasse as perdas que sofremos na infancia. No entender de Freud, esses traumas idvaleveis formam uma série, na qual se inclui a “castracao”, € se associam a funcoes especificas do corpo. Muitos pais ja passaram pela experiéncia delicada de tentar afas- tar ao menos um objeto corporal estimado.”* “Tchau, cocé”, dizia eu a minha filha depois que ela usava 0 banheiro. August Sarke acrescentou o “mamilo” @ sé- tie, supondo que o bebé veja primeiramente o seio da mae como seu (do mesmo modo que a mae do bebé deve vé-lo).?” Quando o mamilo mostra que tem vida propria, o bebé sente o primeiro grande golpe no seu narcisismo. 22 DeSENVOLIMENTO DA CRIANGA & GAS TRAGAD! CRESGIMENTO Klein enfatiza esse trauma precoce e a raiva convulsiva ea divisao resultantes. A crianga, decidida a agarrar-se ao seu delirio narcisico, divide o mundo em bom e mau — 0 bom sempre dentro de mim e o seio mau odiado “la ora”. Assim, o crescimento da personalidade ocorre ndo.sé ~| com a atencao carinhosa dos pais adorados, mas também pela sucessao inevitavel de rupturas e perdas waumaticas. Trés coisas resultam desse processo de perda traumati- ca: (1) a muito falada instauracdo de um objeto fantasma- tico dentro da mente que toma o lugar do objeto perdido | no mundo exterior; (2) uma macula emocional, mais ou menos grave, sobre a qual se realiza o crescirnento futuro, e (3) um no de anguistia no interior da pessoa. O quarto resultado € a crescente complexidade emocional e estrutural da mente. A medida que o de- senvolvimento avanga, a relacdo simbidtica com a mae transforma-se num relacionamento de trés pessoas’, descrito pelo psicanalista francés Jacques Lacan como um movimento d imagiarto” para ¢ o *simbdlico™?, ou por h Mary Target e Peter Fonagy como um processo de { ( “triadificagao”™ 30) AS coordenadas « do espaco mental se__ alteram. A figura materna e a figura paterna sdo assimi-, ) ladas p para a formacao do superego y Castragio [...] um precipitado no ego que consiste nessas duas identi- ficacoes unidas de alguma maneira.*’ No entanto, apesar dessa genealogia, o superego “re- | tém o carater do pai”. Forjado no ardor da ameaca de castracao, o superego agora se encarrega de reprimir as emocoes bastante intensas do drama edipiano. Claro que a tarefa nao é ££ }como diz Freud.* E a figura pa- terna, na condicao de obstaculo e proibicao dos desejos edipianos, que empresla 0 seu carater ao superego — ou 4 seja, 0 pai tide como agente da castragao.% A fir de se tornar uma pessoa responsavel na socie- dade, livre dos delirios narcisicos, a crianca esta fadada a aceitar a tealidade dla castracao. E € o impacto mortifero dessa possibilidade, do Eo de vista da crianca, que pre- nuncia as transformacoes significativas desse periodo. Freud sabia que as suas descrigGes esquematicas s6 poderiam representar 0 arcabouco do qual se forma a vida de carne e osso. Muitos fatores participam desse processo; tipos diferentes de ligacdéo com a mae ¢ 0 pai, propensdes constituintes diferentes, graus variados de intimidacao real ou seducao dos genitores. E impossivel prever o resultado. A personalidade da crianca pode ser 24 I “YA \ tet + f WOLVIMENTO DA GRIANGA E GastiaSCAG? OPESCMENTO esmagada por uma angustia de castracao intensa demais el. Se o individuo sera ho- ou ser irrefreada e incontrola mossexual ou heterossexual, ativo ou passivo, temeroso } ou independente, controlado ou desinibido depende da \ interacao de uma grande diversidade de forcas. Todavia, em meio a tudo isso, o complexo de castracao e seus efeitos sao um fator constante que atua como eixo entre y — \0 passado ¢ o futuro} Em seu livro Parandia, também publicado nesta co- lecdo, David Bell cita a gramatica do desejo sexual apre- sentada por Freud. Tomando a frase nuclear “eu (um . }] homem) o amo (um homem)", Freud mostra uma pro- ] |! fusdo de resultados possiveis: erotomania (“Eu nao o amo, eu a amo”); citime patologico (“Eu nado o amo, ela o ama”); e homofobia (“Eu nao o amo, eu 0 odeio”, que implica inevitavelmente o parandico “Ele me odeia”). Cada transformacao gira em torno do impacto da amea- ca de castragéo. Contudo, dependendo da interacdo de forcas e de acontecimentos casuais que orientem o de- senvolvimento para um lado ou para o outro, podem resultar comportamentos opostos. As fantasias de castracéo que dominaram o citado paciente de Ritvo formaram-se no contexto de relagdes 25 CasRagag familiares transtornadas. O medo da castragao, por sua vez, determina facetas dos relacionamentos e atitudes atuais dele para cobiaomens e mulheresyAssim, o pai ausente na sua infancia, cuja reaparicao deve ter sido muito mal recebida pelo paciente, torna-se, sob a amea- ca de uma retaliacao terrivel, a figura idealizada de um amigo com quem ele se compare na vida futura. Por outro lado, a mae sedutora, a um so tempo motivo de tentacdo e prazer sensual, torna-se a criatura mals temi- HS da — uma mulher —{“estranha e repulsiva fisicamente mutilada nos genitais, controladora e exigente”” 0 complexo de castragao transforma o tom emo-} ‘ cional dos relacionamentos. Os valores psiquicos sao reorientados, de modo que o bom se torne mau ou © prazer se torne dor. Pelo processo_retrospectivo da associacao livre,-os-psicanalistas descobrem as idéias__ e as fantasias de castracdo profundamente arraigadas \ e os artificios adotad tizar-se delas. Assim, em seu “elogiado dicionario de em Vv vida para evitar conscien-) psicandlise, Jean Laplanche e Jean-Baptiste Pontalis podem afirmar sem recear muito a critica dos colegas: “O complexo de castracao aparece constanlemente na experiéncia analitica”™. 26 DESENVOLVIMENTO DA CRIANCA E CASTRACAO: BRINCANDO COM A REALIDADE “Ao mesmo tempo que é facil ver que as crian cam por prazer”, declarou Donald Winnicott. “ : mais dificil as pessoas perceberem que as crianeas para dominar a angtistia, ou para dominar idéias sos que acarretem a angtistia se nao forem contro! Ele também podleria ter acrescentado que as cri Caltl pata crescer Ou, eM Certos casos, para ndo CF Quando jovem, o ciclista Lance Armstron um jogo. Ele ensopava de querosene uma 5 nis, ateava-lhe logo e brincava de cata-la, Ao co historia, Kalu Singh compara o jovem Arm Prometeu, o tita que desafiou os raios de Z rem o fogo a Terra. Era tal a insoléncia dele quando ato- lescente, observou o seu treinador, Chris Cac ane que “cle achava que era oe rei da merda”. Mas 2 2™eece < castragao nao seria negada. Umi dia, Arm uma coisa metalica na garganta. De repe conta de que era um mero mortal. “E nao so meme coz Singh, “mas, no cerne da masculinidade prias bolas de fogo e vida, um cancer nes depois da sua experiéncia com cancer ele Date Pewee er Castano 0 seu potencial de atleta prodigio. “Antes de Lance ter tido cancer”, explicou Carmichael, “nos discutiamos o tempo todo. Ele nunca treinava direito. Fazia por duas semanas o que se pedia, depois sumia e fazia do jeito que queria por um ou dois meses”. O tratamento exigiu outro tipo de fogo, e a quimio- terapia foi tao forte que lhe provocou queimaduras de dentro para fora. Ainda assim Armstrong ergueu-se das | chamas e lutou para ficar mais que em forma. E ele se rgueu das chamas transformado) Nao mais acorrenta- doa rocha da auto-suficiéncia ilusdria, le passow'a se- guir as instrucdes do treinador e a trabalhar junto com a equipe. Com a renuncia a sua independéncia herdica, | Armstrong obteve um tipo diferente de funcionamento psiquico e se tornou um dos imortais que ganharam o \ Tour de France quatro vezes seguidas. ; O jogo de adolescente de Lance Armstrong seria bem normal numa crianca de 4 anos — se nao no contett- do, pelo menos na estrutura e na fungao. Assim como 0 neto de 18 meses de Freud jogou do berco um carretel de linha para dominar 0 trauma do desaparecimento da mae®™*, a crianca de 3 ou 4 anos recria simbolicamente a ameaca de castracdo nos jogos e nas fantasias e vence 28 DESENVOUAMENTO 6A GRANGA E CASTRAGAD: © perigo. Miriam descobriu isso quando foi cuidar do pequeno Sam e saiu de la chocada. “Ele tem uma brincadeira que ele quer que eu [aca varias vezes”, diz ela. “E brincar de crocodilo.” “E como €?” — pergunto eu. “Eu tenho de me fingir de crocodilo, sair para caca-lo e ele foge. Entao ele se vira e comega a me ‘matar’.” “Eo que o crocodilo faz se pegar o menino?” “Nao sei, mas ele diz que tem alguma coisa com o bumbum,” Seu ressentimento com a crianca chata diminuiu ¢: outra vez que ela o viu. A ansiedade que se insinua- va na brincadeira revelou-se com toda pujanca ¢) do ele acordou no meio da noite aterrorizado, gri pela mae. O monstrinho cansativo revelou de rep a crianca vulneravel e assustada que ele era. tem controlar desesperado seus medos e impulsos. DESENVOLVIMENTO DA CRIANCA E CASTRACAO: PRAZER Numa historia de desejo contrariado, © beron Waugh lembra-se do seu pai, logo ar sentado diante dos olhos angustiados ¢ GasTRag hc mendo toda a racao de banana que Waugh e as irmas sa- biam ter “o sabor mais delicioso do mundo”, Ao contar a historia na sua autobiogralia, Waugh conclui: Seria absurdo eu dizer que nunca o perdoci, mas ele decaiu permanentemente na minha estima a partir daquele momento de um modo que nenhuma transgressdo sexual equipararia Daquele momento emdiante, nunca levei muito a sério qual- quer coisa que ele ti para dizer sobre fé ou moral.* ae O senso de justica ou injustiga € lorjado na fornalha’s da vida familiar ¢ inclui as inevitaveis idéias da crianca dos “privilégios e prerrogativas que se atribuem a um dos pais”°. A referéncia incidental a “transgressao se- xual” insinua o sentimento contido na historia. Refere- se ao pai invejado e temido que reserva para si tudo que ha de bom e ao acesso exclusivo a uma fonte de prazer, o qual so pode parecer tremendamente injusto para um garoto com paixdes tao intensas. Ele mesrmo nunca ex- perimentaria esse prazer? capacidade para Alguns analistas t¢m interpretado o prazer como fatdr central na castracdo. Ernest Jones. bidgrafo e discipulo de Freufep repudiar o que ele de- 30 Desenvounmento oa Cranca & Gast nominou de tendéncia “falocéntrica”, cunhou o termo “afanise” para designar o desaparecimento total da ca- pacidade para o prazer sexual. Em lugar de “experiéncia fundamental” da infancia. a castracdo seria apenas um aspecto desse medo mais generalizado que se aplica igualmente a homens e mulheres. Apesar dessa admiravel intencao democratica, Jones enfraquece © seu argumento ao citar 0 caso de um jo- vem obsessivo. “Fle :rocou a idéia de gratificagado sexual pela de prazer estétice . escreve Jones, “e seus medos de castracao assumiam a forma do receio de que ele per- desse a capacidade pata esse prazer, estando por tras de- les, obviamente, a idéia concreta da perda do pénis’™. Jones é 0 primei, acmitir que o inconsciente nao “ lida com abstragées. historias que ouvimos até aqui é a linguagem © rela. imagistica, que lhe da for- ca — bananas e cret egas e narigdes, gorgonzola nas no lugar de Jones, diria- com fungos. Colocan mos que ele descobru uma faceta do medo da castra- ve cao, mas uma de nm 2a castracao significa a perda do prazer sensual, ¢13 bém a perda da auto-estima. ) E também a perda de cidade de unir-se simbolica- mente a figura da 2 por fim, uma perda da capa- 3 Castracéo ao . (cidade de gerar bebés (poténcia) © medo que pode ser transferido para outras formas de criatividade. Talvez em qualquer individuo uma ou outra dessas capacidades seja mais significativa e o medo da castra- cao se desvie para outro lugar. Alguns homens se sub- meteriam a uma cirurgia que aumentasse o tamanho do seu pénis flacido em detrimento da sua funcao erétil Nao € a perda do prazer sensual que eles temem, mas a perda do pénis como objeto de exibicdo narcisista:) Meu pai, em meio a uma situagdo de vida ou morte na Segunda Guerra Mundial, sentiu o que ele chamou de “raiva divina”, que lhe tirou todo o medo da cabega. Sua indignacao contra 0 Todo-Poderoso (0 pai) resumiu-se ao pensamento de que ele nunca teria filhos. DESENVOLVIMENTO DA CRIANCA E CASTRACAO: SEXUALIDADE A confluéncia de prazer e identidade com as exigén- cias do mundo social é que faz a sexualidade tao enig- matica e singular. A castracdo é fundamental em quatro aspectos da sexualidade: a aceitacao da diferenga sexual, a negacao da diferenca sexual; a producao de excitacao “sexual; e como causa de inibigao sexual. OLWIMENTO O& GRANGA F Gants Freud as vezes se refere a identidade sexual ¢ fosse uma questao de escolha. Vocé pode querer pode querer aquilo; pode se colocar nesta ou 1 posicao. Parece uma questao de escolha porque 3 tidade sexual € formada no contexto da diferen xual, das nossas relacdes com o sexo masculing ov ° feminino, mae e pai; uma ampla area de possib “O complexo de Edipo proporcionou a crianca du possibilidades de satisfacdo”, escreveu Freud, ” va e outra passiva [...]. Ela poderia colocar-se no do pai [...] ou poderia querer tomar o lugar da ser amada pelo pai. Grande parte dos primeiros debates analitic diferenca sexual (quase sempre centrados na da “sexualidade feminina”) resumiu-se a uma simples: “os sexos séo inatos ou criados?” de cada participante do debate indica em par posi¢ao quanto a importancia da castracao. do lado do “inatos”, a angustia de castra¢: “uma experiéncia infeliz que se pode ter au M30 ma rincia, como sarampo ou catapora. Se vocé = do “criados”, a castracéo é a precondicao -dentidade sexual, a mao oculta que leva a Castaagto caminho e nao 0 outro. Sejam quais forem as diferencas inerentes aos meninos ou as meninas, Freud coloca-se claramente do lado do “criados” ao enfatizar a disposi- cao bissexual de cada sexo, 0s objetivos ativo e passivo de cada pulsao sexual e a ambivaléncia peculiar de todas as relacdes humanas. A psicanalista neozelandesa Joyce McDougall, radi- cada em Paris, conta uma historia fascinante sobre o seu neto Daniel, de 4 anos. Depois de ter passado o dia in- teiro perguntando sobre a gravidez da sua mae, 0 garoto estava ansioso para se aproveitar do novo conhecimento quando o pai voltou para casa no comeco da noite. “Pa- pai, quero fazer um pedido especial. Vocé poderia, por favor, por um bebé na minha barriga também?" McDougall fala dle uma “homossexualidade primaria” para ressaltar as possibilidades bissexuais da primeira infancia e as fantasias correlatas de comer, penetrar e possuir os genitores do mesmo sexo, juntamente com o desejo de tornar-se o genitor do sexo oposto e “incorpo- rar todos os privilégios e prerrogativas que se atribuem a um dos pais””. Mas castelos de areia néo duram muito A apressao e a inveja complicam o quadro — sentimentos de culpa confusos e o medo narcisico de se machucar, 34 Des oivivenTo On Gaunca € Casrray any SEaiauneoc Todas as criancas tém de acabar aceitando o fato de que nunca terao os dois sexos e serao para sempre so a meta- Ge da constelagao sexual”, diz McDougall, circunstancia aue ela classifica de “uma afronta ultrajante 4 megalo- mania infantil™®, A descoberta da crianca da diferenca entre os sexos equipa- e, No aspecto traumatico, a descoberta anterior do outro + d revelagao posterior da inevitabilidade da morte. Alguns idividuos nunca solucionam nenhum desses traumas uni- versais, € todos nds os negamos em certa medida no mais recOndito da mente — onde, por sorte, temos a liberdade de ser onipotentes, bissexuais e imortais!"” Para Freud, que entende que os anseios bissexuais infantis se prolongam bastante no periodo edipiano, o fim dessas possibilidades ocorre pela ameaca de castre- ¢40,.A castragao torna-se o simbolo da diferenca sexta. e a superacdo da ameaca de castracao determina identidade em lugar da outra. Nés “escolhemos” an sa identidade sexual ao descobrir 0 caminho de resisténcia & volta do buraco negro da castracde. OF mente, nao é facil. CasrAagAo O trabalho pioneiro de Joyce McDougall sobre “neo- sexualidades” mostrou em detalhe que os pacientes dela se conciliam com esse dilema universal de um modo deturpado, depois de “pegarem um atalho na elabora- cao da angustia\ falico-edipiana”’® . No entender dela, é o dano provocado ao corpo na relacdo pré-edipiana (a criagao de um corpo alienado, mutilado, sem erotismo) que leva o desenvolvimento para a solucao pervertida — no sentido de pervertida para o problema da castracao. A observacao clinica me convenceu de que as criancas fa- dadas a assumir comportamentos sexuais diferentes na vida adulta criam um teatro erético proprio na tentativa defen- siva de se curar: Vendo-se diante de uma angustia de cas- tragdo avassaladora derivada de conflitos edipianos, elas ao mesmo tempo defrontam a necessidade de se conciliar com a imagem introjetada de um corpo fragil ou mutilado.° Eh sexualidade pervertida usa bastante as formas pré- genitais de excitacdo a fim de evitar a ameaca de castra- ¢4o (“todo o aterrorizante mistério da castracdo”, como diz Fenichel®’). Em outras épocas, a sexualidade genital é preservada, mas cercada de certas condicdes que de- 36 DESENVOUIMENTO GA CRINGA E CAS vem ser obedecidas a risca. Assim, 0 exibicionis 30 ger os genitais, defende-se da anguistia de C33 cdo e se tranqtiliza de que o seu pénis nao é fragi mutilado, mas poderoso e lindo.” Ao concentrar 0 seu interesse sexual num objeto < ndo numa pessoa, o fetichista rejeita a existéncia dos zenitais femininos e o terror da castracao que eles or: nam. O ‘ai e o masoquista vencem a angustia ir- iligindo do eleitando-se com ela, recorrendo até a agressOes aos genitais.* No entanto, essas soluces pervertidas nao diferem muito do desenvolvimento “normal”. Toda pessoa, de acordo com Freud, faz no seu comportamento sexual al- gum ajuste que se pode classificar de “pervertido”. Nos nos “excitamos” com pegas especificas do vestudrio ou partes do corpo (“fetichismo”), criamos situagées fanta- siadas ou transgredimos tabus (as vezes auto-impostos' para apimentar a vida amorosa, Ninguém se surpreer- de com uma loja que venda pecas de sadomasoquismo chamada Piranha Rosa, ou outra que venda lingerie fe--- chista chamada Afrodisiaca.** Em um programa de radio da BBC, a paisagist2 sanna Walton falou da planta dragoeira, que exs Cast uma resina vermelha parecida com sangue quando o seu tronco € cortado. Sem nenhuma relacao légica apa- rente, ela acrescenta: “Claro, essa planta é tida como afrodisiaca ha milhares de anos”. O flerte com o perigo e com a possibilidade de cas- tracdo/puni¢do faz parte da geracdo de excitacao sexual. Existe, porém, uma diferenca. Uma pessoa dominada por uma sexualidade pervertida, do mesmo modo que uma crianca tomada de uma angtistia opressiva que seja incap e brincar livremente, inventa rituais constan- tes muito controlados e repetitivos. Ela injeta excitacao no corpo pelo lado de fora, como se fosse uma droga.” O perigo gera a excilacdo; o motivo do ritual nao é, afi- nal, o prazer, por mais intenso que seja, mas a descarga da angustia e também das emocoes que acarretariam a angtistia quando nao controladas. E 0 recuo ante a dor psiquica e a vitoria sobre o perigo. Desnecessario dizer que, no ambito do romantis- mo, o flerte com 0 perigo, com a ameaca de castracdo, desempenha papel significativo. Nas grandes historias de amor da humanidade — Sansdo e Dalila, Tristao e Isolda, Heloisa e Abelardo, Lancelot e Guinevere — 0 tema da castracdo aparece literal ou figuradamente. 38 Dese: MENTO OA GR = dificil ser coincidéncia que os sentim da paixao sejam indiferencidveis das rm ie medo, nao s6 nos nossos antepassados t mas também em nos. Na iconografia medieval, a flecha do amor ral tem por alvo o coracao ou os olhos. Toda engenhoso ilustrador de uma versao italiana ca -a Lancelot faz 0 jovem heroi ser atingido pela $ amor nao no olho, mas nos testiculos”**. Uma xilo vura colorida alema do mestre Gaspar de Regens “O Poder da Senhora Minne sobre o Coracao dos Homens”) mostra as torturas brutais do infeliz érgac do amante. “Nao menos que 18 coragées sao esmur- rados, comprimidos, serrados ao meio, apertados com torniquete e espetados como um kebab por Fra. Minne”, afirma o autor Michael Camille, acresce=.- tando: “As inscrigdes em alemao referem-se ao poc das mulheres sobre 0 coracao dos homens””. Frz observa em “Anélise Terminavel e Interminavel” que os homens se sentem bem felizes em manter relagdes masoquistas com mulheres para se de derem do mesmo masoquismo com outros ho Nesse caso, os ataques temidos sao deslocados P CastRAgho a Coe: na forma de uma sexualizacdo da angustia. F quase desnecessario acrescentar que 0 coracao pul- sante era muitas vezes comparado com o pénis.* O amor $6 existe quando ha um obstaculo a ele, um obstaculo criado pela terceira ponta do triangulo edipia- no e cujas punicées rigidas estao sempre presentes no inconsciente do amante. Esses sao os perigos letais de todos os sucessos de Hollywood, os quais o heréi vence para conquistar a amada. Os exemplos sao supérfluos. Mas... e como ficam as mulheres? A CASTRADA? NAO E TAO DIFERENTE COM AS MENINAS Numa surpreendente falta de firmeza (surpreendente porque nao era caracteristica dele), Freud afirmou que, embora as mulheres estivessem sujeitas ao complexo de castracao, elas nao passavam pela anguistia de castracao. Ele fez tal afirmacdéo (lembre-se de que foi ele quem criou o conceito de realidade psiquica e investigou as manifestacdes mais bizarras da nossa vida fantasmatica} fundado na logica — como a menina poderia sentir uma ameaca de castracdo se ela ja se sabia castrada? A respos- ta é surpreendentemente facil. 40 A Castrapa? Nag E Tis Dee A angtistia de castracao pode surgir tare em = 2 suposta castragao da mde quanto come um trauma imagindario. Aos 3 anos de idi seve um ataque de gritos histéricos porque o “he dar uma fatia de melao, ia cortar um pedago da casca que ficara na ponta. A mae dela era chan Melony” (Melanie). Fadada a ser ela mesma a viti orincadeira do crocodilo, foram necessarias muit vnanas contando historias de macaquinhos perseguidos r crocodilos até que o macaco salvou 0 rabo virana- se e enfrentando o temivel agressor. As historias fur.- cionaram como um tratamento emocional, contendeo e noderando aos poucos a angustia.” A analista israelense M. Woolf deu um exemplo ain- 22 mais explicito em 1955. Uma garotinha que era cria- =anum kibbutz recusava-se a dormir no chalé das crian- :as. Toda vez que a mae tentava leva-la de volta para a cama, aparentemente adormecida, a menina acordave zzemendo e chorando: “O cachorro arrancou o met pipi”. A enorme angiistia, como uma reacao [dbica, que 33 mulheres podem sentir ao pensar em menstruacgao ou relacdo sexual ou parto tem origem evidente na angus x2 castracao do passado.*® CrsTRACAO. Fenjegl descreve um caso em que um abuso sexual na infancia feito por um parente de confianca contri- buiu para um medo de castrac¢do paralisante e inibigdes diversas na vida sexual de ura mulher.®! E dificil imaginar como Freud pode deixar passar os indicios obvios da angustia de castragéo nas mu- lheres e o papel dela na definigao da posicao feminina no par sexual. Ao se concentrar somente na “inve- ja do pénis” e nos efeitos depressivos da perda (ou seja, a perda imaginaria de um pénis imaginario), ou nos sentimentos de inferioridade e vergonha, Freud enfraqueceu sua conjetura da importancia da castra- cao. Para ambos os sexos, a angtistia da castracao (e como supera-la) desempenha papel fundamental na Galicutacao da sexualidade. Do mesmo modo, a mal- afamada “inveja do pénis” freudiana aplica-se igual- mente a homens e mulheres — ou seja, a inveja do pénis magnifico que se gostaria de ter, ou do pénis idealizado que se imagina que o pai tenha. Os desejos de castragdo que ambos os sexos sentem para com © pai, os quais repercutem no sujeito por meio do medo de retaliacdo, sio um componente importante da angustia de castragao.% 42 CASTRACAO E CLIVAGEM PSIQUICA Sob o impacto da castracao, ocorre algo mat pertinente a questao da estrutura mental. Da mes neira que traumas precoces criam as dimensées do bors 2 do mau em relacao a mae®, o trauma da castracéo coe “ama cisao irreparavel na figura do pai. (O comple castracao também influencia a cisao posterior entr: atitudes afetuosas e as sexuais para com a mae, “virge— = santa” ou “prostituta”.“) Por motivos que continuart sbscuros, os psicanalistas modernos raramente comen- ram esse fendmeno, apesar da obvia ambivaléncia da -elagdo entre pai e filho. Felizmente, Hollywood nao tem esses pudores. C rai de Chris Carson contrata um comando de fanaticos >ara plantar explosivos na casa que ele pretende arrasar. cuando se sabe que 0 proprio Chris esta preso no pré- <9, 0 pai tenta deter o atentado, mas descobre que © zeu alter-ego enlouqueceu e, como o piloto amalucade =e Dr Fantastico, recusa-se a obedecer a contra-ordem. Segue-se um embate desesperado entre o pai odioso € aomicida e o pai carinhoso e protetor, conflito que, pelo sem de Chris, tem de ser vencido pelo pai amorose. ~2mo se trata de uma comédia infantil, da para adivi- CasTracac. nhar o final. O prémio de Chris pelo seu flerte com a morte é um beijo da garota que ele admirava fazia muito tempo. Com a ajuda do Gasparzinho, ele pode ficar com a garota e se reconciliar com o antigo pai castrador. De modo parecido, no suspense de espionagem In- triga Internacional (1959), de Alfred Hitchcock, Roger O. Thornhill (*O que significa o ‘O'?” “Nada.”) mergu- Tha num mundo de pesadelo, onde existem confusdo de identidade e violéncia inexplicavel. O filme comega com um publicitario delicado tentando afastar diversas mulheres exigentes, inclusive sua mae. De repente, ha homens que querem pega-lo, mas ele nao sabe por qué. Seus esforcos frenéticos para escapar ocorrem no contexto de uma clivagem paterna, Ambas as figuras paternas impedem 0 acesso ao objeto inevitavel de in- teresse sexual, a linda e atraente espia Eve Kendall. O “Professor” é 0 chefe de Eve, e o homicida van Damm, seu amante. A propria Eve encarna o aspecto duplo da mae, cumplice na tentativa de assassinato das figuras paternas num momento, sedutora e protetora no outro, Roger enfim soluciona o dilema edipiano salvando Eve de van Damm, que descobriu a identidade verdadeira dela, e o Professor nao tem mais motivo para manter 44 CastRagag & GUAGE 2s dois separados. Assim, mesmo sem um fastasmi camarada para ajuda-lo, Roger se esquiva do problema =a castracdo e se reconcilia com o “pai bom”, A obra de Freud esta repleta desses exemplos. As pix- curas de Christoph Haizman, artista do século XVII, apre- sentam uma série imagens do deménio, com o qual ele fez “xm “pacto” delirante. O deménio aparece primeiro para =e “como um cidadao idoso e honesto de barba castanha, -estido de capote vermelho e apoiando-se com a mao di- “eita numa bengala, com um c4o preto atras de si”®. Essa imagem benévola logo mudaria: Mais tarde a aparéncia dele torna-se cada vez mais ater- radora ~ mais mitoldgica, poder-se-ia dizer. Ele é€ dotado Ze chifres, garras de dguia e asas de morcego. Por fim ele 4parece na capela como um dragao alado [...].57 Freud conclui que a figura do deménio nao s6 deriva mesmo controle sadico que ela impoe ao “sa cena mencionada, ela esta no banheiro de 2 ee = “de logo vai chamé-la para jantar. Nua, ela d ~ma lamina de barbear de um pedaco de pane oanheira e senta-se na beirada. Com um espelho pe so para ver melhor entre as pernas, ela corta deuCamam: “5 genitais com a lamina, e 0 sangue pinga r = imagem € filmada de perfil, para que a platcia Sees -ada realmente, a ndo ser o pequeno gotejarr e. Por que isso me alarmou tanto? Vocé pode achar que a pergunta é bobs. Porm se. mois de feita, percebemos que nao € tao ‘a gue é “traumatico” num trauma. Nao pode Se © se sue — quem assiste na TV aos onipresentes <2 hospital vé mais sangue. Bisturis pen em cores vivas e num close explicito. Nenbums ens me da tontura ou nausea. Até CasTRAGaO castracao (O Império dos Sentidos) ou ameaga de castra- c40 (Mississippi em Chamas) nao produzem esse efeito. Deve ter relacdo nao com a imagem, mas com a “idéia” da cena. Como o tema era mutilacao genital, deve ter sido a experiéncia da angustia da castracao que aflorou do meu inconsciente € tomou conta de mim. Mas outro fator esta presente. O complexo de castragao é também, como vimos, uma miriade de crencas — uma teoria sobre a diferen- ca sexual e como ela ocorre. Uma dessas crencas € a idéia de que a mae tem um pénis, e Freud sustentou (com base nos seus estudos das teorias sexuais infantis e das fantasias dos seus pacientes adultos) que é€ por associacao com a suposta Castra¢ao da mae que 0 com- plexo de castracao tem efeito significativo no menino pequeno. A maioria das pessoas considera essa idéia tao chocante e inacreditavel — talvez eu pudesse dizer “ilo- gica” — que elas se abstém do ato simples de perguntar aos seus filhos. E justamente no abismo existente entre a concepedo da crianca € a do adulto que Freud situa o seu conceito de inconsciente. Agora percebemos por que essa cena foi tao forte. Nao o que ela mostrou, mas 0 que estava velado é que 48 CASTRAGAG EQ RETGRID C =rovocou o trauma. O espectador nao vé “nada”; os ge- esto escondidos pela coxa da mulher sentada na da da banheira. Mas do nada forma-se a lembranca ica da mae-com-pénis e da castragao horrenda que a vez se achou que ela sofreu. Esse é 0 n6 principa: =2 complexo de castracaéo em todo o seu absurdo ina- avel, arraigado fundo no inconsciente. 8 vezes o inconsciente volta ndo aterrorizante, mas “2. No filme Beleza Americana (1999), a impressio- ="ie Imagem principal de uma jovem na cama com metslas de rosa pode ser vista, por meio da formula ba- de corpo e falo, como uma transformacao desejada ima imagem muito mais perturbadora — um pénis nado num mar de sangue.® Se essa idéia parece elmente grotesca, entao vou apresenta-la de um mais trivial. Quando 0 homem sofre da “crise da ssidade”, como o heroi morto desse filme, pode ser =-2 2xista uma angustia que tenha na origem algum cado sexual. A chamada “menopausa masculina™ ma causar no inicio a hipocondria e a angustia que = comens sofrem quando criancas mas esquecem des- atdo (lembre-se da frase “eu era um pouco hipocen- =-229", dita por Timothy Spall). A perda de aptidoes. « Casmaagho perda de desejo e a sensagdo de morte iminente trazem o medo da castragao do passado para o presente. No seu extraordinario e tocante ensaio “O Tema dos Trés Escrini reud mostra, por meio do estudo do mito e da literatura, que a deusa da morte - que por fim nos tomara em seus bracos — é representada pelas mulheres mais belas e adoraveis. Esse é o poder que tem a ilusao de vencer a realidade. CRIATIVIDADE E CASTRACAO: FANTASIAS DE MASTURBACAO E SUBLIMACAO Talvez tenha sido 0 famoso sexologo americano Alfred Kinsey quem disse que 99% dos garotos adolescentes se masturbam e o 1% restante mentem. Contudo, a vergo- nha e o segredo cercam a pratica. Por que é assim? Ojuiz Schreber aceitou ser fecundado por Deus, mas relutou em admitir que se masturbaya comumente. Era tal a vergonha dessa atividade horrenda que ele sé con- seguia relerir-se 4 sua masturbac4o com uma logica nat- cisica tortuosa: “homem e mulher [...] em um pessoa {...] tendo relacées [...} comigo”. Na verdade, Schreber devia ter razdo quanto ao fato de que seu ato era dife- tente da masturbacao comum. A masturbag¢ao de Schre- 50 ‘Onarwinace £ Caste Mss tuneacio & Suaumen ic Precisava de objetos sexuais fantasiados, ao pas- ~ <4e. para a crianca na agonia da paixao edipiana, a urbacdo esta intimamente ligada ao contetido desse ‘exo. “Como se pode demonstrar com clareza”. 4 Freud, “ele se encontra na atitude de Edipo em 20 a0s pais; sua masturbacao é apenas a descarga “tal da excitacao sexual pertinente ao complexo e. ongo dos anos postetiores, devera sua importancia é relacionamento ma vez mais Freud ressalta a ra completa do complexo de Edipo, na qual o ga- > pode assumir uma condic¢ao masculina ou femini- “= Cada alternativa possivel traz os seus perigos intrin- os, (A recusa inicial de Schreber em adotar qualquer 2 das condigées indica a rejeicdo da castracao, que € -amental na sua psicose.) vez Schreber tenha lido um dos muitos tratados mé- —<23 que advertiam dos perigos da masturbacdo, em vos cal da era vitoriana. O precursor deles, Onania — 02 “rane Pecado da Autopolucdo e Todas as Suas Conseq ~ Horrendas em Ambos 0s Sexos Analisadas —, foi publica- ~= shonimamente em 1710, talvez por um charlatao que 3 garrafas de elixir, mas tocou num ponto sensivel © da Antigitidade que atravessava uma profusao Carma de paises e culturas. Para o autor de Onania, os onanistas sofreriam com certeza de cegueira, insanidade, crescimen- to retardado e eventualmente a morte. Quase 300 anos de- pois, € impressionante que a masturbacao adolescente ain- da esteja envolta num manto de vergonha e angistia furti- va, enquanto raramente se discute a masturbaco infantil. Ao saber que o mordomo da princesa Diana teria recebido a ordem de percorrer as bancas da cidade @ procura de revistas eréticas para os filhos dela, o romancista Howard Jacobson lamentou © que os garotos estavam perdendo ao deixar o mordomo fazer as compras: Nenhuma atencdo a libido enquanto ela modela suas mo- tivacées, nenhuma convoca¢do das forcas de resisténcia, nenhuma discussdo entre Jekyll e Hyde sobre a natureza se- xual das pessoas, discuss@o essa que Jekyll sempre perdera, mas s6 depois de a libido ter inundado todo o organismo com aquelas substdncias quimicas as quais damos 0 nome simples de desejo, mas que na verdade também comporta a auto-aversdo, a autodestruigdo e a insanidade."! Sera que a guerra secular 4 masturbacao € 0 sentido desconcertante de “pecado” ligado a ela sao nao uma 52 Caiatenanc £ GastHacao: Fantasias GF Misturesct onspiracao da igreja ou do Estado, mas um inc:c3- um perigo no amago da expressdo sexual em si? Freud refere-se a isso deste modo: © os interesses do menino voltam-se para os s is, ele denuncia o fato manipulando-se com freqtiér- s depois ele descobre que os adultos ndo aprovam os. “portamento. Mais ou menos claramente, mais ou me) calmente, pronuncia-se a ameaca de que essa parte dele ¢ cle tanto estima the sera tirada. Em geral ¢ das mulheres 2 parte a ameaca; muito freqitentemente elas procurar. cer a sua autoridade referindo-se do pai ou ao mé- -0. gue, dizem elas, executara a punicdo [...]. Assim, sor Spinido que o que provoca a destruicdo da organizacéo =~ 2o-genital da crianga ¢ a ameaca de castracdo. Nae de = Jato, é verdade, ¢ nao sem que outras influéncias tam- ent contribuam.”* Ent&o, 0 que acontece com toda essa energia mania- * 3 que acontece com a onda de emocao? déncias libidinais pertinentes ao complexo de Edipe © om parte dessexualizadas e sublimadas [...] e em par- CastRagaa te inibileml’no seu objetivo e transformadas em impulsos de afeto. Todo o processo, por um lado, preservou 0 orgao genital — evitou o perigo da sua perda — e, por outro, para- lisou-o — removeu sua funcdo. Esse processo principia o pe- riodo de laténcia, que cntdo interrompe o desenvolvimento sexual da crianca.’? Vocé vai & escola, Aprende a ler. Descobre algo para fazer que refreie a energia, ajuste as ansias ¢ as fantasias incipientes, atenue a angustia. Algo que seja repetitive é bom, algo que ocupe as maos ou iniba a sua funcao. Os garotos passam horas chutando uma bola de um pé para o outro sem deixa-la tocar no chéo ou matando deménios e monstros em video games. © génio do criquete Don Bradman descobriu essa atividade na juventude. Ele ficava horas a fio treinando sozinho, batendo uma bola contra o muro do jardim da casa da sua familia em Nova Gales do Sul (Australia), e dificultava ainda mais 0 exercicio batendo numa bola de golfe com um taco de criquete. O ritual repetitivo de Bra- dman, como o meu e o de intimeros outros na mesma idade, era um substituto da masturbacaéo. Ou melhor, era uma “formacao conciliatoria’. Trata-se de uma ati- 54 Galntivibane & CasTRAgAG: Fantasias DE Masrunes9: vidade masturbatoria substituta; expressa agressividade e controla a agressividade; representa uma fantasia da vitoria e da “transcendéncia”, com o divertimento < 2 alegria de ultrapassar cada baliza da conquista ritua.. 20 mesmo tempo que exprime submissao a realidade representada pelas “leis da natureza”. Ao se dedicar a uma atividade aceita socialmente. 2 ianga controla tanto © mundo interior das tentagdes aetigosas quanto o mundo externo da desaprovacao paternal, Como diria Freud, as correntes libidinais sao ‘domadas” e desviadas do curso. A esses atos repetiti- vos simples estao incorporados os medos e os desejos sublimados de uma crianca na fase de laténcia. E, mes- mo que néo possamos prever no que resultardo, o seu significado inconsciente encontra-se no poco profundo cas emocoes, do qual pode brotar a grandeza futura. Em contraposi¢z0 com o agitado ritual da sua juventude, Sradman chegou a uma técnica madura de manejo do <3co caracterizada por uma serenidade quase budista ao zefrontar o lancador. Num campo inteiramente diferente, o comediante ly Connolly encontrou uma fonte de tranquilidade ~a sua juventude agitada quando passou a tocar banjo: on Castaacan, Havia algo ao tocar esse instrumento, talvez os arpejos regu- lares e a repeticdo de frases, que o acalmava de forma sur- preendente. Dai em diante, cle e 0 banjo raramente podiam ser separados."* Sua mulher e bidgrafa Pamela Stephenson nao se mostra tao fascinada. Ela recorda uma briga tipica de familia em que o significado simbolico do instrumenito e a angustia que ele dissipa nao séo muito dissimulados. “Qual a diferenca entre um banjo e uma cebola?” — provo- quei-o. “Ninguém chora quando se corta um banjo.” “Quantos tocadores de banjo sdo necessdrios para trocar uma lampada?” — retruca ele. “S6 um, mas ele faz isso re- 278 petidas vezes. Talvez néo seja surpresa alguma saber que, em uma das suas lendarias apresentagdes num palco, Connolly da a platéia uma aula explicita de mastur- bacdo avancada: “A frase inicial é importantissima”, explica Billy. “Digam pre “gracas a Deus que voce esta ai 56 CRIATIVIDADE E CASTRACAO: LUZ E CONHECIMENTO Banhado por um facho de luz, Connolly corre pelo palco como um possesso, “pavoneando-se, andando 4 passos largos, lutando com moinhos de vento”’, mas encontrando uma paz beatifica sob os holofotes. “Ironicamente [diz a mulher dele] a primeira recordacéc de Billy é ficar aterrorizado com um fache de luz” [...- “Até cle ter 3 anos, ele e sua querida irma Florence der miam nunid alcova com cortina na cozinha, Uma noite. @ irmd apontou o reflexo de um espelho para a parede. fazendo-o rodopiar e perseguir o irmdo até ele gritar pare que ela parasse."* Pamela Stephenson nao conta 0 que era tao assusts- dor para a crianca de 3 anos. Mas nds sabemos. Como sua Irma, a cegueira, a luz é um tema comum no es- petaculo da castracaéo. Ao transformar a luz castradora e€ penetrante da sua infancia num manto célido de luz que o circunda no paleo, Billy Connolly venceu o medo infantil com um ato criativo supremo — como Schrebe~ mas sem as alucinacdes. CASTRAgAG Quando Lance Armstrong brincava com a bola de fogo, ele provavelmente nao associava a sua bola de fogo com a bola de fogo celestial que passa por cima da nossa cabeca todos 0s dias. Os mitos da Antigiiidade apresen- tam os deuses do sol como principio masculino, tanto castrado como castrador — 0 Ra egipcio ou o Urano gre- go. Uma das criancas pacientes de Melanie Klein, John, queimava pedacinhos de papel no consultério e cortou um lapis amarelo com uma faca. “O lapis amarelo repre- senta 0 sol”, interpreta Klein, “e tinha outro significado, o do pénis sadico do pai dele”. Numa guinada extraordinaria, o objeto mais insubs- tancial da nossa vivéncia — a luz — passa a representar 0 que pode parecer para muitos a esséncia da substancia masculina, o falo do pai. Assim, quando Tristao é feri- do mortalmente por causa da sua transgressao sexual e volta para a sua Bretanha natal, seu estado abjeto é representado na Opera de Wagner pelo sol constante e escaldante que se abate sobre ele. Ou vejamos Isaac Newton. Quando crianca, ele também brincava com uma espécie de bola de fogo. Newton atava fogos de artificio a uma pipa caseira que ele empinava & noite, durante tempestades, para assustar as pessoas embaixo 58 Ele queria que pensassem que era um cor cando-se na terra. Como Einstein depois dele e Leonardo ames Newton tinha fascinio pela luz. Foi ele quem pemse- beu que o forte facho de luz que ele deixa no quarto escuro nao era uma entidade unica compunha-se de todas as cores lindas (femir do arco-iris. Com esse feito genial, Newton comp e- tou o seu triunfo de Edipo. Ele cortara em pe o falo do pai. Pode-se pensar que o génio excénirico deve ter apreciado 0 renome que essa obra lhe dev Ao contrario, ele se recolheu aos seus aposentos Po dez anos para trabalhar em problemas de alqu e debrucar-se sobre textos da Biblia a fim de prove a doutrina do unitarismo, de que Deus nao era Trindade, mas um ente indivisivel. Tendo destry pai, ele passou os dez anos seguintes tentando F fica-lo a historia de édio, culpa e repara¢ sé chegou ao fim quando Newton harmonizou 2s = do universo, ou seja, as leis de Deus para 0 homens na sua obra-prima, Os Principios da Matematica. Dez se que ele nunca teve outro pensamento criative 7 resto da vida. CASTRACAG, CRIATIVIDADE: ARTE “ADULTA” E CASTRACAO Para Klein e para Freud, o problema da criatividade esté ligado ao da inibicdo. Felix era um 4s nos esportes mas um néscio na sala de aula; a paixao de Leonardo era pintar, mas ele deixou apenas uma punhado de obras- primas. Ocorre algo parecido na obra do artista contem- poraéneo Damien Hirst. A arte nos faz ver o mundo de uma maneira diferente ¢ produz objetos “belos” ou maravilhosos. Nesse sentido, Damien Hirst é indubitavelmente um artista importante No entanto, existe em sua obra um qué de total falta de criatividade. Hirst costuma copiar objetos que ele viu no mundo e amplid-los: “pinturas pontilhadas” como as que Sigmar Polke pintava 30 anos antes; “pinturas de circulos” como as que vocé pode fazer com um estojo de pintura infantil vendido em lojas de departamentos; a majestosa estatua Hino, de seis metros, réplica exata de um modelo de anatomia vendido na loja do Museu da Ciéncia. Apesar da sua genialidade, é como se os riscos de um pensamento inventivo mais requintado fossem grandes demais Na sua obra mais controversa, vemos o porqué da sua inibicdo criativa. Mae e Filho Divididos — uma vaca 60 Crarpane: Arr e um bezerro serrados ao meio e colocados em quatro tanques de formol - é uma representacao simbdlica separacao brutal de mae e filho. Como Leonardo, cuja pintura A Virgem e 0 Menino com Santa Ana e Jodo Batis- ta retrata uma duplicacao similar de mae e filho, Hirst viveu um tipo particular de ligagao e separacdo de sua mae nos primeiros anos de vida. Hirst nasceu sem alar- de em Bristol; o pai nao quis conhecé-lo e um ano de- pois a mae mudou-se de volta para Leeds, sua cidade natal. Quando Damien tinha 2 ou 3 anos, ela conheceu um homem e se casou com ele. A instalacdo com que Hirst ganhou o prémio Turner reproduz um pouco dessa histéria. Nao se trata de uma contemplacao abstrata da vida e da morte, nem de um simples desejo de chocar, mas sim da demonstracao de um ser emotivo que procura ter sentido, tentando repre- sentar ou ser representado. Mae e Filho Divididos reflete 2 divisdo que o menino pequeno sentiu quando esse nove homem surgiu em cena: sua agonia com os sentimentos de traicdo; anguistia e premonicao; sua raiva impoten- te e seu desejo ardente de separar esse novo homer. da sua mde. A obra revive um momento traumatico = o modifica. Isso porque naéo € mais Damien Hirst que Casi Raga sente a ruptura provocada pela divi s 2 ele que, no ato de destruicdo e criagdo, assuittie O - do pai e le gue esta com seu papel imaginario. Hirst é agora aquele 4 a serra elétrica e convida o espectador a participar da carnificina. Passamos pelos tanques de formol de con- tetido acinzentado como se repetissemos 0 processo de divisao, implicados no drama como espectadores. E em razao do medo da castracéo que o pai tem um efeito inibidor, nado $6 a castracdo que se teme sofrer, mas a mutilacao genital que se imagina da mae. Em ou- tra obra, Formas sem Vida, Hirst exibe conchas marinhas grandes e polidas montadas em vitrines na parede. Ao ver a peca na Galeria de Arte Moderna Tate. minha filha de 10 anos questionou o seu valor artistico: “Nao € muito criativa, ndo é? Ele s6 precisou ir a uma loja para com- prar coisas bonitas e coloca-las na parede™, Sob o peso da angustia de castragao, 0s genitais femininos, muitas vezes comparados com as conchas de animais marinhos, tor- nam-se “formas sem vida”, pois sua parte realmenite viva (do ponto de vista do garotinho) foi retirada. Na sua obra, Damien Hirst esta estagnado nesse pon- to. Incapaz de se entrosar ou “brincar” com a ligacao sim- bolica entre a concha ¢ a vagina, ele € (ou era) incapaz de 62 insuflar vida nova nos objetos que, como a minha observdf=pram simplesmente transportados de ur para a galeria. Como disse Melanie Klein ha tanto tempo a criatividade é inibida pelo “pavor da castragao” ETICA E CASTRACAO: AFRONTA MORAL Freud correlaciona o traco de desafio nao so “dois anos terriveis” da fase anal, mas também, como vi- mos, a ameaca da castracao. Em Agincourt, os arqueiros ingleses erguiam dois dedos para os inimigos franceses porque os seus dedos seriam cortados caso eles fossem capturados. Ninguém gosta de perder um dedo, mas é 0 significado simbolico desse gesto que o transforma no desafio masculino do “va se foder”. Evidentemente, esse “protesto masculino”® nao é a unica afronta moral. No entanto, uma reacaéo enérgica contra a castracao € um componente significativo de grande parte da raiva que vemos individuos e grupos demonstrar, Quem fez da afronta moral uma forma de arte foi © proprio Billy Connolly. Suas apresentagoes ao vivo con- firmam sobremaneira a afirmacao de John Cleese de que a comédia € uma espécie de “vinganca”. Elas sao cadas de criticas a irracionalidade, a falacia. @ por Casa ao rancor. Frases como “Da pra acreditar nisso?!” e “E uma desgraca COM-PLE-TA!” caracterizam seu estilo e sua alitude, e ele é arrebatado por um ataque de indig- nacao, Os espetaculos duram até mais de trés horas — e a personagem de certa forma domina o Billy Connolly real, e nao larga dele. Nascido na pobreza, abandonado pela mae, espanca- do pelos tutores, abusado pelo pai, Billy teve uma vida que mais parece um manual de magoas. Seus ntmeros comicos sintetizam e modulam os traumas da sua vida, dando-lhe um dominio simbolico sobre aqueles que 0 dominaram. A castracao nunca é muito dissimulada. Billy, cuja série recente na TV britanica termina com ele saindo de moto, nu, e cuja masturbacao no palco ja foi mencionada, apresentou tendéncias para o exibicionis- mo logo cedo, Pouco apés o incidente assustador com o facho de luz, o desafio se manifestou. Depois de a vizinha Mattie, que tomava conta dele, ter-Ihe recusa- do uma fatia de bolo, ele a ameacou: “Entaéo vou tocar em vocé com o meu pintinho”, e comecgou a desabotoar a braguilha. “Mas, depois de ver a cara horrotizada de Mattie”, escreve Pamela Stephenson, “ele deu a volta e lhe beliscou o traseiro”. Em outra ocasiao, Billy fez xixi 64 ag trando dois dedos para o destino ETICA E CASTRACAO: O PROBLEMA DA CULPA £m alguns mitos, pode parecer que a castracao resultado desejado da historia e que o que esta por dela € uma profunda inveja da criatividade femi Ra, o deus do sol egipcio, castrou-se para criar com o seu sangue uma raca chamada amiu. O falo do “grande deus” hindu Mahadeva [oi decepado e fatiado pelas s2- cerdotisas da grande deusa. Os pedacos penetrarar terra e deram a luz uma nova raca de homens, os lin jas (os homens do linga, ou falo). No México, para repovoar a Terra depois do diltivio. o deus asteca Quetzalcoatl criou novos seres humanos cortando o seu pénis e dando o sangue a senhora « saia de serpentes — uma deusa com muitos falos curtos pendurados na sua cintura, © deus babilonio Bel cortou voluntariamente 2 sua “cabeca” (= pénis) e misturou o sangue com para fazer homens e animais. O deus do céu U Casta AG foi castrado por seu filho C Os g s cortados de Urano cairam no mare ot ara produ- zir uma nova encarnacao dz . Era ela quem governava os cultos ces de cos, como Anquises e Adonis. Uma descoberta arqueolagica r< condado de North Yorkshire, na Inglaterrs com sen- rote pagao sacionalismo no jornal Independent travestido morre apés ritual de ca revelou 0 nte culto sepultamento de um sacerdote de ur religioso romano devotado ao deus do sel Anis ea deu- sa-mae Cibele. Os sacerdotes do culto se cstravam no ritual em solidariedade a Atis e vestiam roupas femini- nas.*} Até Tertuliano reconheceu que os “nuistérios divi- nos” do cristianismo eram parecidos com os “mistérios A demoniacos” de redentores pagaos como Atis. @ a popu- laridade do culto de Atis em Roma levou os cristaos a adotar costumes do velho deus. Quando se comparam imagens do menino Jesus do inicio da Idade Média com a imagem da crucificagao, o tema da castracio fica claro. Os genitais de Lcagaio e sao subs na imagem da cn Se o inconsciente ¥ ferida ensangiient nte atua 66 Encac Cas pela lei de talido, s6 podemos inferir que o pe que Cristo redime os seus irmaos nao ¢ apenas o ce matar o pai primitivo, como propés Freud, mas bém o de castra-lo. Se eu acrescentar “e comer- pénis”, nao € para tentar convencer o leitor a acre no fantastico, mas porque a pratica de comer o pénis do inimigo nao era rara na historia da humanidade. Ela ¢ expressamente proibida no livro do Génesis (32:32). Esses mitos comprovam a tentativa dos homens de solapar a idéia da criatividade da mulher. Agora € 0 fale decepado que se torna a fonte de criatividade e da or- dem social.** Nos casos de autocastracéo, anteriores a primeira igreja crista mas de certa maneira tao proprios dos cos- tumes cristaos, a intencao divina era eliminar o pecadoe as tentacdes da carne. Na verdade, a autocastracao pode ser um propésito sagrado nos grupos sociais em que as mulheres sao tidas como criaturas das mais degradadas e perniciosas. S6 se pode concluir que as “tentacdes” proibidas pelo Todo-Poderoso criaram a perspectiva de uma castracéo muito mais apavorante do que a auto- infligida. Portanto, nao s6 a culpa pode ser uma con- seqtiéncia do pavor da castragdo, mas a autocastracao o CASTRACAO BE real ou simbolica pode ser uma soluca problema da culpa edip ETICA E CASTRACAO; REDENCAS Ao exibir um tubaré Hirst representou em trace dor que nao se consegue possibilidade Fisica da Marte "2. so- 2. insinua que a imagem prim: no seu panorama emocional OT 222 = petrifica- tem do do, poderiamos dizer. A im i277 223 geneti- idade mbra pai terrivel, que Freud achava camente mas reforcada ou moa? aletiva ou pela negligéncia do: arrepiante sobre o resto da vida cz Numa montagem recente do = sifal, de Richard Wagner, em Coven: s2-=2> um tu- baréo empalhado pairou sobre © 9372 — Klingsor no segundo ato, para 0 indignacdo dos criticos. Talvez o: captado um tema central na obra dz 22 dido que um tubarao era um objets 22° >~ simboliza-lo. 68 Para quem nado conhece a historia, Klingsor € 9 £ ticeiro demoniaco que vai aniquilar os cavaleiros que protegem o Santo Graal e o seu chefe Amfortas. Klingsor é mau, mas ja quis ser bom; entao, ele se castrou. Outra personagem conta a historia do primeiro ato: Incapaz de extinguir a lascivia pecaminosa ¢ intensa dentro dele, sua mao voltou-se contra si mesmo [...]. A automutilacao deu poderes magicos a Klingser. com os quais ele construiu um jardim magico no deserto, repleto de mulheres lindas, que atrairiam os cavaleiros bons. Amfortas tentou derrotar Klingsor, mas se vem a saber que, afinal de contas, ele nao era tao bom assim. Ele foi seduzido por Kundry, uma personagem feminina complexa que € tanto a maior sedutora de Klingsor quan- to. em outro disfarce, em busca de perdao, uma ajudante dos cavaleiros do Graal. Klingsor perfura Amfortas com a lanca dele mesmo, provecando-lhe uma ferida aberta do seu lado direito que nunca cicatrizara Antes que Parsifal complete sua missdo sagrada de sal- var Amfortas e restituir a gloria (poténcia) dos cavaleiros do Graal, ele tem de enfrentar a ameaga representada por Castragns Klingsor e vencé-la. © te sSs.c a 72 clarono drama, mas a tentagdo o2 = == ax = ~ Speracao dos desejos incestuoses ¢ 4 = = La = = <7 a Parsi- fal como redentor na hisiom= * =~ 4 << —r.2 Parsifal levando-o para 0 seu pas reo x raido-o de Gamuret, seu pai morto hs; ~ D ~=~zeleide, sua mae superprotetora, Que - - = Do amor agora conhecemos 2 = que Gamuret conheceu certa quando a paixdo de Herzeleidc dentro dele ardeu impetuosa! Pois o amor que a ti deu vida e existéncia amorte ea loucura devem eliminar 0 amor envia a ti agora uma béncao da mae, saiida um filhe com o primeiro beijo de amor! Assim Parsifal, que cresceu sem: #27" = mica edipiana (tal qual o outro gram —- de Wagner, Siegfried), agora é forgads =~ s. 70 Etaa & Castaagio: Ri desejos incestuosos 4 mae e ao pai. Ele nao demora a aprender as conseqtiéncias. Kundry curva-se sobre ele “e aperta seus labios contra a boca dele num longo bei- jo”, como dizem as instrugdes de atuacdéo de Wagner. Parsifal levanta-se bruscamente com um gesto de dor intensa; seu comportamento exprime uma mudan- ca terrivel; ele aperta as maos com forca sobre 0 coracao, como que dominado por uma dor atroz. “Amfortas! A ferida! A ferida!” No momento da tentacao do incesto, é a imagem da castracdo que lhe invade a consciéncia. Paradoxalmente, porém, € a rejeicao da sexualidade que faz a sexualidade existir. A vivéncia da tentacao do incesto e a confronta- cao da ameaga de castracao — passando pela experién- cia, por assim dizer — criam a esperanga de uma vida sexual com parceiros nao-incestuosos e de identificagae com © pai. Logo o proprio Parsifal sera pai. Ele redi- me Amfortas curando-Ihe a ferida com a lanca magica ¢ toma o seu lugar. Caraga A 6pera de Wagner =: interior e dos processes 1 da arte para a politica, p de redencao nacional que $2 2750: 2°. =: “.emanha - 203 7255.5 umpulsos no periodo entre as guerra: -: mentais uma realidade ater A CASTRACAO E O FIM Quando as mulheres de Gr --stsion pen- duraram roupas de bebé na c>_- zi base de misseis Cruise e gritaram o lem: ~ vram the boys”, elas disseram uma verds TESTS com- portamento dos homens e da =: 2.- “ica que o marca.” O impeto para a red m= *z2oncilia- cao com o pai castrador (e cas “nolivo inconsciente da atividade mascuiz2 = -— 273 senti- mentos mais profundos que um 23.5 > == sentir, quase sempre bem mais intensaes= as. = seu filho. Depois que a bomba de b.z> 2.~ * Greenham Common é uma base aérea angi sul da Inglaterra. Com lemas como o citac! meninos", as pacifistas protestaram em 1968 solo bnitanico dos misseis Cruise. em plena guerrs ‘ F aauea, ON. do T) nada em novembro de 1952, trazendo a ens para a Terra, o fisico Edward Teller enviou um 1 ma curto e efusivo a Los Alamos: “E um menino O complexo de castracao é: um conjunto de cr cas infantis; um momento do desenvolvimento: uma heranga filogenética; um organizador da dilerenca se- xual; um determinante fundamental do carater e do destino das pessoas. Os efeitos do complexo de cas- traco sao amplos e incalculaveis para o individuo e para a cultura. Por seu papel na formacao do superego. 0 complexo de castragao ajuda a explicar por que os horrores da humanidade tém a mesma origem que os nossos ideais mais elevadod]=Juanto a este livro, ele mal arranha a superficie. Casinacin NOTAS Em todas as notas, SE refere-se a Stan Psychological Works of Sigmund Freud, trad. J. garth Press, 1953-1975. [Edicao brasileira ra das Obras Psicologicas Completas de Sigmu 24 vols., Rio de Janeiro: Imago, 1986.] n of the Complete Londres; Ho- > Standard Brasilei- doravante, ES), na infancia di- gnificacdo era 1. No entender de Freud, as fantasias de zem Tespeito ao pénis e nao aos testicul desconhecida na epoca. 2. Freud, S., “Little Hans” (1909), in SE, val in ES, vol. X.] 3. Freud, §., “On the Sexual Theories of h-\2-2=> 1908), in SE, vol. LX. |“Sobre as Teorias Sexuaiz 22: in ES, vol. 1X,] eno Hans”, 4. Freud, S., Inhibitions, Symptoms and Ax ~*l- cn SE, vol XX. [Inibicées, Sintomas ¢ Anguistia, in ES iS 5, Freud, S., An Outline of Psychoanalysis ( = 5= vol. XXII, p. 190. {Um Esboco da Psicandlise, in ES. vo. 2 6. Freud, S., “Preface to Reik’s Ritual: Psychos 1919), in SE, vol. XVU, p. 261. ["Prefacio a Risa! = son aliticos, de Reik”, in ES, vol, XVIL] 7. Freud, S., An Outline of Psychoanalysis, or. < Ibid., p. 191. 9. Klein, M., “Early Analysis” (1925), in Lov Delta Books, 1975, p. 90. [Edicao brasil racdo, Rio de Janeiro: Imago, 1996.} 10. Ibid., p. 91. 11. A Man’s Best Friend, prod. e dir. D. Dogs de outubro de 2002, Mattelaer, J., The Phallus in Art and Cultus: ==> = _- -330 As- sociation of Urology (sem data). N 74 Theory of Thinking” (1962), in Secoms Nova York: Jason Arundsen, 1967. 14. Pickworth Farrow, E., “The Castration Com Journal of Psychoanalysis, vol. 6, 1925, pp. +5 15. Schreber, D. P, Memoirs of My Nervous Illness (19 Macalpine e R. Hunter, Londres: William Daws 1955, cap. NIIL, [Edicdo brasileira: Memdrias Nervos, trad. Marilene Carone, Sao Paulo: Paz 16. Ibid. p. 148. 17. lbid., p. 148 18. tbid., p. 149 19. Creighton, E, comunica¢ao pessoal. 20. Ritvo, S.. “Anxiety, Symptom Formation and Psychoanalytic Study of the Child, vol. 36, 1981, p. 3 21. Freud, S., “Leonardo da Vinci and a Memory of (1910), in SE, vol. XI, p. 82. [Leonardo da Vinci ¢ 2 branca da Sua Infancia’, in ES, vol. X}.} 22. Entrevista com Timothy Spall, Desert Island Disc (Citacdes nao literais.) 23. Ibid 24. Veja Ward, 1., “Adolescent Phantasies and the Homer © British Journal of Psychoanalysis, vol. 13, n. 2, PE 25. Entrevista com Timothy Spall, op. cit. 26. Freud, S., “On Transformations of Instinct as Anal-Erotism” (1917), in SE, vol. XVH, pp. | formagdes do Instinto Exemplificadas no Erotismo “cs vol. XVIL] - Starke, A. “The Castration Complex”, Internation Psychoanalysis, vol. 2, 192], p. 179. 28. Young, R., Ocdipus Complex, Cambridge: Ie [Edicde brasileira: Complexo de Edipo, col. Ide ed. e trad, de Carlos Mendes Rosa. Rio de J Ediouro/Segmento-Duetto Editorial/Relume DP be = Casmacan 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 6 62. 63. 64. 65. 78 Veja Steele, Valerie, Fetishism: Fes Oxford: Oxford University Press, 1996. [ “=: Moda, Sexo ¢ Poder, trad. Alexandre A. Jo-= Rocco, 1997. | Abel-Hirsch, Nicola, Eros, Camb: 2-o2. [Edi- cao brasileira: Eros, col. Ideias da F = de Car- los Mendes Rosa, Rio de Janeiro, =. emento- Duetto Editorial/Relume Dumara, Camille, Michael, The Medieval Art oto ~2Dlects of Desire, Nova York: Harry N. Abram: * - Ibid, p. 117. Ibid., p. 112 Veja Music, G., Affect and Emotion. © © ~~ = ~ Books, 2001, pp. 23-4. Woolf, M., “Castration Anxiety”, tac * val Jour- nal of Psychoanalysis, vol. 36, 1955, p - . Fenichel, O., “Introjection and the Cs 1925), in Collected Papers, vol. 1. Nova York. w733. Alexander, F, “The Castration Comp sion of Character”, International Journal of Ps.< - 1924, pp. 11-42 Veja Bell, D., Paranoia, Cambridge: Teo> = ~ . Zdig&o brasileira: Parandia, col. [deias da Psi Car- los Mendes Rosa, Rio de Janeiro/Sao, Duetto Editorial/Relume Dumara, 20% Veja Freud. S., “A Special Type of Obje:* - (1910), Contributions to the Psychology © — [*Um Tipo Especial de Escolha de OF: in ES. vol. NL] so de projecao, “exigente” = _ incapaz de “comprometei-s- minar as anigustias de castracao que esse. ~ retaria. E mite mais facil suportar as do que as temiveis conseqtténcias das pro> > S 66. 80. oO 83. Freud, S., “A Seventeenth-Century Demonele (1923), in SE, vol. XIX, p. 85. (‘Uma Neurase Século XVII, in ES, vol. XIX] . Ibid. . Welldon, E., Sadomasochism, op. cit. . Lewin, B., “The Body as Phallus”, Psychoanalytic Quarery. vol 2, 1933, pp. 24-47. 70. Freud, S., “The Dissolution of the Oedipus Complex’, og. or p. 176. . Jacobson, H.. “Its the Furtive Shame That Makes a Boy 2 The Independent, 9 de novembro de 2002. Freud, S., “The Dissolution of the Oedipus Complex”. ep, or pp. 174,176, 177. _ Ibid., p. 177. Stephenson, Pamela, Billy, HarperCollins, 2002, p. 136 Ibid. p. 140 Ibid.. p. 56. Ibid., p. 6 Ibid., p. 7. Klein, M.. “A Contribution to the Theory of Intellectual Inhi=:- tion” (1931), Love, Guilt and Reparation and Other Works [92 :- 1945, Nova York: Delta, 1975 A feliz expressdo de Alfred Adler é comentada por Freud Freud, $., “Analysis Terminable and Interminable” (1937). in SE. vol. XMII, p. 250. ["Analise Terminavel e Interminavel”, in ES vol. XXIIL.] . Stephenson, P, Billy, op. cit., pp. 22-3. . Tirado de Walker, B. G., The Women’s Encyclopaedia of Myth, Secrets. 1983: adaptado por K. Taylor em htup:/Avwwigeoc conVWesiHollywood/Village/3025/castrate.html ~Pagan Transvestite Priest Died After Ritual Castration”, The In- dependent, 22 de maio de 2002. Castaic 84. 85. 86, 87 80 Walker, B. G., The Woman's Encyclopaedia of Myths and Secrets, op. cit As horrendas mutilagdes genitais que caracterizam os ritos de passagem de homens e mulheres jovens em algumas sociedades (nao vou mencionéa-las aqui) nao tém relagao com a feminiliza- cao em si, mas Com a superagao simbolica da castragao no pro- cesso de ocupagao do proprio lugar no par sexual. Os idosos im- pingem sua autoridade aos jovens ¢ os vinculam a ordem social por meio da dor. Theweleit, K., Male Fantasies, Oxford: Polity/Blackwells, 1987. Easlea, B., Fathering the Unthinkable: Masculinity, Scientists and the Nuclear Arms Race, Londres: Pluto Press, 1983. p. 130. AGRADECIMENTO Obrigado a Kalu Singh pela contribuicao criativa € pelo apoio amigo.

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