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CONCEITOS DA PSICANALISE Sadomasoquismo Tt! Ee ft Ideas in Psychoanalysis - Sadomasochism foi publicado no Reino Unido em 2000 por icon Books Ltd., The Old Dairy, Brook Rd, Thriplow, Cambridge SG8 7RG Copyright do texto © 2002 Estele V. Weldon Conceitos da Psicandlise — Sadomasoquismo 6 uma co-edigao da Ediouro, Seg- mento-Duetto Editorial Ltda, com a Relume Dumara Editora. Ediouro, Segmento-Duetto Editorial Ltda.: Rua Cunha Gago, 412, 3° andar, Sao Paulo, SP, CEP 06421-001, telefone (11) 3039-5633. Relume Dumara Editora: Rua Nova Jerusalém, 345, Bonsucesso, Rio de Janeiro, CEP 21042-235, teletone (21) 2564-8862. Copyright de edigao brasileira © 2005 Duetto Ector Indicagdo editorial Alberto Schprejer (Relume Dumara Editora) Coordenagao editorial da série brasileira Ana Claudia Ferrari e Ana Luisa Astiz (Ouetto Editorial) Tradugao Pedro Dantas Edigao Carlos Mendes Rosa Preparagao de texto Cristina Yarnazaki Revisao Eliel Silveira Cunha Capa S40 Sebastido de Andrea Mantegna Diagramagao Ana Maria Onofri CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Wa77s Weldon, Estela V. adomasoquismo / Estela V. Welldon ; tadugao Pedro Dan- tas. — Rio de Janeiro : Relume : Edioure : Segmento-Duetto, 2005 (Conceitos da psicandlise s v.3) Tradugao de: Ideas in psychoanalysis sadomasochism ISBN 85-7316-427-1 1, Sadomasoquismo. 2. Psicanalise. I, Titulo. il. Série. 05-1921 CDD 616.85835 CDU 616.89-008.442.36 duzida dé nenhuma forma e por Nenhuma parte deste livre pode ser repro’ escrito da Ediouro, Segmento- nenhum meio sem autorizag&o expressa € por Duetto Editorial Lida. O DELICIOSO FIM DE SEMANA DO DIA DOS NAMORADOS” Ao longo de minha carreira na psiquiatria, na qual me especializei em criminalidade e perversao, jamais Zeixei de me surpreender com a enorme diversidade formas que as pessoas utilizam para expressar seu rimento emocional. Todos os pacientes que aten- © consultério me falaram de seu comportamento 2al insdlito ou bizarro, mas eu nunca os vira fazer atividades. C5 . Quando comecei a escrever este livro, lembrei-me uma ocasido, poucos anos antes, em que praticas s incomuns foram feitas a minha frente. Eu havia convidada por um canal de televisdo para parti- é =22° de um programa que passava no fim da noite 229 The Loving Weekend on St. Valentine’s Day” [© Delicioso Fim de Semana no Dia dos Namorados]. Por ser psiquiatra, pediram-me que explicasse aos es- pectadores a dinamica das atividades sadomasoquis- tas. Quando procuravam convidados para o programa, os produtores entrevistaram diversas pessoas envolvi- das em todo tipo de relacionamento sadomasoquista. Nao foi surpresa alguma que conseguissem mais vo- luntarios do que tinham previsto. Isso os deixou na invejavel posicdo de poder escolher quem ou 0 que consideravam sexualmente mais bizarro ou complica- do. Explicaram-me por telefone que uma das histo- tias escolhidas contava com trés personagens jovens, atraentes, bem articulados, que garantiam ter atingido um equilfbrio perfeito na vida cotidiana com uma ro- tina apimentada. O trio era formado por wm marido placido e condescendente, uma esposa dominadora e um jovem solteiro, que assumira voluntariamente o papel de “escravo”, de “vitima” e por fim o de “cachor- rinho”. A rotina deles, que dava grande prazer aos trés, consistia em um padrao fixo: a esposa dominava 0 jo- vem amanie, que respondia apenas aos caprichos e as ordens da Madame, entre os quais havia insultos ver- bais e maus-tratos. A unica exigéncia do jovem era ser ‘O Dew Find be Geman 06 Dia nos Nemoaancs” cravo da Madame. De acordo com o marido, essa era iugdo ideal para ele se satisfazer, porque se sentia avre de uma esposa exigente, possessiva e ciumenta. Durante a entrevista, ao vivo, OS trés explicaram a z.atéia fascinada as minticias do relacionamento, Os crés ficaram indignados com a idéia ou a “falsa” con- de o termo nao aparecer nem no indice remissivo biblia dos termos psiquiatricos, 0 Diagnostic and S:atistical Manual of Mental Disorders [Diagnostico e ‘anual Estatistico de Transtornos Mentais], da Asso- ciacdo Psiquiatrica Americana (1994). Os psiquiatras separam o termo em suas das partes: sadismo sexual 2 masoquismo sexual. Gilles Deleuze defende com vee- ~néncia a idéia de que o sadismo e 0 masoquismo nao :ormam uma entidade: “Cada qual nao se constitui de “npulsos parciais, mas € completo em si mesmo”! E bastante interessante observar que, no comeco do século XX, antes que se adotasse sadismo como © psiquiatrico oficial, o famoso psicopatologista ~/bert von Schrenck-Notzing introduziu o termo al- S| nisse o desejo de causar dor como um fim em si nia, que significa excitagao com a dor. E, embora ™esmo, o médico nao fazia distingdo alguma entre sa- oe masoquismo. > ADISMO SEXUAL =~ gualquer lugar, quando se quer falar do des- ‘Sadowasoousmo nos relacionamentos, todos usam livremente as pala- vras sadismo e masoquismo. Mas qual € o verdadeiro significado delas? Sadismo diz respeito a atividades em geral sexuais que visam a provocar dor em outra pes- soa e dar satisfagao sexual aquela que inflige a dor. Segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV)*: As fantasias ou os atos sddicos podem envolver ativida- des que indicam o dominio do individuo sobre a vitima (por exemplo, forgar a vitima a rastejar ou manté-la em uma jaula). Os individuos também podem atar, ven- dar, dar palmadas, espancar, chicotear, beliscar, bater queimar, administrar choques elétricos, estupray, cortar, esfaquear, estrangular, torturar, mutilar ou matar a viti- ma. E comum as fantasias sexuais sddicas terem existido na infdncia, Esses atos contam sempre com a participacdo de Oulras pessoas, que podem ser parceiras consensuais ou vitimas voluntarias. * DSM é a abreviatura corrente do nome do manual ¢ IV indica a sua quara edigao. (N. do E.) Na andlise do sadismo sexual, é importante obs ara diferenca entre fantasias sadicas e atos sadic © que em geral constitui pervers&o sao os atos, n 2s fantasias. Em outras palavras, todos podem | cantasias sexuais de qualquer natureza sem o “rise ae serem rotulados de perverso. Richard von Kraf. Ebing, eminente sexologo austriaco, foi o primeiro empregar o termo sadismo, derivado do sobrenon =o Marqués de Sade, autor do século XVIII que ¢ dedicou aos textos sobre atos sexuais brutais e cruéi: descritos de forma primorosa e poética. Ele prdopri se envolveu em varias dessas atividades, que forar de certa maneira um dos motivos da sua prisdo. Mes mo preso, Sade continuou a usa-las como fantasi zara estimular sua [értil imaginagdo em obras bas te perturbadoras mas muito influentes, a pont <2 terem inspirado artistas inovadores e alé mesm cevolucionarios. Lembro-me aqui de um comentari 2portuno da dra. Joyce McDougall, patrona das psi -inalistas francesas: “A principal ‘zona erogena’ d: anidade esta na cabega”. E, acrescenta ela con dia: “A perversdo, como a beleza, esta nos olho =: uem ve”. MARQUES DE SADE O Marqués de Sade, que viveu durante a Revolucao Francesa, passou um terco da vida na priséo, onde produziu a maior parte das suas obras. Nascido em 1740, tornou-se o mentor de diversos artistas, escrito- res € cineastas da era moderna: as pinturas fetichistas de 6rgaos sexuais masculinos e femininos de André Masson; as fantasias eréticas de Georges Bataille; o fil- me A Bela da Tarde (1967), no qual Séverine, a heroi- na interpretada por Catherine Deneuve, manifesta seu masoquismo em devaneios de humilhacdo e tortura tuipicas de Sade; o filme Veludo Azul, de David Lynch (1986), com seus tons a Sade concentrados no am- biente compulsivo do desejo pervertido>. Escritores como Baudelaire, Dali, Genet ¢ Foucault sdo apenas alguns que homenageiam com sua arte as idéias origi- nais de Sade. Sade nasceu aristocrata e morreu na pobreza, em 1814, num hospicio. Esse paradoxo existiu durante toda a sua vida. Grande parte da sua criatividade e liberdade de idéias aflorava quando sentia claustro- fobia. A priséo pode té-lo impedido de realizar suas faniasias sexuais, mas nao o impediu de expressar pensamentos e fantasias por escrito, num esti- > dos mais elegantes, levando a definicao de gosto a mos. Alias, € bem provavel que a “seguranca” da tenha ocasionado essa habilidade. Com toda Sade era visto como um perfeito rebelde. Teve infancia bastante infeliz, durante a qual con- eu com muita violéncia em casa. Aos 5 anos, sua ida familiar desmoronou quando a mae decidiu sair se casa. Como 0 pai estava sempre ausente, pois pas- sava longos periodos no exterior por ser diplomata, Sade foi morar com um tio que era padre. Em pouco tempo percebeu a hipocrisia da Igreja e passou a re- correr a blasfémia. A blasfémia e a transgressao sexual, tanto na fantasia quanto na realidade, sempre o acom- panhariam e se tornariam suas predilecdes, daquele momento em diante, chegando a obsesséo. Quando tinha 14 anos, Sade foi colocado num colégio interno, onde sofreu muitos castigos fisicos. Seu casamento foi arranjado e durou pouco por seu comportamento per- turbador, com diversos incidentes de violéncia sexual contra a sua mulher — atitudes que enfureciam sua sogra, que, por ser muito persistente, conseguiu man- a-lo para a prisao. SaDOVASOOUSMO As obras de Sade —em particular Justine (1791), Fi- losofia na Alcova (1795), Os 120 Dias de Sodoma (1785) e Juliette (1798) — sao tentativas ousadas de afrontar a moralidade burguesa e revelar toda a sua hipocrisia. A primeira vista, Justine e Juliette pareciam estar em polos opostos do espectro psicolégico, mas uma ana- lise mais minuciosa revela que ambas se refletem e se complementam, da mesma forma que os extremos do sadismo e do masoquismo convergem inconsciente- mente. Os dois livros foram escritos pouco antes da Revolucdo Francesa: Justine apresenta-se como uma masoquista em constante humilhagao. Sua amarga compensacao é provar que moralmente a vitima é sempre superior ao carrasco. Juliette, por outro lado, explora sua sexualidade ao limite; € a excec4o, uma supermulher no sentido nietzschiano, transcendendo seu sexo mas nao suas contradicées. Ela €é uma ameaca ao amor e a maternidade, por usar, abusar, explorar e abandonar amantes e filho a seu bel-prazer, conforme suas excentricidades. Em Os 120 Dias de Sodoma, situado no século XVII, Sade descreve nos infimos detalhes as coisas mais horriveis que pessoas podem fazer com outras 16 A“Contmeuiaa” De Sabe acy Fe “ma temporada sangrenta financiada por lucros -amulados na Guerra dos 30 Anos. O livro inspirou > filme Salé ou os 120 Dias de Sodoma, de Pier Pao- > Pasolini, que retrata abertamente os horrores e a crueldade infligidos a vitimas involuntarias. Apesar das suas qualidades artisticas, o filme é um ataque sadico ao espectador, que também se transforma em ~itima a sua revelia. A “CONTRIBUICAO” DE SADE AO FEMINISMO E fascinante notar que as escritoras contempora- meas, entre elas varias feministas fervorosas, tém reacdes bem contrarias diante das idéias de Sade. Algumas repudiam com veeméncia a viséo que o es- ormégrafo libidinoso; outras, talvez surpreendente- mente, elogiam sua obra, que segundo elas aborda a iberdade sexual de ambos os sexos. De acordo com =stas ultimas, Sade se recusa a classificar as mulheres senas de maquinas reprodutoras e lhes da a liberda- -< de se tornarem seres sexuais. Para Camille Paglia, s.adémica e feminista americana, Sade é um grande Sacomasoayiso intelectual, e seu livro Justine, uma obra-prima. Por outro lado, Janine Chasseguet-Smirgel, uma das mais destacadas psicanalistas francesas que estudam as perversées, afirma que na obra de Sade as mulheres sao retratadas como objeto de total desprezo. Para ela, o sexo feminino, além de tido como objeto de repulsa, € comparado pejorativamente com o anus, 0 qual, chamado de o “outro templo”, é bastante idea- lizado pelo autor por ter a funcao de expelir “produ- tos finais” (ou seja, as fezes). Man Ray, um dos maiores representantes do sur- realismo, mostra em fotografia de 1933 sua aversdo ao catolicismo e seu desprezo pela idéia de que 0 sexo é exclusivo da procria¢ao, invertendo um crucifixo e sobrepondo-o a divisdo das nadegas de um homem. Homenagem as idéias de Sade, Ray intitulou a foto “Monumento a D. A. F. Sade” e manifestou com ela que Sade desaprovava 0 uso do sexo para reproducao e sua preferéncia pela pratica da sodomia*. Deve-se lembrar que na época de Sade a sodomia era crime na Franca. Janine Chasseguet-Smirgel usou a “situagdo sa- diana” para definir a perversdo como um universo A GonTapuicay” oF Sane Ao Fein :™ que reina enorme confusao e cuja caracteristica rcipal é a intencdo de suprimir a diferenca en- fi Todos sao iguais; nao ha homens nem s; ndo ha criancas nem adultos. (No inicio <2 um artigo seu, Janine relembra uma afirmagao de Sade: “Para multiplicar minhas homenagens nao faco distincéo nem de idades nem de sexo”’.) Incesto nao 2 mais tabu, e a analidade chega ao auge como o mais -ntenso dos encontros libidinais. Acaba-se com a fe- minilidade das mulheres; nao ha espaco para a ge- nitalia feminina. Com jeito, a psicanalista nos leva a Os 120 Dias de Sodoma — escrito em 1785 com énfase em construcoes e lugares claustrofobicos e circula- res, passagens estreitas como esfincteres — para con- cluir que o “prazer ligado 4 transgressao € sustentado la fantasia de ter reduzido o objeto a excremento, rompendo as barreiras que separam mae e filho, filha 2 pai, irmdo e irma, as zonas erdgenas umas clas ou- iras”® e assim por diante, numa tentativa de criar um snundo novo pela extingao das leis naturais. A rea- idade nao existe mais: criou-se um mundo ilusorio, -am prioridade para a importancia da incerteza e dos .idigos de lei ou normas. 19 SADOMASCOUISRD Angela Carter, famosa escritora britanica, feminista auténtica e pensadora original, desafia todas as outras feministas a ver as obras de Sade sob nova luz. Em seu livro The Sadeian Woman (1979), ela lanca a hipotese de que o escritor francés tratava a sexualidade como realidade politica e por isso foi confinado, Em suas obras, escreve Angela, Sade revela a sociedade e as re- lagées sociais extremadas existentes no Antigo Regime francés. Os libertinos daquele tempo eram grandes aristocratas, alguns eram proprietarios rurais e outros estavam ligados a Igreja ou as atividades bancarias. Trocando em mitdos, seus libertinos dominavam e mantinham uma sociedade bem diferente da deles, na qual suas instituigdes haviam sido deturpadas e trans- formadas na personificacdo de perversées. Segundo a escritora britanica, Sade considera os fatos da sexua- lidade feminina nao um dilema moral, mas uma rea- lidade politica: suas heroinas, as libertinas, nao tém vida interior nem introspec¢ao, e seus unicos modelos de comportamento s4o os libertinos que aceitam a da- nacdéo — entendendo-se por isso o exilio do mundo como necessidade de vida. Em tom bastante provoca- tivo, Angela Carter afirma: 20 ui" ne Sane ac FeMinsMo ~ Sade declara-se inequivocamente favordvel ao direi- - da mulher de fornicar [...]. Ele estimula as mulheres = jornicar tanto quanto puderem, de modo que, fortale- cdas por sua enorme energia sexual, até entdo represa- ca, elas sejam capazes de penetrar na historia e, assim, udd-la.? Imagino o prazer que Carter teria ao saber que duas jovens, que parecem combinar perfeitamente om Sade, escreveram e produziram Baise-Moi (2000), “o mais explicito filme de sexo e violéncia ja produ- zido para o grande publico”’. A romancista francesa ‘irginie Despentes escreveu o livro homonimo e a eriz pornd Coralie Trinh Thi dirigiu com ela um fil- ce barato e chocante que provocou um estardalhaco za midia em todos os lugares onde foi exibido. Essa c2percussao, afirmam elas, era inteiramente inespera- E as reagées desiguais nado pararam por ai. Ao ser zxibido na Franga pela primeira vez, com classificacao >zra maiores de 16 anos, o filme foi tirado de cartaz 2.0 6dio que provocou em muita gente, inclusive fe- =2nistas. Entretanto, outras pessoas o defenderam até -"seguir que o ministro da Cultura mudasse a lei. Sananacac Demorou um ano para a reestréia do filme com novo certificado, entéo recomendado para maiores de 18 anos. O Conselho Britanico de Classificacao de Filmes mostrou-se a frente do tempo e dos padroes franceses de liberalismo em sexualidade, classificando-o para maiores de 18 anos depois de cortar a “inaceitavel exibicao” de uma cena violenta de estupro, por con- ter “imagens exageradas de sexo”. A obra foi acolhida como um filme sério e bem feito. Em entrevista para o critico de cinema Nigel An- drews, do Financial Times, as diretoras falaram aber- tamente do filme, no qual duas mulheres partem para uma série de assassinatos pelo pais depois de uma de- las ter sido estuprada e a outra obrigada a ver a me- Thor amiga ser morta a tiros. O filme trata da reacao das duas personagens a humilhacao e a violéncia, em geral impostas por homens. Indagadas se o filme era um “estupro as avessas”, em que os homens se tornam alvo da necessidade de vinganca das mulheres, a res- posta das diretoras refletiu 0 que Sade achava. Elas ressaltaram o fato de terem destruido todo simbolo de opressdo — opressao perpetrada pela policia, pela intelectualidade burguesa e até mesmo pela estupidez A “ComiHutiGao” DE Sade ab Fenanisvo 2 pelo tédio. Depois de tudo, quando se encontram, as cuas mulheres sabem que vao morrer, assim “o filme é exagerado mas romantico. Fala do que acontece quando a vida nos decepciona e passamos dos limites”. Essa ulti- ma frase esta destacada para indicar, uma vez mais, 0 grau de sincronicidade — ou, diria eu, da capacidade de fazer acidentalmente descobertas felizes e inespe- radas — que essa afirmacado feminina tem com Marqués de Sade e todos os seguidores da mesma escola. “Ha ainda a questao das atrizes”, afirma Virginie Despen- tes. “Claro que € 6timo ter filmes pornds ¢ atrizes por- nos, mas, quando se pée isso num drama naturalista, surgem problemas de todo tipo. Por qué? Porque vocé acaba com a idéia de que elas sao brinquedos sexuais e lhes da vida.” “Eu e Coralie”, explica Virginie, “nunca frequenta- mos nenhuma das escolas superiores, nao estudamos cinema classico, temos fortes ligagées com os chama- dos ‘excluidos da sociedade’. Por isso, tudo que re- Dresentamos perturbou demais a midia e a industria -inematografica. Se tivéssemos tido a atitude francesa ormal — sabe como é, discurso conceitual, as referén- ..2$ corretas, algo um pouco menos visceral € mais in- Sanonesion telectualizado -, elas teriam tido mais seguranca. No entanto, éramos muito cruas, muito reais para elas. E claro que a industria quer fazer filmes sobre pessoas como nés, mas nao nos quer no seu mundinho do cinema.” “O verdadeiro problema”, prossegue Virginie, “é que Baise-Moi é um filme sobre mulheres da violenta ‘classe baixa’, feito por mulheres supostamente margi- nais. As correntes dominantes n&éo querem ouvir falar de pessoas que nao tém nada — os destituidos de cida- dania, a marginalia —, pegam em armas e matam gente por diversao e por dinheiro. E um fato, claro, mas nao nos permitem tomar conhecimento dele.” FE interessante notar que as obras de Sade e também de seus seguidores exibem transgress6es sexuais que encontram correspondéncia na opressao social e poli- tica. Por exemplo, Sade nao tem pudores de dizer que 0 sexo anal é prazeroso nem de idealiza-lo, embora a sodomia fosse punida como crime na Franga. A escritora austriaca Elfriede Jelinek, em seu ro- mance mais famoso e provocador, A Professora de Piano (1983), ao qual voltarei mais adiante, alcanga seu objetivo ao mostrar claramente que a Austria é 24 wo SAL um bati de historias de nazistas com uma quantida- de enorme de perversdes sexuais. Em meu livro Mo- ther, Madonna, Whore [Mae, Virgem Maria, Prostituta] (1988), escrevi: A etiologia da perversdo [...] esta ligada a politica do po- der; um aspecto & psicobiologico e 0 outro é social. E pos- sivel que essa diferenca de resposta as atitudes violentas das maes contra os filhos seja causada pela inaptidao da sociedade de ver a mulher como ser humano completo. As dificuldades em reconhecer que as mdes podem abusar de seu poder talvez resultem de negacdo total, uma forma de lidar com essa verdade desagradavel.° MASOQUISMO SEXUAL Richard von Krafft-Ebing, sexdlogo austriaco do século XIX, cunhou nao apenas o termo sadismo mas também o seu oposto, masoquismo. Afirma Krafft- Ebing: -| masoquismo € 0 oposto do sadismo. Enquanto este é 0 Jesejo de causar dor e usar a for¢a, 0 primeiro é 0 desejo 2 sofrer a dor e sujeitar-se a forca. 25 ‘SADOMASOQUISMO Sinto que é pertinente chamar de “masoquismo” essa ano- malia sexual porque o autor Sacher-Masoch fez dessa per- versdo, que até o seu tempo era quase desconhecida do mundo cientifico como tal, a base de seus textos. Segundo o DSM-IV: A parafilia do masoquismo sexual corresponde ao ato (real, nao simulado) de ser humilhado, espancado, atado ou sub- metido a outro tipo de sofrimento. Alguns individuos sentem- se perturbados com suas fantasias masoquistas, que podem surgir durante a relagéo sexual ou a masturbagdo mas ndo se realizam. Nesses casos, as fantasias masoquistas em geral consistem em ser estuprado estando preso ou atado por ter- ceiros, sem possibilidade de fuga. Outros realizam os seus de- sejos sexuais masoquistas sozinhos (por exemplo, amarran- do-se, picando-se com alfinetes ou agulhas, dando choques elétricos em si mesmos ou mutilando-se) ou com um parcei- ro. Entre os atos masoquistas que podem ser feitos com um parceiro estdo as contencoes (Sujeicdo), colocagdo de vendas (sujei¢ao sensorial), palmadas, espancamento, agoitamenta, choques elétricos, ser cortado, “perfurado e atravessado” (in- fibulagao) e humithado (por exemplo, receber sobre si a urina 26 -zes do parceiro, ser forgado a rastejar e a latir como _.ma cdo ou submeter-se a violéncia verbal) Alguns atos masoquistas podem ser perigosos caso nao se tomem os devidos cuidados. Segundo o DSM-IV, uma forma particularmente perigosa de masoquismo sexual”, chamada hipoxifilia, “é a excitagaéo sexual por privacao de oxigénio obtida por meio de compressao do peito, enforcamento, saco plastico, mascara ou substan- cia quimica [...]. Certas vezes ocorrem mortes aciden- tais”. Alguns homens que praticam o masoquismo sexual manifestam também fetichismo, fetichismo travestido ou fetichismo sexual. Aparentemente, as fantasias sexuais masoquistas surgem na infancia. A idade em que tém inicio as atividades masoquistas com parceiros € variavel, mas em geral ocorre no inicio da vida adulta. O maso- quismo sexual costuma ser crénico, e a pessoa tende a repetir © mesmo ato masoquista. Alguns individuos po- dem envolver-se em atividades masoquistas por muitos anos sem que aumente a periculosidade de seus atos. om outros, entretanto, a gravidade dos atos masoquis- “as aumenta com o passar do tempo ou em periodos de _stresse, provocando lesGes ou até mesmo a morte.'” ‘Sapomascouisme. LEOPOLD VON SACHER-MASOCH Leopold von Sacher-Masoch nasceu em 1835 em Lemberg, Galicia, entao Império Austriaco. Descen- dia de eslavos, espanhéis e boémios. Seu pai era che- fe de policia, e Leopold, quando crianga, presenciou cenas brutais de prisdo e fuga, que o deixaram com profundas magoas que o atormentariam ao longo de toda a vida, Grupos minoritarios, problemas de na- cionalidade e rebelides revolucionarias o influencia- ram muito. Em suas obras, politica, historia, nacio- nalismo, erotismo e perversao misturam-se bastante. Enquanto lecionou em Graz, escreveu diversos li- vros respeitados, todos bem originais. Usou a maio- tia de seus casos amorosos como material para seus textos, como The Divorcee [A Divorciada] (1865) e mais tarde Venus in Furs [Vénus das Peles] (1870). Esse Ultimo é a primeira parte de uma série inaca- bada de novelas intitulada The Heritage of Cain [O Legado de Caim], na qual Masoch planejava abordar os temas da guerra, da morte, da propriedade, do di- nheiro, da obsessdo e do conhecimento profundo do amor. Deleuze, em seu magistral livro sobre Masoch e o masoquismo, esclarece o leitor com sua visdo 28 > significado de O Legado de Caim: “Caim e Cristo suportam a mesma dor que leva a crucificagao do Homem”"!, “que nao conhece amor sexual, proprie- dade, terra natal, causas nem trabalho: que morre por vontade propria, incorporando a idéia de huma- nidade"”. “A espera e o suspense sdo caracteristicas essenciais da experiéncia masoquista. Dai a presenca de cenas rituais de enforcamento, crucificacao e ou- tras formas de suspensao nas novelas de Masoch.”!* Segundo Deleuze, o escritor austriaco “tem um jeito especial de dessexualizar 0 amor e, ao mesmo tem- po, sexualizar toda a historia da humanidade”"’, A novela mais famosa de Masoch, Vénus das Peles, fala de um mundo de luxtria, fantasia, acoites, contratos e, €claro, peles. O brilhante ensaio de Deleuze Cold- ness and Cruelty [Frieza e Crueldade] comeca por comparar as obras de Sade e Masoch, construindo cuidadosamente uma argumentacdo para reinterpre- tar o papel de Masoch em nossa concepgao atual de sadomasoquismo. Diversos psicanalistas apontaram também a ineri- ~2l necessidade de controle demonstrada pelos ma- soquistas: 29 ‘Sapoaas O masoquista é um revoluciondrio da auto-submissdo. A pele de carneiro que ele usa esconde um lobo. Sua ren- dicdo implica desafio; sua submissdo, oposicdo. Sob sua suavidade encontra-se dureza; sob sua subserviéncia ocul- ta-se a rebeldia.” Theodor Reik, “Masochism in Modern Man” [Masoquismo no Homem Moderno] (1957) Como criador da representacdo, 0 masoquista nunca € ver- dadeiramente uma vitima, porque na reatidade nunca abre mao do controle, e sob esse ponto de vista toda a situagdo serve apenas para retratar um sofrimento de mentira.'® Robert J. Stoller, “Perversion” ({Perversao] (1976) O masoquismo busca apenas certas formas especificas de sofrimento e humilhacdo, variaveis de um individuo para outro. Assim que atingem intensidade maior ou assumem forma diferente, elas provocam as reacoes habituais de medo e dor’? R. M. Loewenstein, “A Contribution to the Psychoanalytic Theory of Masochism” {Uma Contribuicao para a Teoria Psicanalitica de Masoquismo] (1956) 30 A Proressona nz Podemos ver claramente essa necessidade de con- crole no controvertido filme A Professora de Piano 2001), baseado no citado romance da escritora aus- criaca Elfriede Jelinek. A PROFESSORA DE PIANO O filme enfoca uma mulher sadomasoquista e seu atormentado mundo interior. Erika, filha de meia-ida- de (em brilhante interpretagao de Isabelle Huppert), é uma talentosa e ilustre professora do Conservatorio de Viena, onde € muito respeitada pela atitude rigida, por vezes até insensivel e mordaz, em relagdo a seus alunos. Ela vive uma relacao simbiotica de odio e do- minacao intensos com a mae, que, impiedosa, sufocou :ndiretamente a filha por causa da propria insatisfa- :40. Numa das cenas iniciais, a pianista se refugia no oanheiro, esquivando-se do comportamento invasivo =a mae. Tira uma lamina de barbear da bolsa, senta- sz na beira da banheira e, com um espelho na mao, <\amina atenta a parte interna das suas coxas e fere = genitais. Sente alivio e gratificacdo sexual enquanto sangue pinga, manchando a banheira e suas per- 2: Ao voltar a sala de jantar e reencontrar a mae, é 31 repreendida pelo sangue que corre por uma de suas pernas, imediatamente interpretado como causa do seu mau humor — ou Seja, a menstruacdo. Vemo-nos ai no “verdadeiro mundo feminino”, em que os sinais fisicos e biologicos de feminilidade sao depreciados ¢€ a maternidade é exposta no que tem de mais abusivo e explorador. Mas 0 que dizer das relagdes com os homens? Logo sabemos que seu pai vive num hospicio. De certo modo, Erika havia sido forcada a tomar o lugar do pai, pois dorme no quarto da mae, ao lado dela, em camas juntas. Por vezes ela age como arremedo de um “macho” perturbado, freqtientando com grande alarde uma casa de exibicéo de videos pornograficos, onde compete com outros homens para assistir a cenas de sexo explicito. Em outras ocasides, fica “espiando”, observando “vitimas” incautas em cinemas de drive- in. Em uma dessas ocasides, enquanto espia e observa, ela é surpreendida em pleno orgasmo por uma vitima indignada. Vemos um mundo de perverséo multifa- cetado, primeiro nas investidas sadicas de Erika ao préprio corpo, depois no seu comportamento voyeu- ristico/exibicionista. 32 Os aspectos chocantes da sexualidade dessa mu- “her fazem contraponto com a maravilhosa musica executada no conservatorio, onde ela demonstra gran- de controle ao exigir dos alunos interpretacdes impe- rocura compreender, e nao apenas rotular, uma de saas pacientes que € praticante de sadomasoquismo at SanoMASICUISMG grave. Foucault, seguidor fiel do Marques de Sade, foi também um escritor radical que falava da sociedade e de suas contradigdes. Teve, como Sade, momentos terriveis de encarceramento ao longo da vida. Foucault tinha profunda fascinagao pelo sadoma- soquismo consensual. Durante os anos 1970, ele pro- prio mergulhou nesse mundo ao visitar os ambientes gays na California. Embora se recusasse a admitir a propria dor emocional, nao deixava de ter recorda- cées, como 6 evidente no material autobiografico de suas obras. Certa ocasiao, seu pai o forgou a presen- ciar uma amputacao. Strenger pondera: O que se terd passado na mente da crianga que viu tama- nha crueldade? Seu pai era médico, e Michel deve ter se sentido ameacado por ter um pai tao insensivel a psique do filho, ainda mais porque ele deve ter concluido que o proprio pai é que cortava a perna das pessoas. Isso me fez recordar uma cena de Familia Soprano, série de TV que retrata a mafia americana. Ao mutilar um dos seus companheiros, Tony, o personagem prin- cipal, revive em flashback uma cena na qual seu pai. 42 =m agougueiro, decepa os bracos de uma pessoa que se cecusara a cumprir as exigéncias da sua chantagem. A celagao com a angustia da castracdo é inevitavel. i ae ao meu paciente, sua infancia carac- cerizou-se por um ambiente terrivel e de grande pri- vacao. Ele sofreu muita violéncia e nao pdde se de- cender. Nao conseguia analisar a relagao entre a dor insuportavel do passado e sua condicao presente. Era vez disso, inventara uma crenca em sua liberdade, ja que era um participante “ativo” da dor infligida. Era mais facil enfrentar a repeticdo daquelas experiéncias, sobre as quais tinha certo controle, do que enfren- tar todo um processo de psicoterapia, durante o qual mergulharia numa situagao desconhecida, de intenso sofrimento emocional. A necessidade de ser obser- -ado por outros — as caracteristicas voyeuristicas e xibicionistas correlatas — existe muitas vezes em pes- soas que, quando criancas, presenciaram violéncia em -asa. Elas se tornam, agora, protagonistas numa arena =yerta, exibindo sua dor emocional de forma sistema- “ca, organizada e maniaca. Se nés, psicoterapeutas, nos limitarmos a diag- ~:sticar uma patologia e rotular o paciente a fim de encobrir nossa incapacidade de compreender de fato © que ocorre internamente nos praticantes de sado- masoquismo, nao estaremos simplificando fenome- nos extremamente complexos? Nao ha duvida de que as praticas sadomasoquistas parecem ser tentativas inttteis de cobrir feridas antigas que continuam aber- tas. O problema é nao sabermos se somos capazes, com toda a sinceridade, de ajudar esse individuo a examinar os detalhes complexos da sua vida sem nos abalarmos com a aflicao de nao sermos capazes de compreendé-lo plenamente. Mas temos de falar da nossa aflicéo, a aflicao que nds, clinicos, sentimos quando reconhecemos estar confusos e impotentes para compreender e “curar” todos os males. Sera que aquelas pessoas tomam a decisao correta ao recusar tratamento, uma vez que isso so intensificara cada vez mais a dor? Sera que os pacientes sentem-se in- ternamente capazes de se langar numa terapia, na qual o sofrimento emocional tomara o lugar do so- frimento fisico sexualizado? Sabemos que qualquer tentativa de tratamento rapido e direto esta fora de questao. Contribuiria apenas para que os pacientes revivessem aquelas situacdes. 44 NEGACAO E FATALIDADE NO SADOMASOQUISMO Vocé esta tentando concluir que eu sat e matei alguém os- tensivamente [...] ninguém passou por maus pedacos. A diversdo virou uma fatalidade.”* Fred West Ao longo de todo o meu trabalho clinico com pes- soas que se envolvem em sadomasoquismo, constatei com freqtiéncia um forte grau de negacao. Alguns sa- domasoquistas declarados recusam-se a admitir que seus atos possam provocar algum mal, emocional ou fisico, nos que participam dessas atividades. Apenas em certos casos intrataveis de pedofilia encontrei esse mecanismo de defesa na mesma proporg¢ao. Os sado- masoquistas séo categoricos em afirmar que sentem uma sensacao de liberdade que lhes permite escolher © que “querem” fazer. Essa sensacao de liberdade se confirma tanto interna quanto externamente, sobre- cudo por causa do claro consenso nas atividades. E -mportante lembrar que a desumanizagao, uma das caracteristicas mais freqiientes das perversdes, tam- ‘Sanaa bém existe no sadomasoquismo. Em The Heart of Man {O Coraca Homem] (1964), Erich Fromm cor- relaciona d ma muito pungente “desumanizacao” e “liberdade” quando explica que o sadismo tem por objetivo “transformar o homem em coisa, 0 animado em inanimado, de modo que, por meio de um con- trole completo e absoluto, o que é vivo perde uma qualidade essencial da vida — a liberdade””’. Uma ocorréncia freqiente nas perversdes € 0 fato de que o individuo sabe que “esta sendo dominado” e tenta impedir esse ato errado, mas em geral fracassa e se entrega. Mais tarde, ele sente vergonha avassalado- ra, desprezo por si mesmo e depressao. Ocorre, assim, Ee) circuto vicioso: a pessoa atormentada por uma perversdo entrega-se para aliviar a profunda sensacdo de angustia sexual; com isso, consegue apenas voltar a aflicao anterior de aumentar a angustia sexual, a qual, depois de atenuada, mais uma vez exige a execucao do mesmo ato bizarro e “ilogico”.** No circulo vicioso de vergonha, aversdo a si mesmo e depressdo existe um desejo inconsciente de humilhar ou machucar outra pessoa. Os sadomasoquistas negam esse conhecido ci- clo de sentimentos. 46, -\suposta natureza “consensual” do sadomasoquis- ~io reforga a falta de motivagao para a mudanga, o que =ficulta o convencimento do individuo com qualquer -ecurso terapéutico. Isso o impede de procurar ajuda =rofissional ou de submeter-se a uma terapia. Poucos se disp6em a fazer terapia e, quando o fazem, em geral rogem assustados sob o pretexto de que nao precisam dela, pois os sadomasoquistas agiriam por consenti- mento mutuo. No sadomasoquismo, esse “acordo mutuo” entre as partes constitui o ponto central de um relacionamen- to em que o mais importante € assumir o controle. ambos os lados dividem a dominacdo e existe a in- versdo de papéis, mas apenas com o consentimento racito do(s) outro(s). A ilusao de ter pleno dominio é essencial. As vezes ocorrem acidentes fatais. Vamos exempli- ricar essa triste ocorréncia com um caso clinico. Um casal heterossexual planejou um “jogo” complexo. A caulher seria acorrentada na cama, e o homem come- caria a sufocd-la com um lenco de seda (a propdsito, o n¢o era oO unico presente que a mae dele dera 4 mu- -ner). Quando ela percebesse que estava prestes a ficar 47 sem ar, ele soltaria 0 laco e a libertaria. Ambos atingi- tiam 0 orgasmo ao mesmo tempo. Para arrematar, se- ria necessdrio que cada um olhasse o outro nos olhos durante todo 0 ato, o que Comprovaria a conflan¢a mu- tua. Em certa ocasiao, o homem nao conseguiu parar, ainda que quisesse, conforme afirmou. Nao conseguiu “largar” porque “viu” e “sentiu” nos olhos da mulher que ela estava aterrorizada. Ficou aturdido com o que interpretou ser falta de confianca dela, 0 que o levou a “perdé-la também” e assim provocar sua “morte aciden- tal”. Ele fcou profundamente arrasado com a morte da mulher e cumpriu todos os procedimentos judiciais em profunda depressao. Sentia-se incapaz de acreditar que tivesse de fato matado a mulher. Esse caso ilustra também uma questao importante, de que atos sadomasoquistas como esse, executados com “consentimento mutuo” dos que participam, sao c ulsivos € repetitivos e, portanto, devem implicar sedrevivencis do parceiro. A morte, quando aconte- ce, € quase sempre acidental, uma vez que jamais pas- sata pela cabeca dos participantes. Invariavelmente 0 parceiro sobrevivente, incrédulo e cheio de aflicdo e tristeza, declara que “era sO um jogo”. 48 SEMELHANCAS E DIFERENCAS ENTRE U SADOMASOQUISMO E A VIOLENCIA DOMESTICA Em vista desses casos, considero relevante compa- rar 0 comportamento sadomasoquista com a violéncia doméstica, na qual o controle e a seguranga em geral nao existem. Um importante fenédmeno sociocultural é manifestar as emogoes basicas proprias de cada sexo, tais como a raiva ou o choro. Em outras palavras, elas sao “indicadas ou contra-indicadas conforme 0 sexo”, Por exemplo, os homens sao estimulados a expressar raiva, associada a poder, autoridade e auto-afirmacao. Ja as mulheres nao devem demonstrar raiva, senao afastariam os homens, mas podem chorar, pois mos- tram vulnerabilidade, fragilidade e fraqueza ~ e talvez consigam assim o que querem dos homens. Esta na moda encorajar os homens a chorar, mas duvido que uma campanha para as mulheres manifestarem raiva tivesse boa acolhida. Ao contrario, quando as mulhe- res gritam ou demonstram raiva, os homens tratam logo de fugir. A mulher e mae que se sente incapaz de expressar sua frustracao, impoténcia e desamparo por saber que seu companheiro se alastara parece nao ter 49 alternativa a ndo ser expressar esses sentimentos ne- gativos com os filhos, que se acham a sua mercé. Isso significa que os filhos sao as Unicas pessoas que nao se afastara mae se ela extravasar a raiva.>’ Esse pode vira se Fed cir passo de um ciclo de violéncia fisi- ca ou sexual. Outra opcao das mulheres é internalizar a raiva, o que induz uma depressao maior, ou nutrir sonhos de vinganca. As mulheres perderao a batalha de saida se demonstrarem aborrecimento ou irritacao, sobretudo se esses sentimentos estiverem acompanha- dos de prepoténcia ou dominacao, que nado sao nem esperadas nem toleradas nelas. E muito provavel que as jovens que tiveram proble- mas emocionais com pouca idade e nao conseguiram se sentir autoconfiantes na adolescéncia tornem-se cada vez mais insatisfeitas consigo mesmas ou com o proprio corpo. Isso se manifesta com freqtiéncia du- rante a adolescéncia por meio de disturbios alimen- tares, como anorexia ou bulimia, ou promiscuidade, abuso de drogas, no habito de cortar-se e queimar-se. Esses tracos sao os precursores de altitudes abusivas com os outros e sao parte do perfil psicolégico das mulheres violentas. 50 & Dire Beare 9 Sanus cin Domesnics A ambivaléncia com relacao ao corpo feminino e a mae encontra-se no amago do ciclo de violéncia. Quando crescem, essas jovens podem ter enormes dif™Yldades internas de conseguir relacionamentos saudaveis, satisfatorios e maduros. Dai a se envol- verem com homens e mulheres com comportamen- to sadomasoquista é muito facil. E muito dificil se libertarem deles. Caso consigam, elas simplesmente iniciam um novo relacionamento, que logo adquire as caracteristicas do anterior. Isso ocorre porque o parceiro torturador representa uma parte interna da propria mulher — 0 parceiro personifica 0 odio que ela tem por si mesma. Agora, € provavel que a mulher nado mais precise alacar 0 proprio corpo de varias formas, pois o parcei- ro assumiu inconscientemente esse papel. Uma rela- cao heterossexual com caracteristicas sadicas torna-se regra. Embora na superficie a mulher seja submissa, complacente e passiva, a vinganca vem sendo nutrida zm devaneios, sonhos e fantasias. Muitas vezes, sur- sem sonhos de gravidez com conotacées diversas: por exemplo, ficar gravida para se vingar do homem que

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