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sexualidade - iremos explicar, por exemplo, certas constantes das “ima- ginagdes” poéticas (0 “geolégico” em Rimbaud, a fluidez da 4gua em Poe}, ou simplesmente os gostos de cada um, esses famosos gostos que ndo se discutem, como se costuma dizer, sem levar em conta que eles simbolizam sua maneira toda uma “Weltanschauung”, toda uma esco- tha de ser, e que provém dai a evidéncia que tais gostos tem aos olhos de quem 08 adota. Convém, portanto, que esbocemos aqui essa tarefa Particular da psicandlise existencial, a titulo de sugestao para investiga- Ges ulteriores. Pois néo é em nivel do gosto pelo doce ou amargo etc., que a escolha livre mostrase irredutivel, e sim em nivel da escolha do aspecto do ser que se revela através e pelo doce, amargo etc. tm DA QUALIDADE COMO REVELADORA. DO SER Trata-se, simplesmente, de tentar uma psicanslise das coisas. Foi © que G. Bachelard ensaiou com muito talento em seu livro L’Eau et les réves. Ha grandes promessas nesta obra; em particular, uma verdadeira descoberta, a da “imaginacao material”. Na verdade, 0 termo imagina- do no é conveniente, ou tampouco esta tentativa de buscar por de- tras das coisas ¢ de sua matéria gelatinosa, s6lida ou fluida as “imagens” que projetariamos nelas. Como demonstramos em outro lugar”, a per- cep¢ao nada tem em comum com a imaginacao: ao contrario, ambas sao inversas e mutuamente excludentes. Perceber ndo 6 de forma al- guma reunir imagens com sensacGes: essa tese, de origem associacio- nista, deve ser inteiramente descartada; e, por conseguinte, a psicanali- se nao tem de investigar imagens, e sim explicar sentidos realmente pertencentes s coisas. Sem davida alguma, o sentido “humano” do pegajoso, do viscoso etc., nao pertence ao Em-si. Mas, como vimos, tampouco Ihe pertencem as potencialidades, e, todavia, so elas que constituem 0 mundo. As significagdes materiais, 0 sentido humano dos cumes nevados, do granuloso, do apertado, do gorduroso etc,, s80 téo 77.0 imaginitio, 1940. 732 reais como 0 mundo, nem mais, nem menos, e vir ao mundo € surgit no meio dessas significagdes. Mas, sem diivida, trata-se de uma simples diferenca de terminologia; e Bachelard parece mais ousado, revelando © fundo de seu pensamento, quando, em seus cursos, fala de psicanali sar as plantas, ou quando intitula uma de suas obras Psychanalyse du Feu. Tratase, com efeito, de aplicar, nao ao sujeito, mas as coisas, um método de decifracdo objetiva que nao pressupde qualquer remissso prévia ao sujeito. Por exemplo, quando quero determinar a significagao objetiva da neve, constato, por exemplo, que ela se funde a determina- das temperaturas e que esta fusdo da neve constitui sua morte. Trata-se, simplesmente, de uma constatagao objetiva. E, quando quero determi- nar a significagio de tal fusdo, 6 necessério que eu a compare a outros objetos situados em outras regides de existéncia, mas igualmente a ob- jetivos, igualmente transcendentes ~ ideias, amizades, pessoas -, a res- peito das quais também posso dizer que se fundem”; sem divida, obte- riamos desse modo certa relacao vinculando enire si determinadas for mas de ser. A comparaco entre a neve fundente e certas outras fusdes mais misteriosas (por exemplo, 0 contetido de alguns mitos antigos: 0 alfaiate dos contos de Grimm pega uma fatia de queijo, finge que & uma pedra e a aperta com tanta forga que 0 soro do leite goteja; seus assistentes supdem que ele fez gotejar uma pedra, que espremeu o liquide) podem nos informar a respeito de uma liquidez secreta dos sdlidos, no sentido em que Audiberti, bem inspirado, falou da negrura secreta do leite. Esta liquidez, que devera ser comparada, por sua vez, 20 suco de frutas e a0 sangue humano ~ que é também algo como nossa liquidez secreta e vital ~ nos remete a certa possibilidade perma- nente do compacto granuloso (designando certa qualidade de ser do Enrsi puro) de metamorfosearse em fluidez homogénea e indliferencia- da (outra qualidade de ser do Em-si puro). E captamos aqui, desde sua origem e com toda sua significaco ontolégica, a antinomia do conti- nuo e do descontinuo, polos femininos e masculinos do mundo, cujo desenrolar dialético iremos observar subsequentemente até a teoria dos quanta e a mecanica ondulatéria. Assim, poderemos chegar a decifrar 0 * Sartre cta quatro exemplos inraduzivels: “O dinheiro fondese nas minhas mos; estou nadando fundlome na agua certas ideas ~ no sentido de sigiicagdes socials objetivas - crescem come “bola de neve" e outras se fandemy como ele emagrecey, como ele se fundiu®. Em nota de rodapé, cita também a *moeda fundente” de Dalaier(N. do). 733 sentido secreto da neve, que constitui um sentido ontoldgico. Mas, em tudo isso, onde esté a relacdo com o subjetivo ou a imaginacao? Tudo que fizemos foi comparar estruturas rigorosamente objetivas ¢ formular a hipétese que pode unificélas e agrup4las. Dai por que, neste caso, a psicanélise recai sobre as coisas em si mesmo, e nao sobre os homens. Também dai por que eu ficaria mais desconfiado do que Bachelard, neste nivel, em recorrer as imaginacdes materiais dos poetas, sejam eles Lautréamont, Rimbaud ou Poe. Decerto, é fascinante investigar 0 “Bes- tidrio de Lautréamont”. Porém, com efeito, se nesta investigacao retor narmos ao subjetivo, s6 itemos encontrar resultados verdadeiramente significativos caso consideremos Lautréamont em sua preferéncia origi naria e pura pela animalidade” e determinemos previamente o sentido objetivo da animalidade. Se, com efeito, Lautréamont é 0 que prefere, 6 necessario saber previamente a natureza daquilo que prefere. E, por certo, bem sabemos que ele “colocara” na animalidade algo distinto e mais rico do que eu coloco. Mas esses enriquecimentos subjetivos que nos informam sobre Lautréamont estdo polarizados pela estrutura obje- tiva da animalidade. Eis por que a psicandlise existencial de Lautréa- mont pressupée uma decifragao do sentido objetivo do animal. Igual mente, h4 muito tempo penso em estabelecer um lapidério de Rim- baud. Mas, que sentido teria isso se nao houvéssemos estabelecido previamente a significagao do geolégico em geral? Porém, dirse-4, uma significa¢o pressupde 0 homem. Nao discordamos. $6 que o homem, sendo transcendéncia, estabelece o significante pelo seu proprio surgi mento, € 0 significante, devido a estrutura mesmo da transcendéncia, & uma remissao a outros transcendentes que pode ser decifrada sem ne- cessidade de recurso a subjetividade que a estabeleceu. A energia po- tencial de um corpo é uma qualidade objetiva desse corpo que deve ser calculada objetivamente levando-se em conta unicamente circuns- tancias objetivas. E, todavia, esta energia s6 pode vir habitar um corpo em um mundo cuja aparigao é correlata a de um Paras. [gualmente, iremos descobrir por uma psicandlise rigorosamente objetiva outras potencialidades mais profundamente enraizadas na matéria das coisas ¢ que permanecem inteiramente transcendentes, ainda que correspon- dam a uma escolha ainda mais fundamental da realidade-humana, uma escolha do ser. 78. De conta animalidsde sxalamente 0 que Schelerdenomina os valores vias, 734 Isso nos leva a precisar 0 segundo ponto em que diferimos de Bachelard. E verdade, com efeito, que toda psicanalise deve ter seus princfpios a priori. Em particular, deve saber 0 que procura, sendo como poderia encontrélo? Mas, como o objetivo de sua investigacio néo poderia ser estabelecido em si mesmo pela psicanilise, sob pena de circulo vicioso, preciso que seja objeto de um postulado - quer o busquemos na experiéncia, quer 0 estabelecamos por meio de alguma outra disciplina. A libido freudiana 6, evidentemente, um simples postu- lado; a vontade de poder adleriana parece uma generalizagio sem mé- todo dos dados empfricos ~ e decerto € preciso que nao tenha método, jd que ela é que permite lancar as bases de um método psicanalitico. Bachelard parece reportar-se a seus antecessores; 0 postulado da sexua- lidade parece dominar suas investigaces; em outras ocasides, somos remetidos a Morte, ao traumatismo do nascimento, a vontade de poder; em suma, sua psicandlise parece mais segura de seu método do que de seus principios, e sem divida conta com os resultados para esclarecé-a a respeito do objetivo preciso de sua investigacao. Mas isso é botar 0 carro adiante dos bois: jamais as consequéncias permitirao estabelecer @ principio, assim como a soma dos modos finitos nao permitira captar a substancia. Portanto, parece-‘nos ser necessario abandonar aqui esses principios empiricos ou esses postulados que fariam do homem, a prio- ri, uma sexualidade ou uma vontade de poder, ¢ também ser conveni- ente estabelecer rigorosamente 0 objetivo da psicanélise a partir da ontologia. Foi 0 que tentamos no paragrafo precedente, Vimos que a realidade humana, muito antes de poder ser descrita como libido ou vontade de poder, é escolha de ser, seja diretamente, seja por apropria~ G0 do mundo. E vimos que - quando a escolha recai sobre a apropria- Gio - cada coisa é escolhida, em Giltima andlise, nao por seu potent sexual, mas conforme a maneira como entrega o set, a maneira pela qual o ser aflora em sua superficie. Uma psicandlise das coisas e de sua matéria, portanto, deve preocuparse antes de tudo em estabe- lecer 0 modo em que cada coisa constitui o simbolo objetivo do ser ea relacio entre a realidade humana e este ser. Nao negamos que seja preciso descobrir depois todo um simbolismo sexual na nature- za, mas trata-se de um estrato secundério e redutivel que pressupde uma psicandlise das estruturas pré-sexuais. Assim, considerariamos 0 estudo de Bachelard sobre a Agua, rico em vis6es engenhosas e pro- fundas, como um conjunto de sugestdes, uma colegio preciosa de 735 materiais que deveriam ser utilizados agora por uma psicandlise consci- ente de seus principios. © que a ontologia pode ensinar a psicandlise, com efeito, € an- tes de tudo a origem verdadeira das significacdes das coisas e sua rela- cdo verdadeira com a realidade-humana. S6 ela, com efeito, pode situar- se no plano da transcendéncia e captar com um Gnico olhar o ser-no- mundo com seus dois termos, porque sé ela se situa originariamente na perspectiva do cogito. £ ainda a ideia de facticidade e a de situagao que irZo nos permitir compreender o simbolismo existencial das coisas. Vi- mos, com efeito, que é teoricamente possivel ¢ praticamente imposst- vel distinguir entre a facticidade e o projeto que a constitui em situacao. Tal constatacio deve nos ser ditil aqui: com efeito, vimos nao ser neces- sario crer que 0 isto, na exterioridade de indiferenca de seu ser e inde- pendentemente do surgimento de um Parasi, tenha qualquer significa- do que seja. Por certo, sua qualidade, como vimos, nada mais é do que seu ser. © amarelo do limao, diziamos, nao € um modo subjetivo de apreensao do limao: é 0 proprio limao. Mostramos também” que o limao inteiro esté estendido através de suas qualidades e que cada uma destas se estende através das outras; foi jusiamente o que denomina- mos isto. Cada qualidade do ser é todo o ser; a presenga de sua con- tingéncia absoluta, é sua irredutibilidade de indiferenca, Todavia, desde nossa segunda parte, insistimos a respeito da inseparabilidade, na pro- pria qualidade, do projeto e da facticidade. Com efeito, escrevemos: “Para que haja qualidade, é preciso que haja ser para um nada que, por natureza, no seja ser..; a qualidade 6 o ser inteiro desvelando-se nos limites do ha”. Assim, desde a origem, nao pudemos atribuir a significa ao da qualidade ao ser Emssi, pois, para que haja qualidades, é neces- sirio jo “ha”, ou seja, a mediacao nadificadora do Para-si. Mas com- preendemos facilmente, a partir dessas observages, que a significacio da qualidade indica, por sua vez, algo como um reforco do “ha”, posto ue, justamente, nele nos apoiamos para transcender 0 “ha” rumo ao ser tal qual 6 absolutamente e Em-si. Nesse sentido, em cada apreensio de qualidade ha um esforgo metafisico para escapar a nossa condicao, para perfurar a escama de nada do “ha” e penetrar até 0 Emsi puro. Mas s6 podemos, evidentemente, captar a qualidade como simbolo de 79, Segunda Parte, capitulo 3, § I 736 um ser que nos escapa totalmente, embora esteja totalmente ai, a nos- sa frente; em resumo, s6 podemos fazer funcionar o ser revelado como simbolo do ser Emi. Significa, justamente, que se constitui uma nova estrutura do “ha”, a camada significativa, embora esta camada se revele na unidade absoluta de um mesmo projeto fundamental. € 0 que cha- maremos de teor metafisico de toda revelagao intuitiva do ser; e é isso, precisamente, que devemos alcancar e desvelar pela psicandlise. Qual é © teor metafisico do amarelo, do vermelho, do liso, do enrugado? Qual € - questéo a ser colocada depois dessas questdes elementares — 0 Coeficiente metafisico do limo, da agua, do azeite etc.? Quantos pro- blemas a psicanélise deve resolver se pretende um dia compreender por que Pedro gosta de laranjas e tem horror a gua, por que saboreia tomates com prazer e se recusa a comer vagens, por que vomita se for obrigado a engolir ostras ou ovos crus. Também mostramos, contudo, 0 erro que seria acreditar, por exemplo, que “projetamos” nossas disposicées afetivas sobre a coisa, para ilumindda ou colorila. Em primeiro lugar, com efeito, vimos ha muito que um sentimento nao é, de forma alguma, uma disposicao terior, mas uma relacdo objetivadora e transcendente que indica a si mesmo, pelo seu objeto, aquilo que & Mas nao é tudo: um exemplo os mostrar que a explicacao pela proje¢ao (sentido do famoso “uma paisagem é um estado d’alma”) constitui uma peticao de principio. To- memos, por exemplo, esta qualidade em particular que denominamos 0 viscoso. Decerto, significa para 0 adulto europeu uma multidio de ca- racteres humanos e morais que podem ser reduzidos facilmente a rela~ Goes de ser. Um aperto de mao é viscoso, um sorriso é viscoso, um pensamento ou um sentimento podem ser viscosos. A opiniao comum sustenta que eu tive previamente a experiéncia de certas condutas e certas atitudes morais que me desagradam e condeno, e que, por outro lado, tenho a intuigdo sensivel do viscoso. Posteriormente, eu teria es- tabelecido uma conexio entre tais sentimentos ¢ a viscosidade, e 0 viscoso funcionaria como simbolo de toda uma classe de sentimentos e atitudes humanas. Portanto, eu teria enriquecido o viscoso projetando sobre ele meu saber acerca desta categoria humana de condutas. Po- rém, como aceitar esta explicacao por projecdo? Se supomos ter cap- tado primeiro os sentimentos como qualidades psiquicas puras, de que modo poderiamos captar sua relago com o viscoso? O sentimento captado em sua pureza qualitativa sé poderia revelarse como certa 737 disposigao puramente inextensa, censuravel por sua relacdo com certos valores e determinadas consequéncias; em caso algum podera “formar uma imagem”, a menos que a imagem tenha sido dada primeiro. E, por outro lado, se 0 viscoso nao estiver originariamente caregado de um sentido afetivo, se somente aparecer como certa qualidade material, nao se vé como poderia ser jamais eleito para representante simbélico de certas unidades psiquicas. Em suma, para estabelecer clara e consci- entemente uma relaco simbdlica entre a viscosidade e a baixeza pega- josa de certos individuos, seria necessério que captéssemos jé a baixeza na viscosidade e a viscosidade em certas baixezas. Segue-se, pois, que a explicacio por projecao nada explica, j4 que pressupde o que preten- dia explicar. Além disso, mesmo livrando-se desta objegio de principio, iria deparar com outra, proveniente da experiéncia e nao menos grave: a explicacao por projecio, com efeito, subentende que o sujeito proje- tante tenha chegado pela experiéncia e a analise a certo conhecimento da estrutura e dos efeitos das atitudes que ira classificar como viscosas. Nesta concepcao, com efeito, 0 recurso a viscosidade de modo algum enriquece, como um conhecimento, nossa experiéncia da baixeza hu- mana; quando muito, serve de unidade tematica, de rubrica picturial a conhecimentos ja adquiridos. Por outro lado, a viscosidade propriamen- te dita, e considerada em estado isolado, poder parecer-nos nociva na Pratica (pois as substncias viscosas grudam nas mos e nas roupas, @ também mancham}, mas nao repugnante. Com efeito, 0 asco que pro- voca s6 poderia ser explicado pela contaminacao desta qualidade fisica com certas qualidades morais. Portanto, deveria haver algo como uma aprendizagem do valor simbélico do viscoso. Mas a observaco nos ensina que as criangas pequenas demonstram repulsa diante do visco- 50, como se este j4 estivesse contaminado pelo psiqui nos ensina também que as criancas, desde que aprendem a falar, compreendem 0 valor das palavras “delicado”, “baixo” etc,, aplicadas a descrigéo de sentimentos. Tudo ocorre como se surgissemos em um universo onde 08 sentimentos € os atos estivessem carregados de materialidade, os- tentassem uma textura substancial, fossem verdadeiramente delicados, chatos, viscosos, baixos, elevados etc., e onde as substdncias materiais tivessem originariamente uma significacio psiquica que as fizessem repugnantes, horriveis, atraentes etc. Nenhuma explicagdo por projecso ou por analogia é admissivel neste caso. E, para resumir, 6 impossivel extrair 0 valor de simbolo psiquico do viscoso partindo da qualidade em bruto do “isto”, bem como é impossivel projetar esta significagao 738 sobre 0 isto a partir de um conhecimento das 2titudes. psiquicas consi- deradas. Entéo, como conceber esta imensa simbélica universal que se traduz pelas nossas repugnancias, nossos ddios e simpatias, nossas atragdes por objetos cuja materialidade deveria, por principio, manter- se ndo significante? Para progredirmos neste estudo, é preciso abando- nar certo nimero de postulados. Em particular, nao devemos postular j a priori que a atribuico da viscosidade a tal ou qual sentimento seja apenas uma imagem e ndo um conhecimento; devemos também recu- sar a admitir, antes de informacao mais ampla, que seja o psiquico o que permite informar simbolicamente a matéria psiquica e que haja prioridade de nossa experiéncia de baixeza humana sobre a captacao do "viscoso” como significante. Voltemos ao projeto original. £ projeto de apropriacao. Compele 0 viscoso, portanto, a revelar 0 seu ser; o surgimento do Parasi no ser, sendo apropriador, faz com que o viscoso percebido seja “viscoso a possuir”, ou seja, o vinculo originatio entre eu e 0 viscoso é o fato de que eu projeto ser fundamento de seu ser, na medida em que 0 viscoso constitui eu mesmo idealmente. Desde a origem, portanto, 0 viscoso aparece como um possivel eu-mesmo a fundamentar; desde a origem & psiquizado (psychisé). Nao significa, de modo algum, que eu o dote de uma alma, & maneira do animismo primitivo, nem de virtudes metafisi- cas, mas somente que sua propria materialidade revela-se a mim como dotada de uma significagao psiquica, a qual, além disso, identifica-se com 0 valor simbélico que o viscoso tem em relacao ao ser Emi. Esta maneira apropriadora de entregar ao viscoso todas as suas significacées pode ser considerada um a priori formal, embora constitua livre projeto € se identifique com o proprio ser do Parasi; pois, com efeito, nao de- pende originariamente da maneira de ser do viscoso, mas s6 de seu ser- ai em bruto, de sua pura existéncia encontrada; seria semelhante para qualquer outro encontro, na medida em que é simples projeto de apro- priagao, em que nao se distingue em nada do puro “ha”, e, conforme a encaremos de um modo ou de outro, é pura liberdade ou puro nada. ‘Mas precisamente nos limites desse projeto apropriador que o visco- 50 se revela ¢ desenvolve sua viscosidade. Portanto, tal viscosidade constitui jé - desde a aparicao primordial do viscoso ~ resposta a uma pergunta, constitui ja dom de si 0 viscoso aparece ja como esboco de uma fusdo do mundo comigo; e 0 que me ensina do mundo, seu caré- ter de ventosa que me aspira, j4 constitui uma réplica a uma interroga- 739 co concreta: responde com seu proprio ser, com sua maneira de ser, com toda sua matéria. E a resposta que da € plenamente adaptada a questo e, a0 mesmo tempo, opaca e indecifravel, posto que rica de toda sua indizivel materialidade. € clara, na medida em que se adapta exatamente a pergunta*: 0 viscoso se deixa captar como aquilo que me falta, permite ser apalpado por uma investigacZo apropriadora; € a tal esbogo de apropriacdo que deixa revelar sua viscosidade. € opaca por- que, precisamente, se a forma significant é despertada no viscoso pelo Parasi, € com toda sua viscosidade que ela vem preenchéla. Devolve- nos, portanto, uma significacdo plena e densa, e esta significacao nos entrega o ser-fmsi, na medida em que o viscoso é presentemente aq) lo que manifesta o mundo, e 0 esbogo de nés mesmos, na medida em que a apropriacdo delineia algo como que um ato fundador do viscoso. O que se volta para nés entdo, como uma qualidade objetiva, é uma natureza nova, nem material (¢ fisica) nem psiquica, mas que transcen- de a oposicao do psiquico e do fisico, revelando-se a nds como a ex- pressao ontolégica do mundo inteiro, ou seja, uma natureza que se oferece como rubrica para classificar todos os istos do mundo, trate-se de organizacdes materiais ou de transcendéncias-transcendidas. Signifi- ca que a apreensao do viscoso como tal criou para o Emsi do mundo, 20 mesmo tempo, uma maneira particular de se mostrar; maneira essa que simboliza o ser em seus préprios termos; ou seja, enquanto perdu- ra 0 contato com 0 viscoso, tudo se passa para nds como se a viscosi- dade fosse 0 sentido do mundo inteiro, isto &, 0 Gnico modo de ser do ser-Emsi, da mesma forma como, para os primitivos do cla do lagarto, todos os objetos sao lagartos. Qual pode ser, no exemplo escolhido, 0 modo de ser simbolizado pelo viscoso? Vejo, em primeiro lugar, que & a homogeneidade e a imitacdo da liquidez. Uma substancia viscosa, como o piche, € um fluido aberrante. Parece-nos, em primeiro lugar, Manifestar 0 ser por toda parte fugidio e por toda parte semelhante a si mesmo, ser que escapa por todos os lados e sobre 0 qual, todavia, € possivel flutuar, ser sem perigo e sem meméria que se converte eter: namente em si mesmo, sobre o qual ndo se deixa marcas ¢ que ndo poderia nos marcar, ser que desliza e sobre o qual se desliza, ser que pode ser possuido pelo deslizamento (bote, lancha, esqui aquatico etc.) © que nao possui jamais, j4 que rola sob nés, ser que é eternidade e * No orginal, por erat, lsse “resposta”(N. dT), 740 temporalidade infinita, por ser mudanga perpétua sem nada que mude, € que, por esta sintese de eternidade e temporalidade, melhor simboli- za uma fusdo possivel do Parasi como pura temporalidade com 0 Em-si como eteridade pura. Mas, em seguida, 0 viscoso se revela essencial- mente ambiguo, porque, nele, a fluidez existe como que em camara lenta; o viscoso é empastamento da liquidez, ou seja, representa em si um triunfo nascente do slido sobre o liquido, isto 6, uma tendéncia do Emssi de indiferenga, representado pelo s6lido puro, a coagular a liqui- dez, ou seja, a absorver 0 Parasi que deveria fundamenté-lo. O viscoso € a agonia da 4gua; apresenta-se como fendmeno em vira-ser, nao tem permanéncia na mudanca da agua, mas, ao contrario, representa como que um corte operado em uma mudanga de estado. Esta instabilidade coagulada do viscoso desencoraja a posse. A agua mais fugidica, mas podemos possufla em sua propria fuga, enquanto fugidiga. O viscoso foge em uma fuga espessa que tanto se assemelha a da Agua quanto o voo pesado e raso da galinha se assemelha ao do falcdo. E esta fuga mesmo nao pode ser possuida, pois se nega enquanto fuga. Quase chega a ser uma permanéncia sélida, Nada testemunha melhor esse carater ambiguo de "substancia entre dois estados” do que a lentidao com que 0 viscoso se funde consigo mesmo: uma gota d’dgua que toca a superticie de um lencol d’agua transformase instantaneamente em lencol d’4gua; no captamos essa opera¢o como uma absor¢ao quase bucal da gota pelo lencol, mas sim, sobretudo, como uma espiritualiza- do e uma desindividualizacao de um ser singular que se dissolve por si mesmo no grande todo de onde saiu. O simbolo do lencol d’gua pa- rece desempenhar um papel muito importante na constituigao dos es- quemas panteistas; revela um tipo particular de relacao do ser com 0 ser. Mas, se consideramos 0 viscoso (embora tenha conservado miste- riosamente toda fluidez em camara lenta, nao deve ser confundido com os purés, em que a fluidez, esbocada, sofre bruscas rupturas, bruscas interrupces, e a substancia, apés um esboco de vazamento, aglomera- se de sibito aos trambolhdes), constatamos que apresenta uma histe- rese constante no fendmeno da transmutacao em si mesmo: © mel que escorre de minha colher sobre 0 mel contido no pote comeca escul pindo a superficie, destacase em relevo sobre ela, e sua fusio com 0 todo se apresenta como um mergulho, um afundamento que aparece as vezes com desinflar (pense-se na importéncia, para a sensibilidade infantil, do funileiro que manuseia tipas de boi, “soprando-as” como vidro até que as peliculas desinflam, deixando escapar um gemido la- 7 mentoso), € também como a queda, o achatamento dos seios um tanto flécidos de uma mulher que se deita de costas. Com efeito, ha no visco- 80 que se funde em si mesmo uma resisténcia visivel, como a recusa do individuo que nao quer aniquilar-se na totalidade do ser, e, a0 mesmo tempo, uma flacidez levada a extrema consequéncia: pois o mole nao sendo um aniquilamento que se detém no meio do caminho; 0 mole aquilo que melhor imagem nos oferece de nossa propria poténcia, des- trutiva e seus limites. A lentidao do desaparecimento\da gota viscosa no amago do todo mostrase primeiro coma moleza, posto que constitui algo similar a um aniquilamento retardade que ‘patece querer ganhar tempo; mas esta moleza vai até o fim: a gota se atola ia camada visco- sa. Desse fendmeno iro nascer diversas caracteristicas: do viscoso: em primeiro lugar, o fato de ser mole ao tato. Se jogamos: Agua ao\sdlo, ela escorre. Se jogamos uma substancia viscoéa, ela se estira, sé achata, & mole; se tocamos 0 viscoso, ele ndo escapa: cede. Ha naiinapreensibili- dade mesmo da gua uma rijeza implacavel que the confere um sentido secreto de metal; em dltima instancia, é to incompressivel como 0 aco. O viscoso € compressivel. Portanto, logo de saida da a impressio de um ser que podemos possuir. E possuir duplamente: sua viscosidade, sua aderéncia a si, impede-o de fugir, e, portanto, posso pegalo com as maos e separar certa quantidade de mel ou piche do resto do pote, criando com isso um objeto individual por criacao continua; mas, a0 mesmo tempo, a moleza desta substancia, que se esmaga nas minhas maos, da-me a impressdo de que destruo perpetuamente. E uma boa imagem de uma destruigao-criacao. O viscoso é décil, S6 que, no mo- mento mesmo em que suponho possuilo, 6 ele que me possui, por uma curiosa inversdo. Aqui aparece seu carater essencial: sua moleza feita ventosa. Se 0 objeto que tenho na mao € slido, posso soltélo quando quiser; sua inércia simboliza para mim meu poder total: eu 0 fundamento, mas ele ndo me fundamenta; é 0 Para-si que acolhe em si mesmo o Em-si e 0 eleva a dignidade de Emsi, sem comprometerse, permanecendo sempre como poder assimilador e criador; 6 0 Parasi gue absorve o Emi. Em outras palavras, a posse afirma a primazia do Para-si no ser sintético “Em-si-Para-si”. Mas eis que 0 viscoso inverte os termos: o Paras fica subitamente comprometido. Separo as mos, que- ro largar 0 viscoso e ele adere a mim, me sorve, me aspira; seu modo de ser ndo @ nem a inércia tranquilizadora do sdlido, nem um dinamis mo como 0 da Agua, que se exaure fugindo de mim: é uma atividade mole, babosa ¢ feminina de absorcao; vive obscuramente entre meus 742 dedos, e sinto uma espécie de vertigem; atra-me como poderia atrair-se © fundo de um precipicio. Hé uma espécie de fascinacao tatil do visco- s0. J& no sou mais senhor da cessagéo do processo de apropriacao: este continua. Em certo sentido, @ como uma docilidade suprema do possuido, uma fidelidade canina que se dé mesmo quando nao 0 que- remos mais; e, em outro sentido, sob esta docilidade, ha uma sub- repticia apropriagao do possuidor pelo possuido. Vemos aqui o simbolo que subitamente se revela: existem posses venenosas; ha a possibilida- de de que o Em-si absorva o Paras, ou seja, € que um ser se constitua 4 maneira inversa do “Em-siparasi’, um ser no qual o Emsi venha a atrair 0 Parasia sua contingéncia, a sua exterioridade de indiferenca, & sua existéncia sem fundamento. Neste instante, capto de sibito a ar- madilha do viscoso: é uma fluidez que me retém e me compromete; nao posso deslizar sobre esse viscoso, pois todas as suas ventosas me retém; ele tampouco pode deslizar sobre mim, mas me agarra como uma sanguessuga. Contudo, o deslizamento nao esté simplesmente negado, como no caso do sélido, mas sim dlegradado: o viscoso parece ceder a mim e convidar-me a ele, pois uma camada de viscoso em re- pouso nao é sensivelmente distinta de uma camada de liquido muito denso; s6 que é uma armadilha: o deslizamento é sugado pela substan- cia deslizante e deixa vestigios sobre mim. O viscoso aparece como um liquido visto em um pesadelo, Kquido em que todas as propriedades viessem a se animar em uma espécie de vida e se voltassem contra mim. © viscoso é a vinganca do Emsi. Vinganca adocicada e feminina, que sera simbolizada, em outro nivel, pela qualidade do acucarado, Por iss0, 0 agucarado, enquanto dogura ~ dogura indelével, que perdura indefinidamente na boca e sobrevive a degluticao -, completa periet tamente a esséncia do viscoso. O viscoso acucarado ¢ 0 ideal do visco- so; simboliza a morte acucarada do Parassi (a vespa que se enfia na geleia e se afoga). Mas, a0 mesmo tempo, o viscoso sou eu, 6 pelo fato de que esbocei uma apropriacdio da substancia viscosa. Esta suc- ¢40 do viscoso que sinto em minhas maos delineia uma espécie de continuidade entre a substancia viscosa e eu. Essas longas e moles co- lunas de substancia que caem de mim até a camada viscosa (quando, por exemplo, enfio a mao na camada e depois a retiro) simbolizam algo como uma sangria de mim mesmo rumo ao viscoso. E a histerese que constato na fusdo da base dessas colunas com a camada simboliza algo como a resisténcia de meu ser 4 absorcao no Emi, Se entro na agua, mergulho e me deixo levar, ndo experimento qualquer malestar, pois 743 no tenho, em grau algum, temor de me dissolver nela: permaneco um sélido em sua fluidez. Se entro no viscoso, sinto que irei me perder, ou seja, diluir-me nele, precisamente porque o viscoso uma instancia da solidificacao. O pastoso, por esse ponto de vista, apresentaria 0 mesmo aspecto do viscoso, mas nao fascina, nao compromete, por ser inerte. Na prépria apreensio do viscoso, ha substancia pegajosa, comprome- tedora e sem equilibrio, tal como a obsessio de uma metamorfose. To- car 0 viscoso é correr 0 risco de diluir-se em viscosidade. Mas esta diluigao ja € aterradora de per si, porque consiste na absorcao do Parasi pelo Em-si como tinta pelo mata-borrao. Mas, além disso, ainda mais aterrador do que sermos metamorfoseados em coisa, € 0 fato de tratarse precisamente de uma metamorfose em viscoso. Mesmo se pudesse conceber uma liquefagio de mim mesmo, ou seja, uma transformacio de meu ser em agua, nao me sentiria afetado além da conta, pois a agua é 0 simbolo da consciéncia: seu movimento, sua fluidez, esta solidariedade nao solidaria de seu ser, sua fuga perpétua etc,, tudo nela me recorda o Parasi, a tal ponto que os primeiros psicé- logos que sublinharam o cardter de duragéo da consciéncia (James, Bergson) compararam-na muito frequentemente a um tio. O rio € 0 que melhor evoca a imagem da interpenetracdo constante das partes de um todo e sua perpétua dissociabilidade e disponibilidade. Mas 0 viscoso oferece uma imagem hortivel: para uma consciéncia, é horrivel de per si tomarse viscosa. Pois 0 ser do viscoso é aderéncia mole, com ventosas Por todas as partes, solidariedade e cumplicidade dissimulada de cada uma com as demais, esforgo vago e mole de cada uma para individu: zarse, seguido de uma recatda, um aplanamento esvaziado de indivi dualidade, sugado em todas as partes pela substancia. Uma consciéncia que se tornasse viscosa seria transformada, portanto, pelo empastamen- to de suas ideias. Desde nosso surgimento no mundo, temos obsessio pela ideia de uma consciéncia que quisesse langar-se rumo ao futuro, a um projeto de si, e que, no préprio momento em que tivesse conscién- cia de ter chegado 14, se sentisse retida sub-repticia e invisivelmente pela succao do pasado e devesse assistir a sua lenta diluicdo nesse passado do qual foge, a invasao de seu projeto por milhares de parasi- tas, até perderse finalmente, por completo. Desta horrivel condic&o a melhor imagem nos é dada pelo “roubo do pensamento” encontrado nas psicoses de influéncia, Mas, que traduz no plano ontolégico este 744 temor a no ser justamente a fuga do Parasi frente ao Emsi da factici dade, ou seja, precisamente a temporaliza¢ao? O horror do viscoso ¢ 0 horror de que © tempo se torne viscoso, de que a facticidade progrida continua e insensivelmente até absorver Parasi que a existe. € 0 te- mor, nao da morte, nao do Em-si puro, ndo do nada, mas de um tipo de ser particular, que nao tem mais existéncia real do que o Emsi-Para-si e esta somente representado pelo viscoso. Um ser ideal que rejeito com todas as minhas forcas e me obceca tanto quanto o valor me obceca ‘em meu ser: um ser ideal em que 0 Em-si ndo fundamentado tem prio- ridade sobre 0 Para-si e que denominaremos Antivalor. Assim, no projeto apropriador de viscoso, a viscosidade se reve- la de sibito como simbolo de um antivalor, ou seja, de um tipo de ser nao realizado, mas ameacador, que perpetuamente obcecara a consci- éncia como o perigo constante do qual foge, e, por esse fato, transfor- ma repentinamente o projeto de apropriacao em projeto de fuga, Apa- receu alguma coisa que ndo resulta de qualquer experiéncia anterior, mas somente da compreensao pré-ontoldgica do Em-si e do Para-si e que € propriamente o sentido do viscoso. Em certo sentido, 6 uma ex periéncia, pois a viscosidade 6 uma descoberta intuitiva; e, em outro sentido, € como a invencao de uma aventura do ser. A partir dai, apa- rece ao Parasi certo perigo novo, um modo de ser ameacador e a evi- tar, uma categoria concreta com a qual ira se deparar onde quer que seja. O viscoso nao simboliza qualquer conduta psiquica, a priori: mani- festa certa relacdo do ser consigo mesmo, e esta relacdo esta originaria mente psiquizada, porque eu a descobri em um esboco de apropriacao € a viscosidade me devolveu minha imagem. Assim, acho-me enrique- cido, desde meu primeito contato com 0 viscoso, por esquema ontol6- gico, Para.além da distingao entre 0 psiquico e 0 nao psiquico, valido para interpretar 0 sentido de ser de todos os existentes de determinada categoria, categoria essa que surge, por outro lado, como uma moldura vazia antes da experiéncia com as diferentes espécies de viscosidade. Lancei-a no mundo pelo meu projeto original frente ao viscoso; € uma estrutura objetiva do mundo, ao mesmo tempo que um antivalor; ou seja, determina um setor no qual virdo dispor-se os objetos viscosos. A partir daf, cada vez que um objeto vier a manifestar para mim essa rela- Gao de ser, tratase de um aperto de maos, um sorriso ou um pensa- mento, sera captado por definic3o como viscoso: ou seja, Para-além de sua contextura fenomenal, que me apareceré como constituinte do 745 grande setor ontol6gico da viscosidade, junto com o piche, a cola, mel etc. E, reciprocamente, na medida em que o isto de que quero me apropriar representa o mundo inteiro, o viscoso, desde meu primeiro coniato intuitivo, aparece-me rico de uma multidao de significacées obscuras e remissdes que o transcendem. O viscoso se revela de per si como “muito mais do que viscoso”; desde sua apari¢ao, transcende todas as distingdes entre 0 psiquico ¢ 0 fisico, entre 0 existente em bru- to e as significacées do mundo: constitui um sentido possivel do ser. A primeira experiéncia que a crianca pode fazer do viscoso a enriquece, portanto, psicolégica e moralmente: ela nao tera necessidade de espe- rar a idade adulta para descobrir o género de baixeza aglutinante que denominamos figurativamente “viscoso”: esta ai, junto dela, na prépria viscosidade do mel ou da cola. O que dissemos sobre 0 viscoso vale para todos 0s objetos que cercam a crianca: a simples revelacdo de sua matéria amplia 0 horizonte da crianga até os extremos limites do ser e, 20 mesmo tempo, dota-a de um conjunto de chaves para decifrar o ser de todos os fatos humanos. Nao significa que ela conheca na origem as “feluras” da vida, os “caracteres”, ou, ao contrario, as "belezas” da exis- éncia. Simplesmente encontrasse em poder de todos os sentidos de ser ten dos quais feiuras e belezas, condutas, tracos psiquicos, relacdes sexuais etc,, jamais serao mais do que exemplificagdes particulares. O pegajo- $0, 0 pastoso, 0 vaporoso etc,, buracos na areia e na terra, cavernas, a luz, a noite etc,, revelam a crianga modos de ser pré-psiquicos e pré sexuais que ela depois passara a vida explicitando. Nao ha crianga “ino- cente”. Em particular, reconhecemos de bom grado, com os freudianos, as inumeraveis relacdes que certas matérias € formas que cercam as criangas mantém com a sexualidade. Mas, com isso, no entendemos que um instinto sexual ja constituido tenham-nas carregado de signifi- cago sexual. Ao contrario, parece-nos que essas matérias e formas so captadas de per sie revelam a crianca modos de ser e relacdes do Para- si com o ser que iro esclarecer e moldar sua sexualidade. Para citar apenas um exemplo, muitos psicanalistas ficaram impressionados com a atracdo que todas as espécies de buracos exercem sobre a crianga (bu- racos na areia, na terra, grutas, cavernas, anfractuosidades), e explica- ram esta atracao seja pelo carater anal da sexualidade infantil, seja pelo choque pré-natal, seja inclusive por um pressentimento do ato sexual propriamente dito. Nao poderiamos aceitar nenhuma dessas explica- 6es: a do “trauma do nascimento” € altamente fantasiosa. A que com- para 0 buraco ao 6rgio sexual feminino pressupde na crianca uma ex- Periéncia que nao poderia ter ou um pressentimento injustificavel. 746 Quanto a sexualidade “anal” da crianca, nao pensamos em negéla, mas, para que pudesse iluminar e carregar de simbolismo os buracos que ela encontra no campo perceptivo, seria necessario que a crianca captasse seu Anus como um buraco; ou melhor, seria preciso que a apreensao da esséncia do buraco, do orificio, correspondesse a sensa: ‘co que seu anus Ihe provoca. Mas demonstramos o bastante o cardter subjetivo do “corpo para mim” para compreendermos a impossibilidade de que a crianca venha a captar uma parte qualquer de seu corpo como estrutura objetiva do universo. E para o Outro que o anus apare- ce como orificio. Nao poderia ser vivido como tal; sequer 0s cuidados intimos que a mae presta a crianca poderiam revelé-lo por este aspecto, pois 0 Anus, zona erdgena, zona de dor, nao esta provido de termina. Ses nervosas tateis. Ao contrério, € por meio do Outro - pelas pala- vras que a mae emprega para designar 0 corpo da crianca ~ que esta aprende que seu anus é um buraco. Portanto, é a natureza objetiva do buraco percebido no mundo que ira iluminar para a crianca a estrutura objetiva eo sentido da zona anal e ira atribuir um sentido transcenden- te as sensacdes erdgenas que, até entdo, a crianga se limitava a “existir”. Em si mesmo, 0 buraco € 0 simbolo de um modo de ser que a psicané- lise existencial deve esclarecer. No podemos insistir aqui nese ponto. Todavia, podemos ver logo que © buraco se apresenta originariamente como um nada “a preencher” com minha prépria carne: a crianga nao pode abster-se de pdr seu dedo ou o braco inteiro no buraco. Este me apresenta, pois, a imagem vazia de mim mesmo; nao me cabe sendo enfia-me nele a fim de me fazer existir no mundo que me espera. O ideal do buraco, portanto, é a escavacao que se modelara cuidadosa- mente sobre minha carne, de maneira que, comprimindo-me e adap- tando-mme estreitamente nela, contribuirei para fazer existir a plenitude de ser no mundo. Assim, tapar 0 buraco € originariamente fazer o sacri- ficio de meu corpo para que a plenitude de ser exista, ou seja, sofrer a paixdo do Para-si para modelar, aperfeicoar e preservar a totalidade do Em-si”. Captamos aqui, em sua origem, uma das tendéncias mais fun- damentais da realidade humana: a tendéncia a preencher. Iremos en- contrar esta tendéncia no adolescente e no adulto; passamos boa parte de nossa vida a tapar buracos, preencher vazios, realizar e fundamentar simbolicamente o pleno. A partir de suas primeiras experiéncias, a cri- 80, Seria preciso abserar também a importincia da tendéncla invers, a de cavar buracos, que exsira de per si uma anslceexstencal 747 anga reconhece que ela mesma tem orificios. Quando poe 0 dedo na boca, tenta fechar os buracos do seu rosto, espera que o dedo se funda com os labios e 0 palato e tape o orificio bucal, assim como se tapa com cimento a fenda de uma parede; ela busca a densidade, a plenitu- de uniforme e esférica do ser de Parménides; e, se chupa 0 dedo, é precisamente para dilutlo, transforma-lo em uma pasta grudenta que ira 4 obturar 0 buraco de sua boca. Esta tendéncia é certamente uma das mais fundamentais entre aquelas que servem de base ao ato de comer: o alimento é a “massa” que obturard a boca; comer, entre outras coisas, é se “encher’. £ somente a partir dai que podemos passar a sexuali- dade: a obscenidade do sexo feminino € a de qualquer coisa que seja escancarada; é um chamado de ser, como 0 sa0, alias, todos 0s bura- cos; em si, a mulher chama uma carne estranha que deve transforma- la em plenitude de ser por penetracao e diluicao. E, inversamente, a mulher sente sua condi¢4o como um chamado, precisamente porque 6 “esburacada”. E a verdadeira origem do complexo adleriano. Sem davida alguma, 0 sexo é boca, e boca voraz que engole o pénis - 0 que bem pode levar a ideia de castracdo: 0 ato amoroso castragio do homem; mas, antes de tudo, 0 sexo’ € buraco. Portanto, tratase aqui de uma contribuigao présexual que se converted em um dos componentes da sexualidade como atitude humana empirica e com- plexa, mas que, longe de extrair sua origem do ser-sexuado, nada tem em comum com a sexualidade fundamental cuja natureza explicamos na Terceira Parte. Nem por isso a experiéncia do buraco, quando a crianca vé a realidade, deixa de incluir 0 pressentimento ontoldgico da experiéncia sexual em geral; é com sua carne que a crianca tapa 0 buraco, e © buraco, antes de toda especificacdo sexual, é uma espera obscena, um apelo a came. Captamos a importancia que a elucidagao dessas categorias existenciais, imediatas e concretas, ira assumir para a psicandlise exis- tencial. A partir dai, captamos projetos bastante genéricos da realidade humana. Mas © que principalmente interessa a psicandlise 6 determinar © projeto livre da pessoa singular a partir da relagao individual que a une a esses diferentes simbolos do ser. Posso gostar de contatos visco- sos, sentir horror aos buracos etc. Nao significa que 0 viscoso, 0 gordu- roso, 6 buraco etc,, tenham perdido para mim sua significag3o ontolé- gica geral, mas, ao contrérid, que me determino de tal ou qual maneira em relacao a eles por causa desta significagao. Se 0 viscoso é de fato 0 748 simbolo de um ser no qual o Para-si é absorvido pelo Em-si, entao que serei eu, que, ao contrario dos outros, gosto do viscoso? A que projeto fundamental de mim mesmo encontro-me remetido, se quero explicar este gosto por um Em-si sugador e ambiguo? Assim, os gostos nao ficam como dados irredutiveis; se soubermos interrogétlos, revelam os proje- tos fundamentais da pessoa, Até as preferéncias alimentares tém um sentido. Percebe-se isso se refletitmos sobre o fato de que cada gosto se apresenta, dio como um datum absurdo que deveriamos relevar, mas como um valor evidente. Se me agrada o gosto do alho, parece-me itracional que os outros possam nao gostar. Comer, com efeito, € apro- priarse por destruicao, 6, a0 mesmo tempo, entupirse de certo ser. E este ser é dado como uma sintese de temperatura, densidade e sabor propriamente dito. Em uma palavra, esta sintese significa certo ser; e, quando comemos, nao nos limitamos a conhecer, mediante o paladar, determinadas qualidades deste ser; ao degusté-las, apropriamo-nos de- las. O paladar 6 assimilacao; 0 dente revela, pelo proprio ato de mas- car, a densidade do corpo que transforma em bolo alimentar. Também a intuicao sintética do alimento 6, em si mesmo, destruicao assimilado- ra. Revelame o ser com o qual vou fazer minha carne. Assim sendo, 0 que aceito ou rejeito com repulsa é o proprio ser deste existente, ou, se preferirmos, a totalidade do alimento me propde certo modo de ser do ser que aceito ou rejeito. Tal totalidade esta organizada como uma for- ma, na qual as qualidades de densidade e temperatura, menos intensas, apagam-se por tras do sabor propriamente dito que as exprime. O “acucarado”, por exemplo, exprime viscoso, quando comemos uma colher de mel ou de melado, assim como uma fungao analitica exprime uma curva geométrica. Significa que todas as qualidades que nao sejam © sabor propriamente dito, reunidas, fundidas, enterradas no sabor, re- presentam como que a matéria deste (esse biscoito de chocolate, que primeiro resiste ao dente, bruscamente cede e se desfaz: sua resistencia inicial, depois seu esfarelar, sf0 chocolate). Por outro lado, essas quali- dades se unem a certas caracteristicas temporais do sabor, ou seja, a seu modo de temporalizagao. Determinados sabores se dio de imedia- to, alguns so como estopins de aco retardada, outros se entregam por etapas, alguns vao diminuindo lentamente até desaparecer, outros desaparecem no momento mesmo em que supomos possuilos. Tais 749) qualidades se organizam com a densidade e a temperatura; além disso, expressam, em outro plano, o aspecto visual do alimento. Se como um bolo cor-derosa, 0 gosto é rosado; o leve perfume acucarado e a untu- osidade do creme de manteiga so 0 rosado. Assim, como rosado da mesma forma que vejo acucarado. Compreende-se que, com isso, 0 sabor recebe uma arquitetura complexa e uma matéria diferenciada; é esta matéria estruturada - que nos apresenta um tipo de ser singular - que podemos assimilar ou rejeitar com nduseas, segundo nosso projeto original. Portanto, ndo ¢ em absoluto indiferente gostar de ostras ou moluscos, caracéis ou camardes, por pouco que saibamos deslindar a significacao existencial desses alimentos. De modo geral, nao ha pala- dar ou inclinagao irredutivel. Todos representam certa escolha apropri- adora do ser. Cabe a psicanalise existencial comparé-los e classifici-los. ‘Aqui, a ontologia nos abandona; ela simplesmente nos capacitou a de. terminar os fins Gltimos da realidade humana, seus possiveis fundamen- lais e 0 valor que a impregnam. Cada realidade humana é ao mesmo tempo projeto direto de metamorfosear seu proprio Para-si em Em-si- Parasi e projeto de apropriago do mundo como totalidade de ser-Em- si, sob as espécies de uma qualidade fundamental. Toda realidade hu- mana 6 uma paixao, j que projeta perderse para fundamentar o ser e, a0 mesmo tempo, constituir o Em-si que escape A contingéncia sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religides chamam de Deus. Assim, a paixao do homem é inversa a de Cristo, pois o homem se perde enquanto homem para que Deus nasca. Mas a ideia de Deus € contraditéria, € nos perdemos em vio; o homem 6 uma paixao indi 750

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