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‘Comright © Robena Schwarz ane tore Bott sobre iustaggo de Vassii Kandinsky Revisor Marcia Lonrengo ‘Sandra Dotinaky Carles Queive: Rocha Todos os direitos desta eligho reservados ‘Rue Bandeira Paulista, 702, 6.72 (04532-002 — Sio Palo — Telefone: (011) 866.0801 NACIONAL POR SUBTRACAO ‘0s e latino-americanos fazemos constantemente a experiéncia do earater postico, inauténtico, imitado da vida cultural que levamos. Essa experiéncia tem sido um dado for- mador de nossa reflexdo critica desde os tempos da Indepen- déncia. Ela pode ser ¢ foi interpretada de muitas maneiras, por romainticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas etc., 0 que faz supor que corres- ponda a um problema duravel e de fundo, Antes de arriscar uma explicagio a mais, digamos portanto que o mencionado mal-estar é um fato. ‘As suas manifestagdes coti horripilante. © Papai Noel entre de esquimé é um exemplo de inadequacio. Da dtica de um tradicionalista, a guitarra elétrica no pais do samba é outro. Entre os representantes do regime de 64 foi comum dizer que © povo brasileiro é despreparado que democracia aqui nio passava de uma impropriedade. No século XIX comentava-se © abismo entre a fachada liberal do Império, calcada no par- lamentarismo inglés, e 0 regime de trabalho efetivo, que era escravo. Mario de Andrade, no “Lundu do escritor di chamava de macaco 0 compatriota que s6 sabia das coisas do estrangeiro. Recentemente, quando a politica de Direitos Hu- manos do governo Montoro passou a beneficiar os presos, houve manifestacdes de insatisfagio popular: por que dar ga- rantias aos condenados, se fora da cadeia elas faltam a muita 29 fensivo ao oa canicula em roupa gente? Dessa perspectiva, também os Direitos Humanos se- riam postigos no Brasil... Sao exemplos desencontrados, mui- to diferentes no calibre, pressupondo modos de ver incompa- tiveis uns com os outros, mas escolhidos com propésito de in- dicar a generalidade social de uma certa experiéncia. Todos comportam o sentimento da contradicao entre a realidade na- cional e o prestigio ideoldgico dos paises que nos servem de modelo. Como estamos entre estudantes de Letras, vejamos algo da questio em nosso campo. Nos vinte anos em que tenho dado aula de literatura assisti ao transito da critica por in pressionismo, historiografia positivista, new criticism ameri- cano, estilistica, marxismo, fenomenologia, estruturalismo, pés-estruturalismo e agora teorias da recepeio. A lista é is pressionante e atesta 0 esforgo de atualizagao e desprovinci nizactio em nossa universidade. Mas é facil observar que sO raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto; no geral ela se deve ao prestigio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressio — decepcionante — da mu- danga sem necessidade interna, e por isso mesmo sem pro- veito. O gosto pela novidade terminolégica e doutrinaria pre- valece sobre 0 trabalho de conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no plano académico, do carter imitativo de nossa vida cultural. Veremos que o problema esta mal posto, mas antes disso nao custa reconhecer a sua verdade relativa. ‘Tem sido observado que a cada gerac&o a vida intelectual no Brasil parece recomegar do zero. O apetite pela produgao recente dos paises avangados muitas vezes tem como ayesso 0 desinteresse pelo trabalho da geragao anterior, e a conse- qilente descontinuidade da reflexdo. Conforme notava Ma- chado de Assis em 1879, “o influxo externo é que determina,a diregaio do movimento" Que significa a preteri¢&o do influxo interno, alias menos inevitavel hoje do que naquele tempo? Nao é preciso ser adepto da tradi¢do ou de uma impossivel (1) Machado de Assis, “A nova geray Aguila, 1959, v. 3, p. 826. in Obra completa, Rio de Janeiro, 30 autarquia intelectual para reconhecer os inconyenientes desta praxe, a que falta a convicgdo nao s6 das teorias, logo tro- cadas, mas também de suas implicagdes menos préximas, de sua rela¢io com o movimento social conjunto, e, ao fim e ao cabo, da relevancia do proprio trabalho ¢ dos assuntos estu- dados. Percepgdes e teses notiveis a respeito da cultura do pais sio decapitadas periodicamente, e problemas a muito custo identificados e assumidos ficam sem o desdobramento que Ihes poderia corresponder. O prejuizo acarretado se pode comprovar pela via contraria, lembrando a estatura isolada de ‘uns poucos escritores como Machado de Assis, Mario de An- drade e, hoje, Antonio Candido, cuja qualidade se prende a este ponto, A nenhum deles faltou informagao nem abertura para a atualidade. Entretanto, todos souberam retomar ritica- mente e em larga escala o trabalho dos predecessores, enten- dido no como peso morto, mas como elemento dindmico e irresolvido, subjacente As contradig6es contempordneas.? Nao se trata, portanto, de continuidade pela continui- dade, mas da constituigo de um campo de problemas reais, particulares, com insergfio e duragao histérica proprias, que recolha as forgas em presenca e solicite o passo adiante. Sem desmerecer 0s teéricos da diltima leva que estudamos em nossos cursos de faculdade, parece evidente que nos situariamos me- Ihor se nos obrigdssemos a um juizo refletido sobre as pers- pectivas propostas por Silvio Romero, Oswald e Mario de An- drade, Antonio Candido, pelo grupo concretista, pelos Ce- pects... Ha uma dose de adensamento cultural, dependente de aliangas ou confrontos entre disciplinas cientificas, moda lidades artisticas e posicdes sociais ou politicas sem a qual a idéia mesma de ruptura, perseguida no culto ao novo, nao sig- nifica nada, Isso posto, vale a pena lembrar que aos hispano- americanos 0 Brasil da impressio de invejivel organicidade intelectual, que, por incrivel que parega, dentro do relativo eles talvez. até tenham razio. re, Sto Oaue fica de nosso desfile de concepgtes e métodas & pou- 0, j& que o ritmo da mudanga nao da tempo & produgiio ama- durecida, O inconveniente é real e faz parte do sentimento de nadequac&o que foi nosso ponto de partida. Nada mais ra- zoével, portanto, para alguém consciente do prejuizo, que passar ao pélo oposto e imaginar que baste nfo reproduzir a tendéncia metropolitana para alcangar uma vida intelectual mais substantiva. A conclusao é iluséria, como se veré, mas tem apoio intuitivo forte. Durante algum tempo ela andou na boca dos nacionalismos de esquerda e direi convergéncia que, sendo mau sinal para a esquerda, deu grande circulagio social aquele ponto de vista e contribuiu para prestigiar 0 baixo-nivel. Dai a busca de um fundo nacional genuino, isto é, nao- adulterado: como seria a cultura popular se fosse possivel pre servi-la do comércio e, sobretudo, da comunicagao de massa? O que seria uma economia nacional sem mistura? De 64 para cha internacionalizacao do capital, a mercantilizagio das re- lagdes sociais e a presenca da midia avangaram tanto que es- tas questdes perderam a verossimilhanga. Entretanto, ha vinte anos apenas elas ainda agitavam a intelectualidade ¢ ocu- pavam a ordem do dia, Reinava um estado de espirito com- bativo, segundo o qual o progresso resultaria de uma espécie de reconquista, ou melhor, da expulsio dos invasores. Recha- ado 0 Imperialismo, neutralizadas as formas mereantis ¢ in- dustriais de cultura que Lhe correspondiam, ¢ afastada a parte antinacional da burguesia, aliada do primeio, estaria tudo pronto para que desabrochasse a cultura nacional verdadeira, descaracterizada pelos elementos anteriores, entendidos como corpo estranho. A énfase, muito justa, nos mecanismos da dominag&o norte-americana servia 4 mitificagao da comuni- dade brasileira, objeto de amor patridtico e subtraida & and- lise de classe que a tornaria problematica por sua vez. Aqui é preciso uma ressalva: 0 governo Goulart, durante o qual este sentimento das coisas chegou ao auge, foi um periodo de acon- tecimentos extraordinarios, com experimentaciio social ¢ rea linhamentos democraticos em larga escala, Nao pode ser re- duzido as inconsisténcias de sua auto-imagem —ilustrativas, 32 nfo obstante, da ilusio propria ao nacionalismo populista, que coloca o mal todo no exterior. Quando os nacionalistas de direita em 64 denunciavam como alienigena o marxismo talvez imaginassem que o fas- cismo fosse invenao brasileira, Neste ponto, guardadas as di- rencas, as duas vertentes nacionalistas coincidiam: espe- ravam achar o que buscavam através da eliminagio do que nfo é nativo. O residuo, nesta operagao de subtrair, seria a substancia auténtiea do pais. A mesma ilusiio funcionon no século XIX, quando entretanto a nova cultura nacional se de- veu muito mais a diversificagdo dos modelos europeus que & exclusdo do modelo portugués. Na outra banda, dos retré- grados, os adversarios da descaracterizagaio romantico-liberal da sociedade brasileira tampouco chegavam ao pais auténtico, pois extirpadas as novidades francesas e inglesas ficava res- taurada a ordem colonial, isto é, uma criagio portuguesa. O paradoxo geral deste tipo de purismo esta encarnado na figura de Policarpo Quaresma, a quem o aft de autenticidade leva a se expressar em tupi, lingua estranha para ele. Analogamente em Quarup, de Antonio Callado, onde o depositério da nagao auténtica nao € 0 passado pré-colonial, como queria a figura de Lima Barreto, mas o interior longinquo do territério, dis- tante da costa atlfntica e de seus contatos estrangeirizantes. Um grupo de personagens identifica no mapa 0 centro geo- grafico do pais e sai A sua busca. Depois de muita peripécia a expedi¢ao chega ao termo da procura, onde encontra — um formigueiro. ‘Ao nacionalista a padronizagio e a marca americana que acompanham os vefculos de comunicagao de massa apareciam como efeitos negativos da presenca estrangeira. E claro que & geragio seguinte, para quem o novo clima era natural, o na- cionalismo € que teria de parecer esteticamente arcaico e pro- vinciano, Pela primeira vez, que eu saiba, entra em circulacao © sentimento de que a defesa das singularidades nacionais contra a uniformizagao imperialista é um t6pico vazio. Sobre fundo de indistria cultural, 0 mal-estar na cultura brasileira desaparece, ao menos para quem queira se iludir. ‘Também nos anos 60 0 nacionalismo havia sido objeto da 33 critica de grupos que se estimayam mais avangados que ele politica e esteticamente. O raciocinio de entao yem sendo reto- mado em nossos dias, mas agora sem luta de classes nem anti- imperialismo, ¢ no Ambito internacionalissimo da comuni- cago de massas. Nesta atmosfera “global”, de mitologia uni- ficada e planetaria, o combate por uma cultura “genuina” faz papel de velharia, Fica patente o seu carter ilusorio, além de provineiano e complementar de formas arcaicas de opressio. Oargumento é inatacdvel, mas nao custa assinalar que, dado © novo contexto, @ énfase na dimensdo internacional da cul- tura vem funcionando como pura e simples legitimagao da midia, Assim como os nacionalistas atacavam 0 imperialismo e eram lacdnicos quanto & opressio burguesa, os antinacio- nalistas de agora assinalam a dimensio autoritéria e atrasada de seu adversirio, com carradas de razo, 0 que no entanto faria crer que o reinado da comunicagao de massa seja liber- trio ou aceitavel do ponto de vista estético. Uma posigao erf- tica e moderna, conformista no fundo. Outra inversio imagi- niiria de papéis: embora se estejam encarreirando no processo ideoldgico triunfante de nosso tempo, os “globalistas” racio- cinam como acossados, ou como se fizessem parte da van- guarda heréica, estética ou libertéria, de inicios do século. Alinham-se com 0 poder como quem faz uma revolugao. Na ‘mesma linha paradoxal, observe-se ainda que imposigao ideo- logica externa ¢ expropriagao cultural do povo sio realidades que nao deixam de existir porque ha mistificagdo na formula dos nacionalistas a respeito. Estes mal ou bem estiveram li- gados a conilitos efetivos ¢ Ines deram alguma espécie de visi- bilidade. Ao passo que os modernistas da midia, mesmo tendo razio em suas criticas, fazem supor um mundo universalista que, este sim, nao existe. Trata-se enfim de escolher entre 0 equivoco antigo e o novo, nos dois casos em nome do pro- gresso. O espeticulo que a Avenida Paulista oferece ao con- templativo pode servir de comparagfo: a feitira repulsiva das mans6es em que se payoneava 0 capital da fase passada pa- rece perversamente toleravel ao pé dos arranha-céus da fase atual, por uma. questo de escala, e devido também & poesia que emana de qualquer poder quando ele é passado para tris. 34 A filosofia francesa recente é outro fator no descrédito do nacionalismo cultural. A orientagao antitotalizadora, a prefe- réncia por niveis de historicidade alheios ao mbito nacional a desmontagem de andaimes convencionais da vida literari (tais como as nogdes de autoria, obra, influéncia, otiginali- dade etc.) desmancham, ou, ao menos, desprestigiam a cor- respondéncia romantica entre 0 herofsmo do individuo, a rea~ lizagfo da grande obra e a redencao da coletividade, corres- pondéncia cujo valor de conhecimento e potencial de mistifi- cagio nao séo despreziveis ¢ que anima os esquemas do na- cionalista. O esvaziamento pode ser fulminantee convencer em parte, além de render conforto ao sentimento nacional onde menos se espera. Conforme sugere o Iugar-comum, a cépia 6 secundaria em relacio ao original, depende dele, vale menos etc. Esta perspectiva coloca um sinal de menos diante do conjunto dos esforgos culturais do continente e esta na base do mal-estar intelectual que é nosso assunto. Ora, demonstrar o infundado de hicrarquias desse género 6 uma especialidade da filosofia européia atual, p. ex., de Foucault e Derrida. Por que dize ‘que 0 anterior prima sobre o posterior, o modelo sobre & imi taco, 0 central sobre 0 periférico, a infra-estrutura econd- mica sobre a vida cultural e assim por diante? Segundo os fi- losofos em questo, trata-se de condicionamentos (mas so de mesma ordem?) preconceituosos, que nio descrevem a vida do espirito em seu movimento real, antes refletindo a orien- taco inerente as ciéncias humanas tradicionais. Seria mais exato e neutro imaginar uma seqiiéncia infinita de transfor- mages, sem comego nem fim, sem primeiro ou segundo, pior ou melhor. Salta a vista o alfvio proporcionado ao amor- proprio e também & inquietagao do mundo subdesenvolvido, tributario, como diz o nome, dos paises centrais. De atrasados passarfamos a adiantados, de desvio a paradigma, de inie- riores a superiores (aquela mesma superioridade, alias, que esta andlise visa suprimir), isto porque os paises que vive na humithagao da cépia explicita e inevitavel estio mais prepa- rados que a metrépole para abrir mio das ilusées da origem imeira (ainda que a lebre tenha sido levantada lé € n&o 35 aqui). Sobretudo o problema da cultura reflexa deixaria de ser particularmente nosso, e, de certo Angulo, em lugar da alme- jada europeizagZo ou americanizagio da América Latina, assistirfamos & latino-americanizagao das culturas centrais. Leiam-se, desse ponto de vista, “O entre-lugar do diseurso latino-americano”, de Silviano Santiago (Uma literatura nos trépicos, Sao Paulo, Perspectiva, 1978), e “Da razdo antropo- Fagica: didlogo e diferenca na cultura brasileira”, de Haroldo de Campos (Boletim Bibliogréfico Biblioteca Mério de An- drade, Sao Paulo, v. 44, jan./dez. 1983). Resta ver se 0 rompimento conceitual com 0 primado da origem leva a equacionar ou combater relagdes de subordi- nacio efetiva. Sera que as inovacdes do mundo avangado se tornam dispensaveis uma vez desvestidas do prestigio da ori- ginalidade? Tampouco basta privé-las de sua auréola para estar em condigao de utiliza-las livremente e transformé-las de modo a que nao sejam posticas. Contrariamente ao que aque- la andlise faz supor, a quebra do deslumbramento cultural do subdesenvolvido nao afeta o fundamento da situagtio, que € pratico. A reproducao de solugbes de ponta responde a neces- sidades culturais, econdmicas e politicas de que a nogo de cépia, com sua conotagao psicologizante, nao dé idéia e as quais nao especifica. Em decorréncia o exame desta nogio, se ficar no mesmo plano, sofre de limitagao igual, e a radi dade de uma andlise que passa ao largo das causas eficazes tem por sua vez alguma coisa de enganoso. Digamos que a fa- talidade da imitagdo cultural se prende a um conjunto par- ticular de constrangimentos histéricas em relagéo ao qual a critica de corte filoséfico abstrato, como essa a que nos refe- rimos, parece impotente. Ainda aqui o nacionalismo ¢ argu- ivamente a parte fraca, mas nem por isso sua supe- ragio filoséfica satisfaz, pois nada diz sobre as realidades a que ele deve a forga. Entre paréntesis, note-se que nestes uil- limos tempos a quase auséncia do nacionalismo no debate in- telectual sério tem andado ao par com a sua presenga cres- cente na area da administracao da cultura, onde para mal ou para bem nao ha como fugir A existéncia efetiva da dimensdo nacional. A volta pela outra porta reflete um paradoxo incon- 36 tornével do presente, em que 0 espaco econdmico esta inter- nacionalizado (o que é diferente de homogeneizado), mas a arena politica nao, Na década de 20 o programa pau-brasil e antropofégico de Oswald de Andrade também tentou uma interpretacdo triunfalista de nosso atraso. A dissonancia entre padrdes bur- gueses e realidades derivadas do patriarcado rural forma no centro de sua poesia. Ao primeiro dos dois elementos cabe 0 papel de veleidade disparatada (“Rui Barbosa: uma cartola na Senegimbia"). O desajuste nao é encarado como vexame, e sim com otimismo — af a novidade — como indicio de ino- céncia nacional e da possibilidade de um rumo histérico alter- nativo, quer dizer, nao-burgués. Este progressismo sui generis se completa pela aposta na tecnificagao: inocéncia brasileira (fruto de cristianizacio ¢ aburguesamento apenas superficiais) + técnica = utopia, A idéia 6 aproveitar o progresso material moderno para saltar da sociedade pré-burguesa diretamente a0 paraiso, O préprio Marx na carta famosa a Vera Sassulitch (1881) especulava sobre uma hipétese parecida, segundo a gual a comuna camponesa russa alcangaria o socialismo sem interregno capitalista, gragas aos meios que o progresso do Ocidente colocava & sua disposi¢ao. Neste mesmo sentido, ainda que em registro onde piada, provocacio, filosofia da histéria e profetismo estdo indistintos (como alias mais tarde em Glauber Rocha), a Antropofagia visava queimar uma etapa, Voltando porém ao sentimento de c6pia e inadequacao causado no Brasil pela cultura ocidental, esté claro que o pro- grama de Oswald Ihe alterava a t6nica. E 0 primitivismo local que devolveré & cansada cultura européia o sentido moderno, quer dizer, livre da maceragio cist’ e do utifitarismo capita- lista. A experiéncia brasileira seria um ponto cardeal diferen- ciado e com virtualidade utdpica no mapa da histéria contem- pordnea (algo semelhante est4 insinuado nos poemas de Mé- rio de Andrade e Raul Bopp sobre a preeuica amaz6nica). Foi profunda portanto a viravolta valorativa operada pelo Moder- nismo: pela primeira vez 0 proceso em curso no Brasil € con- siderado e sopesado diretamente no contexto da atualidade 37 mundial, como tendo algo a oferecer no capitulo. Em lugar de embasbacamento, Oswald propunha uma postura cultural irreverente e sem sentimento de inferioridade, metaforizado na deglutigao do alheio: copia sim, mas regeneradora. A dis- tancia no tempo torna visivel a parte de ingenuidade e tam- bém ufanismo nestas propostas extraordin: A voga dos manifestos oswaldianos a partir da década de 60, e sobretudo nos anos 70, ocorre em contexto muito diverso do primitivo. O pano de fundo agora é dado pela ditadura mi- litar, avida de progresso técnico, aliada ao grande capital, na- cional e internacional, e menos repressiva que o esperado em matéria de costumes. No outro campo, a tentativa de passar & guerra revolucionéria para derrubar o capitalismo também alterava as acepcdes do que fosse “radical”. Em suma, nada a ver com a estreiteza provinciana dos anos 20, por oposicao & qual a rebelio antropofégica fazia figura libertéria e escla- recida em alto grau. Nas novas circunstancias 0 otimismo téc- nico tem pernas curtas, ao passo que a irreveréncia cultural ¢ © deboche préprios & devoracio oswaldiana adquirem cono- taco exasperada,’ préxima da ago direta, sem prejuizo do resultado artistieo muitas vezes bom. Em detrimento da lim- pidez construtiva e do lance agudo, tao peculiares ao espirito praticado por Oswald, sobe a eotagio dos procedimentos pri- mirios e avacalhantes, que ele também cultivava. A deglu- tico sem culpa pode exemplificar uma evolugio desta espé- cie. O que era liberdade em face do catolicismo, da burguesia e do deslumbramento diante da Europa é hoje, nos anos 80, ‘um Alibi desajeitado ¢ rombudo para lidar acriticamente com as ambigiiidades da cultura de massa, que pedem lucidez. Como nao notar que o sujeito da Antropofagia — semelhante, neste ponto, ao nacionalismo — 6 0 brasileiro em geral, sem especificagao de classe? Ou que a analogia com o processo di- gestivo nada esclarece da politica e estética do processo cul- tural contemporneo? Em sintese, desde o século passado existe entre as pessoas educadas do Brasil —- 0 que é uma categoria social, mais do (2) A obseragio 6 de Vinicius Dantas. 38 que um elogio — 0 sentimento de viverem entre instituigdes ¢ idéias que sao copiadas do estrangeiro e nao refletem a reali dade local. Contudo, nao basta renunciar ao empréstimo para pensar viver de modo mais auténtico. Alids, esta reniincia nao é pensivvel. Por outro lado, a destruigao filoséfica da nogio de eépia tampouco faz desaparecer o problema. Idem para a ino- céneia programtica com que o antropéfago ignora o cons- trangimento, 0 qual teima em reaparecer. “Tupi or not Tupi, that is the question", na famosa formula de Oswald, cujo teor de contradiggo — a busca da identidade nacional passando pela lingua inglesa, por uma citag2o cléssica e um trocadilho — diz muito sobre o impasse. Vista em perspectiva histérica a questo talver, se des- complique. Silvio Romero tem excelentes observagdes a res- peito, de mistura com varios absurdos. O trecho que vamos citar € comentar esta num livro escrito em 1897 contra Ma- chado de Assis, justamente para provar que a arte deste nao passaya de anglomania inepta, servil, inadequada etc. * Deu-se, entretanto, uma espécie de disparate [..J: uma pe- guena elite intelectual separou-se notavelmente do grosso da populagao, e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta, aquela, sendo em especial dotada da faculdade de aprender e imitar, atirou-se 2 copiar na politica e nas letras quanta coisa foi encontrando no Velho Mundo, e chegamos hoje ao ponto de termos uma literatura ¢ uma politica exé- ticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relagdes com 0 ambiente e a temperatura exterior. E este 0 mal de nossa habilidade iluséria ¢ falha de mesticos € meridionais, apaixo- nados, fantasistas, capazes de imitar, porém organicamente improprios para criar, para inventar, para produzir coisa nossa e que saia do fundo imediato ou longinquo de nossa vida ede nossa histéria. Durante os tempos coloniais, a habil politica da segre- Bacio, afastando-nos dos estrangeiros, manteve-nos um certo ss0 tivemos Basilio, Durio, Gonzaga, Alvarenga Peixoto, CI © Silva Alvarenga, que se mo- yeram num meio de idgias puramente portuguesas ¢ brasi- leiras, 39 Com o primeiro imperador e & Regéncia, a pequena fresta (aberta) no muro de nosso isolamento por D. Joao VI alargou- se, ¢ comecamos a copiar 0 roma eririo dos franceses. ‘Macaqueamos a carta de 1814, transplantamos para cf as Jantasias de Benjamin Constant, arremedamos o parlamenta- ismo e a politica constitucional do autor de Adolphe, de mis- O povo, este O segundo reinado, com sua pol capaz, durante cingienta anos, escancarou todas as ports fé-lo tumultuariamente, sem discrimem, sem critério. A imi tago, a macaqueagio de tudo, modas, costumes, leis, c6- digos, versos, dramas, romances, foi a regra geral. ‘A comunicacio direta para 0 velho continente pelos pa- quetes de linha regular engrossou a corrente da imitagao, da copia servi ] Eis porque, como cépia, como arremedo, como pastiche 18s ver, nflo ha povo que tenha melhor constituigao no |] tudo melhor... no papel. A realidade é ho: As desert bes de Silvio sfio desencon- seria 0 se- Itura do Ve- que per vém exami guinie: uma pequena elite dedica-se a copiar a Tho Mundo, destacando-se assim do grosso do pov manece inculto, Em conseqiéncia, literatura € pol posigio exética e seremos incapazes de criar coisa nossa, que saia do fundo de nossa vida e histéria. Implicita aa rec! magao esté a norma da cultura nacional organica, passavel- do Romantismo, pois em certa medida expressa as condigdes da cidadania moderna. E por oposi¢ao a ela que o quadro bra~ iro — minoria europeizada, maioria ignorante — confi- gura um disparate, Por outro lado, para situé-la realistica- (4) Silvio Romero, Machado de Assis, Rio de Janeiro, Laemmert & C., 1897, pols, 40 mente, note-se que a exigéncia de organicidade coincidia no tempo com a expansio de Imperialismo e ciéncia organizada, duas tendén ie tornavam obsoleta a hipétese de uma cultura nacional autocentrada ¢ harménica. pecado original, causa da desconexio, foi a copia. Os (0s negativos dela entretanto esto no plano da cisto so- cultura sem relagdes com 0 ambiente, producao que nao sai do fundo de nossa vida, Ora, a desproporgao entre efeitos e causa é tamanha que leva a duvidar desta ultima e a descon- . So as indicagdes mesmas do Autor que convidam a raciocinar em linha diferente da sua. Abrindo um paréntesis, note-se que o proprio do disparate é ser evitavel e que, de fato, ‘0 argumento e a invectiva de Silvio fazem crer que é obrigaciio da elite corrigir o erro que a distanciou da populacao. A cri- tica ambicionava tornar intoleravel 0 abismo entre as classes, quer dizer, intolerével para os cultos, j4 que no Brasil recém- saido da eseravatura a debilidade do campo popular desesti- mulaya outras nogées. , a otigem de nosso disparate cultural esta na apti- déio imitativa de mestigos e meridionais, pouco dotados para a criagdo. A petigao de principio é Obvia, pois a imitagao se ex- plica pela bossa — racial — para aquela mesma imitagéo que se queria explicar, no que alias o Autor imitava 0 naturalismo, cientifico em yoga na Europa. Sao explicagdes hoje dificeis de evar a sério, e que no entanto merecem exame enquanto voz corrente ¢ mecanismo ideolégico. Se a causa da tendéncia brasileira para a copia é racial, por que sé a elite ter co- piado? Por outro lado é claro que, se todos copiassem, desa- pareceriam como por encanto os mencionades efeitos de “exo- tismo” (falta de relagdes com o ambiente) e “disparate”-(se- paracio entre elite e povo), e, com eles, todo o problema, Este portanto n&o se devia d edpia, mas ao fato de que s6 uma classe copiava. A explicagiio ndo deve ser de raga, mas de classe. Nos pardgrafos seguintes Silvio esboga o histérico do v imitativo da cultura brasileira, O ponto zero da evolucio esti no perfodo colonial, quando os escritores se moviam “num meio de idéias puramente portuguesas e brasileiras”. eft c 4 tanto, a distancia entre elite e populagdo seria menor naquele tempo? 0 amor da cépia menos vivo? Seguramente no, alias no é isso que est dito. A coesdo a que se refere a pas- sagem era de outra ordem, efeito da “habil politica da segre- gagio” (!), que separava 0 Brasil de tudo que nao fosse por- tugués, A comparago noutras palavras € sem objeto, pois num caso a exigéncia de homogeneidade se aplica a uma es- trutura social, extraordinéria pela desigualdade, e no outro a proibicdo de idéias estrangeiras. Contudo, se a explicagao nao convence, a obscivagao que ela devia esclarecer € justa: antes do século XIX a cépia do modelo europeu e a distdncia entre letrados e populagao nao constituiam "disparate". Digamos, esquematizando ao extremo, que na situacio colonial o | trado 6 solidario da metropole, da tradigao do Ocidente e tam- bém de seus confrades, mas nao da populagdo local. Nestas circunstancias, 0 cultivo do padrio metropolitano € 0 afasta- mento cultural em relacdo ao meio nao aparecem como deti- ciéncia, até pelo contrério. Acresce que a estética neoclissica 6 universalista e valoriza o respeito e a pratica das formas ca- nOnicas, de modo que também no plano da teoria da arte a imitaco aparecia como um valor positivo. Na boa observacao de Antonio Candido, poeta arcade que metia uma ninfa no ribeiraio do Carmo nio estava faltando com a originalidade: incorporava Minas Gerais a tradigio do Ocidente, e, merito- mente, cultivava esta mesma tradigdo naquelas afastadas terras® Portanto a copia ndo nasceu com a abertura dos portos ¢ a Independéncia, como queria Silvio, mas é verdade que s6 a partir dai ela se torna o insoliivel problema que até hoje se discute e que solicita termos como macaqueagao, arremedo ou pastiche. Por que motivo a imitagdo passava a ter conotacdo pejorativa? E sabido que a Independéncia brasileira nao foi uma re- volucdo: ressalyadas a mudanga no relacionamento externo € a reorganizagdo administrativa no topo, a estrutura econd- mico-social criada pela explorag&o colonial continuava in- (©) Antonio Candido, Kormapdo da literatura brasileira, Sio Paulo, Mastin, 1969, v1, p74 a2 tacta, agora em beneficio das classes dominantes locais. Dian- te dessa persisténcia, era inevitével que as formas modernas de civilizagdo, vindas na esteira da emancipagio politica e im- plicando liberdade e cidadania, parecessem estrangeiras — ou postigas, antinacionais, emprestadas, despropositadas etc., conforme a preferéncia dos diferentes criticos, A violéncia da adjetivagio indica as contorgdes do amor-préprio brasileiro (de elite), obrigado a desmerecer em nome do progresso os jundamentos de sua preeminéneia social, ou vice-versa, opcao deprimente nos dois casos. De um lado, trafico negreiro, lati- fiindio, escravidao e mandonismo, um complexo de relagées com regra propria, firmado durante a Colénia e ao qual o un versalismo da civilizagdo burguesa nao chegava; de outro, sendo posto em xeque pelo primeiro, mas pondo-o em xeque também, a Lei (igual para todos), a separacao entre o pablico © 0 privado, as liberdades civis, o parlamento, o patriotismo romantica etc. A convivéncia familiar e estabilizada entre es- tas concepcdes em principio incompativeis esteve no centro da inquietacio ideolégico-moral do Brasil oitocentista. A uns a heranga colonial parecia um resfduo que logo seria superiulo pela marcha do progresso. Outros viam nela o pais autént a ser preservado contra imitagdes absurdas. Outros ainda de- sejavam harmonizar progresso e trabalho escravo, para nao abrir mao de nenhum dos dois, ¢ outros mais consideravam que esta conciliagao ja existia e era desmoralizante. A critica de Silvio por sua vez, contemporanea do declinio do Segundo Reinado, usa argumentos conservadores dentro de animo pro- aressista: salienta o pais “real”, fruto ¢ continuagao do auto- ritarismo da Colénia, mas para combaté-lo; ¢ menospreza 0 pais “ilus6rio”, das leis, dos bacharéis, da cultura importada, depreciado por inoperante. Dai a sua observacio: “nao ha povo que tenha melhor constituic&o no papel [...]. A reali- dade é horrivel!”. A lista de arremedos lembrada por Silvio ¢ que a alfan- dega faria bem de barrar inclui modas, costumes, leis, c6- digos, versos, dramas e romances. Um a um, medidos pela realidade social do pais, estes itens efetivamente podiam pa- recer importacdo supérflua, destinada a tapar a indigéncia 43 real € a encenar a ilusdo do progresso. Vistos em conjunto, entretanto, sdo aspectos da constituigfio e do aparelhamento do novo Estado nacional, bem como da participagio das no- vas elites na cultura contempordanea. Sem prejuizo da apa- réncia postica, estranha ao andamento cotidiano dos neg6- cios, este dado é mais inseparavel do quadro que a propria escraviddo, a qual adiante seria substituida por outras formas de trabalho compuls6rio, também elas incompativeis com a pretensfo esclarecida. Corrido o tempo, a marca ubiqua de “jnautenticidade” veio a ser concebida como a parte mais au- téntica do espetdculo brasileiro, algo como um penhor de identidade. Privados de seu contexto oitocentista europeu & acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os melhora- mentos da civilizagio que importavamos passavam a operar segundo outra regra, diversa da consagrada nos paises hege- ménicos. Daf o sentimento tao difundido de pastiche indigno, fa que escapava Machado de Assis, cuja grande imparcial dade permitia ver um modo particular de funcionamento ideo- I6gico onde os demais criticos sé enxergavam esvaziamento. Em palavras de Sérgio Buarque de Holanda: “A presteza com que na antiga coldnia chegara a difundir-se a pregagdo das “idéias novas’, e o fervor com que em muitos circulos elas fo- ram abragadas as vésperas da Independéncia, mostram de modo inequivoco, a possibilidade que tinham de atender a um desejo insofrido de mudar, a generalizada certeza de que o povo, afinal, se achava amadurecido para a mudanga. Mas também é claro que a ordem social expressa por elas estava longe deencontrar aquio seu equivalente exato, mormente fora dos meios, citadinos. Outra era a articulacdo da sociedade, outros os critérios basicos de exploragio econdmica e da re- particao de privilégios, de sorte que nao podiam, essas idéias, ter o sentido que Ihes era dado em parte da Europa ou da an- tiga América inglesa [...]. O resultado é que as formulas e pa- lavras so as mesmas, embora fossem diversos 0 contetido ¢ o significado que aqui passavam a assumir’’ § (6) Strgio Buarque de Holanda, Do Impéris d Repiblice, _gera da cvilizagdo brasleire,dirigida pelo mesmo Avior, Sd Ps 778, 44 Digamos que o passo da Colénia ao Estado auténomo acarretava a colaboragao assidua entre as formas de vida ca- racterfsticas da opressio colonial ¢ as inovacées do progress burgués. A nova etapa do capitalismo desmanchava a relacio exclusiva com a meirépole, transformava os proprietarios lo- cais e administradores em classe dominante nacional, virtual- mente parte da burguesia mundial em constituigao, ¢ conser- vava entretanto as antigas formas de exploracao do trabalho, cuja redefinic&io moderna até hoje nao se completou. Noutras palavras, a discrepfncia entre os “dois Brasis” nao ¢ produ- zida pela veia imitativa, como pensavam Silvio e muitos ou- tros, nem marca um curto momento de transig&o. Ela foi o resultado duradouro da criagdo do Estado nacional sobre base de trabalho escravo, a qual por sua vez, com perdio da bre- vidade, decorria da Revolugdo Industrial inglesa e da conse qiiente crise do antigo sistema colonial, quer dizer, decorria da historia contemporanea, Assim, a m4-formagao brasileira, dita atrasada, manifesta a ordem da atualidade a mesmo t- tulo que o progresso dos paises adiantados. Os “disparates’ de Silvio — na verdade as desarmonias ciclépicas do capita- lismo mundial — nfo sfo desvios. Prendem-se & finalidade mesma do proceso, que, na parte que coube ao Brasil, exige a reiteragdo do trabalho forgado ou semi-forgado e a decorrente segregac&o cultural dos pobres. Com modificagbes, muito disso veio até os nossos dias. No momento o panorama parece estar mudando, devido a consumo e comunicagao de massas, cujo efeito 4 primeira vista é anti-segregador. Sao os novis- simos termos da opressio e expropriagao cultural, pouco exa~ minados por enquanto. ‘Assim, a tese da cépia cultural é ideologia na acepgiio marxista do termo, quer dizer, uma ilusio bem fundada nas aparéncias: a coexisténcia entre principios burgueses ¢ do an- tigo regime, fato muito not6rio e glosado, é explicada segundo (> Enitia Vitti da Costa, Da Monarquia @ Replica: momentos decisivos, ‘Sto Paulo, Grialbo, 1977, eap. I; Lula Felipe de Alencastro, "La traite négriére et "Revue Francaise de [istoire d’Ourte Mer, . 66, 2. Punité nat 2445, 1979; Fernando No Cebvap, Sao Paulo, Cebrap, 2.9, um esquema plausfvel, de alcance abrangente e fundamento dividualista, em que efeitos e causas esto trocados em toda linha. A cépia tem por consegiiéncia, segundo Silvio, a falta de denominador comum entre a cultura do povo ¢ da elite, bem como a pouca impregnagao nacional desta tiltima. Por que nio fazer o raciocinio inverso? Neste caso, a feigto “copiada” de nossa cultura resultaria de formas de desigualdade brutais a ponto de lhes faltarem minimos de reciprocidade — 0 deno- minador comum ausente — sem os quais a sociedade mo- derna de fato s6 podia parecer artificiosa e “importada”. O descaso impatriético (adotada a idéia de naco que era nor- ma) da classe dominante pelas vidas que explorava a tornava estrangeira em seu proprio juizo... A origem colonial ¢ escra- vista destas causas salta aos olho: As deficiéncias comumente associadas & imitagaio expli- cam-se da mesma maneira. Conforme os seus criticos, a cOpia esté nos antipodas de originalidade, criacdio com sentido na- cional, juizo independente e adequado as circunstincias ete Ora, no extremo a dominacao absoluta faz que a cultura nada expresse das condigdes que Ihe dao vida, se excetuarmos © trago de futilidade que resulta disso mesmo e que alguns escritores souberam explorar. Dai “uma literatura e uma poli tica exéticas", sem ligago com o “fundo imediato ou lon- ginquo de nossa vida e de nossa histéria, assim como a au- séneia de “‘diserimem'” e “critério”, ¢ sobretudo a conviegao muito pronuneiada de que é tudo s6 papel. Noutras palavras, 9 sentimento aflitivo da civilizagao imitada nao é produzido pela imitacao, presente em qualquer caso, mas pela estrutura social do pais, que confere A cultura uma posig&o insusten- tavel, contraditéria com o seu autoconceito, e que entretanto iA na época nao era tio estéril quanto os argumentos de Silvio fazem crer. Compiementarmente, a esfera segregada tam- pouco permanecia improdutiva, e suas manifestacdes mais adiante teriam, para o intelectual de extragao culta, o valor de uma componente nio-burguesa da vida nacional, servindo-lhe como fixador da identidade brasileira (com as ambigiiidades Sbvias). 46 A deniincia do transplante cultural veio a ser o eixo de uma perspectiva critica ingénua e difundida, Para concluir, yejamos alguns de seus inconvenientes. 1) Ela faz supor que a imitacao seja evitivel, aprisio- nando o leitor num falso problema, 2) O que é um mal-estar de classe dominante, ligado & dificuldade de conciliar moralmente as vantagens do pro- gresso € do escravismo ou sucedaneos, aparece como feigio nacional. 3) Fica sugerido que as elites se poderiam conduzir de outro modo, sanando 0 problema, o que equivale a pedir que 0 beneficidrio de uma situagao acabe com ela, 4) Por sua légica o argumento oculta o essencial, pois concentra a critica na relaco entre elite e modelo, quando 0 Ponto decisivo esta na segregagdo dos pobres, exicuidos do universo da cultura contemporaine. 5) A solugao implicita esté na auto-reforma da classe dominante, a qual deixaria de imitar; conforme vimos nao disso que se trata, mas do acesso dos trabalhadores aos termos da atualidade, para que os possam retomar segundo o sew in- teresse, 0 que — neste campo — vale como definigdo de de- mocracia. 6) Quem diz cépia pensa nalgum original, que tem a precedéncia, esta noutra parte, e do qual a primeira 6 0 re- flexo inferior. Esta diminuico genérica freqiientemente res- ponde & consciéneia que tém de si as elites latino-americanas, e da consisténcia mitica, no plano da cultura, sob forma de especializactes regionais do espirito, as desigualdades econd- mico-teconolégico-politicas proprias ao quadro internacional (0 auténtico e criativo esté para a imitagao como os paises adiantados para os atrasados). Nem por isso adianta passar ao polo oposto: as objecdes filoséficas ao conceit de originali- dade levam a considerar inexistente um problema efetivo, que seria absurdo desconhecer. A historiografia da cultura ficou devendo o passo globalizante dado pela economia e sociologia de esquerda, que estudam o nosso “‘atraso” como parte da a7 histéria contempordnea do capital e de seus avancos.* Visto do gulo da c6pia, o anacronismo formado pela justaposigao de lades originadas na Co- nia é um modo de ndo-ser, ou ainda, a realizagio vexato- lamente imperfeita de um modelo que est4 alhures. J4 0 eri- flético busca no mesmo anacronismo uma figura da ia de e6pia discutida aqui opde o nacional ao strangeiro e o original ao imitado, oposigdes que sao irreais e rmitem ver a parte do estrangeiro no préprio, a parte (Paulo Emilio Salles Gomes fala de “nossa incompeténcia Criativa em copiar"”.) Salvo engano, 0 quadro pressupde 0 se- Suinte arranjo de trés elementos: um sujeito brasileiro, a rea- lidade do pafs, a civilizagéo das nacdes adiantadas — sendo ue a diltima ajuda o primeiro a esquecer a segunda. Também este esquema ¢ irreal ¢ impede de notar o que importa, a sa- ber, a dimensio organizada e cumulativa do proceso, a forga Potenciadora da tradicao, mesmo ruim, as relacdes de poder (ernacionais inclusive. Sem prejuizo de seus aspec- tos inaceitaveis — para quem? — a vida cultural tem dina- mismios proprios, de que a eventual originalidade, bem como a falta dela, so elementos entre outros. A questo da copia Nao 6 falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista estético e politico, e liberta da mitolégica exigéncia da criagao a partir do nada. Ver Celso Furtado, A prévrevolupao brasileira, Rio de Janeiro, Fundo de

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