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‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 7-33, 2. sem. 1990 CILADAS DA DIFERENCA Antonio Flavio Pierucci** A. sabedoria popular nos ensina, enfim, que uma coisa pode ser verdadeira mesmo que néo seja nem bela nem santa nem boa. Max Weber, A ciéneia como vocagao RESUMO: Este artigo procura analisar os efeitos perversos da apropriacao pela es- querda de um tema definidor das tradigdes de direita, a saber, a diferenca. Com base no caso Sears (EUA) ¢ no caso Le Pen (Franca), 0 autor aponta para as armadilhas racistas € sexistas presentes nos discursos que focalizam ¢ enfatizam a diferenga, sobretudo num perfodo hist6rico de reemergéncia dos conservadorismos que, por sua vez, se apropriam do argumento da diferenca, dirigindo-o contra os préprios movimentos de esquerda. UNITERMOS: diferenca, identidade, igualdade, desigualdade, direita, esquerda, novos movimentos sociais, minorias, feminismo, sexismo, chauvi- nismo, racismo, heterofobia, direito a diferenga, efeitos perversos. Os conservadores tém as seguintes convicgdes: As pessoas nao-brancas sao inferiores. A miscigenacéo deve ser desencorajada. ‘As mulheres ndo sao iguais aos homens em inteligéncia. * Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH — USP, Coordenador do Curso de Pés- Graduaco em Sociologia da USP. 8 PIERUCCI, Ant6nio Flavio. Ciladas da diferenga. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 7.33, 2'sem. 1990, Todos os seres humanos néo nascem com as mesmas potencialidades. Nao hd razdo para se instituir a igualdade salarial. 56 as pessoas com wn determinado nivel minimo de inteligéncia e educacao de- veriam poder votar. Pessoas com graves defeitos hereditdrios deveriam ser compulsoriamente esterili- zadas. As leis atualmente vigentes ndo favorecem os ricos. A propriedade privada néio pode ser abolida A estatizagao leva ineficiéncia. A guerra é inerente a natureza humana. Vai haver uma outra guerra mundial dentro de vinte e cinco anos. Mesmo que for no interesse da paz, ndo devemos ceder um dedo de nossa sobe- rania nacional. O patriotismo no mundo moderno ndo é uma forca que trabatha contra a paz. O tratamento que estamos dando aos criminosos nao é rigoroso o bastante. A pena de morte néo é uma coisa de barbaros. Os crimes violentos deveriam ser punidos com 0 acoite. Os japoneses séo wn povo cruel por natureza. Os judeus néo séo téo respeitdveis, tao honestos e tao bons cidadéos quanto os outros grupos. Somente com o retorno é religido pode a civilizagéo ter esperanca de sobreviver. Néo é wma conduta antiquada observar 0 preceito dominical. As leis contra 0 aborto ndo devem ser abolidas. As leis do divdrcio nao deveriam ser alteradas no sentido de tornd-lo mais facil. Unies conjugais consensuais nao sdo desejdveis. O controle da natalidade deveria ser declarado ilegal. Nao se deve proibir os experimentos cientificos com animais vivos. Os cientistas ndo deveriam se meter em politica. A liberdade irrestrita de discussdo nao € desejével. Deveria haver menos polémicas e discussées politicas no radio e na TV. Os objetores de consciéncia sdo traidores. A educagao religiosa deveria ser obrigatoria. A educagao sexual nao deve ser dada a todos, meninos e meninas. Nao € errado que aos homens seja permitida maior liberdade sexual que ds mu- theres. Nossas dificuldades presentes se devem antes a causas morais que econémicas. A “‘vara de marmelo’’ é um bom principio educativo. PIERUCCI, Anténio Flvio, Ciladas da diferenca. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 9 7-33, 2-sem. 1990. A diferenca vem da direita A mentalidade de direita encontradiga na maior metrépole brasileira no fim dos anos 80 pode perfeitamente ser descrita desta maneira. Em minhas pesquisas com gra- vador em 1986 ¢ 1987 pelos bairros de classe média baixa de Sao Paulo encontrei muita gente assim, que reage, sente pensa tal ¢ qual. E tfpico. Sado pessoas que, para surpre- sa minha no inicio, dizem alto ao pesquisador, alto e sem maiores rodeios, o que eles préprios pensam ¢ sentem (€ que tantos outros pensam e sentem, mas nao dizem) a res- peito da convivéncia ou da mera proximidade, 6 bem verdade que as vezes epidérmica, com individuos de certas categorias ou camadas sociais, certos grupos de origem que eles sabem distinguir muito bem numa cidade tio populosa quanto So Paulo. Na verdade, porém, estas frases que na abertura deste artigo cismei em reproduzir ipsis litteris (com excegao da referéncia 4 TV) compoém o retrato do conservador inglés da segunda metade dos anos 40, tal como revelado por uma pesquisa amostral realizada por Hans J. Eysenck mediante questiondrio aplicado individualmente a 250 conservado- tes, 250 liberais ¢ 250 socialistas, todos eles de classe média, adultos, urbanos e bran- cos. Apesar da enorme distincia s6cio-cultural entre as populagées urbanas pesquisadas da Inglaterra ¢ do Brasil, do fosso que separa a hist6ria dos dois pafses, do lapso de quatro importantes décadas a afastar as duas pesquisas, as coincidéncias nem um pouco superficiais e nada casuais que se pode observar nesses dois universos mentais falam, sim, de uma similitude profunda e de uma permanéncia impressionante. Quando descobri meses atrés 0 artigo de Eysenck, “Social Attitude and Social Class”, publicado no niimero de langamento de uma das mais importantes e influentes revistas de Sociologia, 0 British Journal of Sociology, ano I, n. 1, marco de 1950, ¢ af encontrei as crengas de direita assim enunciadas e elencadas, empiricamente coletadas, fiquei boquiaberto em face de tamanha e téo nftida semelhanga entre os conservadores icos de Eysenck do final dos anos 1940 e os ativistas eleitorais de direita por mim pesquisados na Séo Paulo da segunda metade dos anos 1980. Quis me parecer, apesar do amarelecido da revista que eu folheava entre curioso e espantado, que o tempo no havia passado, que aquele pequeno artigo nao falava de um outro lugar nem de outra gente. Claro, hé nessa lista pequenos detalhes que impedem que a coincidéncia seja per- feita. Mas de modo algum empanam a similitude nem relaxam o parentesco que linha por linha, quase que palavra por palavra, se constata neste rol de atitudes de direita, Id e aqui, que so de 14 mas que poderiam muito bem ser daqui, dagora, saltando todos os fossos histéricos, cumulando todos os hiatos culturais, cruzando fronteiras nacionais, embaralhando os tempos ¢ atravessando os espacos, todas as especificidades e diferen- as histéricas e culturais percorridas por wma idéntica obsessdo de afirmar e sublinhar 10 PIERUCCT, Anténio Flfvio. Ciladas da diferenca, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 22): 7-33, 2.sem, 1990, as diferencas entre grupos de humanos, dotados (é 0 que se diz) de especificidades ir- redutiveis. Ironia da pesquisa sociolégica ou ironia da Historia, para desespero de Paul Veyne, nada mais parecido com um conservador inglés de 1940 e poucos, tirante talvez © estilo, quando hé estilo, do que um paulistano de direita de 1980 e poucos (Eysenck, 1950; Pierucci, 1987). Chamo a atengao para um outro aspecto coincidente: a pesquisa de Eysenck sele- cionou os entrevistados primeiro por sua classificacéo politica (assim como a minha, que primeiro perguntava em quem a pessoa tinha votado na tiltima eleicéo). Pois bem, a andlise fatorial das intercorrelagées entre as respostas a0 questiondrio de Eysenck re- velou a existéncia de um fator geral de conservadorismo-radicalismo percorrendo de ponta a ponta todo o conjunto das questées. Isto quer dizer, para bom entendedor, que 0s conservadores diferem dos socialistas ¢ dos liberais “numa ampla variedade de itens, muitos dos quais parecem ter bem pouca relagdo com a politica” (Eysenck, 1950, p. 61). E que um objeto de investigago como este acaba se impondo como aquilo que realmente €, ¢ que, por sinal, lhe conserva e garante uma sempre renovada atualidade, um sempre rejuvenescido apelo. A saber: mais que uma férmula de governo, 0 pensa- mento, a mentalidade a sensibilidade de direita articulam uma concepcao global de sociedade a um modo de sociabilidade. Isto foi assim desde 0 comeco, desde que a ul- tradireita contra-revoluciondria, anti-1789, achou de prescrever uma restaurago da or- dem tradicional: “uma restauracao social mais ainda do que politica”, lembra René Ré- mond, o mais importante historiador das direitas na Franca, que vé nesta demanda de preservagio ou de retomada de uma forma de sociabilidade ‘‘a significagao profunda da Restauracéo ¢ a aspiracéo fundamental do pensamento contra-revolucionério” (Ré- mond, 1982, p. 58), que, por isso mesmo, conseguiu manter sempre em forma os seus atrativos e bem agucado o seu mordente, mesmo quando, mais tarde, j4 se haviam des- vanecido todas as esperancas de restauracdo efetiva do govemno mondrquico. Muito mais do que de conservaco politica, o programa historicamente fundante da direita in- seriu em seu nticleo mais resistente a pretensio de conservagao social: 0 conservantis- ‘mo é antes de mais nada wma proposta de sociabilidade. E, na medida em que € uma combinago de priticas (de distingdo, hierarquizacéo, desprezo, humilhagao, intoleran- cia, agressio, profilaxia, segregacio), de discursos espontaneos e discursos doutrinérios abrangendo a esfera piiblica e a vida privada, de solucées politicas e econdmicas mas também de restauracio moral, de racionalizagées afetos, princfpios e esteredtipos, fantasmas e preconceitos girando em toro ou nascendo em raio de uma obsessao iden- titéria, isto é, de uma necessidade sempre auto-referida de preservacio @ outrance de um “eu” ou um “‘nés” ameagado — na medida em que é tal combinacéo, tal sindrome, 0 direitismo é um verdadeiro “fen6meno social total” (Balibar e Wallerstein, 1988, p. 28). Noutras palavras, mais do que no campo politico stricto sensu, as direitas se cons-

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