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CAPITULO 7 “PEIXE VOCE COME, NAO E?": SER JOVEM E VEGANO NA METROPOLE PAULISTANA. Ernesto Lutz Marques Nunes Eles esto na midia: seis fatos relevantes a respeito do vegetarianismo Junho de 2006, Epoca, umes das revistas semanais mais lidas do Brasil estampa, em sua capa, a atriz e modelo Femanda Lima, mordendo uma folha de espinafre e a seguinte manchete: “Vegetarianismo chique’ , 20 lado, a chamada: “Pot razies de saiide? Por rospeito aos animais? Por ambas as coisas? O fato: a dieta sem came esté virando uma mania”. Em matéria de nove paginas, a revista apresenta varios depoimentos de famosos e de pessoas comuns que adotaram 0 vegetatianismo, aponta uma ta com vegetarianos ilusires (Pitégoras, Kafka, Steve Jobs, entre outros), procura esclarecer as verdades e mitos sobre o que envolve ser vegetariano, menciona restaurantes brasileiros que seriam representantes de _gastronomia vegetariana e traz uma entrevista com 0 filésofo Peter professor da cadcira de bioética da Universidade de Princeton, vegetariano ‘¢ um conhecido defensor dos direitos dos animais. Singer chega a afirmar na revista que “escravizar € matar animais é uma variante do racismo. submeter o mais fraco somente porque pertence & outra espécie”, Setembro de 2007. O jomal O Estado dé Sao Paulo noticia que um estudante de Biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) entrou com uma solicitago na justiga brasileira para que tivesse © direito legal de ndo participar de aulas préticas de dissecagio de animai argumentando que matar animais em aulas era contra sua consciéncia, Segundo o aluno, “os animais tém direito dor. Nés, humanos, néo estamos acima ntrevista concedida & revista Epoca, n° 421, de 12 de junto de 2006 2 Materia publicada no jornal O Eta de Sto Paulo, . AL6,de 11 de seternbro de 2007. 181 | Julho de 2008, Na 60" Reunitio Anual da Sociedade Brasileira para realizada na Unicamp, durante o I Forum jentacdo Animal do Brasil, ativistas do ‘manifestagio contra os experimentos. Cartazes com as frases ‘Os experimentos em animais atrasam o progresso da ciéncia”¢ “Auschwitz ainda existe para milhdes de animais” sio expostos enquanto um debate entre cientistas ocorre. Dois ativistas ainda sobem ao paleo, pintam com rnunciam para @ pl Visto como ciéncia’ Novembro de 2008, O tema da prova da primeira fase do vestibular da UNICAMP é sobre a relagao entre homens e animais, © tema da redago da 0 uso de animais em pesquisas cientificas. O vestibulando pode fazer uma narragao ou eserever uma carta, Caso 0 candidato ncia em defesa da causa animal lado, se optar pela carta, deveré fazer uma exposisio a respeito sobre as pesquises cientificas com animais a um membro do wselho Nacional de Controle de Experimentagio Animal (Concea), de welo do conselho. andes é um artigo publicado no site Sentiens/Pensata Animal, de Laerte Fernando Levai, pro- motor de justiga em So José dos CamposiSP: ies ou submetam os animais @ crueldade” iplo, a Lei 9605, de 1998, conhecida como criminaliza a eonduta de quem “pra- animais silvestres, Independents, Disponi e.o7p/pfblue/2008/07/8252716.shtmal> Acesso em 2 de ju io de 2011 domés ‘guntas inevitiveis surgem: como o Brasil sinda compactua, em meio a de leis ambientsis avancadas, com tantas situa- ‘98es de erueldade com 0s animais, por vezes accites¢ legitimadas pelo proprio Estado? Rinhas, fara do boi, cartocinha, rodeios, vaquejadas, circos, veiculos de tras%o, gaiolas, vivissecgdo (opera ‘bes feitas em animais vivos para fins de ensino e pesquisa), abate ete. por que se mostra to dif ‘agi de pessoas que agridem, exploram e matam os animais? (Adaptado de Fernando Laerte Levai, Promotoria de Defesa Animal. www.sentiens.net, 04/2008) 1s ou domesticados, nativos ou exéticos”. Contudo, per ‘Além desse € de outros textos de apoio ao vestibulando, © material a prova da Unicamp apresenta uma foto com membros da ONG Vegan Staff portando uma faixa onde esté escrito: “Os experimentos em animais atrasam 0 progresso da ciéncia”. A esses quatro fatos vamos acrese EUA ¢ outro na Inglaterra. Abril de 2009. O site do Federal Bureau of Investigation (FBD, 6rg0 do governo norte-ameticano que tem como missio proteger e defender 0 pais contra a ago de terroristas e ameagas externas’ inclui em sua lista de terroristas mais procurados (New Most Wanted Terrorist) ~ a mesma que incluia Bin Laden ~ 0 norte-americano Daniel Andreas San Diego, de 31 anos, ta dos direitos dos animais, envolvido com a organizacio ‘Stop Huntingdon Animal Cruelty (SHAC). Segundo 0 site do FBI, ele deve ser considerado armado e perigoso (armed and dangerous) € & acusado de cometer atentados & bomba em laboratorios que realizam experimentagSes cientificas em animais para o desenvolvimento de medicamentos, principalmente os da Huntingdon Life Sciences ir mais dois, um ocorrido nos ited States, and to provide leadership and criminal ji slate, municipal, and Intemational agencies and partners”, Disponivel em Acesso em 5 de junho de 201 183 | como San Diego jé causaram Prejuizos de USS 110 milhGes, em mais de 1,800 atos criminosos.* Em seu FBI oferece USS 250 mil de recompensa e descreve o terrorista: “Ele € evita consumir ou vestir qualquer tipo de produto de origem io jornal inglés The Times publica as declaragaes de lorde Nicholas Stem of Brentford, ex-economista do Banco Mundial, professor da London School of Economics ¢ autor de um relatorio sobre as mudangas climiéticas, en ido pelo governo do Reino Unido. xtensiva como a produgdo de ragdo ica um desperdicio de 4gua e vem contribuindo para 0 Com base nessas_constatagtes, prdxima ciipula sobre mudanga cl dezembro de 2009), lorde Stern recomendava que a de Copenhague (que ocorreu em idade significativa de gases poluentes, causadores do efeito estufa. Para Stem, 0 habito das pessoas de comer came e derivados teré que mudar até que se tome inaceitavel. Além da taxagio, ele prope que as pessoas se tomem vegetarianas: “A came é um desperdicio de agua e oria uma grande lade de gases de efeito estufa. Ela coloca uma enorme pressao sobre ‘0s do mundo. Uma dieta vegetariana é melhor” Quatro fatos ocorrides no Brasil ¢ dois fora do pais que envoivem a Em principio considerada apenas como uma escolha alimentar — a vegetariana entre tantas outras disponiveis, escolha essa marcadamente avoids consuming or wearing anything made with chp: www. fb goveguickfactshkm> Acesso em 5 de da ordem do privado, observa-se, a partir de uma leitura atenta dos fatos apresentados acima, que os personagens mencionados fazem questo de ar essa escolha de diversas formas, seja através de manifestagies piiblicas a favor de sua escolha em um congresso cientifico, por exem- plo -, seja invadindo laboratérios que fazem experimentos com animais. Essa escolha explicitada em atos piblicos em defesa do que acre- ditam tem motivado diversos meios de comunicagio a publicar matérias que envolvem esses personagens que no ingerem carne © fazem questio de deixar claro para o mundo sua escolha. A matéria publicada na revista Zpoca que foi citada acima é apenas uma amostra das dezenas de reportagens publicadas em revistas, jomais, sites e das iniimeras entrevistas com ativistas que as emissoras de televisio —abertas ou fechadas —tém dedicado ao tema do vegetarianismo, marcada- ‘mente sua vertente mais ortodoxa ou radical, 0 veganismo. Mas, quem so os vegetarianos e, mais especificamente, 08 veganos? Vegetarianos e vegetarianismos Diversos autores (Berry, 1998; Bontempo, 2003; Cameiro, 2003; Stuart; 2007; Winckler, 1997) defendem que o vegetarianismo tem sua origem na tradigdo filoséfica indiana, que chegou ao Ocidente através da doutrina pitagérica, A inffuéncia de Pitagoras é to significativa que, até por volta de 1800, os vegetarianos eram conhecidos como “pitagorianos” ou “pitagéricos”, As raizes indianas e pitagéricas do vegetarianism sio ligadas as nogbes de pureza e contaminagao, A visio de respeito aos animais, entre- tanto, estd presente n rina flos6fica e religiosa indians. Na doutrina cristé do século T encontraremos a defesa.do vegetaria~ ‘nismo como uma forma de purificagio do corpo e um meio de atingir um nivel espiritual superior. monges ¢ eremitas europeus - retomando @ doutrina de suas mesas, sob a mesma alegagao de meio para a elevagiio spiritual. Uma postura ainda marginal, pois a came continuava sendo considerada um alimento importante ¢ os animais seres inferiores © que deveriam servir a0s homens. 185 | No Renascimento, apesar das razies éticas defendidas por Leonardo da Vinci contra a morte de animais, predominou a concepgo de que o homem nio tinha nenhum dever moral para com estes, defendida por fl6- sofos do porte de René Descartes e Immanuel Kent. (© nascimento de uma sensibilidade em relagio 20s animais, que condena © consumo destes por motives morais ou solidérios, € muito recente na histéria da humanidade ¢ existe como tal a partir do século XIX em alguns paises da Europa, Foi nesse século que, na Inglaterra, mais, ecisamente em 1847, 140 pessoas fundaram a Vegetarian Society, iana, que daria origem a diversas segdes em outros 308 (a Brazil Vegetarian Society foi fundada em 1921) até desembocar, ‘no inicio do século XX (em 1908) na fundagio da International Vegetarian (VU) ~ conhecida, no inicio, como Vegetarian Federal Union -, agrogando diversos movimentos € associagbes nacionais. © vegetarianismo exclui o consumo de refeigées que contenham tipo de carne animal: de mamiferos, aves, peixes ou frutos do mar. ino nao significa alimnentar-se exclusivamente de vegetais. do termo vegerarianismo, Winckler (1997) aponta que este tem raiz no latim vegetus, que significa forte, vigoroso, saudével e nfo em uma suposta alimeniagdo a base de vegetais. Mas se 0 vegetarianismo nao é baseado exclusivamente no consumo dle vegetais ¢ se, por outro lado, exclui o de carne animal, de que se ali- mentam os vegetarianos, aqueles que adotam esse regime alimentar’? ‘A partir de consulta a diversos livros que so denominados, por seus autores, como se Itados & cullndria vegetariana?, podemos afirmar que o vegctarianismo é um regime baseado fandamentalmente no consumo 0, arroz, aveia, cevads, milho, centeio, entre outros), frutas -guminosas (feijbes, iversos desses livros a presenga de receitas A base de derivados de leite, assim como ovos € mel. Essa mengio aos Inctoderivados, aos ovos © a0 mel porque esti na raiz de uma distingdo que € feita entre 0s pr 6 entre si: a utilizagfio ou no de outros elementos rianos para diferenc de origem animal ~ além da carne — em sua alimentacéo, ‘Se observarmos como a International Vegetarian Union (IVU) ée- fine o vegetarianismo, ou seja, como “a pratica de no comer came, aves ou peixes ou seus subprodutos, com ou sem 0 uso de produtos lacteos ou coves", poderemos compreender porque, nos livros, nos sites da Internet, nos folhetos de divulgagio e nos discursos dos praticantes desse regime alimentar, aparecem os termos lactovegel ovovegetarianismo, ovolactovegetarianismo e o vegetarianismo estrito (ou vegano)- Esses termos fentam dar conta da diversidade de formas da alimen- taco vegetariana, considerando @ utilizaco (ou ndo) de derivados de leite, de ovos e da auséncia completa de qualquer alimento de origem animal ‘Além destes, mas em menor proporedio, aperecem os adeptos do frugivo- rismo, cereatismo e crudivorismo. Os adeptos do lactovegetarianismo al origem vegetal (como cereais, verduras, legu © consumo de leite de mamiferos e de seus derivados (manteiga, iogurte ete.), além do mel. ‘Os ovovegetarianos niio consomem derivados de leite, mas alimen- wam-se de produtos de tam-se de ovos e mel J6 os praticantes de uma alimentago ovolactovegetariana, além de ingerirem alimentos de origem vegetal e leite e seus derivados, admitern 0 consumo de ovos e mel. © fiugivorismo ¢ uma modalidade alimentar vegetarians que aceita apenas 0 consumo de frutas, sejam elas cruas ou cozidas. Por sua vez 0 cerealismo (modalidade mais tara de alimentagao vegetariana) permite tio somente a ingesti de cereais integrais, cozidos 46 08 crudivoritas comem somente alimentos crus ~ frutas, verduras, raizes, tubércullos ¢ cereais ~, conforme a natureza os fornece, sem a neces sidade de fogo e sal. O fogo, para os adeptos dessa modalidade de ali~ mentago vegetariana, destruiria a parte mais importante do alimento: sua energia (ou veganismo) hé a abstengiio produtos de origem animal. Veganos (ou vegans) nao comem came, ovos € leite, nflo usam roupas ou sm couro ou pele ou medicamentos € cosméticos testados rentos segundo as modalidades de vegeta Consumo [Consume | Consume | “Conaimo decane "| de latinos |" de oves | de mel Nao Sim Sim No No Sim Nao Sim Sim No [|__Nto Sim Nio No Neo Nio Sim Sin Nao Nao No Nao Mais do que uma dieta, o vegetarianismo poderia ser considerado uma filosofia de vida? Enquanto prética alimentar que tem algo & propor, de onde ela ven? Quando surge? Antes da década de 60, a alimentagao vegetariana praticada era ., majoritariamente, em crengas religiosas ¢ por motives de sate. a adogio dessa pritica alimentar leva em conta dois outros as formas de violéncia contra os animais que esto smo de came ¢ a preocupagdo com o meio ambiente & as futuras geragdes. Todos esses aspectos que levam uma pessoa a se abster a carne — religito, sate, ética, ecologia ~ relacionam o ato de comer com icagdies sociais ¢ politicas. Umma das motivagdes que levam alguém a se tornar vegetariano esté relacionada & satide, Ou seja, essas pessoas justficam a mudange para o | 188 vegetarianismo por ser essa, supostamente, uma forma mais sauddvel de alimentar-se. ‘A mudanga de habito pode ocomer de diversas formas. Uma delas esté relacionada a uma recomendagaio ou determinagao de ordem médica. ‘Apés passarem por consulta médica relacionada a alguma enfermidade ow isfungo (doengas cardiovasculares, niveis altos de colesterol, 4 lactose ete.) ou a uma indisposigdo frequente, tornam-se vegetariancs. E importante apontar que a mudanga pode também ser fruto de iniciativa propria, como resultado de uma interpretagdo da prescrigdo médica a res- peito dos maleficios do uso exagerado de came animal, ou porque leram, ‘em alguma revista, que a care animal pode ser prejudicial a sua satide por conter uma grande quantidade de agrotéxicos, que podem ser to prejudi- ciais & safide quanto os horménios empregados na pecuéria, Muitos se afastaram do consumo de care animal apés a ampla divulgago de noticias a respeito de doencas que afetaram 0 rebanho bovino da Inglaterra e acabaram por se espalhar para outros paises, como a Encefalopatia Espongiforme Bovina (mais conhecida como a doena da vaca louca), relatada a partir de 1985, ou Influenza Aviitia A (HSN também conhecida como gripe avidria, que infectou ~ a partir de 2005 seres humanos no sudeste asiético, com grande repercussdo dada pela midia mundial, inclusive a brasileira, “Muitas pessoas aderem ao vegetarianismo motivadas por razbes de a imposigao clara por parte de muitas tas, por exemplo, adotam uma dicta vegetariana por acre- ditarem que 0 no consumo de came animal esta em consondncia com 0 principio da ahimsa (nao violéncia, na lingua portuguesa), que o budismo defend. Esse conceito engloba a rejeigao a violencia de qualquer tipo € 0 respeito a toda forma de vida, ¢ foi difundido no Ocidente a partir da luta de Mohandas Gandhi pela libertagao da india da dominagao colonial britanica. a0 mencionar Gandhi — que nflo era budista, mas hin devemos dizer que ocorre algo parecido com os adeptos do hinduismo, que também tem na ahimsa um prineipio norteador de suas vidas. E aqui & importante esclarecer que, no caso do Brasil, embora nao haje expressiva presenga de hinduistas, essa importante corrente religiosa — a terceira em mimero de adeptos no mundo, somente atrés do catolicismo ¢ do isla- 189 | as € mentais hinduista, presente em intimeros locais de (s, onde possui mithares de adeptos. Os adeptos do Ioga Brasil, embora ndo se convertam em hinduistas, adotam um estilo de Para eles, 0 corpo é 0 templo do Espirito Santo!, que eve ser preservado de males que uma alimentagao incorreta poderia pro- porcionar, Em uma publicagdo da Tereja Adventista do Sétimo Dia (IASD), podemos ler que a dieta ordenada por Deus no Jardim do Eden — ou seja, a deta vegetariana ~é melhor (Lessa e Scheffel, 1989) E ainda que nao obrigatéria, podemos observar a defesa dessa pri- wr em outro escrito adventista que afirma que “entre os que indo a vinda do Senhor, o comer came seré abandonado, & came deixaré de ser parte de sua alimentagao” (White, 1946, p. 380), ou ‘mesmo que “muitos que sto agora sé meio convertidos quanto & questio de comer a carne, sairdio do povo de Deus para nfo mais andar com ele” (0 para budistas quanto para hindufstas e adventistas, o vegeta- rianismo nao parece se configurar como um dogma, mas sim como uma recomendagaio nfo impositiva, mais atrelada a um estilo de vida que posse levar a certa— digamos assim — purificagao do corpo para uma vida reli a outras tradigdes religiosas no fagam interdigfo a carne de iais ou defendam ou mesmo mencionem o vegetarianismo como uma es vegetarianos na cidade de Sao Paulo tém, como proprité cipalmente na regiso central da cidade, inas adventists consultados, como www.usb, adver mos? Porque fostes comprados por bor prepo; aloes, pois, ‘8 Devs no vosso corpo, e no vosso espirita, os quais pertencem 2 Deus" (I Carintios 1:15,19 © 20) 190 que elementos de purificagto ou peniténcia sto mencionados, a abstinéncia de carne animal se faz presente, ‘Aspectos relacionados & ecologia também motivam a tornar-se vege- tariano. A literatura vegetariana — revistas, sites, livros, panfletos e outros de divulgagto — dé grande énfase & questio da necessidade de racionalizar a utilizagdo dos recursos naturais para a obtengfo de alimentos ‘€a0 papel que uma dieta sem came tem para diminuir 0 aquecimento global E recorrente nessas publicagdes a mencao de que a ampliagzo de reas para pastagem do gado ocuparia um espago importante do cultive de imentos para os seres humanos ¢ que, além disso, a alimentagfo do gado ria uma quantidade de recursos (Agua, energia ete.) que poderia ser ‘economizada se o ser humano consumisse diretamente a produgito agricola cultivada e no em forma de carne. De acordo com 0 érgilo das Nagdes Unidas responsivel pela a agri- cultura e alimentagdo, FAO (Food and Agriculture Organization), para a produgtio de I kg de came de origem bovina sto necessérios cerca de 15 mil litros de agua ~ levando-se em conta o consumo do animal durante toda sua existénci ido pelo rendimento brato da carne do mesmo animal, Em contrapartida, para a produgdo de 1 kg de soja ~ gro consumido em larga ‘scala pelos rebanhos mundiais ~ sto gastos menos de 1,300 litros de agua, cerca de 10%. Segundo esses dados da FAO, a economia de égua chega a ser maior do que 90% (Singer, 2008). ‘A propésito da contribuigdio que 0 consumo de came tem para 0 aquecimento global, um estudo de 2006, publicado em Earth Interactions e realizado por dois geofisicos da Universidade de Chicago, comparou os gases que geram o efeito estufa (CO, CH, e N,O) gerados na cadeia pro- dutiva de cinco regimes alimentares hipot fin deles, sem came ~ 0 ovolactovegetarianismo~ e outros quatro que contém care em sua compo- sigfo (o médio norte-americano, 0 baseado em carne vermelha, 0 bascado em peixes ¢ 0 baseado em aves). Esse estudo apontou para uma diminuigao nna emissdo de gases de efeito estufa advinda do primeiro deles (ovolac- tovegetarianismo). Segundo os autores do estudo, uma pessoa que adota esse regime alimentar gera 0 equivalente, em um ano, a diéxido de carbono (CO,) a menos do que uma que se com a dieta de um norte-americano médio, rica em proteinas de origem animal (Eshel e Martin, 2006, p. 4). ri | Razées de ordem econémica também sio apontadas para se evitar a came na alimentagio, pois legumes, cereais, frutas e grios seriam mais baratos do que @ came. Em suma, alguém que adote uma dicta vegetariana, ao reduzir um elo da cadeia alimentar (0 boi, por exemplo), poderia minimizar o impacto financeiro e ambiental da sua alimentagdo na sua vida e na do planeta, De acordo com as entrevistas realizadas pelo autor ¢ considerando a Jiteratura sobre o tema em relagio as motivages para se tornar vegetariano, posso afirmar, com grande margem de seguranga, que razbes econémicas © ecoldgicas, quando avaliadas isoladamente, nio so os prineipais moti- vadores que levaram pessoas a se torarem vegetarianas. So motivagdes podem contribuir de forma secundéria, ao lado da religiosa ede satide, para a mudanga de habito alimentar. Muitos dos que deixam de comer carne fazem-no pelo que deno- minamos motivagdes de ordem ética. Isso se traduz em nio conceber 0 hhomem como superior a0 animal, do ponto de vista do direito a vids. Ou seja, muitos dos que deixam de comer carne alegam nao ser justo tirar a vide de um animal para alimentar uma pessoa, especialmente quando a vida dessa pessoa nfo depende da vida do animal. Argumenta-se que animais € seres humanos devem coexistir e nfo uns is) se subordinarem a outros (humanos). Outro aspecto relacionado & ética refere-se & forma como os enimais sfo tratados. Os animais produzidos pela indistria agropecudria moderna so confinados em pequenos espacos, tados, por vezes, de forma brutal durante o transporte, ou antes do abate, Dois exemplos, muito citados pelos que adotaram o vegetaria- nismo por motives de ordem ética, dizem respeito @ forma como se obtém a came de © A came de vitela & um alimento que ¢ produsido @ parte do bezerro ma do vida & afastado da sua mie © Joie gras)."' Esses dois exemplos so amplamente divulgados em ‘veganos e em panfictos que so distribuidos em restaurantes vegetarianos em eventos de divulgagio do veganismo, como forma de sensibilizar as, pessoas sobre as origens de sua op¢ao alimentar, Para muitos dos jovens vegetarianos entrevistados, esses dois exemplos se configuram como o pice da “crueldade humana para com os ani ‘A propésito da proporglo de veganos entre a totalidade daqueles que se declaram vegetarianos, a escassez ¢ a imprecisiio dos dados disponiveis impedem quantificar precisamente quantos deles existem no mundo. Dados reproduzidos por diversos sites vegetarianos”* apontam que aproximadamente 70% dos vegetarianos do mundo (grande parte dos quais iio lactovegetarianos) residem na india, onde cerca de 20 a 40% da popu- lagdo niio come came ¢ onde outros 30% fazem-no esporadicamente, ‘Apenas a titulo de referéneia, em uma pesquisa realizada em 2008! pelo Harris Interactive Service Bureau, instituto de pesquisa de opiniio ica e mercado norte-americano, a pedido da revista Vegetarian Times, 7,3 milhoes de norte-americanos adultos (com 18 anos ou mais) afirmaram nunca ingerir came de qualquer tipo (em tomno de 3% da populagao dos EUA), Aproximadamente 1/3 desses vegetarianos também no ingeriam jos € mel, sendo classificados como veganos (aproximada- mente 1% da populagao norte-americana), ‘momentos om que o estibulo & limpo. Os bezerros io abuidos com aproximadamente quatro meses de vida 0 foie gras (figado gordo, na tradugdo do frencés)é pratoorigindrio da culindria francesa, Servido na forme de mousse, parfait ou paté, tem como ingredients principal o figado ‘btenpio esti relacionada ao confinamento dessas espécies vezes, Os alimentos sb ingerides por ums tubo de metal, de sproximadamente 2 ‘de comprimento, intcoduzido diretamente pelo esbfago dos animais. Esse procedimento & realizado tendo em vita que o animal i seu figado estar superinchado, 0 (Os dados dessa pesquisa também apontam que: + 59% dos vegetarianos eram mulheres ¢ 41% homens. + 42% dos vegetarianos tinham entre 18 e 34 anos; 41% entre 35 € 54 © 17% mais de 55 anos. + 57% seguiam uma dieta vegetariana por mais de 10 anos; 18% entre Se 10 anos; 11% entre 2 a 5 anos; ¢ 14% por menos de 2 anos. Desconhego dados confiaveis @ respeito do Brasil que tenham ia nacional ¢ que possam servir de base para comparagdo com ss5¢ estuido norte-americano. O que posso afirmar, com base no acom- panhamento do tema que venho fazendo desde o inicio da década de 90, © nimero de comunidades e blogs sobre vegetari cendo exponencialmente ao longo destes anos, dando uma dimensio de um cres precisa. ‘Apés essa visto panordmica do vegetarianismo, procuraremos nos nntrar, @ partir deste ponto, em tentar compreender um pouco daque- deixaram de comer came por motivagdes de ordem ética ~ os lum recorte de faixa etéria —jovens entre 18 ¢ 26 anos. mo ven eres nfo que ~ como mencionei antes ~ urge ser mensurado com Uma vida sem carne: ser jovem vegano em Sao Pau dos jovens" veganos que residem na Regiao Metropolitana Stio Paulo ~ regio onde a pesquisa de campo’? que subsidia este artigo realizada ~ quando questionados sobre as motivagdes para terem se tornado veganos afirmam que foi “pelos animais” (0 principal motivador), Parte desses dados foi apresentada na di luagao em Ciencias S deles est sendo apresentada pela seja por compaixio, amor, respeito, por no concordar com os maus tratos gue eles sofrem ou pelo direito que eles teriam & vida, como os seres humanos. Motivagdes de saiide ¢ referéncias & ecologia e sustentabilidade do planeta sto secundérias para estes e esto mais presentes entre vegeta- rianos n&o estritos (que no so veganos). No que se refere a quem (ou 0 que) inffuenciou a decisao de tomnar-se vegano, a maior parte dos jovens responde que foi mediante 0 c um material (livro, video, site, etc.) sobre o so! a seguir a influéncia de um(a) amigo(a), parente vegctariano(a) ou um(a) colega de escole/faculdade/trabalho também vegetariano(a). ‘Apesar de ser uma resposta questionavel, uma pequena parcela afirma que “no sofreu influéncia externa” (sic), tomando a decisto a partir de sua “propria conscientizagdo sobre o tem ‘Mais importante do que saber se foi uma pessoa ou um material escrito sobre 0 veganismo, parece mais interessante observar, a partir dos depoi- mentos fomecidos pelos jovens que se tornam veganos, que esta mudanga & precedida de uma quantidade consideravel de pesquisa a diversas fontes, de busca de informagao a respeito dos aspectos que envolvem 0 veganismo. E a busca de informagio ¢ associada, principalmente, ao risco a side, ¢ as, formas de se precaver contra 0 preconceito que a mudanga pode implicar: “Havia alguns conbecidos meus que eram vegetarianos € desper- taram minha curiosidade. Decidi, ent, pesquisar os motivos que Tevam as pessoas a serem vegetarianas. Com 0 que descobri sobre como os animais sio tratados ¢ tomando consciéncia de que eles também estavam vives e tinham o direito de continuarem assim, ecidi me tornar vegetariana.” (Mulher, 19 anos) “Para ser vegetariano & necessério se informer, principal ‘sobre os ingredientes dos alimentos, E se informando sobre ali rmentos voc nfo tem como nko saber como os animais sio tra- tados antes de virar comida. (..) Antes de me tornar vegetariano comecei Iendo sobre comida, sobre opgdes de pratos sem came, ‘mas ai percebi que (Co) Depois de tanta letura acava que nfo tinka mais razdo de ‘continuar comendo carn risco de ficar doente ‘(oo Senti seguranga em mudar a minha atitude depois de tanta ficar informagio.” (Homem, 18 anos) 195 | “Quando comecei a cogitar em virar vegetatiano eu no queria fazer uma mudanga dristica na minha vida sem saber se eu me prejudicaria com a mudanga. Rola muito preconceito com quem ‘ilo come came, Rola muita desinformagio também. No queria ao nko saber como me defender. E também no queria a saide. Fiquei uns dois meses lendo tudo 0 gu amo. Vi filme também (..),vérios, um ‘Quando fiquei convencido que no a de uma chuleta (sic) fiz a mudanga (.). Viel Homem, 17 anos) “Sempre me questionei a respeito do tratamento dos animais em nossa sociedade. Quando conheci o veganisme por meio de redes sociuis, passei a pesquisar sobre o assunto e me tornei vegana trés ‘meses depois.” (Mulher, 24 anos) “Depois que ent de comer cat 1 faculdade, o contato com outros vegetarianos teresse em buscar informagdes por tris do habito depois de me informar melhor, deixar de comer ‘earne por motives filosSficos e ecolégicos. er, 22 anos) Ou seja, se a pesquisa que motiva a possivel mudanga de habi ‘mentar est ancorada em preocupagdes de ordem individual, que remetem € 20 possivel preconceito a ser enfientado ao se tomar ali lc outra ordem e que vai elém de um interesse particular ao ind’ situagao dos animais. ‘Quando esses jovens tornaram-se veganos — deles ainda ~ enfrentaram reagdes que vao da aceitagio 1 docisio seja realmente séria (“isso no vai da mudanca de habito) @ no a jos de que eles iriam ficar “magros” tempo fo e que eu sabia me alimentar ‘Acabaram sceitando.” (Mulher, 24 anos) | 196 “Minha mae néo ficou muito feliz. Bu tinha 15 anos ¢ ela disse que isso era perigoso. Depois de mostrar pra cla que eu havia pesquisade sobre o assunto e que pretendia me alimentar corvetamente ela mio se opds mais e até se propds @ comprar soja, mais legumes, mais frutas etc. Meu pai ainda acha isso uma bobagem, mas respeita a ‘minha escolha a maior parte do tempo. Muitos dos meus ami cagoam de mim desde 0 momento em que eles souberam (.) Outros acabaram se tornando vegelarianos a partir das informagses aque eles obtiveram de mim em resposta sobre « razlo da minha escotha sive um dos que cagoavam no inicio (..). Alguns. ddos meus amigos disseram que era exagero © poderiamos ir a um restaurante juntos, porque "eu no comia nada”; outros, que era coerente, ji que as vacas e galinhas s80 muito exploradas. Hauve ainda 0 fato de que eu perdi peso (..) al disseram que isso era sinal de que a dieta nfo estava me fazendo bem.” (Mulher, 19 anos) Os jovens veganos também nfo parecem estar dispostos a alterar novamente sua prética elimentar, voltando a consumir care algum dia. Quando questionados sobre a possibilidade de que os avangos cientificos constatem que 0 vegetarianismo nao traz beneficios (ou contribui muito pouco) para a sade, a quase totalidade deles afirma que continuariam sendo vegetarianos. E a principal justficativa para isso é, mais uma vez, «a importancia que a vida dos animais representa para eles, rejeitando uma opgto bascada em questées de sade ou nutricionais. Bis alguns depoi- ‘mentos que ilustram esse aspecto: “Porque eu no gostaria de comer algo que sentiu dor para o mew prazer, Assim como eu no iria querer softer para que algum animal me comesse. Acredito em um mundo em que o Homem e os animais possam viver em harmonia.” (Homem, 17 anos) “Porque tomei uma decisto politica e no porque isso vai afetar a (Mulher, 25 anos) “0 bicho soften muito antes de virar alimento.(...) Nao consigo pensar s6 na minha satide sabendo que aquele leitdo & pururuca ficou assando “uma pé” (sic) de horas antes de ir para 2 mesa da cchurrascaria, E com uma mac na boca. A minha satide no € mais importante que o sofrimento do leitdo.” (Homem, 22 anos) 197 | Considerando que a alimentagiio é um aspecto cultural que envolve imentos, mas também questdes relaciona- idade, quando questionados a respeito do costume do chur- Fasco, como um evento social em que pessoas proximas se reiinem para conversar ¢ se divertir, os jovens vegenos manifestam que no apreciam po de evento, ndo costumam pagar para frequ das & social mos. Procuram ficar “longe da churrasqueira”, preocupam-se também em certificarem-se de que haveré opgdes veganas ¢, se no for esse 0 caso, levam seus préprios “petiscos isentos de crueldade”, nuo indo a churrascos, apesar de tentar inutilmente me 1¢ possivel da churrasqueira e da care. rasco acaba sendo a Gnica opgdo em ter todos meus amigos reunidos, ou algum amigo resolve comemorar ido confortével quando niio consige me afastar o sufieiente, continue frequentando esse tipo de “evento social.” (Mather, 19 anos) “No nosso pais churrasco virou cultura (..). Eu nunca vou evitar amigos por que nio so vegetarianos. Eu levo isso como uma oppa0 de vida pra mim. Gosto de divulgar se a pessoa vem me perguntar e no gosto de pessoas que ficam tentando mudar a opinito de outras Por iss0 ou aquilo ndo somente em relasiio ao veget ‘em geral (..). Mas assumno que passo mal se ¢ decane 10, mas proximo de Faz muito tempo que nio tenho contato ‘com came, entéo isso fez com que meu proprio organism estranhe isso." (Homem, 24 anos) “Dependendo dos amigos, de vez em quando eu vou ¢ como apenas a salada e converso com as pessoas. Deixar de comer came niio impede que voo8 se relacione bem com as pessoas, AS pessoas devem se respeitar € isso é o minimo necessério para uma conversa,” nos) “Minha familia € movida a churrasco, portanto, sempre estou nnessas “comemorapdes” bizarras. Ndo me exclui devide & forma | 198 diferente de pensar, apesar de ser sempre & mesma conversa, pessoas me oferecenda came e me questionando. Enfim, nfo deixo de ir. E sempre que posso, fago minhas versies vegetatianas para “Nio deixei de ir a churascos, Prefiro qualquer festa que no envolva @ culto & carne, e varias vezes consegui convencer 0s amigos a fazerem outro tipo de confratemizagio, mas se o churraseo acontece, eu niio deixo de ir. Apenas me certifico de ue toro opedes veganas no cardapio, Meus amigos onivoros vio Ccomigo em eventos e restaurantes veganos. Nao acho heresia eu acompanhé-los em um chutrasco.” (Mulher, 23 anos) “Muitas vezes @ ideia do churrasco € realmente reuni ‘gente pra beber, mas no gosto de ficar perto de cheiro de ‘queimando ¢ ndo me sinto bem pagando pra isso. Eu € churrascos no escritério em que trabalho. Eles sempre organizam, ‘mas respondo que eu no gosto de pagar para ira eventos em que ‘vou passar fome, E munca vou. Geralmente eu s6 vou a churrasco ‘quando & da familia, que Faz outras comidas sabendo que eu vou, ou de amigos mais préximos, j6 que pelo fato de eu ter muitos amigos ‘vegetarianos 0 evento so toma “*misto” e eu nao sou obrigada 2 pagar pela carne que eu ndo vou comer.” (Mulher, 22 anos) ‘Ainda em relago as amizades, nio hd manifestagao de mudancas significativas apés se tormarem vegenos. Os amigos permanecem os mes- ‘mos, mas outros ~ veganos ~ so actescentados ao circulo de amizade em fungdo de passarem a frequentar redes sociais e eventos que envolvem 0 veganismo. Da mesma forma, nio manifestam a exigéncia de que o(#) ‘companheiro(e)namorado(a) seja também vegano(a), pois “existi respeito 4 individualidade do outro, est tudo bem”. ‘Outro aspecto que acompanha a rmudanga para o veganismo esti relacionado a0 que o socidlogo francés Pierre Bourdieu di violencia simbélica e que permeia nd somente a fase de transig#o para a veganismo como a condigao de vegano no dia a dia. sobre a qual se apoia o exereicio da autoridade. De acordo com Bourdieu, a violéncia simbélica é a: (..) violéncia insen vel, invisivel as suas préprias vitimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbélicas da comunicagio e do conhesimento, ou, mais precisamente, do des- wemio, do revonhecimento ou, em tincia, do ito (Bourdieu, 1975, p. 7-8) Mediante a utilizagio desse conceit, Bourdieu procura desvendar © mecanismo que faz com que os individuos vejam como “naturais” as Fepresentagdes ou as ideias sociais dominantes. A violéncia simbélica é desenvolvida pelas instituigdes e pelos individuos que as animam e sobre a io da autoridade, No caso especifico dos veganos, apesar de ser uma qual se apoia o exen recorrénte 0 discurso de que, a que vale a pena”, & muito dificil eliminar 0 softi- imal, porque “o inimigo” — os frigorificos, matadouros e toda ia da pecuria — ut iza muitos recursos financeiros para manter seu poder tanto diretamente (mediante 0 uso da econGmica) quanto por meio de “especialistas da produ- ', que Bourdieu caracteriza como sendo os profissionais de marketing, 0s pr 10s, 05 produtores de moda, os designers ¢ os que idia colaborando com a comercielizagao de produtos e servi- 's que “exploram” animais, Segundo os jovens veganos, a forga da “indistrie da morte ¢ do softi- 10" (como muitas vezes eles a denominam) inculca nas pessoas comuns valores ¢ erengas que impedem um “diélogo racional” sobre os beneficios veganismo eo softimento dos animnais. E isso se refiete também na dis- 1e80 ou violéncia (fisica ou de outro tipo, como xingamentos ou alvo de piadas, por exemplo) que sofrem por serem vegetarianos. Alguns depoimentos: » exercer "ApOs tornar-me vegana passei a escutar rm dda mudanga, mas abalou ou ofendeu.” (Mi piladas a ress de amigos préximos, 0 que nunca me 23 anos) “Gracejos © piadinhas s20 bastante frequentes, mesmo entre amigos. Quando eu sei que vern de alguém que me respeita ¢ esta 86 “brineando”, levo numa boa e as vezes até ent na brincadeira ‘Quando vem de mraneira desdenhosa ou desrespeitosa eu digo algo | 200 , niio preciso fingir que nio sei de onde nha dieta néo me faz passar fome pra me Igo que pelo que “por vezes me sinto ridicularizada por aqueles que ignoram a questi, mas acho que boa parte das pessoas respeita a minha ‘opgio.” (Mulher, 25 anos) ‘A suposta alusio & relagao entre a lidade & um capitulo & parte da vi rianos. Vejamos alguns relatos que “Vejo mais em revistas ¢ jomais; née sto dirigidas diretamente ta Men’ Healih, su- jam desempenho sexual ‘a mim, Por exemplo, uma ma ‘gerindo que homens vegetarianos no adequado.” (Homem, 26 anos) “Associar homossexuslismo 20 vegetarianismo, “Homem que & hhomem come carne”.” (Homem, 19 anos) E interessante verificar que além da i externa, provocada por onivoros, existe também uma imbélica sendo exercida entre os proprios vegetarianos; de veganos que se sentem discriminados por outros vegetarianos, sendo tratados como radicais, de vegetarianos que se ali- rentam de ovos ¢ de leite e de seus derivados ¢ que afirmam também softer de veganos, sob a alegagiio de “serem coniventes” com lene’ criticas € violéne 0 softimento animal ao continuar consumindo leite € ovos. nda quanto a questtio da violencia simbélica, ela também pode ser exercida como decorréncia da percepgtio que observamos nos depoimentos de que muitas pessoas que ingerem came se sentem incomodadas, ou até ofendidas, na presenga de alguém que no come ou utiliza qualquer produto de origem animal. “Tem gente que se sente ofendido quando agradego © no aceito ‘um pedago de bolo em uma festa. Acham que eu sou fresco (sic) Parece que cometi um erime em recusar.” (Home; 26 ancs) 201 | im espanto geral quando digo que sou vegan. Sempre tem ‘ou maldoso. (..) Jé me perguntaram se eu “Tenko um aig vane que conou que umn vez le dike que io que cae em um churasco,(.) Flow que comer 3, Comids (-) zea um siaso(~) Tee at um qe disse qb dveiam par ochurasoe fan uma rate prec ave cstv rd remade (a) na chu” ier, 20 anos) Hee sé de vez em quando, viv’ se explicando. E otha nfo queria o bite ) Ou detonam (sic) a gente ou ficam ie eu no perguntei nada (..) $6 disse que (Muller, 21 anos) “No comego eu falava que era vegetariano, se questionarem, Hoje, penso duas vezes. par fazer as pessoas Quand digo que nfo param o i esto conversando 8 conver mi ata astinto de omer ou comer are come coms sevinr (A n gre iS ue vm ss (Muther, 26 anos) ree een “Teve um que falou em uma fest ia algumn salgadinho sem ce quando perguntei ao gargom que na minha préxima festa Mesmo soffendo algum tipo de violéneia simbélica, 0s jovens veganos mio evitam manifestar sue posigso e costumam expressi-la de diversas formas, soja se as pessoas nfo quiserem saber sobre ela.” (Mulher, 23 anos) | 202 ‘Os veganos entrevistados também gostam de se manter constan- temente informados sobre o veganismo, através de livros, de filmes da Internet (acessando sites, blogs e comunidades sobre 0 tema), Caracteristica marcante entre cles ¢ 0 costume, antes de comprar qualquer produto (néo s6 alimenticio), de ler atentamente a embalagem para saber se ela contém ingredientes de origem animal, E isso inclui veri ficar se o produto (ou servigo) que serd adquirido fi testado em animais ou ‘s¢ algum animal foi explorado no processo de desenvolvimento, “Descobri que @ Vivo patrocina rodeio. Liguei la no SAC, falei i a minha assinatura do celular. Nao vou dar dinheiro pra quem patrocina a crucldade com os animais.” 0 “No comego era complicado (..), agora eu j& me acostumei & ler rétulo de tudo. Fico vasculhando se tem bicho no que eu v comprar. (.) Se tem eu deixo o produto de lado.” (Mulher, 18 anos) nem, 20 anos) Além de observarem atentamente embalagens & procura de fracos vestem animais nos produtos, de comunicarem-se por meio das roupas qh ede objetos que utilizam no seu dis e de se manterem constantemei mados sobre o tema, os jovens veganos tém o habito de falar as pessoas {que no sto veganas sobre a sua ops. Trata-se de uma oportunidade para divulgar “tudo 0 que esta envolvido no hébito de deixar de comer came & ‘0 quanto isso se relaciona com muito m de um hibi alimentar” (Mulher, 22 anos). E deixam clara a sua opc8o pelo veganismo (sempre ou na maioria das vezes) quando alguém esta comendo care ov utilizando algum produto de origem animal na sua presenga “Eu sempre comento, porque tenho orgulho disso ¢ gosto de con- versar sobre o assunto com qualquer um que ache interessante € que queira entender os meus motivos.” (Mulher, 22 anos) “Quando ¢ pertinente, sim. Se falamos de comida ou animais ‘Também quando me perguntam © porqué de eu ndo comer tal coisa. Sempre tenlo explicar minhas razbes ¢ fazer com que 2 pessoa pense sua dieta (...) Sempre com bom-senso ¢ cuidado pra ‘nfo me tomar tuma daquelas pessoas chatas que ninguém escuta, ‘Sempre tento dar alguma informagao que as pessoas desconhecem 203 | quando fazem alguma piada sobre vegetarianos (..), Disponho a rar a08 outros come o proprio vegano & saudével, tolerante, e que vive uma vide normal, (..) Nao imponho mew ponto de vista a ninguém, mas procuro mostrar aos interessados porque cescolhi viver desta forma.” (Mulher, 24 anos) Mas, além de explicitarem sua opi, vegetarianos também atuam em defesa daquilo no qual acreditam. Quando questionados sobre pattici- alo em ages coneretas de divulgagao do vegetarianismo, a maior parte les afirma jé ter participado de alguma. E a ago citada de forma mais, fente ¢ a de subscrever urn abaixo-assinado em uma campanha de defesa dos animais. ‘Também mencionam que costumam assistir palestras sobre o tema que participam de passeatas, de zam a Internet (montando um site/ blog/comunidade on-line ou patticipando ativamente de grupos de dis- cussiio) para divulgar 0 vegetarianismo ¢ defender 0s animais, Poueos mencionam participar ativamente de alguma organizagio em prol do veganismo ou dos direitos animais.® Também uma € filiada a partidos politicos ou é sindiealizada. Entretanto, € recorrente entre os jovens veganos relatos de que a0 se tomarem veganos passaram a questionar outros aspectos relacionados mo, para além da utilizaglio de animais, como a diminuigiio de 70 Nacional de Estudos mo da dicta: ativismo veguno na Regito * hip:Hestudosdovonsumo.cam.balwp- ccontenvaploads/2010/08 | 204 a a “abtehonme de quar proses Jeo Javea de soo sttimert © exons. To mrp com maior esponsabidade ambiental opando guano Gree ede empress can mao Po. rive! pr prods orgs do empress 2 meta embiral() lnereso-ne a por otis eecloga sarmepea mai fando 0 mandate do epesetns em qv STE Sone por empress gue presume reposts Sosoubient” (Mle, 252003 c ‘empresas prodi “passei a me preocupar mais sobre como as empresas Pr seus produtos, mesmo que eles sejam veganos. Sobre a politica cdossas empresas em relago aos animais, ao meio ambiente, aos funciondrios que elas tem etc, (..). J4 tinha alguma preocupagdo (..). Mas era apenas aquel ma 1m ou que elas se resolveriam por jana que quero ver no mundo", em anos) ‘apenas fingir que el si mesmas, passei a “ser am todos 0s campos.” (Mulh iptmene om lage & cries neces se informa sobre or ingredients os ee pr aor vean.apcndo no a fo qb cose, Phacendo consume roduos egos ghe A exper asinais pete a ater oso amano” (omen, 24 ans) “No consumo produtes testados em animais de empresas que nfo tentam corapromisso com meio ambi futher, 21 anos) Je politics: 0 veganismo como participac3o a criativa ‘Apés esse panorama do que é ser jovem vegano, cabe uma pergunta: seria o veganismo uma forma de lifestyle polities ~ estilo de fazer politica que caracteriza individuos que fazem de sua esfera de vida privada um meio de exteriorizar suas responsabilidades ante quest6es de intoresse pi blico ou, em outras palavr nos termos de Michele Micheletti and Dietlind Stolle? (Micheletti; Stolle, 2010). 205 | !as sociais, em artigo publicado recentement nam se o vegetarianismo pode ser earacterizado como uma forma de ipagao criat denominam lifestyle politics Participagao criat cunhado pelo cientista politico ndo ele (McFarland, 2010), a mm, no original) é uma forma de ica nfio tradicional, que ocorre & margem (ou em paralelo) iebes politicas estabelecidas. Em outras palavras, 0 que esta em Participagao criativa ¢ como cidadaes dos mais diferentes matizes lo para si a responsabi lade pelo bem comym — no ambito de seus stuando ao largo da parti- cipagdo politica convencional, que ¢ tradicionalmente feita através de par- tidos politico ‘em governos” A procuira por pa a esta relacionada & constatagio de /ersos representantes politicos e governos, por diferentes razdes, Wo conseguindo atender as demandas dos cidadiios. Disso decorre ero crescente de cidadios venha envolvendo-se criativamente lizam a 0 mercado € a Intemet (suas redes >) para influenciar eventos e acontecimentos que julgam ser de interesse ptblico. E importante mencionar que problemas locais de uma deter le que afetam inicialmente um pequer inada grupo podem se confi- fa é uma Forma pela qual {duos "4 ¢ tomam-na em suas préprias maos. jcudo em Creative participation: defende que académicas ¢ ‘Trata-se de uma forma diferente de assumir responsabilidades enquanto cidadiios. Essa redefinigao do significado da politica confunde e tradicional divisto entre interesse piblico © conduta privada, na medida em que a cidadiios. Isso ocorre quando com fore que nio foram testados em animais. Ou mesmo quando ccitam aos seus amigos colaborago para uma causa (convocagao para wma manifestago contra um governo corrupto ou uma loja de roupas em seus momentos de lazer. vism), 0 consumo engajado ou politizado (political consumerism) ou 0 compromisso diério medi estilo de vida (everyday lifestyle engagement) so, portanto, expressbes de uma participagio criativa que devem ser consideradas. Em resumo, como afirma Micheletti, na introdugio ao texto de McFarland, Creative participation refers to situations in which (1) a large number of scattered individuals (2) share some common notion ‘public action. Insuch ‘and participation must create their own means of part (Michetedti, 2010 p. 6). ‘Uma das formas de participagdo criativa ¢ 0 que Micheletti e Stolle tics, que sho escolhas de individuos que utilizam idades denominam lifes fa situagdes nas ot um grande nimero de individuos disper algumma nogio com necsicade de una aro pice pra tng ou preserves lgum Bem comm tradicionsis 30 oferecem meios ps : ‘descjosos de acBo e paticipaglo devern crar seus proprios mes de participario. 207 | icas e exterioriza-las. E a consisténcia entre as apdes realizadas nas esferas de interesse privada e piblica que caracteriza a lifestyle p. Pois bem, o veganismo propde escolhas distintas das tradicionais 's vigentes de consumir, defendendo o abster-se do consumo de pro- dutos de origem animal, o boicote as empresas que usa came e pele de animais ¢ a ab los animais como propriedade. tormo “radical” ¢ associado ao veganismo (0 “vegetarianismo Oradicalismo dessa opsio pode ser associado, em primeire iuger,a opoao extrema em relagdo ao consumo e utilizago de qualquer produto 1, pois os veganos nfo comem came, ovos pas tenham couro ou pele ou até medjcamentos © cosméticos em animais. Mas o termo também pode estar relacionado & forma (8 adeptos do veganismo experienciam ¢ explicitam essa opc80, de tum modo quase sempre muito direto e sem concessées, como a resposta nado, em uma festa, queria um Pedlago de picanha: “Nao quero, pois nllo como cadaveres! (Homem, 21 anos) ou saindo as ruas para panfletarem em favor da sua causa, Poderiamos considerar 0 veganismo ~e principalmente aquele vi ciado pelos jovens da Regio Metropolitana de Sao Paulo ~ uma moda- stando em sua esfera de vida privada lades que dizem respeito a questées de interesse publico (ou Os relatos dos jovens veganos demonstram que, d ha uma participagao pol do ger nos moldes tradicionais, institucionalizados, lado, © dia a dia desses jovens veganos é matcado pela divulgagio ¢ defesa de suas crengas, de seus intoresses. Eles tomam para si a responsabilidade pela divulgagiio da causa na qual acreditam, por meio do 10 de bottoms, camisetas, bolsas, cademos com colantes veganos (sto ver- 's outdoors ambulantes da causa que defendem) ou fazend escolhem produtos que niio foram fazem solicitagdes aos amigos 's de suas redes a colaboragio para uma causa (convocagdio para uma ‘ago contra um governo corrupto ou uma Loja de roupas que utiliza peles de animais) via Facebook ou Twitter, em seus momentos de lazer. Essas redes de relacionamento sio constantemente acionadas para influenciar eventos e acontecimentos que julgam ser de interesse publica, indo muito além do seu interesse pela causa dos direitos dos animais. ‘Além dessa influéncia que exercem, os jovens veganos afirmam que consomem de forma engajada, soja diminuindo a compra de produtos que consideram supérfluos ou adquirindo produtos organicos, que néo causam dano ao meio ambiente ou que nao exploram animais e seres umanos. Tras, porto, de um estilo de vide que se manifesta no compro~ 10 didtio com a causa em que acreditam. Ena medida em que @ rol es passa a fazer parte do seu dia a dia, contribuem para redefini o sign ioe desta, questionando a tradicional divisdo entre interesse piblico © conduta privada, B essa forma diferente de assumir responsabilidades enq “ idadiios ~ mediante escolhas da vida privada que, ao serem exteriorizadas, implicagdes sim, ser caracterizada como uma forma de ifestyle polities, de acordo como Micheletti ¢ Stolle a caracterizam. Referéncias = HERNANDEZ, J. C. € ARNAIZ, M. G. Alimentacion y cultura: perspecivas antropolégicas, Barcelona: Ariel, 2005. 209 | McFARLAND, A, Why creative participation today. In; MICHELETTI, M. ¢ MCFARLAND, A. Creative participation: responsibilin-taking in the political ‘world. Boulder: Paradigm, 2010, MICHELETTI, M. © MCFARLAND, A. Creative participation: responsibilin ‘aking in the political world, Boulder: Peradigm, 2010. MICHELETTI, M. © STOLLE, D. Vegetarianism — A lifestyle polities? In MICHELETTI, M, © MCPARLAND, A. Creauive participation: responsibilig ‘aking in the poltical world. Boulder: Paradigm, 2010, NUNES, E. L. M. Vegetarianismo além da dieta:ativismo vegano em So Paulo. 2010, 1294. Dissertagdo (Mestrado em Ciéncias Socias) ~ Faculdade de Ciéncies Sociis, PUCSP, Sto Paulo, 201 SING! +P. Libertagdo animal. Porto: Via Optima Oficina Faitorial, 2008. STUART, T. Blodaless revolution, Nova Torque: Norton, 2007, WHITE, E, G. Consethos sobre o regime alimentar. Santo André: Casa Publicadora Brasileira, 1946. WINCKLER, M. Vegerarianismo: elementos para uma conversa sobre. Flotige napolis: Rio Quinze, 1997, | 210

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