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Drogas, Poriferias1 crime, violéncia e politica Fronteiras, espacos e uses do crack ‘Taniele Rui Enire fevereiro de 2009 ¢ dezembro de 2010 andei por muitos cenérios dde uso de crack, acompanhando o Programa de Redugio de Danos (erp) da cidade de Campinas (sr) e a one B de Lei, que realiza reba Tho semethante em Sao Paulo, mais especificamente na regido que ficou ‘conhecida como Cracolindia. Ao longo dessas andangas, becos, pracas iiblicas, cantos de rua, espacos cavados na terra em toda a extensio de linhas de trem, vindutos, beira de cérregos e construpdes abandonadas fizeram parte do meu cotidiano de pesquisa em Campinas. Igualmente zna Cracolindia, em meio 20 centro de Sto Paulo, me chamou arenga0 0 fato de que os usuitrios de crack conviviam cor a demoligao de quartel- "es inteiros,ficavam a0 lado dos escombros, ecuparam prédios que lte- ralmente caiam aos pedacos, enfim, coexistiam com grande quantidade de dejeto humano e urbana. Inicialmente, fazer uma investigaglo em tais espagos exigiu de mim 6 xxigia dos redutores (fumcionarias da PRN): esfot90 fisico ecerta ide de andar por trithas, pedras, alguns relevos e subic em cons inacabadas que ndo tinham uma porta de entrada zente a0 chao. “Muitas vezes,dirigindo-me a tais locals, comecei anotar que eles eram. ‘ateriais de demoligao que nunca fora nas de papéis que embrulham o crack de alimentos ¢ roupas, cobertores,c ccs usados para a se~ paragio das porgles de crack! ou cot sos de madeira que spas de alumninio que server de apoio para preparar refrigerante e embalagens de iogurte usadas 5» exeregdes humanas. A insisténcia desses ma- ‘orientou minha forma de caminhar pelas cide des: passe a andar de cabega baixa, procurando tais elementos, em busca de pistas de onde os usuarios pudessem ex Buscando falar com pessoas, em inconté etirados, havia também ceate- f6sforo, isqueiros, resto ‘uma “poderose expressio das restrigbes estruturais de uma cidade”, Paisage bre Carne e pedra, ou melhor, sobre cidade e corpo, dedicou uma especial atengio i “desclentada Rivingcon Street (em Nova Yo ‘bes abandonadas servem de esconderio a ‘sua rolera-russa” (Sennet, 2008, p:359). Ta reflexdes sobre esse “mundo dos mendigos”.? no q ‘a perfeieao”: “esparramados em cima dos monticulos de lixo da cidade”, 8 Sobre periferine cenvoltos por “vidros quebrados, latas de sardinha, abas de chapéu de pa- 3. Em comanicasto ha, pedagos de papel, couro, trapos, louca quebrads, livos encharcados, ‘seh Gael Fetean colariniios,casca de ovo, excremento e inumeriveis manchas de escuri- "2, ita arbitrariedade do poder. 1 linguajar conceitual de Magnani: So ainde “portir _ espagos, marcos vazios na poisagem urbana, que configuram pas- sagem. Lugares que jd ndo pertencem & mancha de c4, mas ainda nig sesituam na de li escapam aos sistemas de classificago de uma e ou- . igdo dos vazios fronteitigos”.Terra deninguém, lugar de perigo, preferide por figuras nares © para a realizagdo de rituals mégicos ~ muitas vezes, lugares sombrio que é preciso er lados. (2002, 7.23) smostram as observagbes de Sennet & Magnani, ccu- idade empirica, na leno uso de 1m para cles ape~ seus afazeres ov ‘ipos de espaco que garantem a pos creck 0 que faz com que muitos usu ‘as para consumie a substi relevante para compreendermos a relagdo que tais pessoas podem esta” belecer com o local aguencar. Dois, és dias diretos. Sem c Dai paro, dou um tempo, volte para e me guides, como e depois venho para ci de nove. (caderno de campo, 5 de maio de 2008) 10 dos oliazes dos transeuntes ¢ dos pol mide poder usar o crack e 19 Fronteiras,espacos ¢utos do crack tempo, se cuidar e voltar@“hibernar jona fala desse usuario a separagio sha de rem (onde “hiberna”) ¢ 0 seu “moes", noc supermercado nao muito dit dorme li, oferece “seguransa”. Essa laje 6a sua referéneia de morc para onde volta depois de ter consumide crack em demasia. Nota-sey pois, que o movimento de interrupgo do uso implica um afastamente do espaco de consumo. Ouseja, 0 local permite 208 usuarios continues da substincia que se estabelegam ai ch wo momento de s ia de uso, 1p0, Ema vez se estabelecendo com ibam por se inseric em redes de rela- bem como desenvolvem aproxima- is para a sobrevivéncia Especiaimente no que tange is atividades que s 0 Fenémeno da territorializagdo no énem win pouco banal ‘Como ji mosirou Michel Misse (2007), verdade que as redes socials legais no necessariamente adquirem se que elas percorrem completamente todo 0 ada, a questio parcce ga. smente diferente daqy ida, O autor nos fala ainda que, se ‘Como antropéioga,e visandlo abarcar iis espacos ‘dade, no optei nem por uma versio expecifica or uma concepgao estria da antropologia, enire a pesquisa das cidades ou nas cidades ~discussdo que, a meu ver, s6 parece indicar atomnada le ums perspectiva snaliica eignorar aquile que jé com Simmel (1983) aprenclemos, iso &, que as relagBes espaci bolo das ra porque of Comaram como = de degredo e autodegredo, Seguindo meus in julguei nao ser conver ela simples razao de 0 0s mesmos que os fizeraim proveitoso indagar como, com quem ede 20 Sobre periterias que modo eles estabelecem relagSes estando all, pois, uma vezem tals 4. Acetceverumresto desafio de entrent Iugares, as diversas teritorialidades que cada um dees esp 1s tira da semelhanga das abstragdes form nhado das interagdes concretas. Perseguint nografia que segue de modo a apresentart 1 alinha de wei do Paranapanema; 2 oprédio daVila Industral (ambos em Campinas); 3. eespaco conhecide como Cracolandia. A escolha por tis espagos corresponden mais ao meu escopo interpre- tativo ~ que, usando 08 termos de Roberto Cardoso de Oliveira (2006), se trataria de uma “comparagio elucidativa” -,* que propriamente aum ico. Os ts espagos so muito di usmetes indo ao Pa = neste aspecto, Paste cerca de ses indo & Cracolandia e apenas Industrial. Igualmente, as in~ Ao se equivalem: quase nada ddo que descobri sobre eles se Descrever todos € tarefa da ordem do impossivel. O objetivo da escol esses ts €, portanto, outro e; lembrando o fa dito,incorre numa tenta- tiva de interpretagao. aparentemente semelh cluir, de outra via, que fee difrenga consumir crack e produzir tal ‘alidade numa linha de tem présxima a um bairro de intenso comércio ‘de drogas em consoniincia com as orientagdes do Primeiro Comando da le um tipo de retacao, ‘Antes de entrar nas breves descrigBes que pretendem enfrentar as hipoteses mencionadas, é preciso sale ge de se configurarem apenas espasos de observacao, me ofereceram sobretudo ‘os parimetros da interagao, Fm duas ccasides, enquanto caminhava por outros espagos de Campinas, encontre os usuarios de crack com os ‘quais estabelecia contato 2o longo das visitas. Na primeira vez, eles nd0 ‘me cumprimentaram. Na segunda, eu tentei a aproximagao, saudando jome. Ela veio me perguntar de onde eu a conh ha de trem, do Programa de Redugdo de Dano: contrario também se passou. Muitos 1 id conhecia anteriormente, por intermédio de instiuigbes assistenciais, ficaram muito desconfortiveis ae me verer nesses espagos de uso, Pes. soas que frequentavam oF de Lei, assim que me viam na Cracolandia, tentavam justificar por que estavain ali. Na primeira opor me fizeram atentar para o fato nao menos relevante de que também nossa relagio era espacialmente marcada. Tratava-se, portanto, de uma inter ‘0 que s6 era possivel ~ desejéve! (ou no) -naquele contexto de uso. ‘Nasequéncia, parto para as especifcidades de cada cenario, Optei aqui, como ji escrito, por ni deserever pormenorizadamente cada umn ddesses espagos, mas observé-los em conjunto, pelo que eles evocam a pensar. A linha de tem do Parangpanema Ocampo”? que os redutores de danos me apresentaram como Paranepa- nema compreende tréscendrios geogrificos bastante distintas:a linha de rem, a parte de casas autoconstraidas, apreendida como favela e que cor- responde ao bairro Santa Budoxia, e ainda um segundo bairro ~0 Jardim ‘Sio Fernando, onde estio as residéncias com melhor infraestrutura. Na é ‘do Paranapanema, que nto compde mais oitine- assim nomeada pelomapa de atuagio da Secreta- siade Safide Municipal, ocalizada na parte sudeste de Campinas, numa ‘rea de ocupario que seguiu ao sul otracado dos rilhos das estradas de {erro construidas em todo o Estado desde meados do século xix. i icra considerada,na “geografia do ares de maior movimentagao desse Iguém que passasse 0s olhos pelos twifico” da cidade, um dos comércio,’ drogas ese tornou um “problema de seguranca”.’ O espago que, auma primeira impressio, amedronta e fasta muitos moradores da cidade, ‘quando observado de perto, revele ourras formas de regulagdo e outros ‘upos de personagens urbanos. Essa linha é permeada por uma série de outrasrelagdes de evitacdo € mento. No interior do bairro, dizer que alguém foi visto pa- i também que muitos Em grande parte iso dcorre -onsumindo crack. Estes usta mais frequentes se agrupam de acordo com a afinidade conjuntural etentam formas de se apropriar do espago. Nunca presenciei a policia Andando constantemente por esta linha de trem e pelos baisros que dela se depreendem, notam-se divisOes bastante instigantes quanto 20 ‘espayo, ds ocupagies, as exapas do comércio de drogas, aos locais de a ee dis 25 Fronteirasjespages © uses de crack ‘cumprimento de orientagdes ¢ condutas q prio da Vila Indusrial ymandaram a operagdo de esvaziamento do prédio, jamento, do helicéptero Aguia ede agentes da ‘ ladono processo de uma divida com o ban nanceiras 0 impediram de cone! ccurado por incorporadoras interes ‘cambio, que vem sempre ‘ou humilhagao. A meu ve 1ode bairros nie &, ais que tudo, lango a hipétese de so e demarcago tanto espacial quanto do trfico de drogas e usuérios de crack, “io. Baseada nos trabalhos de Karina entrar, quebraram os tapumes. Segundo a reportagem teria presenciado, © capitio da Pat solicitara que uma viatura da GM permanecesse no lo- Fronteiras,eapacos ¢ utos do crack Esse tipo de aco merece ser observada um pouco mais, Pos, de modo semelhante ao que se passa com atividades ligadas aoe diverses tipos de mercadosilicitos, dois modos de consecugio de operagdes estatais silo realizadas: as de cariter piblico e as de cariter privado. Conforme Rotana Pinheiro-Machado (2008), primeira éefémera e concerne a0 pprocessos fiscalizadores; ie Hiciamento na érea, O sec ‘acordo com a PM e disse quea de Assuntos Juridicos negou yonsabilidade da dea apés a desocu- bbairros da cidade, que ‘qdo Cultura efou por cular renades que, de oxtromedo, ose passer cotdienamentsnaregdo ue ficou conhecida como Cracolindia ~0 que sbordo na sequéncia. gistros de que o centro de Sao Paulo atrai e concent ‘May, de vendedores ¢ consumidores de crack (vers por exe © Goulart & Mingard, 2001). data ébem proxima i dos egistrs ini- 30 Sobre periteriag ciais do crack no Brasil (1988) que, de modo instigante, segundo Uchoa (2996), teria chenado peime a Leste da cidade (regio de Sto Centro, contado, que ficou nacio- jo crack”. No ha quem, no pais, lo la €fonte inesgotivel de noticias, as esanitérias e, mais recente- historias, agdes, atividades ped mente, de panic Paulo ¢ passou a nomeer outros censrios de uso e outros agrupamentos {em torno do consumo de crack, em vavias cidades brasileiras. Estranha- ‘mente, “crack” ¢“ Cracolandia” parecem eada vez mais se tornar sinéni= ‘mos. A regio, assin ‘De modo espectfico,a grande concentrago de consumo no centro envolve, de um lado, migragGes ou agenciamentos complexos de saida dos buirros mais perféricos em direco ao centro, visando ora a lazer ¢ local de grande concentracdo de servigos © que torna as dindmnicas de compra de crack ede angariar fundos bastante singulares. Diferentemente do Paranapanems, por exemplo, que estabeleccu var lor de Rs 0 para a pedra e troca mediante dinero, nesta regio de Sio Paulo as pedras de crack sio fracionadas e é poesivel encontrar lascas que ‘podem custar umm minimo de R60,50. Numa regio de muito fix, inch sive de dinheito, 0s esforcos para conseguir fundos para comprar a droga passam por outros caminhos e empos. Pode-se obter um pouce de di- heiro, comprar a droga, usi-la,voltar 4 “correria” e consumir crack de novo, num ciclo continuo. Muitas trocas que nio as monetérias também antes das drogas conrrolem a circulacdo © lo coibir o excesso e a degradacao corporal), no centro perder”, o que possbilitaria um uso mais intenso da ia imperioso 0 aurocontrole 10 do artigo e para nio me estender na discussdo, 18a que, no local, as operacdes policais ndo so tio Performéticas nem tio efemeras quanto a ocortida no prédio de Vila In- do constantemente na regio, compondo parte 4a paisagem, sempre parecendo testartécnicas mais eficentes para 0 controle desse territério. Duas se destacam: 1 aronda continua, que faz com que os usuarios tenham que ficar 0 ‘empo todo crculande, tm incansivel jogo de gato emo pelos quartet es prdximos;, 2 contencao, que consiste em cercar um quarteirio, impulsionando a concentragao dos usudrios, deixando-os circunseritos a essa delimitagao ‘mais ficsis, portanto, de serem abservedos. dustrial. Os poli at Frontelras,espagos 6 uses do crack dia no local, ofatoaser destacado é que eu materializava wma espe ‘ie de personagem coma qual elesse acostumaram a conviver ea confi, "No mais famoso territirio de uso de crack do pais, uma série de situa- ‘¢6es acontece num espago curto de tempo, envolvendo diversos tipas ‘de associacio e imteragdo que marcam o cotidiano desses usuarios:ne- sociagdes Ora hostis, ora amigéveis com os comerciamtes locais; grande assédio de instruigbess hewerogeneidade maior dos usuarios ¢ tr de crack, que, por sua vez, dferentemente do Paranapanema, quentemente se confundem;e tensa convivéncia com as dive ic » Guarda Metropolitana e até segurancas privados), = do bairro, wanseun~ ddeimprensa, estudantes segue: moradores, comerciantes e frequenta tes, rabalhadores das imediagdes, profssio ¢u)smembos de vii insiuge religions fine da Prefer a0, 198, grupos de artistas, urbanistas, movimentos seciais de uta por moradi, defensores dos direitos humanos, servigos publico de ‘gatide e de asisténcia, pce, interesses oreiros, construtorat imobilirias, investidores internacion: se passa aj envolve di- micas tio entramadas e ao mesmo tempo to indepencentes e espon~ tneas, que zombam de qualquer tentativa de entendimento, Definitivamente, alo te trata de um local com auséncia de Estado, (Consideragaes fini Antes de finalizar, enfatizo que a pesquisa nil generaliza todos 0s usos ‘nem todos os usuirios de crack. Contudo, centrei minha atengao nas termo que, ao longo do estudo, passei a aprender como um: ‘um s6 tempo, de acusagao e de assun¢20, que agrupa apenas um ses ito particular de usuarios: aqueles que, por uma série de cir- relagio extrema radical, produto e produtora de uma corporalidade em ‘gue ganha destaque se morais, renciaie e policialescas, ‘que visam tanto a recuperi-los quanto a climina-los; também central ‘zam o investimento de intimeros dispositivos politicos que passaram a lidar diretamente com a questo, Se da perspectiva das interagies con- # Sobre periferias cretas tata-se de uma categoria bastante p é instigante o faro de fica todo o aparato repres~ ‘emoral. ‘onjugar a etnografia dos tris epapot de uso de crac, en joo desafio de fazer convergir ialidade, sociabilidade e corporalidade abjeta, Foi esse 0 props- «engojamentos e gestdes, bem como negociam e interagem com dlstintos stores sociis. Em sintese, eles nfo estio “fora” das relagdes sociais, mas as coproduzem e as constituera tal como si, Para eles, 2 estada e a tran- sis por eada um desses espagos, portanto, envolve um céleulo de van- tagens e desvantagens, rscos e danos, medes e necessidades, que nem sempre é simples de ser feito, Fronteiras,expagos ¢ usos de crack

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