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UNIDADE - IFCH SIDNEY W. MINTZ e RICHARD PRICE Uma perspectiva antropolégica BS SS AX UNICAMP PAAS SS Biblioteca - IFCH Rio de Janeiro Impresso no Brasil 1992, ISBN 0-8070-0917-2 Publicado originalmente om Boson-2, pe Beton Pres, tino exiginal: The hish of afican-American Cutan an anthropological perspective 1 edo em lingua portuguese emt 2005, ele Pala Elona Disibiors Lida Univeraiae Cando Mendes, Baal Pallas Etna Universidade Candido Mendes ae Centro de ito hio-Brasetos cesta Sri Wath Dieters papa ost Herlnger ‘Hea Brown Coontenscio do Peete poeTp as ‘Marcia eee "Marcos Raque Teaducao: Bete Coben Veen Biro Bete ovis da Taio: ‘Waller ito Pornardo Rss cape edo Ga po update Feed “Todos ot iios yar agua portagues esevads & its le ¢ Diels i ©Unerad Cn Mende ‘winds a reproduste, por qualquer meio resinic,clelrSnce areyrticn he Sema permisio peuia po ean das ern, de parte ou ca acne concidese knpeio. (IP-BRASHL, CATALOGACAO-NA-FONT: SINDICATO NACIONAL DOS EDITORS DE LIVROS, Onan cats ams me pret atop 2/ sin) WinRar ra auc os Hires Rods oo Fee Unported 2008 iat ‘rd Thebirhot Ak Aneran are anantaoplge rca igri isc ine-ber gers Eustesezst%n sear aertny segue fie we wegen SUMARIO PREFACIO / 7 AGRADECIMENTOS / 17 INTRODUCAO / 19 1, O MODELO DO ENCONTRO / 25 2, CONTATO E FLUXO SOCIOCULTURAIS NAS SOCIEDADES ESCRAVOCRATAS / 43 8. O SETOR ESCRAVO / 59 4. PRIMORDIOS DAS SOCIEDADES E CULTURAS AFRO-AMERICANAS /65 5. © QUE FOI MANTIDO E SOBREVIVEU / 77 6. PARENTESCO E PAPEIS SEXUAIS / 87 7. CONCLUSAO / 111 BIBLIOGRAFIA / 115 PREFACIO O texto que se segue foi redigidoem 1972-1973, imediatamente apés a luta pelos direitos civise a répida criagio de curriculos de Estu- dos Afro-americanos e Negros nas uriversidades dos Estados Unidos, como parte da verdadeira explosio de interesse geral (e de publica- es) na esfera da Historia Negra.' Ele pretendeu ser uma profissao de f€ ¢ um manual, Estévamos inquietos com algumas polarizagses que vinham despontando nos estudos afro-americanos. As preocupagdes ideolégicas pareciam em vias de distorcer a busca erudita que fora ‘cartografada por pioneiros como W. E, B. DuBois ¢ Carter G. Woodson, nos Estados Unidos; Fernando Ortiz, em Cuba; Nina Rodrigues e Arthur Ramos, no Brasil; ¢ Jean Price-Mars, no Haiti; ¢ Jevada adiante pela geragao de Melville J. Herskovits, E. Franklin Frazier, Zora Neale Hurston, Gonzalo Aguirre Beltran, Roger Bastide, Romulo Lachatafieré ¢ outros. Assim, concentramo-nos nas estratégias ou abordagens do estudo do passado afro-americano, em vez. de apresentar os resultados atualizados desses estudos, na esperanga de incentivar historiadores & ‘outros pesquisadores que estivessem ingressando nesse campo a em pregarem modelos conceituais que ficassem plenamente & altura da complexidade de seu tema, Nossa fese pretendia basear-se nas percepedes de Herskovits € seus pares. Mas foi recebida, em algumas areas, pelo que foi — para 1. Para uma excelente resenha bling dese period, ver Peer H. Wood, did the best Foo for my days The study of exrly Black history daring the Second Reconsteacson, 1860 to 1976", Wile Mary Quarterly 33 (1978) pp 185-225, Pra uma reser de trbalhospeseiores sobre scscraviddo, ver Joseph © Miles, Stine: Worktnndesiblagraphy, 1900-1982 White Pains, NY ras Internationa, 1985) eos splementospermancates de Mile Larisa, Brow, James Vk ‘David. Apply, publloados no peiéico Shvery and Abaion. 8 0 nascmento de catarsafo-inericaae nés — uma hostilidade surpreendente, acompanhada pela acusagio de que negava a existéncia de uma heranga africana nas Américas, ‘Muitas dessas reagdes pareceram originar-se em um desejo de polari- zar os estudos afro-americanistas em uma posigiio puramente “pro” ou “contra”, com respeito a preservagao de formas culturais africanas. Por exemplo, Mervyn Alleyne chamou-nos de “tesricos da criagio”, acusan-do-nos de uma atencdo exagerada para com a criatividade cul- tural dos africanos escravizados no Novo Mundo; no entanto, seu pro- prio livro chega a conclusées préximas das nossas.? Daniel Crowley criticou duramente o livro de Sally ¢ Richard Price, Afro-American Arts of the Suriname Rain Forest |Artes afro-americanas da floresta tropical do Suriname), que desenvolve a abordagem conceitual em um contexto histérico especifico, ¢ 0 acusou de “exagerar extravagante~ mente uma boa argumentagio”. Joey Dillard considerou os autores ‘como “no festando] completamente do lado dos anjos” ¢ tendo argu~ mentos “controvertidos, se no decididamente heréticos”.* Embora esse discurso teolégico seja menos comum hoje em dia, a disputa continua. Joseph Holloway, depois de afirmar que a eficacia do livro “é atribuivel a seu arcabougo te6rico, stia metodologia aplicada sua andlise dos africanismos do Novo Mundo”, concluti que “sua limi- tagdo esta na incapacidade de examinar a aculturacio e os residuos africanos fora do Caribe”.° Uma recente controvérsia entre o folclorista Charles Joyner ¢ o historiador C, Vann Woodward sugere que a linha de combate ainda é tracada mais ou menos no mesmo lugar: Em um verbete da Encyclopedia of Southern Culture, Joyner afirmou, com espirito semelhante a0 nosso: 2. Mervyn G Alleyne, Roots of Jamaican Culture Londres, Pio Press, 1988), pp. 4-5, 17-286 passin 8. Danie. Crowley, resenhade S.e 8 Price, Atto-Americn Aris ofthe Suriname Ran Forest, “AMtican Arts 6 (1981), pp. 27, 80°81, 4 LL Dillard, Slack Numer ai, Moston, 1976), p. 10-11 5. Joseph E Holloway, "The orgin of Afican-American culture, inJoseph Holloway (ots), Aticanisns in American Culture Bloomington, Indiana University Press, 1990). Xl Ua vee ave © subtitulo orginal do livro ere 4 Cantbsun Perspective, as eis ao noses foco wa gecgrala arecemtonos mal orients. paeehcio 9 O proceso de mudanea lingitistica fornece um modelo pars explicar outros aspectos da transtormacao da cul- furs africana em afro-americana, O que se poderia cha- mar de “crioulizagao dacultura negra" envolve os pritt- cipios “gramaticais” inconscientes da cultura, a “estrit- tura profunda” que gera padrées culturais especiticos. Tais principios gramaticais sobreviverarn a rota negreira da travessia do Atlantic’ e regeram a adaptacao seleti- va de elementos das culturas afvicana e européia, Arrebanhados ao lado de outros com quem partitha- vam a situacéo comum de servidao e um certo grau de superposicdo cultural, os afticanos escravizados foram obrigados a criar uma nova lingua, uma nova religio e, 4 rigot, uma nova cultura, Foi a esta iltima frase, em particular, muito proxima de um tre~ cho de nosso proprio livro, que Woodward, com tipica “condescen- déncia fidalga’”,’ objetou no The New York Review of Books? Por mais inocentes que sejam, as suposigdes a respeito do que parece e nao parece (ou tem ou nao tem jeito de ser) cultural- mente “africano” continuam a atormentar os estudos afro-ameri- canos, as vezes com um toque bastante bizarro. Ha uma foto par- ticularmente evocadora do proprio Herskovits, que aparece em { Oterma ‘reolizaton” ni tent radueso usual em portugues Signiic algo parecio histor ‘amente 4 nossa mesigagem e misigenacdo come cenceto de pensarento seca brasileiro, (Nota Aotevisoréenico) 17. Olermo "Middle Passage” (lit Rota do Mes) no-em tridugoconvencional om portugues Eat todo livros express sera traduzica por va negrita de tavesi do atimtco. (WRT) 8. A expressio condescendéncia fidalga ¢ uma ‘iduclo possivel do termo “gentiemanly forebearance” ese refere deforma irbnica a uma teeranca esobe de um getlemn, que devido 9 seu alto statussocial pode se dt ao xo de oerar “inferores™. (NRT) ‘9. Chale joyne,“Creolization”,JnChanles Reagan Wilson c William Feres (ngs), Eneyeopedie 0f Southern Culture (Chapel Hl, University of North Carlin Press, 1989), pp. 147-149;C. Vann ‘Woodward, “The tarcsistc South", New Yark Review of Books (28 de outubro de 1989), pp. 15,14, 16-175Charies Jayne, “Speaking Southern”, Now York Review oF Books (18 de evereivode 1869), pp. 82:58;C. Vane Woodward em 10 (© sasimento ce cuturearo-americana um livro sobre a histévia da antropologia com a legenda: “Melville Herskovits segurando um artefato religioso da Africa Ocidental na Northwestern University, c. 1985 (Cortesia dos Northwestern University Archives).” A rigor, no entanto, 0 objeto sagrado que Herskovits segura (assim como 0 banco, 0 abano, os utensilios de madeira na mesa a sua frente € o tamborete bem acima de sua cabega) nao foram feitos na Africa Ocidental, mas por quilombolas saramacanos (Saramaka Maroons) do Suriname (onde ele 0s havia coletado com Frances Herskovits em 1928 € 1929), mais de dois séculos depois de os ancestrais dos saramacanos terem sido trans- portados a forga de sua terra natal, nas regides ocidental e central da Africa, Herskovits, que passou boa parte da vida procurando sondar as relagdes culturais entre a Africa e as Américas, prova~ velmente aprovaria que este esclarecimento sobre o Velho Mundo © 0 Novo Mundo fosse registrado aqui.’ Nao obstante, nas duas iiltimas décadas, a importancia de enfocar 0 processo no desenvolvimento das culturas afro-america- nas, de examinar os diferentes tipos de mesclas € misturas, foi aos, poucos reconhecida ¢ admitida, como se pode ver em livros tao di- versos quanto Black Culture and Black Consciousness, de Lawrence Levine; The Signifying Monkey, de Henry Louis Gates; Africa's Ogun, de Sandra Barnes; ou os ensaios de Holloway em Afnicanisms in American Culture." Mé alguns dos estudiosos cujos métodos havia- ‘mos criticado mais cabalmente, no ensaio original, hoje incorporam em seu trabalho uma flexibilidade conceitual maior. For exemplo, Robert Farris Thompson agora escreve mais sobre a “cultura callaloo” 10, A foagraia ea lgendaparecem em Waller Jackson, Melville Herskovits and the search or _Aeo-Amerean cutter George W. Secking, J [), Malinows, Rivers, Boradic and Onhors {Bsseyson Culture and Personally Qdadison, Universi of Wisconsin res, 1888), p. 86. 1, Lawrence W, Levine, Black Culture ard Black Consciousness Afro-American Folk Thought ‘rom Slavery to Preedons (Nara York, Oxford University Press, 1877); Henry Louis Gates Jn, The ‘Signying Monkeys Theory of Afro-American Literary Crsctn Nova York, Oxford Unversity Pres, 1988); Sandia T. Barnes (org), Africas Osun Ol Word and New Bloomington, thaliana University res, 1989), prericio u (ama metifora culindvia do Caribe sobre a mistura) do que sobre os residuos africanos puros nas Américas. Um de seus alunos, David Brown, iniciou sua dissertago de doutorado escrevendo sobre a re~ ligifo afro-cubana: As escolhas criativas dos lideres conscientes de si e de seus dedicados seguidores possibilitaram o surgimento, ocrescimento ea resiliéncia das religibes afro-cabanas ‘em Cuba e nos Estados Unidos, a despeito dos persisten- tes esforgos oficiais de coopté-las, controld-las e destrist- Jas, As religides afro-cubanas de hoje dever sua exis- féncia ndo a “remanescentes” passives, mas a uma his- toria de vitérias em batalhas arduamente vencidas, nas quais sua capacidade de recuperacio deveu-se tanto iis transformacoes inovadoras forjadas nas terras do Novo ‘Mundo quanto 4 manitenedo ou & preservaciio de tra~ digdes africanas “‘pures”.® Mirabile dictu. O epitome dessa mudanga geralé a obra do historiador caribenho Edward Kamau Brathwaite, que acrescentou o seguinte trecho a edigio de 1981 de um livro originalmente publicado dez. anos antes: E por isso que, para as habitentes das Indias Ocidentais que estio a procure desua identidade, o estudo do perio- do escravagista, e particularmente da cultura popular dos escravos, & muito importante, Edurante esse periodo que podemos ver como 0 atricane, importado da area de sua “grande tradigdo”, procurou estabelecer-se em tnt novo 12, “Diversas historias da ar, eno uma, floreicemn hoje em nosso planets. A coisa crioala& fazer €mishurh-las, Foi-se «idea de um enone nico. Que vonka 6 calla." Robert Farvis "Thompson, “Recapruring heaven's glamour: Afo-Cavibbean fesivalizing ars john W. Nunley Judith Betelhein (orgs), Cuibtew Festival Aris eal, Universi of Washington Press, 1988), pp.i7-23, 13, David, Brown, Garden in the Machine: Afro-Cuban Sacred Artand Performance In Urban New Jersey ad New York, ese de doutorad, Yale University, 1989. 12 0 maseineno de cultura atoremoricans ambiente, usando os instrumentos disponiveis ¢ as lem- brancas de sua heranca tradicional para deslanchar algo nove, algo caribenho, mas, ainda assim, algo reconheci- velmente atticano (.,). A tese deste estudo é (.,) que éna natureza da cultura popular do ex-escravo afticano, que petsisle até hoje na vida do “poo” contemportinea, que podemos discemir que. “rota do Atlantico” nao foi, como se presume popularmente, [uma simples] experiéncia destrutiva trawmitica que separou os negros da Africa, rompendo seu sentimento de historia e de tradicéa, mas uma via ou um canal entre essa tradigdo e o que se vem desenvolvendo no novo solo, no Caribe." For insisténcia de colegas ¢ alunos, optamos por reeditar nosso ensaio original basicamente sem modificagdes. Atualizamos um punha- do de referéncias, sobretudo a nossa propria obra; em alguns casos, mo- dificamos a terminologia, para ficar em dia com as normas atuais (por exemplo, “negro da mata” transformou-se em “quilombola do Suriname”, ¢ “afto-americano” converteu-se em “africano-americano”"*, quando se refere a pessoas de ascendéncia africana nas Américas); e fizemos diversas pequenas altcragies estilisticas. Se reescrevéssemos aquele en- saio — on se escrevéssemos hoje um texto paralelo—, nao hé diivida de que sua forma de argumentacao, assim como os exemplos evocados, se- tiam diferentes; o cardter provisério do ensaio ¢ seu recurso freqiiente 0 subjuntivo seriam substituidos por uma confianga mais segura, e um. grande ntimero de avancos expressivos na antropologia, na histéria e na lingtiistica seriam incorporados. Ambos, no entanto, continuamos a crer na mensagem prograntica central do ensaio, Visto que o texto em si guarda uma certa integridade histérica e como cada um de nés levou Ta. Edward Kamau Brathwaite, SUE Cure ofthe Slows in Jamies, ed. re, (Londres, New ‘Beacon Books, 1981), pp. 6-75 15. Nova dos Editors, Apesar dos autres teem modiicad a terminolagia de afto-amerieano ara aficeno-amserican, indcanco ume mudanca de percep do movimento negro das Estados Unidos, adotaremosaqul otermoaito-americano, = previcic 18 consideravelmente adiante alguns aspectos particulares de sua tese em obras posteriores, optamos por deixd-lo ficar como estava. Nosso prefacio original, eliminado nesta nova edig&o, comegava por uma epigrafe extraida de Herskovits: Desconcertantemente, sio os que sustentam opinies extremadas a respeito dos negros que pressentem 4 oportunidade de reforcar suas teses especiticas, fazen- do referéncia ao fato de se haverem preservado atricanismos no Novo Mundo. A esquerda, 0 ponto de vista adotado concebe os negros dos Bstados Unidos como uma “nacao” subjugada, cuja verdadeira liber- dade cidadania plena talvez $6 possam ser alcancadas depois que a criagéo de uma Republica Negra auténo- ma, no sul, houver permitido a realizacdo do talento intrinseco dese povo. Que melhor base tebica se po- deria encontrar para esse projeto do que o material que parece mosirar que os negros norte-americanes, por baixo da pele, néo so mais do que africanos cujas, tendéncias raciais reprimidas, uma vez libertas, Ihes fornecerio 0 impulso necessério para realizar seu des- fino? Ao mesmo tempo, as que se situam na extrema direita, insistindo na segregacdo social e econémica do negro norte-americano, também corrobotam sa pos- tara considerando os airicanismos preservados na vida negra norte-americana. Nao & essa uma prova, dizem eles, da incapacidade de o negro assimilar a cultura branca em grau viivel e, sendo assim, no devem os egros ser incentivades a desenvolver seus dotes “ra- ciais” peculiares — sempre, bem entendido, dentro dos limites do “lugar” dos negros? '° Te Melvillol. Herekovita, L@ In a Hatizn Valley Nora York, Knopf, 1987), pp. 808-804 14 © mascomeno de culture afo-emericane Fssas palavras, escritas hd mais de meio século, ainda sto uma poderosa adverténcia, Concluimos aquele prefiicio com algumas idéias correlatas pro- prias, idéias estas que continuamos a endossar ¢ que aqui queremos repetir: Uma ver que este ensaio versa sobre a evolugao de for- mas sociaise culturais entre os atro-americanas, em con- dices sociais que eram e so fundamentalmente racis- tase desiguais, tudo 0 que aqui abordamos pode ser vis- to como tendo um claro coeficiente politico. Em tese, pode-se analisar a organizacito doméstica dos campo- neses jamaicanos, ou as téenicas de entalhamento dos quilombolas saramacanos, ou a festa de Sto Tiago Apos folo em Loiza, Porto Rico, sem necessidade de ter em mente, a todo momento, 4 importincia politica do que se descobre, Em tese. Na prtica, assim como a pesquisa antropolégica em geral vai-se tornando mais significa- tive a cade dia que passa, em suas implicagces humanas © politicas, também a pesquisa antropoldgica que toca nas experiéncias e percepedes cotidianas dos africano- americanos deve tornar-se, inevitavelmente, parte inte- grante do clima ideoldgico da vida contemporinea. Nes- sas circunstancias, é vital que antropdlogos como nds exponham com a maxima clareza possivel 0 que esto fentando fazer. Neste ensaio, pleiteamos “maior sutileza analitica e mais pes- quisas sociohistéricas” e expomos algumas idéias para ilustrar por que as consideramos necessidades primordiais, neste momento, no campo da antropologia afro-americana, Nas palavras de um de nos- 808 criticos mais sinceros, amaveis e valiosos, entretanto, “a necessi- dade da interpretacao sutil nao deve ser usada para minimizar a opres- io ¢ a exploragio flagrantes”. Concordamos enfaticamente. E tam- ‘ ' presicro 15, ‘bém uma profunda conviccdo nossa que a natureza da opressiio, apesar de Sbvia em suas formas mais conhecidas, envolve igualmen- te sutilezas, uma das quais é sua maneira de dividir ¢ confundir os estudiosos honestos, perpetuando a desconfianca ¢ 0 medo, O teste de nossas idéias e descobertas, como sugerimos na conclusio, “deve ‘competir mais as tarefas da pesquisa historica e antropolégica séria, ‘e muito menos a seu carter persuasivo nos planos légico, ideolagico ou sentimental (..). A verdade inescapivel no estudo da Afro-Amé- rica é a humanidade dos oprimidos ¢ a desumanidade dos sistemas que os oprimiram”. Que essa opressao nao terminou, de maneira alguma, deve ficar tdo claro para todos quanto ¢ para nés. AGRADECIMENTOS A primeira versio deste livro teve a forma de um ensaio, apre- sentado no Schouler Lecture Symposium sobre “As sociedades crioulas das Américas ¢ da Africa”, realizado na primavera de 1973. 0 profes- sor Jack P. Greene ¢ seus colegas do Departamento de Historia da Uni- versidade Johns Hopkins ofereceram-nos a oportunidade de partici- par desse simpésio. Roger Abrahams, Roy S, Bryce-Leporte, Stanley Engerman, Jerome Handler, Franklin Knight, Barbara Kopytoff, Linda Marks, Sally Price, Raymond T, Smith, John Szwed ¢ o falecido William Willis tiveram a generosidade de nos oferecer criticas titeis aos manuscritos iniciais. © trabalho de Price foi respaldado, em parte, por uma verba fornecida pela Comissio Conjunta sobre Estudos Latino-Americanos, do Conselho de Pesquisas em Ciencias Sociais e do Conselho Norte~ Americano de Sociedades Eruditas, O trabalho de Mintz foi concluido durante seu periodo de residéncia nc Instituto de Estudos Avancados, em Princeton. Na preparagao deste texto, os autores receberam o auxilio inesti- mével de Margaret Collignon ¢ da equipe editorial da Beacon Press. ‘Também desejamos agradecer a Andrew Roy pela compilacao do indi- ce remissivo. INTRODUCAO Este ensaio oferece uma abordagem antropolégica geral do es- tudo da historia da cultura afro-americana, Nele discutimos a instala- ‘do inicial dos africanos no Novo Mundo, em contraste com a das populagdes européias, e comparamos essa instalagio, vista como uma. cespécie de “linha basal”, com as formas que as comunidades africano- americanas viriam a adquirir posteriormente. Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que seja sua liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o seu estilo de vida e as crengas e valores que Ihe sio concomitantes, As condigdes dessa trensposigao, bem como as caracte- risticas do meio humano e material que a acolhe, restringem, inevitavel- mente, a variedade ¢ a forga das transposigées eficazes. No processo de povoamiento do Novo Mundo, é quase desnecessério dizer que europeus africanos tiveram uma participagdo altamente diferenciada, Embora, & primeira vista, talvez parega que a continuidade e o vigor dos materiais, culturais transpostos tiveram um peso muito maior a favor dos europeus do que dos africanos, afirmamos que uma abordagem mais sofisticada do teor desses materiais de transposi¢fo nfo respaldaria essa conclusio simplista, As vantagens da liberdade, das quais desfrutavam os euro- peus, ndo tinham como garantir um sucesso maior na transmissdo cul- tural, ainda que a liberdade tena facilitado em muito a manutencéio de certas formas culturais, Apesar disso, cremos que carter das transpo- sigdes e suas transformagses posteriores podem, em certos momentos, ‘afirmar uma continuidade maior no caso da Afro-América do que no da Euro-Amética, considerando-se as situagdes extremas ¢ os contextes hostis em que se deram essas transposigdes. 20 0 mucinento decals sranmericans Existem algumas diferengas obvias entre as maneiras como africanos ¢ europeus participaram do povoamento do Novo Mun- do, © povoamento europeu, em sua maior parte, foi feito por gru- pos de colonos que representavam tradigdes culturais nacionais especificas — inglesas, holandesas, francesas etc. Admite-se que, muitas vezes, esses grupos eram origindrios de determinadas provin- cias ou regides, o que conferia um cardter provinciano particular & sua instalagdo. Assim, em muitos casos, pode-se demonstrar que a Normandia ou a Guyenne [Aquitanial, ¢ ndo a Franga, deram um carter singular a esta ou aquela nova colénia. Os africanos esoravi- zados, contudo, foram retirados de partes diferentes do continente africano, de numerosos grupos lingitisticos e étnicos e de diferentes sociedades das varias regides. Alguns estudiosos afirmaram — cre- ‘mos que por boas razSes — que eles compartilhavam um certo ni~ mero de entendimentos ¢ pressupostos culturais subjacentes, & me- dida que suas sociedades aparentavam-se umas com as outras, tanto historicamente quanto em virtude do contato intenso, Outras unida- des ¢ continuidades, de natureza mais especifica, também foram identificadas, ¢ discutiremos algumas delas.'Nao cremos, porém, que se possa dizer que os africanos escravizados e transportados para Novo Mundo compartilhavam uma culfura, no sentido em que é pos- sivel afirmar que o faziam os colonos europeus de uma dada colonia, As diferencas da escala de organizagao e do grau de homogeneidade regional também devem ser analisadas, ao se tracar essa distincao. Embora nossa tese aqui seja proviséria, dispomo-nos a enuncié-la, reconhecendo os riscos pertinentes. Um contraste primordial, por- tanto, que elaboraremos e restringiremos mais adiante, dase entre a cultura relativamente homogénea dos europeus, no povoamento ini- cial de qualquer colénia do Novo Mundo, ¢ as herancas culturais relativamente variadas dos africanos nesse mesmo contexto. Um segundo grande contraste, também ébvio, mas essencial, diz respeito ao status dos imigrantes no contexto do Nove Mundo, Nem todos os africanos que a ele chegaram entre 1492 ¢ a década de 1860 | mrsooucio 21 exam escravos, ¢ nem todos os europeus que chegaram ao Novo Mun- do no mesmo periodo eram livres. Entretanto, a maioria dos europeus veio na condigéo de homens ¢ mulheres livres, ou entéo conquistou essa liberdade, 20 passo que a maioria dos africanos chegou na condi- ilo de cativos escravizados e seits descendentes permaneceram como escravos, em alguns casos por muitas geracSes sucessivas. Dito de maneira um pouco diferente, a colonizagao do Novo Mundo, dentro dos moldes institucionais, foi uma empreitada européia; a escravidao foi um recurso primordial para garentir a mao-de-obra necesséria para consolidar essa colonizagao. Essas diferengas de status ¢ poder significaram que muitos problemas de continuidade ow reordenacdo cultural, os quais eram superficialmente semelhantes, assumiram sen- tidos muito diversificados. 4 principio, por exemplo, em muitas cold- nias do Novo Munde, tanto os grupos europeus quanto os africanos exam predominantemente masculinos Mas a diferenga essencial é que 68 colonos europeus podiam exercer uma influéncia significativa na imigracdo de mulheres, tanto da Europa quanto da propria Africa, além de estarem aptos a exercer um controle consideravel sobre a maneira como fanio as europtias quarto as africanas eram social- mente distribuidas, Assim, a escassez crdnica de mulheres afetou 0 desenvolvimento da sociedade colonial de manciras um tanto diferen- tes para os homens livees ¢ os escravos, assim como para os nascidos no exterior ¢ os natives do Novo Mundo, fossem estes escravos ou lbertos. Dado que os colonos europeus geralmente detinham 0 mono- polio do poder policial e do poder militar, poder-se-ia inferir que eles € que conseguiram fundar novas instituigdes nos moldes de seu cardter original — isto é, europea. Embora no consideremos justificada essa inferéncia, sem uma boa quantidade de ressalvas, € embora acreditemos (como ja foi insinuado) que a fidelidade a tradi- es mais antigas talvez tenha sido mais facil, em algumas ocasies, para os negros escravizados do que para os brancos livres, ¢ verdade que os sistemas legais, 0s sistemas econdmicos, os sistemas de ensino, 22. 0 mscimento da culture alroamercane as instituigdes religiosas e muitas outras coisas puderam ser estabelecidas € desenvolvidas pelos europeus através de meios que no estavam ao alcance dos escravos. Nesse contexto, dois pontos merecem ser menoionados. Antes de mais nada, muitos dos servos de alguns novos povoamentos (como no caso de Barbados e Martinica no inicio do século XVI) eram europeus, ou, como também ocorreu em Barbados, amerindios.' No caso dos ser- vos europeus contratados, é claro, eles e seus patroes compartilhavam boa parte de um passado comum, em termos da lingua € de certas crengas ¢ valores, com o que, até certo ponto, reduziam o abismo do stafusentre os que detinham e os que nao detinham o poder. Entretan- to, quando os senthores eram europeus ¢ seus trabalhadores eram afti- canos, as diferencas de status e poder eram reforgadas néo somente pelas diferencas fisicas, mas também — sobretudo a principio— pelas diferencas culturais. Em segundo lugar, a maior diversidade que im- putamos aos imigrantes africanos ndo significava, necessariamente, que as culturas dos detentores do poder pudessem inevitavelmente sobre~ viver de maneira mais intacta que as dos africanos escravizados que eles controlavam. Mas as duas situacdes implicavam diferencas muito substanciais no modo como as novas formas culturais poderiam de- senvolver-se to contexto do Novo Mundo. © povoamiento, crescimento e consolidacio das col6nias europei- as, cada vez mais servidas por africanos escravizados ¢ transportados, resullaram na criagdo de sociedadtes profundamente divididas, em ter~ mos da cultura, dos tipos fisicos percebidos, do poder ¢ do status. Em,

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