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Ana Maria Monteiro — Adriana Ralejo (Orgs.) Cartografias da Pesquisa Mauad X Copyright © by Ana Maria Monteiro, Adriana Ralejo et al., 2019 Direitos desta edicao reservados & MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5° andar Lapa — Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20241-110 Tele: (21) 3479.7422 ‘www.mauad.com.br FACEBOOK.COM/EDITORAMAUADX £D @cprroramauapx (© @mauanxepitora @ (21) 97675-1026 Revisiio e Projeto Grafico: Mauad Editora foe Eaveagto-UFR) Ci-BrasiL. CATALOGAGAO-NA-FONTE ‘SINDICATO NACIONAL Dos Eprrores pe Livros, RJ. C316 Cartografias da pesquisa em ensino de histéria / organizadoras Adriana Ralejo, Ana Maria Monteiro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mauad X, 2019. 304 p. :il.; 15,5 x 23,0 om. Inclui bibliografia e indice ISBN 978-85-9068868-6 1. Historia - Estudo e ensino - Avaliagao. 2. Livros didaticos - Brasil ~ Historia, 3.Curriculos - Planejamento. |. Ralejo, Adriana. Il. Monteiro, ‘Ana Maria ‘ ‘Vanessa Matra Xavier Salgado - Bibliotecaria - CRB-7'6644 Sumario Apresentagao — Cartografias da pesquisa em Ensino de Historia Ana Maria Monteiro e Adriana Ralejo Prefacio Helenice Rocha PARTE 1 ‘Trés territorios a compreender, um bem precioso a defender: estratégias escolares e Ensino de Histéria em tempos turbulentos Fernando Seffner De lagarta a borboleta: possiveis contribuigbes do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do Ensino de Historia Durval Muniz de Albuquerque Jinior PARTE 2 Ensino de Historia: uma incurs4o pelo campo Mauro Cezar Coelho e Taissa Bichara A Pesquisa em Ensino de Historia no Brasil: poténcia e vicissitudes de uma comunidade disciplinar Sonia Regina Miranda Produgao sobre Ensino de Histéria em periédicos académicos brasileiros (1970-2016) Nadia G. Gongalves Ensefianza de la historia en Argentina: un panorama de investigaciones y redes Maria Paula Gonzélez Pesquisa em Ensino de Historia: desafios contemporaneos de um campo de investigagao Carmen Teresa Gabriel ‘Vestigios de leituras e escritas nas rotinas cotidianas do Ensino de Historia no Brasil (décadas de 1930-1960) Cristiani Bereta da Silva Investigar em Ensino de Historia: entre fronteiras e limites epistemologicos Flavia Eloisa Caimi e Leticia Mistura Sentidos de “negro” no Ensino de Histéria: articulagdes em contextos de referéncia para a producdo do conhecimento no livro didatico Warley da Costa 15 19 2a 43 61 113 127 143 163 187 199 Em nome da ordem: as escolas municipais paulistanas na ditadura civil-militar (1964-1985) e a professora por evocacao Helenice Ciampi Qual o lugar da diferenca na pesquisa em Ensino de Histéria? Cinthia Monteiro de Araujo O documentdrio Os guardides da Lagoa: a universidade no espago do quilombo Carlos Augusto Lima Ferreira Os saberes dos professores sobre os conhecimentos que ensinam: trajetérias de pesquisa em Ensino de Historia Ana Maria Monteiro 217 239 255 2n Investigar em Ensino de Histéria: entre fronteiras e limites epistemolégicos Flavia Eloisa Caimi! Leticia Mistura” As producées académicas que tém se vinculado ao corpo investigativo en- tendido como ensino de Histéria, desde cerca de quatro décadas, foram identi- ficadas, nao raras vezes (MONTEIRO, 2007; MONTEIRO e PENNA, 2011), como pertencentes a um lugar de fronteira epistemoldgica. O termo, uma ana- logia que remete a geografia politica, pressupde uma relacao de convivéncia, disputa e negociac4o entre as areas de saber que esto imbricadas tanto na pesquisa quanto na pratica pedagégica do ensino de Historia. Monteiro (2007) compreende o Ensino de Histéria como um lugar de fron- teira entre historia e memoria, ja que este comporta, em situacdes de ensino e aprendizagem, interagGes entre os diferentes niveis do discurso histérico - 0 académico, a histéria publica, a memoria € os usos cotidianos da histéria-me- méria, Nessa perspectiva, o ensino de Histéria é “lugar de reflexao critica, de revisdo dos usos do passado, no qual a histéria é o conhecimento deflagrador de abordagens, anilises, reflexdes, novas compreensées” (MONTEIRO, 2007, p. 16). Mais recentemente, Monteiro e Penna (2011) revestiram o termo de outro sentido, compreendendo, por meio da necessidade de densidade anali- tica sobre o que compunha epistemologicamente uma aula de Histéria, que o ensino de Histéria é também “lugar de fronteira” entre a Educacao, a Historia ea Retérica. Os autores observam que, de acordo com as andlises produzidas, ensinar Historia parece carecer das contribui¢6es especificas de cada drea de saber, as quais, articuladas, esto na base da produ¢ao do saber histérico en- sinado. O curriculo de Historia torna-se, portanto, outro “lugar de fronteira”. 1 Professora do Programa de Pés-graduagao em Educagao e da Licenciatura em Historia da Universidade de Passo Fundo (RS). Doutora em Educagao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e com Pés-doutorado pela Flacso-Argentina. E-mail: caimi@upf-br. 2 Licenciada em Historia pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre pelo Programa de Pés-graduag’o em Educagao da Universidade de Passo Fundo (UPF). Bolsista CAPES. E-mail: leticiamistura@gmail.com. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 187 Assumimos semelhante posigao ao observarmos divergéncias ¢ flexibi- lizages sobre o termo que efetivamente caracterizariam os pesquisadores participantes dessa comunidade investigativa que compreende o ensino de Histéria. Um efeito que aparenta ter como cerne a caracteristica fronteiriga das pesquisas interessadas nos processos de ensinar e aprender Histéria e nos lugares académicos que tém ocupado. Entendemos que a reflexdo sobre esse lugar de fronteira deve acompanhar os pesquisadores interessados no ensino de Histéria como campo investigativo, uma vez que exige uma tomada de posi- ¢4o no interior do campo. Como observam Monteiro e Penna (2011), ocorre que pesquisadores, ao assumirem 0 ensino de Histéria como campo, frequen- temente acabam tomando parte de uma ou outra area de saber, que orienta seus pressupostos, ao contrario de reconhecer e atentar aos nexos entre elas. Assim orientados, os pesquisadores enfatizam, em suas investigac6es, ora os referenciais tedricos advindos da Histéria, ora os da Educacao, deixando de rea- lizar importantes articulagdes tedricas que derivam desse lugar de fronteira, podendo agir, inclusive, a despeito dele. Neste estudo, apoiamo-nos igualmente na analogia propiciada pelos conceitos de fronteira e limite, cunhados no ambito da geografia politica de Moodie (1965), os quais acompanham cada sec4o como epigrafes, para ques- tionarmos do que se trata esse lugar de fronteira que pde em articulacao es- pecialmente os saberes das 4reas da Educacao e da Histéria, e de que forma esse lugar pode ser mirado e considerado pela comunidade de pesquisadores associados ao ensino de Histéria. Aproximando-nos da teoria dos campos cientificos de Pierre Bourdieu (1983, 2004), buscamos problematizar o En- sino de Hist6ria no apenas como um campo de produgdo académica, mas de produgio de discursos consubstanciados em rela¢ées de poder. Na sequéncia do texto, discutimos a pesquisa em ensino de Histéria entre areas do conhecimento, delineando brevemente as presencas e os espacos de tensao entre a Histéria e a Educacao. A pesquisa em ensino de Histéria entre areas do conhecimento [...] grandes Impérios do passado eram mal definidos em virtude da falta de conhecimento pormenorizado de terreno e da auséncia de sua exata representa¢do cartografica. [...] 0 controle estatal tem-se expandido até ferir a soberania de outros Estados quando, entdo, as linhas divisérias se tornam necessarias. (MOODIE, 1965, p. 82-83) 188 FLAVIA ELOISA CAIMI E LETICIA MISTURA, A localizacio do ensino de Histéria como espago de interesse investigativo parece ter sido sempre encontrada entre dicotomias como ensino X pesquisa, licenciatura X bacharelado, teoria X pratica (MESQUITA; ZAMBONI, 2008). Re- legado a intermediagao entre duas grandes areas - a Educacao e a Histéria -, a possibilidade de as praticas de ensino da Histéria produzirem reflexGes no meio académico passou, durante muito tempo, ao largo de ambas as areas. Entendia-se que as questdes de ensino competiam exclusivamente aos profissionais vinculados as questées pedagégicas, dos centros e faculdades de Educacfo. O ensino de Hist6ria seria, entéo, apenas mais uma discussao pedagégica sobre o ensino de determinada disciplina. Nao diferentemente, as questoes relacionadas ao saber produzido pela ciéncia histérica, logo, a His- téria, competiam aos profissionais da academia dedicados & produgao da sua narrativa, sobrando pouco ou nenhum espaco para a visualizacao desses sabe- res mobilizados por praticas de ensino. Duas linhas divisérias se impunham, claramente, ao ensino de Histéria como objeto ou campo de pesquisa. Como mostram os esforcos de Costa e Oliveira (2007), ao historiarem a construg4o do ensino de Histéria como objeto de pesquisa no Brasil, foi a partir dos anos 1970 que se conferiu mais espaco para discussdes que trans- versalizavam e tematizavam o ensino de Historia, traduzidas em temas como a formacao de professores, o curriculo e as praticas pedagégicas. Tal interesse esteve inscrito em duas conjunturas maiores, que acompanham e se relacio- nam com essa expressividade: 1) 0 processo de abertura politica e redemocra- tizagao do Brasil, apés 21 anos de Ditadura Militar (1964-1985); 2) um con- junto de movimentagées renovadoras, em termos tedricos e metodoldgicos, a propria teoria da Historia. Desde entao, ainda segundo 0 estudo de Costa e Oliveira (2007), o ensino de Histéria como objeto de pesquisa tem se espa- Ihado pelo Brasil, congregando profissionais de varios niveis, estreitando os lacos entre a Educaco Basica e o Ensino Superior, construindo uma trajet6ria de eventos, grupos de pesquisa institucionais e Grupos de Trabalho (especial- mente da Associacao Nacional de Histéria-ANPUH) e suscitando producdes em trés grandes vias: “sobre o livro didatico [de Historia], [...] sobre propos- tas, curriculos formais para esse ensino, leis [...] [e] ainda, sobre experiéncias concretas em sala de aula” (COSTA e OLIVEIRA, 2007, p. 155). Monteiro e Penna (2011) observam que, situados na drea da Educa¢ao, os profissionais do ensino de Historia - pesquisadores ou professores — utili- zam-se especialmente de referenciais dos campos da Didatica e do Curriculo. Deste ultimo, segundo os autores, emprestamos a compreensio do Curriculo como pratica cultural de significado, o que implica circunscrevé-lo em um todo-significante de escolhas, énfases, disputas de poder. No campo da Dida- CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 189 tica os autores encontraram uma via de articulagéo entre o uso da no¢do de saber ensinado (ou saber escolar) e 0 de alternativas produzidas pela propria teoria da Historia, para abrigar e tematizar as questées do ensino e da apren- dizagem, como a didatica da histéria, por exemplo. No Ambito do saber ensinado, entende-se que o saber préprio do ensino de Histéria se difere, em estrutura € epistemologia, do saber cientifico advindo da ciéncia de referéncia: trata-se de uma constru¢ao que implica selecdo, manipulacdo e moldagem dos saberes disponiveis, com a finalidade de produzir um “saber ensinavel”, mobilizado em/por um lugar especifico, a institui¢ao escolar. A Didatica da Historia, na perspectiva de Jérn Riisen, vem acrescentar a no¢do de saber ensinado as carac- teristicas especificas do conhecimento hist6rico, como produto-vetor em que a Histéria como conhecimento exerce uma de suas funcoes sociais, a de orien- tagao. Para o autor, a teoria da Histéria e os historiadores também precisariam ocupar-se da Didatica da Histéria (RUSEN, 2011). Bernard Charlot entende 0 campo da Educacdo como uma area de saber, portadora de uma cultura comum, que agrega seus pesquisadores pelo inte- resse primeiro nas questdes da Educagao e nos efeitos da pesquisa em Educa- 40. Trata-se de um espaco “fundamentalmente mestico, em que se cruzam, se interpelam, e por vezes, se fecundam, de um lado, conhecimentos, conceitos e métodos origindrios de campos disciplinares miltiplos, e, de outro lado, saberes, praticas, fins éticos e politicos” (CHARLOT, 2006, p. 9). Para o autor, a especificidade da Educagao € essa mesticagem, que a faz ser, ao mesmo tem- po, fraca e forte epistemologicamente, uma vez que sua fraqueza — contornos pouco definidos, fluidez de conceitos - também pode se constituir em sua forca, baseada na pertinéncia dessa condi¢&o flexivel no estudo dos fendme- nos aos quais os pesquisadores da Educaco prestam sua aten¢do: complexos, contraditérios, contemporaneos. Charlot (2006) defende a construcdo de uma disciplina com forte especificidade, conceitos e métodos de pesquisa préprios, que deveria ser arquitetada no enfrentamento dos discursos que inflam, atu- almente, 0 espaco da pesquisa em Educa¢io. Esse enfrentamento se deve ao fato de que, ao substituir a producao de conhecimento por filiac4o a discursos, a tarefa de construir objetos de pesquisa — que correspondam efetivamente as necessidades do campo - é fragilizada. José D’Assungao Barros, empenhado na dificil tarefa de organizar os va- riados “campos” que compdem o universo expansivo e complexo de saberes produzidos pela historiografia, buscou tracar - ao longo e dentro de mudancas na ciéncia hist6rica e por meio de variados olhares criticos de historiadores preocupados em definir em seara segura - um grande campo histérico, frag- mentado em dezenas de subdivis6es operadas pelas produgées desse meio. 190 FLAVIA ELOISA CAIMI E LETICIA MISTURA. E assim 0 fez, identificando, entre essas subdivisdes, dimensdes e enfoques: Historia da Cultura Material, por exemplo; abordagens com relacao ao tipo de fontes, como, por exemplo, Arqueologia; e dominios, com relacao aos am- bientes e objetos sociais ou com relacdo aos agentes histéricos, como, por exemplo, a Historia Rural. A esse contorno especifico de pequenas regides, Barros denomina “campo histérico”, ou seja, 0 espaco académico ocupado por saberes historiogrficos especificos, produzidos sob determinados métodos. E possivel afirmar que o campo histérico tem, em semelhanca epistemoldgica com a Educaco, uma fluidez igualmente caracteristica de objetos, abordagens e contribuicées interdisciplinares. No entanto, o que na Educacio é visivel por sua caracteristica de abertura, na Histéria esta definido pelos seus contornos e limites, que, assim expostos por Barros, denominam e designam seus interes- ses e ajudam a justificé-los (BARROS, 2004, 2005, 2010). Em outra perspectiva, Mario Carretero remete a intrincada relagao de sa- beres no interior de tudo que é reconhecidamente um saber histérico, 0 qual ele entende como diferentes ‘niveis de estrutura¢ao do discurso histérico: a historia cotidiana, que mescla elementos de histéria ptiblica com a memoria, extremamente fluida; a hist6ria escolar, constituida por meio das interacdes entre os saberes e os poderes (institucionais, politicos) nela implicados; ¢ a hist6ria-conhecimento, produzida metodologicamente no interior de uma ciéncia histérica. Trata-se de trés vias de sentido para a Histéria, constante- mente em disputa, todas, inegavelmente, presentes em uma aula de Historia (CARRETERO, 2010). As distancias e aproximacGes entre esses dois dominios de saber (Historia e Educacao) presentes nos saberes hist6ricos escolares e, portanto, pertinen- tes a observacao de quem os tematiza em pesquisas, Monteiro e Penna (2011) adicionam o dominio da Retorica, uma vez que as aulas de Historia sao luga- res de intensas producGes narrativas, que articulam poderosas ferramentas de significagao do discurso, como figuras de linguagem, para produzir determina- dos efeitos por meio do saber histérico escolar. O quadro de interac6es fron- teiricas, portanto, se expande largamente, uma vez que nao implica apenas 0 que o ensino de Historia e seus pesquisadores julgam necessério pincar de cada um dos dominios de saber, mas também formulag6es, disputas e entraves internos a cada um desses dominios, que fazem parte (dos) e produzem os fe- némenos escolares. Avancamos, portanto, para a elaboraco do que podemos vislumbrar como possibilidade de existéncia e natureza do campo do Ensino de Histéria. CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 191 Ensino de Hist6ria: um lugar fronteirigo [...] fronteiras so zonas ou faixas de territdrio [...]. Encerram 4rea, grande ou pequena, e est4o sujeitas & mudanca continua sempre que a aco humana Jhes altera a natureza e a serventia. [...] em muitos casos, assumem categoria de regides geograficas na medida em que possuam a caracteristica de individualidade baseada nas respectivas fun¢ées como zonas transitérias. (MOODIE, 1965, p. 82-83) Em dados de pesquisa expostos por Evangelista e Triches (2006), de acor- do com a base de dados do Diretério de Grupos de Pesquisa do CNPq, em 2004 os grupos e linhas de pesquisa com o titulo “Ensino de Histéria” sob a area da Educa¢ao chegavam a 51; ja sob a area da Histéria, eram 11. Logo, pode-se inferir que a maior parte das investigacdes relacionadas ao ensino de Historia estava localizada, ha mais de uma década, na area de Educacio e, muito provavelmente, no interior de Programas de Pés-graduagao em Edu- cacao, afastados do campo da Histéria. No caso, a identidade fronteiri¢a do campo estava vinculada, de forma majoritaria, ao campo da Educacio. Em janeiro de 2017, numa busca textual pelo mesmo Diretério, os seguin- tes dados foram por nés encontrados: os grupos e linhas de pesquisa sob o titulo “Ensino de Histéria” vinculados a drea de Educacdo somavam 33, ao passo que chegavam a 53 na Area de Histéria. O que significa essa expressiva diferenga? Podemos oferecer algumas pistas, embora sem aprofundarmos essa discussao. Esse crescimento expressivo de grupos e linhas de pesquisa vincu- lados & area de Histéria pode se referir a uma abertura dessa area, que passou aadmitir a presenca de quest6es de natureza didatica e/ou pedagdgica em sua agenda de estudos e pesquisas. Alocada no campo da Histdria, ha uma gran- de frente de investigacao interessada nas questdes da aprendizagem histérica - e nao da aprendizagem “da Historia”. Essa diferenca trata-se de marcar a “aprendizagem historica” como um processo de operac4o intelectual acerca do que é epistemologicamente prdprio do e pertencente ao conhecimento hist6- rico. Esse crescimento expressivo na area da Hist6ria deve-se também as po- liticas publicas de formac4o docente, como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciacao 4 Docéncia (PIBID) e a criacao dos Mestrados profissionais em Ensino de Histéria, notadamente aqueles vinculados ao ProfHistéria. Esses novos cendrios nao apenas aproximam, de forma mais enfatica, a pesquisa em 192 FLAVIA ELOISA CAIMI E LETICIA MISTURA ensino de Hist6ria do campo histérico, como, em certa medida, a afasta sig- nificativamente da area da Educacdo, sendo possivel evidenciar, nesse espaco ocupado por todos esses grupos, o delineamento de uma verdadeira fronteira. Para Moodie, que categoriza os termos “fronteira” e “limite” no horizonte da Geografia politica, e como apresentado na epigrafe desta segao, “as frontei- ras relacionam-se as reas, os limites sao lineares pela sua natureza” (MOO- DIE, 1965, p. 84). Isso significa que essa drea ocupada pelas produces inves- tigativas do ensino de Histéria é identitariamente ocupada, circunscrita a limi- tes ténues, mas soberanos, uma vez que sao “especificamente destinado[s] a separar”, e “linhas divisérias entre as areas de jurisdi¢a0” (MOODIE, 1965, p. 92), aqui, da Historia e da Educac4o. Sua composicao, naturalmente, é feita de derivagdes de ambos os campos e pode sofrer mudangas continuas, a medida que os campos se modificam, atribuindo-lhe diferentes natureza e/ou funcao. Pensar no lugar da pesquisa em ensino de Historia como a ocupacao de uma rea fisica de fronteira entre dois grandes espacos, inchados por sub- divisées, problematicas, agentes, disputas, significa também pensar em um investigador especifico, habitante de uma seara ao mesmo tempo autdctone € estrangeira, em que é preciso se investir de duas epistemologias, reconhecer os discursos que circundam e inflam ambos os campos, seus agentes, as ins- tituicdes vinculadas a eles e aos seus produtos, que alimentam e condicionam as produgées: as investigacGes do ensino de Hist6ria. Isso implica, por fim, es- tar entre duas jurisdi¢Ses poderosas, conflitivas, nas quais é preciso, ao mes- mo tempo, posicionar-se firmemente e flexibilizar a posi¢ao. Seria possivel, pelo reconhecimento da ocupa¢ao de um lugar fisico para a pesquisa em ensi- no de Histéria, entender esse lugar como um “campo” de produgao de saber cientifico, como a construcao da teoria dos campos de Bourdieu (1983, 2004)? A ccriagdo de um “espago fisico” de pertencimento para o ensino de Hist6ria Em uma conferéncia publicada sob o titulo Os usos sociais da ciéncia: por uma sociologia do campo cientifico, Pierre Bourdieu traca os principais pontos do que construiu como a sua “teoria dos campos”, pela qual propde um meio de compreensao para uma producio cultural localizada em sua prépria estrutura de génese, pertencimento e por meio da qual se exerce comunicacéo, sem que exista 0 “erro do curto-circuito”, como nomeia a pratica de fazer relac6es diretas e forcosas entre o texto (a producao de um campo) e 0 contexto (con- juntura ou acontecimento histérico/social). De acordo com o autor, o campo é um “universo intermediario [entre 0 texto e 0 contexto] [...] no qual estao inseridos os agentes e as institui¢des que CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 193 produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciéncia” (BOUR- DIEU, 2004, p. 20). E, continua ele, um “espaco relativamente auténomo, esse microcosmo dotado de suas leis préprias”, observado de acordo com algumas caracteristicas que lhe sdo inerentes: o grau de autonomia, a estrutura das rela- 6es objetivas, os agentes e as relacdes de posicao e forcas simbélicas no campo. Pode ser o ensino de Histéria um campo cientifico? Segundo Bourdieu, o grau de autonomia de um campo pode ser caracte- rizado pela natureza das presses que sofre externamente e pela forma como lida com essas pressGes, se tem ou nao condi¢des de, sozinho, “se libertar dessas imposigdes externas e [...] reconhecer apenas suas préprias determi- nagGes internas” (BOURDIEU, 2004, p. 21). J4 a heteronomia de um campo “manifesta-se, essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em especial os problemas politicos, ai se exprimem diretamente. Isso significa que a politizagio de uma disciplina nao é indicio de grande autonomia [...].” (p. 22). Ainda de acordo com o socidélogo francés, um campo cientifico se define também através da definicao dos objetos de disputas e dos interesses especificos que sao irredutiveis aos objetos de disputas e aos interesses pro- prios de outros campos (BOURDIEU, 1983). De acordo com essa defini¢ao, o lugar ocupado por investigagdes em en- sino de Histéria - ou o proprio ensino de Histéria — nao poderia ser tomado como um campo auténomo. Sua natureza é justamente interseccional, depen- de e est4 em continua interface com ambos os campos que ajudam a delimi- ta-lo. Seus objetos estao estritamente vinculados aos campos com os quais se relaciona. O ensino de Histéria é, também por sua natureza, essencialmente politico e sensivel ao exterior. A especificidade do ensino de Histéria é justa- mente essa mobilidade entre um saber de referéncia que, diferentemente de outros saberes disciplinares, n4o mais possui estabilidade paradigmatica - é, sim, um espa¢o dindmico de interpreta¢ao, formulacao e explicacées provisé- rias — e os espacos institucionais que exigem e normatizam uma estabiliza- ¢4o, como o curriculo, por exemplo. Embora todo constructo cientifico seja por natureza provisério, os saberes histéricos tem, em seu 4mago, o signo da provisoriedade, o que, igualmente, nao significa que no exista rigor cientifi- co em sua producao. Esse descompasso produz justamente os fenémenos de interesse dos pesquisadores do ensino de Histéria, cujos exemplos sao o saber histérico escolar e as relaces de aprendizagem histérica. Pierre Bourdieu afirma: “todo campo [...] 6 um campo de forgas e um cam- po de lutas para conservar ou transformar esse campo de forcas.” E continua: 194 FLAVIA ELOISA CAIMI E LETICIA MISTURA, esse campo de forcas existe pela criacao de seus agentes e “o espaco s6 existe (de alguma maneira) pelos agentes e pelas relac6es objetivas entre os agentes que af se encontram” (BOURDIEU, 2004, p. 23). Ou seja, as relagdes de poder entre os agentes de um campo determinam a sua especificidade, o que pode ou nio ser dito pelo grupo, os seus pontos de vista, os seus objetos ou temas. O lugar ocupado pelos agentes direciona as possibilidades ou impossibilida- des do campo. O ensino de Hist um campo, uma vez que existem nele agentes dominantes que, de certa forma, impGem - mesmo que de forma nao expressivamente violenta — condi¢des de produgao. Isso nao significa dizer, necessariamente, que existem individuos como agentes, mas que instituigdes, periddicos e pesquisadores est4o imersos em uma tradigdéo, um capital simbélico de pesquisa, como diria Bourdieu, que imp@e possibilidades e impossibilidades. Essa relaco de forca simbolica exer- cida por agentes dominantes em um campo (ou lugar) permite a esse mesmo campo realizar movimentos de manutengao e transformago — para a sua con- servacdo, que também pode significar ortodoxia. ‘ia, desse modo, poderia ser circunscrito a Acconstrugao de um /ugar de pertencimento ao ensino de Historia Mais uma vez, e espelhando a trajetéria do ensino de Hist6ria como campo de pesquisa, a ele é imposta uma grande tensdo, consubstanciada em autonomia versus heteronomia. Igualmente, de acordo com sua identidade de fronteira, de comunhées e afastamentos, seu lugar se encontra justamente no entrecruzar de ambas as condicGes, o que, de certa forma, permite corroborar seu lugar fron- teirico. Uma tiltima colaboracao de Pierre Bourdieu pode lancar luz 4 questao da configuracao do ensino de Histéria como campo ~ certamente no circuns- crito como outros - ou lugar de pesquisa. Ele sugere ao Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), instituto de pesquisa ao qual direciona sua conferéncia, que, em vez de serem desperdigadas energias em disputas inter- nas - as quais podem, no nosso caso, significar posicées, aparéncias, citag6es, etc. -, esforcos sejam unidos para desenvolver e acentuar o que os faz, institu- cionalmente, especificidade. Sobre a instituicdo, ele prope a “integracao dos diferentes agentes ¢ instituicdes em um projeto coletivo comum, mediante uma organizacao sistematica da circulagao da informac4o” (BOURDIEU, 2004, p. 60). Também confere énfase ao papel de organizacao coletiva pela defesa da autonomia, na construcdo dos “verdadeiros objetivos comuns”. De forma semelhante, Bernard Charlot, ao propor a construgéo de uma disciplina de referéncia para as ciéncias da educaco, sugere movimentos de organizacao de pontos de partida e de meméria do campo. Segundo ele, as CARTOGRAFIAS DA PESQUISA EM ENSINO DE HISTORIA 195 ciéncias humanas e sociais, ao contrario das chamadas ciéncias “duras”, avan- gam a partir de pontos de partida (renovaveis em novos come¢os), 0 que po- deria ser entendido como a nao-acumulacdo de conhecimento dessas ciéncias (CHARLOT, 2006). No entanto, a produgdo cientifica, de acordo com esse au- tor, compée (ou poderia compor) uma meméria que seria util na identificagdo ena assun¢ao de pontos de partida especificos da disciplina Educacao. A com- posi¢ao de uma meméria disciplinar auxiliaria no avanco das pesquisas, uma vez que facilitaria a visualizagéo do estado do conhecimento, de tematicas recorrentes, centrais, emergentes, dos resultados estabelecidos em diferentes recortes (tematicos, espaciais, temporais, metodoldgicos). Charlot (2006) no- meia essa iniciativa de composi¢4o do campo de “arquivo coletivo da pesquisa em educaco”, e, quanto ao trabalho a ser feito no campo epistemolégico, caracteriza-o como o estabelecimento de frentes de pesquisa. Consideragées finais Nesse lugar epistemolégico e identitario a ser construido para a pesquisa em ensino de Histéria, a busca da autonomia é certamente um processo com- plexo e intrincado, como vimos, pela natureza propria do ensino de Histéria como lugar investigativo. Nesse sentido, propomos uma sintese, 4 guisa de concluso, do que compreendemos ser pauta do ensino de Histéria como cam- po de pesquisa, pertinente aos interesses e 4 tomada de posicao de todos os que dele se ocupam e nele produzem. Elencamos alguns principais itens dessa pauta, nos termos que seguem: * a perspectiva, ainda necesséria, acerca das diferencas entre os proces- sos histéricos, a producao de interpretacées e a construcao de narra- tivas sobre eles, tendo em vista a transformacao desses elementos em saber ensindvel; * a circulacdo imprescindivel entre dois grandes dominios de saber - a Hist6ria e a Educacdo -, considerando os desafios que esse lugar de in- tercambio produz. Frente a tais desafios, é preciso posicionar-se e as- sumir a interlocugao entre Histéria e Educacao com atitude produtiva; * 0 reconhecimento epistemolégico dos discursos que povoam ambos os campos, para que seja possivel constituir-se e posicionar-se nesse lugar de fronteira; + entendimento das relages de sensibilidade entre professores e estu- dantes, tendo em vista as caracteristicas das interagdes que se estabele- cem em sala de aula, o sentido do conhecimento e os modos de ser e es- tar juntos nesse complexo lugar denominado escola de Educaco Bésica; 196 FLAVIA ELOISA CAIMI E LETICIA MISTURA. * a lida com os variados tipos de representacao histérica do passado, que inclui os diferentes niveis de estrutura¢ao do discurso histérico (CARRETERO, 2010), com vistas a identificar as suas especificidades e pertinéncias, reconhecer os diversos lugares no conhecimento hist6- rico que circulam em sala de aula, evitando que se caia na armadilha de pretender um ou outro como legitimo; * atentativa de direcionar esfor¢os para os grandes debates do ensino de Histéria, lugares efetivos de producdo de consensos e fortalecimento do campo, como é 0 caso da discussao sobre o curriculo de Historia como arena de disputas. Enfim, esta posto o desafio de apropriar-se, nas pesquisas sobre o ensi- no de Histéria, do lugar de fronteira como perspectiva, como mirante, assim como sugerem Monteiro e Penna (2011), para que seja possivel legitima-lo como um lugar especifico de produc4o, compromissado a assumir sua condi- do e natureza, e a produzir posturas teérico-metodolégicas fortes e densas, que correspondam as demandas do nosso tempo. Referéncias bibliograticas BARROS, José D'Assuncdo. O campo da histéria: especialidades e abordagens. Pe- trépolis: Vozes, 2004. . O campo histérico: consideragées sobre as especialidades na historiografia contemporanea. Histéria Unisinos, v. 9, n. 3, p. 230-242, set.-dez. 2005. . Sobre a nogdo de campo histérico. Histéria e-Histéria, Campinas, Unicamp, v. 1, p. 1, 2010. BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos campos. In: ___. Questdes de so- ciologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 98-94. . Os usos sociais da ciéncia: por uma sociologia clinica do campo cientifico. 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