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JULIA DARWICH BORGES “O PSICODRAMA DO CONTO VASALISA: ORESGATE DA FORCA INTUITIVA FEMININA” Pés-graduaga0 Lato Sensu em Psico- drama, da Profissionais Integrados Ltda em parceria com a Escola Bahiana de Me- dicina e Saiide Pablica, reconhecido pela Federagdo Brasileira de Psicodrama, como requisito parcial para obtengiio do Certificado de Especialista. ‘Monografia apresentada ao Programa de Orientadora: Esp. Cybele M* Rabelo Ramalho ~ Psicodramatista-Di- data-Supervisora nivel III: Inscrigo FEBRAP n° 270, f1.90, Livro 1. Co-Orientadora: Esp. Vanessa Ramalho Ferreira Strauch — Psicodra- matista-Didata nivel II: Inscrigéo FEBRAP n° 372, fl. 94, Livro II. Aracaju/SE 2018 RESUMO Nesta pesquisa, buscou-se trabalhar psicodramaticamente o resgate da intuigo feminina a partir da leitura do conto Vasalisa, presente no livro Mulheres que Correm com os Lobos: histérias mitos do arquétipo da Mulher Selvagem, da autora C. P. Estés. Foi explorado um estudo de caso - mais especificamente duas sessdes de psicoterapia de orientago psicodramatica com a mesma cliente - no qual houve a confeegao de uma bo- neca e posterior trabalho dramatic com a mesma, disparados pelo conto. Como instru- mento de anilise, as sessdes foram descritas, com recortes de narrativas e processamento tedrico da terapeuta. Também foi apresentado um breve histérico ¢ contextualizagdo de fatos acerca do sujeito. Foram trabalhadas teorias e técnicas classicas do psicodrama, a fim de facilitar a condugdo de um trabalho de busca do eu espontineo-criativo na cliente, associado ao conceito do arquétipo da Mulher Selvagem. Finalizando a pesquisa, foi feita uma etapa de compartilhamento, trazendo um processamento acerca dos resultados do estudo. Palavras chave: psicodrama; contos; intuig%o feminina; eu-espontineo-criativo . Relato de caso e Processamento tedrico.. 6. Referéncias bibliograficas.. SUMARIO 1. Introdugio... 1.1. O percurso para a criago. 1.2. 0 encontro com Mulheres que Correm com os Lobos. 1.3. Justificatis 2. Revisto da literatura. 2.1.0 Psicodrama.. 2.2. Contos, arquétipos e instint 2.3.0 Conto Vasalisa e a integragdo da Forga Intuitiva feminina. 3.4, Instrumentos.. 3.5, Procediments.... 4.1. Conhecendo a client 4.2. 1° Sessio. 4.3, 2° Sessao. . Consideragdes finais (ou o meu compartilhar), 7. Anexos 7.1, Anexo 1 - Termo de consentimento livre e esclarecido... 7.2, Anexo 2 - Materiai 1. Introdugio 1.1. 0 percurso para a criago Talvez hoje seja bem simples justificar a escolha do tema deste trabalho, porém 0 pereurso para a sua criagdo nao é e nao foi nada menos do que drduo e doloroso. Gostaria de comegar assim, compartilhando um pouco sobre mim, sobre o meu percurso e me colocando também como objeto de anélise enquanto escrevo, assim me sinto mais pré- xima de vocé, caro avaliador ou leitor curioso. ‘Sempre me senti muito a vontade com a prética do psicodrama. Como uma jovem psicoterapeuta, nao posso dizer que nao me sinto insegura ou que no pego orientagées, troco ideias com colegas ou simplesmente paro e nfo fago a menor ideia de como agir em certas situagdes. Mas jogar esse papel tem trabalhado um elemento que considero um dos mais importantes, e diria que também imprescindivel, na pratica de um psicodramatista, que é a criatividade, Receber um cliente novo no meu consultério ¢ um ato criativo. Aco- Iher uma histéria complexa é um ato criativo. Identificar as demandas e expectativas de um cliente ¢ conseguir compreendé-lo enquanto ser Gnico é um ato criativo. Sentir-me travada em algumas situagdes e conseguir seguir em frente com o meu trabalho é um ato ctiativo, Estamos em constante trabalho em relagio & criatividade, & criagao e a co-criagao. Creio que nesse tiltimo conceito encontrei uma luz em relagdo a esse trabalho de conclu- sfo de curso. A co-criagdo me interessa mais, a relago me instiga a enxergar cada ser como um génio em potencial, como alguém que, como todo mundo, tem a sua bagagem. Nio creio que o psicodrama precisa ser uma coisa s6, um conjunto tebrico-pratico que precise funcionar com todos os clientes. Pelo contrario, esse trabalho de criatividade-es- pontaneidade que 0 curso de formago de psicodramatistas nos proporciona s6 nos dé recursos para escolher e avaliar o que funciona ¢ o que nao funciona com cada um, de acordo com o que estiver a0 nosso aleance e for vidvel naquele momento, naquela relagao, ‘Neste momento preciso compartilhar um pouco do meu percurso até aqui. O curso de formagio foi muito intenso para mim. Foram dois anos e meio de vivéncias ricas, trocas, aprendizado e criagfio de vinculos com os colegas e professores. Creio que atra- vessamos diversas fases e chegamos por fim a uma unidade grupal. Eu me senti contem- plada e muito mais preparada para jogar o papel profissional que escolhi. Trocar ideias e experiéneias com a turma me deu coragem, fazer psicoterapia me deu ferramentas para lidar com a minha propria bagagem e ter contato com os nossos professores me deu ins- piragio para estudar constantemente e me aperfeigoar. Porém, muito aconteceu do ano anterior até aqui. Como jé haviam me alertado caso decidisse deixar o trabalho de conclusao de curso para depois, eu “me desaqueci” ¢ entrei em um estado de total travamento em relagao a esta produgao. Sinto que isso é relevante para a histéria, pois esse hiato me levou até um caminho de amadurecimento em relacao a tematica escolhida. Eu mudei de tema mil vezes, tive ideias que foram sendo descartadas por mim mesma por serem “muito complexas”, ou “diffceis de executar”, ou “pouco relevantes” ¢ até mesmo “porque eu perdi o interesse”. Foi ai que me veio um flashback da aula de metodologia cientifica da professora psicodramatista Aline Belém, na qual ela nos orientou a escrever sobre aquilo que nos move, aquilo que mexe com a gente. A partir dai escolher o tema foi facil. Fazer psicoterapia é um ato de coragem e entrega, entio & muito importante con- siderar que o seu cliente ¢ alguém que se propés a estar ali, naquele setting terapéutico, dividindo a sua histéria e buscando ajuda, E alguém que confia no seu trabalho e no seu potencial enquanto profissional. Cada um teré um tempo diferente para estabelecer a con- fianga, vincular, compartilhar e fazer algum tipo de progresso. Com a cliente que escolhi dividir a experiéncia com vocés, tenho uma relagdo de quase trés anos, ¢ irei expor mais, adiante um pouco do percurso que trilhamos neste tempo, até chegarmos a uma determi- nada sessao. Perceber que estava “travada” me aterrorizou por meses, mas algo me dizia que isso fazia parte da trajetoria. Quero introduzir aqui o elemento “intuigdo”, palavra que ser muito utilizada daqui para a frente neste trabalho. Foi tudo muito intuitivo, e esté sendo até este momento. Nao ¢ a toa que precisamos ser criativos enquanto psicoterapeu- tas, ¢ 0 meu papel de psicéloga foi posto a prova quando consegui unir a minha bagagem com a bagagem da minha cliente, introduzindo as nossas sessdes a leitura do livro Mu- Theres que Correm com os Lobos: Mitos e histérias do arquétipo da Mulher Selvagem, de Clarissa Pinkola Estés (2014). Precisei quebrar algumas barreiras que costumamos 10 estabelecer, como a dita neutralidade e imparcialidade cientifica, 0 afastamento entre te- rapeuta ¢ cliente ¢ a minha propria dificuldade de desenvolver escrever esse trabalho. Ele foi esquematizado, previamente pensado e executado, porém nada disso seria capaz se fosse excluido o elemento da espontaneidade-criatividade. Como estamos falando aqui do que “nos move”, preciso esclarecer que essa cli- ente representa isso para mim: uma historia que me move. E uma cliente que esti comigo ha um bom tempo, considero que temos um vineulo bem estabelecido, temos um com- promisso miituo, acompanhei grandes marcos da sua vida e conseguimos ter um ritmo proprio de funcionamento. Ha uma boa adesio 4s propostas de técnicas e intervengoes, principalmente aquelas que envolvem componentes artisticos e artesanais. Juntei cada pedacinho para estar hoje escrevendo: intuigdo, bagagem, atrag4o, pro- fissdo, criati idade e espontaneidade. Adiciono também a satisfago de poder comparti- Ihar isso com voeé, leitor. 1.2. Encontro com Mulheres que Correm com os Lobos Medlo, depressto, fragilidade, bloqueio ¢ falta de cristividade so sintomas cada vez mais frequentes entre as mulheres modemas, assoberbadas com 0 acimulo de fungSes na familia e na vida profissional. Esse problema [..] vio Jjunto com o desenvolvimento de uma cultura que transformou a mulher muma espécie de animal doméstico. Mulheres que Correm com os Lobos identifica a esséncia da alma feminina, sua psique mais profunda, com o arqueétipo da mu- Iher selvagem, e propde o resgate desse passado longinquo, como forma de atingir a verdadeira libertago (ESTES, 2014). Omeu encontro coma leitura do livro Mulheres que Correm com os Lobos: Mitos ¢ histérias do arquétipo da Mulher Selvagem foi importante em diversos niveis. Concen- trarei os meus esforgos aqui para compartilhar a minha experiéncia com a clinica. A au- tora Clarissa Pinkola Estés, americana de descendéncia mexicana, PhD, académica de renome internacional, poetisa e psicanalista junguiana assume um papel de contadora de historias € mostra como, a partir de mitos, contos de fada, lendas, entre outros, a mulher pode se ligar aos atributos saudaveis e instintivos do arquétipo da Mulher Selvagem. Com 1 © tempo, tornou-se quase impossivel no conseguir correlacionar histérias de clientes com 08 contos trazidos por Estés. O aprofundamento nas leituras também me fez ver cada vez mais 0 potencial de uma unio entre esta obra e o psicodrama, tanto em relagao as suas técnicas, quanto a sua filosofia em si, Estés nos traz.a reflexdo de que a vitalidade esvaida das mulheres pode ser restaurada por meio de profundas escavagdes “psiquico-arqueolégicas” nas ruinas do mundo subterraneo feminino. A autora se debrugou no estudo do comportamento dos obos, o que a auxiliou nesse aprofundamento, Encontrou diversas caracteristicas psiqui- cas em comum entre os lobos ¢ as mulheres, tais como resisténcia, forga, profunda capa- cidade intuitiva, curiosidade, preocupagdo com seus filhotes, parceiro e matilha, capaci- dade de adaptacao, determinagao, ferocidade e coragem. Estés também identificou que a atividade predatéria contra os lobos e contra as mulheres por parte daqueles que nao os compreendem - ou nao os consideram desejaveis ou socialmente adequados, no caso das mulheres - sto de uma semelhanga surpreendente, € que isso os coloca em risco de afastamento da sua natureza selvagem. Quando sto cortados 0s vinculos de uma mulher com a sua fonte de origem, cla fica esterlizada, e seus instintos e ciclos naturais so perdidos, em virtude de uma subordinagio a cultura, ao intelecto ou ao ego ~ dela propria ou de outros. A mulher Selvagem é a saide para todas as mulheres. Sem ela, a psi- cologia feminina no faz sentido, (ESTES, 1992, pp 22-23), Podemos facilmente associar isto aos conceitos de espontaneidade, criatividade e satide no psicodrama, assim como o de conserva cultural, que sero melhor trabalhados no decorrer deste trabalho. Percebi que a pratica do resgate da espontaneidade no psico- drama conversa com a busca pelo despertar da Mulher Selvagem. Despertou-me entio a ideia de agregar a leitura desta obra ao meu trabalho como psicoterapeuta, passei a indicar pontualmente leituras de capitulos especificos para algumas clientes, de acordo com demandas previamente abordadas. Algumas de fato levaram a ideia adiante, leram 0s capftulos e renderam sessdes ricas de muitas trocas, insights e atividades, mas nenhuma delas se compara a experiéncia que tive com Carolina (nome fieticio). 1.3. Justificativa 12 A metodologia psicodramitica divide-se em processos de aquecimento, dramati- zacdo compartilhamento. Dentro deste script, podemos utilizar diversas técnicas e jogos draméticos, nas quais terapeuta e cliente experimentam jogar papéis e acessam em con- junto uma realidade suplementar. A elaborago deste presente trabalho foi fruto de uma intervengao psieoterépica artistica de confecgio de uma boneca com a leitura do capitulo 3 do livro Mulheres que Correm com os Lobos - “Farejando os fatos: o resgate da intuigtio como iniciagao”, com dramatizagao posterior ¢ aplicabilidade de técnicas cléssicas do psicodrama. Este capitulo nos apresenta 0 conto Vasalisa, 0 qual aborda profundamente a intuigao como poder instintivo basico da mulher. O objetivo desta experiéncia foi trabalhar o resgate da intuigdo em Carolina a par- tir da construgdo de uma boneca e posterior trabalho dramatico com a mesma, o que se justifica quando adentramos a sua histéria, desde a inffincia até a idade adulta. A minha premissa inicial era de que as teorias e técnicas psicodraméticas poderiam facilitar a con- dugdo de um trabalho sensivel e pontual de busca do eu esponténeo-criativo-instintivo de Carolina. ‘A elaboragdo do trabalho de pesquisa inclui uma revisdo da literatura do Psico- drama, trazendo coneeitos como espontaneidade, criatividade, fator tele, transferéncia, conserva cultural, catarse de integragao, filosofia do momento, co-consciente, co-incons- ciente e realidade suplementar, além de uma revisio acerca das técnicas classicas do psi- codrama. A metodologia ser detalhada passo a passo, ¢ posteriormente teremos o relato das sesses com Carolina. Sera apresentado um processamento teérico acerca desta ex- periéncia, fazendo conexdes entre o caso, os conceitos psicodramaticos Morenianos e a literatura de Estés. Por fim, teremos um breve compartilhamento de ideias, fechando este ciclo de trabalho. 2. Revisio da Literatura 2.1.0 Psicodrama Jacob Levy Moreno (1889-1974), romeno criado na Austria e judeu, foi o respon- sdvel pela construgio do psicodrama como uma abordagem sécio-psicoterépica na primeira metade do século pasado. Moreno era médico e sempre foi muito implicado 13 em questdes referentes as relagdes sociais, Estando sempre envolvido com a arte, pode- ‘mos afirmar que Moreno desenvolveu uma abordagem que se situa na interface entre a arte e a ciéneia, mantendo as caracteristicas fundamentais das duas. O psicodrama foi definido por Moreno (1975) como o método que estuda as verdades existenciais através da ago. Este método surgiu como oposigao aos métodos \dividualistas e racionalistas predominantes da época, privilegiou o estudo do homem em relagdo, como um ser bio-psico-social e césmico. Teve como base teérica a filosofia existencial-fenomenologica, como os trabalhos de Bérgson, Buber, Husserl ¢ Nietzs- che. © psicodrama é uma terapia vivencial de base fenomenolégico-existencial ¢ tem como objetivo fazer com que o individuo possa resgatar a liberdade de poder utili- zar suas préprias capacidades para existir, para reaprender a utilizar a sua liberdade de forma responsivel, para ser o que ele €. Para tal, promove uma relagio terapéutica que privilegia o encontro existencial eu— tu, que recria e permite o encontro na vida, em outras relagdes sociais. Moreno quis que cada sesso psicodramatica fosse uma experi- éncia existencial. Através do discurso Moreniano, podemos encontrar os coneeitos basi- cos da fenomenologia existencial, tais como: existéncia, ser, temporalidade (0 aqui-e- agora), espago, encontro, liberdade, projeto, percepgo, corpo, imagindrio, linguagem, sonhos, vivéncia, ete. A teoria socionémica Moreniana ¢ dividida em trés partes: a sociodindmica, a sociometria e a sociatria. Socionomia significa o estudo das leis que dirigem as relagdes humanas. A sociodinamica ¢ a parte da socionomia que estuda o funcionamento das relagées interpessoais (seu principal método é 0 role playing). A sociometria estuda a estrutura destas relagdes humanas e a mensuraga0 de relagao entre as pessoas (seu prin- cipal método € o teste sociométrico). A sociatria é a terapéutica das relagdes sociais, onde encontramos © psicodrama, a psicoterapia de grupo e o sociodrama. Existem basica- mente trés formas de trabalhar os grupos: o psicodrama é o tratamento através da ago dramatica do protagonista em grupo, o sociodrama tem como protagonista sempre 0 proprio grupo e a psicoterapia de grupo que prioriza o tratamento das relagdes inter- pessoais, inseridas na dindmica do grupo. A seguir, serdo apresentados alguns conceitos essenciais para compreender a obra de Moreno, tais como descritos por Ramalho (2010). A espontaneidade-criatividade 14 A espontaneidade explica a constante criatividade do mundo e a concepgio do ‘homem como “génio em potencial”. Este conceito é um catalisador, néo uma energia acumulével, ndo se conserva e, para Moreno, é essencial ao ser humano. Para ele, este importante conceito de espontaneidade é definido como a capa~ ‘cidade de responder de forma nova e mais adequada as situagdes recentes ou antigas. Espontaneidade, criatividade e sensi © inicio, estariam acompanhados tanto de fatores favoraveis ao seu desenvolvimento, lidade seriam recursos inatos do homem que, desde quanto de tendéncias destrutiv: Embora estejam conectados, espontaneidade € criatividade nfo séo a mesma ‘coisa. A espontaneidade é o catalisador psiquico, enquanto que a criatividade é a subs- ‘tncia que capacita o sujeito a agir. Ambas conferem dinamismo as construges cultu- rais, asseguram a sobrevivencia social e coletiva rompendo com as “conservas culturais” ¢ facilitando as transformagGes da realidade social. A conserva cultural Conserva cultural é tudo aquilo que esti dado, pronto, tudo que é socialmente normatizado, Este conceito, criado por Moreno, assume que 0s usos e costumes, assim ‘como os objetos, cristalizam-se. Determinadas culturas podem estar presas a conservas, criando um obsticulo 4 manifestagdo da espontaneidade. As conservas devem ser 0 ponto de partida e nao de estagnagio da criatividade. A espontaneidade pode agir diante das conservas. Desta forma, pode ser que seja processada uma verdadeira revolugao cri- adora, Para Moreno, a conserva cultural propde-se a ser 0 produto acabado e, como ‘al, adquire uma qualidade quase sagrada. Caberia ao ser humano se libertar da submis- sfo as conservas culturais e cultivar o estado espontneo-criativo. O ser humano vive em estado de perpétua originalidade e de adequago pessoal e existencial a realidade em que vive. Busca naturalmente a liberagao da espontaneidade, mas, por outro lado, busca 2 seguranga das conservas culturais imutaveis. O fator tele e o encontro existencial Tele, que provém etimologicamente do termo grego e significa “longe ou a distanci: ”, indica a possibilidade de uma relago ndo conservada, esponténea, uma abertura ao outro que se extende a uma abertura do outro (CUNHA, 1990). Diz res- peito a capacidade de distinguir objetos pessoas sem distorcer seus papéis essenciais. 15 objetivo da atuagao psicodramética é superar a repetiga0, as conservas culturais, pro- uzindo encontros. O fator transferencial, que permite a presentificagio dessas repeti- ‘ges, deve ser contornado e superado pelo fator tele. As relagSes télicas se baseiam no aqui e agora ¢ séio movidas pela espontaneidade ‘© pelo encontro. £ a empatia em dupla via, em reciprocidade, ao contririo da transferén- cia, que é um empecilho para a manifestago das relagées télicas. A permanéneia da trans- feréncia na dramatizagao representa a presentificagao das repetigdes, das conservas cul- turais. A transferéncia, assim como a contratransferéncia deve ser superada pelo fator Tele, a fim de que haja o encontro existencial. Accatarse de integragio A catarse de integraco é um mecanismo de ago terapéutica a partir do qual se pretende libertar-se de afetos e emogGes, assim como a sua posterior elaboragiio e cons- trugdo de novas formas de estar no mundo, no aqui e agora. Hé, no momento da catarse, ‘uma aproximagao entre 0 individuo e seus préprios conflitos, no qual ele redimensiona ‘as suas relagdes ¢ scu estar no mundo. E uma catarse ativa, miltipla, a partir da qual a ‘pessoa amplia sua concepgao de mundo, re- significa e assume novas posturas no plano ‘mental e corporal. Segundo Moreno, quanto mais um protagonista entra no seu papel, ‘menos consciente ele permanece dos seus atos; € como ver o inconsciente atuando. A fingo do psicodrama ¢ 0 de fazer brotar as verdades existenciais veladas — fazer ‘emergir 0 sujeito espontineo-criador. A filosofia do momento O momento é descrito como se fosse um curto-circuito, um instante. E ‘quando no tempo a duragio é alterada de repente, caracterizando a transformagao do ser no instante do encontro e da criagdo. Moreno conceitua o aqui e agora enfatizando o tempo presente e no o tempo passado, j4 que as correntes afetivas dos relacionamentos esto acontecendo sempre no aqui e agora. Com a teoria do momento, Moreno buscava. resgatar, dentro dessa sociedade da conserva cultural, aimportancia do viver 0 momento, de viver a produgo do novo, ainda que este guarde em si a légica do impre- visivel. Na psicoterapia, ha no cliente 0 desempenho de papeis cristalizados e subme- tidos a uma conserva cultural. 16 Co-consciente e co-inconsciente Co-conseiente e co-inconseiente referem-se aos estados conscientes e inconsei- centes e que sto produzidos e experimentados apenas coletivamente. O co-inconsciente faz referéncia aos desejos e fantasias experimentados e reproduzidos conjuntamente por mais de uma pessoa de forma inconsciente; jé 0 co-consciente é a experimentagao comum de idéias ¢ sensagdes de forma consciente. Ambos podem emergir em grupos que vivenciam uma histéria em comum, No processo psicodramético em grupo observa- mos a emergéncia de fendmenos do co-consciente e do co-inconsciente grupal. A realidade suplementar No psicodrama acontece um tipo de experiéneia que ultrapassa a realidade, que oferece ao sujeito uma nova e extensiva experiéncia de realidade, que nao é uma perda, ‘mas um enriquecimento da realidade, por meio do investimento e do uso extensivo da imaginagao. Moreno conceituou o psicodrama como uma pequena injegio de insanidade, sob condigdes controladas ¢ protegidas. Ele & semelhante ao teatro do éxtase em seu sentido mais puro, pois possibilita ao sujeito sair do mundo limitado do seu ego e indi- vidualidade, ¢ dissolver fronteiras. Assim, atuando, o protagonista é convidado a viver experiéncias em um mundo sem limites, virtual, em que fica liberado do mundo real, podemos dizer que estamos trabalhando com a imaginago, numa realidade suplementar. A matriz de identidade E 0 lugar onde a crianga se insere desde o nascimento, relacionando-se com ou- tros objetos e pessoas dento de um determinado clima. © meio é constituido a partir de aspectos sociais, materiais e psicolégicos. A matriz de identidade é o locus nascendi. Moreno também a denominava de “placenta social”, pois estabelece a comunicagao entre a crianga eo universo social da mae. Esse local ¢ ocupado pelo bebé antes mesmo dele nascer (GONGALVES, 1988). Papéis Entende-se papel como a forma de funcionamento que o individuo assume no momento especifico em que reage a uma situagdo especifica, na qual outras pessoas ou objetos esto envolvidos. Ele explana que os procedimentos necessirios para um psicodramatista trabalhar os papéis so: observar 0 processo do papel no préprio contexto wv da Vida, estudé-lo em condigdes experimentais, empregé-lo como método psicoterapéu- tico (terapia da situagio e do comportamento) e examinar e treinar o comportamento no ‘aqui e agora’. Principais etapas e téenicas do psicodrama Neste trabalho nao iremos focar na pratica do psicodrama grupal, tal como desen- volvido por J. L. Moreno, mas sim no seu método individual, ou bipessoal, como descrito no livro Psicodrama Bipessoal, de Rosa Cukier (1992). A autora nos fornece um repert6- tio teérico e pratico acerea do Psicodrama, explorando seus conhecimentos e técnicas no contexto clinico, Alguns estranhamentos sto levantados, tais como as consequéncias da auséncia de egos auxiliares nas sessdes, se 0 diretor (terapeuta) seria incapaz de incluir outras pessoas no seu trabalho ¢ como os clientes seriam afetados pelas mudangas na técnica. Utilizando referenciais de varios autores da Area, defendido que o psicodrama bipessoal nao fere 0 legado de Moreno, e que seria apenas uma forma criativa e espontd- nea que os terapeutas desenvolveram ao longo dos anos utilizando as obras clissicas. A autora no rejeita o psicodrama grupal e aponta que, com o tempo, € indicado que os pacientes passem a integrar um grupo terapéutico, Cukier define um enquadre basico das préticas do psicodrama bipessoal. As ses- ses duram 50 minutos, numa frequéneia de uma a duas vezes por semana. Elas podem se basear na verbalizagao do cliente, quando a mesma se faz necesséria, ou na dramatiza- ¢40, a qual possui uma metodologia fundamental. As etapas da terapia se dividem em aquecimento, dramatizagdo e compartilhar, as quais serio apresentadas a seguir. (O aquecimento ajuda o individuo a entrar em um clima de maior espontaneidade, fortalecendo as relagdes télicas. E nesta etapa que o cliente deve se desligar dos fatores externos que podem atrapalhar o rendimento da terapia, tais como 0 cansago por ter ca~ ‘minhado até a clinica, alguma piada de mau gosto que ouviu no trabalho, etc. E impor- tante ressaltar que o terapeuta também deve exercitar 0 desligamento de questdes pesso- ais e de pautas trazidas por outros pacientes, sendo preciso se concentrar totalmente no presente. Hé o aquecimento inespecifico, o qual visa situar 0 paciente na sesso, podendo ser verbal ou em movimento. O primeiro consiste numa tentativa de auxiliar o sujeito a ‘onganizat os contetidos que serdo abordados, e serve também para identificar 0 nivel emocional em que 0 mesmo se encontra. O segundo tenta quebrar com o hAbito de ficar- 18 mos sé no meio verbal, fazendo com que o cliente se conecte com o seu corpo cami- nhando, se alongando, se massageando, respirando, entre outros. O aquecimento especi- fico vale para quando o terapeuta ja decidiu qual recurso técnico iré usar, sendo possivel realizar a cena aberta — caracterizago de uma situagao real e/ou local ou a composigao de personagens — ou o psicodrama interno, na qual podem ser usadas téenicas de relaxa- mento para explorar o “mundo intemo” do paciente. Uma vez aquecido, o cliente pode ser guiado para a fase de dramatizagio, ou a etapa do “como se”. Nela trabalha-se a realidade suplementar e é quando ocorre o climax da sesso. Aqui se concentram diversas técnicas para trabalhar as questbes trazidas pelo cliente, Hé 0 duplo, cujo objetivo ¢ entrar em contato com a emogao nao verbalizada (ou no conscientizada) do paciente a fim de auxilié-lo a expressé-la. Nele, 0 terapeuta deve assumir a postura do cliente ¢ colocar em questionamento alguns dos sentimentos dele e concretizar novas possibilidades, ‘No espelho, o terapeuta se coloca na postura fisica do sujeito, 0 que permite a visualizaggo do paciente de si mesmo, olhando de fora da cena, observando os aspectos apresentados. ‘Na inversfio de papéis, pede-se que o paciente assuma o papel de alguma pessoa que esteja presente em suas questées pessoais, tentando responder perguntas ¢ investigar condutas. No soliléq dos dentro de si o cliente deve “pensar alto”, expondo conteiidos que esto guarda- ‘A maximizagio é uma proposta de que 0 paciente aumente bastante um gesto, ‘uma forma verbal ou uma postura corporal, quando esta destoa das outras ¢ soa estereo- tipada, formal ou estérl. A concretizagéio consiste na materializagio de objetos inanimados, emog0es, par- tes corporais e doengas orgénicas. O terapeuta pede que o paciente Ihe mostre, conereta- mente, através de imagens, movimentos ¢ falas draméticas, o que estas coisas Ihe fazem como fazem. Outras técnicas so apontadas por Cukier (1992), tais como dramatizago em cena aberta, psicodrama interno, onirodrama, trabalho com imagens ¢ esculturas, também os 19 jogos dramaticos, como o atomo social, historiodrama, esquema de papéis, técnica da cadeira vazia, entre outras, porém nao iremos nos aprofundar nas mesmas. Por fim, na etapa do compartilhar, so explorados sentimentos, emogdes ¢ pen- samentos eliciados pelo trabalho dramatico. Esta etapa ¢ fundamental para as elaboragdes verbais dos contetidos manifestos. No psicodrama bipessoal, ao contrério do grupal, é dificil imaginar 0 uso dessa fase em todas as sess6es, pois se tomaria algo artificial ¢ chato. Fica destacada a necessidade do terapeuta avaliar se o compartilhamento ¢ neces- Sitio, ¢ se pode ser adaptado e ressignificado. 2.2 Contos, arquétipos ¢ instinto (Os contos nao silo para serem entendidos, mas para serem sentidos, lidos com os olhos do coragiio e da alma. O enigma que os contos apresentam, est em percorrer um caminho com um objetivo de alcangar,¢ eles o mostram de forma simples. Pois os contos, como 0s sonhos, so cheios de imagens que, decifradas, abrem um caminho send para 0 auto-conhecimento ¢ a compre censilo de questdes universais, pelo menos servem para nos despertar questio- ‘namentos nestas diregSes. (CORUMBA e RAMALHO, 2008). © planejamento da interveng4o psicoterapéutica deste trabalho inclui o recurso de um conto (que sera deserito no proximo item) e todas as suas riquezas e potencialida- des, A proposta de utilizar um conto como disparador de uma atividade dramética aposta Jjustamente em uma leitura das questdes vividas pela cliente com seu coragéo e alma, assim como apontam 2s autoras supracitadas, Na literatura junguiana, encontramos que a leitura dos contos de fada € de enorme importéncia para o entendimento do comporta- mento humano, pois constitui a manifestagdo mais pura e mais simples dos processos psiquicos d inconsciente coletivo, no qual se localizam imagens primordiais de cariter universal: os arquétipos (CORUMBA e RAMALHO, 2008). Em O Homem e seus Simbolos (2016), C. G. Jung traz 0 conceito de arquétipos, ou “residuos arcaicos”, como representagdes de um motivo — que podem ter intimeras variagSes — sem perder a sua configuragio original. Estes motivos podem se referir a simbolos, imagens e figuras comuns a toda a humanidade, ou seja, aspectos universais. s arquétipos, entretanto, ndo sao representagSes simplesmente herdadas, néo se referem 20 a superstigdes ou crengas. O autor esclarece que, na realidade, o arquétipo é uma tendén- cia instintiva, assim como o impulso das aves para construir um ninho € o das formigas para se organizarem em colénias. Jung se aprofunda na relago entre arquétipo e instinto. Os instintos so impulsos fisiolégicos percebidos pelos sentidos, e que, por vezes, podem se manifestar como fan- tasias e revelar a sua presenga apenas por meio de imagens simbélicas. A estas manifes- ‘tages ele se refere como “arquétipos”, representagbes de origem desconhecida que se repetem em qualquer época e local do planeta de formas variadas. Tais repetigdes podem ser perecbidas nos contos, na mitologia, nos sonhos, na cultura e na arte. Nesta pesquisa, iremos nos ater principalmente ao arquétipo da Mulher Selva gem, descrito por Estés (2014) como natureza basica e inata da mulher. Este conceito pode ser entendido e desdobrado de diversas formas, porém precisamos compreender 0 aspecto universal que atravessa os conceitos arquetipicos, logo podemos entender que hé algo em comum nessa natureza instintiva feminina. Na poesia, pode ser referida como “a outra”, “bosques distantes”, “a amiga”, entre outros. Na psicanslise, poderia ser rela- cionada aos conceitos de id, de Self e de natureza medial. Na biologia, poderia ser cha- mada de natureza tipica ou fundamental. Corumba ¢ Ramalho (ibidem) apontam que o Psicodrama contém um terreno muito rico para a realizagdo de um trabalho psicoterapéutico com contos, nao apenas na terapia infantil, mas também com adultos, pois & um método que tem como objetivo despertar 0 mundo das fantasias. Sendo assim, contém os requisitos necessérios para realizagao de um jogo dramético, pois acessa os niveis do imaginério e do simbélico. 2.3 O Conto Vasalisa e a integragao da Forga Intuitiva feminina ‘Vasaliso & uma histéria da transmissio da bénglio do poder da intuiglo das mulheres de mae para filha, de uma gerayo para a outra, Esse enorme poder, o da intuigli, tem a rapidez de um raio ¢ ¢ composto de visto interior, audigdo interior, percepgdo interior e conhecimento interior (ESTES, 2014). A historia de Vasalisa, antigo conto russo, nos faz mergulhar nos processos de resgate da intuigo como forma de iniciago para uma mulher, trazendo a tona a nogdo de que nem tudo é o que parece. Estés traz. a intuigo como poder instintivo basico do 21 arquétipo da Mulher Selvagem, como “o tesouro da psique da mulher”, como uma espé- cie de amuleto que as guiam durante os ciclos da vida. Este conto nos apresenta a histéria de uma menina — Vasalisa — que perdeu sua mie e dela ganhou uma boneca com a promessa de que, a partir daquele momento, ela a ajudaria a decidir o que fazer. Ao ficar Orffi da mae, passa a viver com o pai, uma ma- drasta e suas trés filhas, que passam a persegui-la e a submeté-la todo tipo maldade e abusos. Essa boneca pode representar uma heranga ps mento interior, passados de mae para filha. Algo que sobrevive & morte da mae boa sim- bélica. A seguir, apresentarei algumas etapas do conto ¢ 0 processamento tedrico des- tito pela propria autora, ¢ também com base no trabalho de Mourao (2016). A morte da mie boa demais ¢ o encontro com a mie terrivel Os contos nos quais as mées morrem podem indicar simbolicamente que deve morrer a identificagdo da mulher com sua mfe, para que possa desenvolver sua propria histéria e personalidade. A bencdo materna junto com a boneca formam um par de opos- tos 4 bruxa ¢ 4 madrasta, que simbolizam a mie terrivel, ou a realidade cruel da vida. Esse duplo aspecto feminino é que inicia Vasalisa. Ai \¢4o de Vasalisa, com a morte da mie boa e contato com a mie terrivel, ensin-a a ficar s6 para que descubra sua forma de cuidar de si mesma, desenvolver a sua autonomia e assim, posteriormente, se tornar ela propria mae. ‘A bondade extrema de menina ¢ um aspecto do arquétipo feminino visto em di- vversos mitos e contos de fadas ao redor do mundo, mas que nao é algo visto como posi- tivo para o desenvolvimento da mulher. A bondade e a generosidade exageradas preci- sam ser combatidas por meio do confronto com 0 nosso lado sombrio, que vemos no egoismo da madrasta e das irmas. egoismo reprimido ~ simbolizado pela madrasta e irmas mas — pode ser muito positivo para a mulher. Sem isso a mulher passa a atender os desejos de qualquer pessoa ce esquece de si mesma, entrando em uma alienagdo profunda. Estas personagens também podem representar um aspecto de perseguigo que comega a combater a realizagao inte- rior dos nossos desejos ¢ aspiragdes. Por vezes, quando estamos nos desenvolvendo, exterior comega a se levantar em criticas e gerar dividas em nés, isso porque em nosso interior também ha diividas, receios e inseguranga. O conto mostra como sermos heroi- nas e enfrentarmos nossos medos e questées. A boneca enquanto amuleto Outro fator de muita relevancia para compreendermos também ¢ o significado da boneca enquanto talisma, Para a menina, a boneca ¢ considerada um suporte para a pro- Jes dos fantasmas da maternidade e da relagdio com a mée, pois se observarmos bem, elas imitam em suas brincadeiras a relagao mae e filha. A relagdo da crianga com diversos. objetos, como boneca, ursinho, paninho, entre outros, é a primeira projegao onde a mesma deposita uma forga mégica e transcendente. O relacionamento entre a boneca e ‘Vasalisa simboliza uma forma magica de empatia entre a mulher e a sua prépria intuigao (ESTES, 2014). ‘Neste trabalho, a confec¢ao da boneca abriu a possibi fidade de trabalharmos com um objeto intermediario. O termo "Objeto Intermediério", ou aquele que intermedia a passagem do estado de alarme (campo tenso) para o campo relaxado, foi introduzido no campo teérico-pratico do psicodrama por Rojas-Bermiidez. (1980) como um recurso para facilitar 0 aquecimento de pacientes psivéticos crdnicos que eram atendidos pelo autor. O uso da boneca possibilitou a aplicagao de diversas técnicas classicas do psicodrama, e funcionou como facilitador da comunicagao de Carolina com ela mesma. Entrando na Floresta — O encontro com Baba Yaga Vasalisa ¢ entéio enviada a floresta por sua madrasta em busca de fogo. Tudo faz parte de um plano para elas se livrarem de Vasalisa, pois Baba Yaga, a bruxa que mora na floresta, teoricamente ndo a deixaria retomar para casa com vida. Ela apresenta ca- racteristicas da Grande Mie antiga, sendo boa e m4 ao mesmo tempo, dependendo da atitude perante ela, representando um aspecto sombrio do feminino. ‘Ao ir para a floresta em busca de Baba Yaga, ela entra em contato com seus instintos ¢ aprende a confiar neles. Ela alimenta a boneca com pao, alimentando assim o instinto de preservacao herdado da mae ¢ segue em rumo ao processo de individuagao. ‘Neste momento, ela deixa que a mocinha fragil morra aos poucos e passa a transferir o poder para a boneca, ou seja, para a intuigdo. ‘As dificuldades descritas nessa parte do conto, tais como atravessar todo 0 cami- nho da floresta, encarar a apavorante bruxa, residir por um tempo em sua casa ¢ comer os seus alimentos permitem que a crianga fragil e excessivamente boa va definhando ainda mais. Retornando para casa Irei adiantar um pouco 0 conto, de acordo com o que foi trabalhado na pesquisa, partirei para o momento em que Vasalisa retorna para casa. Depois de algum tempo morando la, Baba Yaga da entdo a menina uma caveira com o fogo, quando descobre a bengdio em sua casa —a boneca. Afinal, foi isso o que ela fora buscar inicialmente: 0 fogo que a madrasta a ordenou buscar. Assim como a mae de Vasalisa, a bruxa também dé a menina um tipo de bengdo, que a auxilia, assim como a boneca, Ambas — boneca e ca- veira — formam a completude do materno: o lado luz e sombra, assimilados e integrados por Vasalisa (MOURA, 2016). Ao retomnar & casa da madrasta ela sente medo, o que é natural e esperado, mas a caveira a tranquiliza nessa jornada. Vasalisa desceu até as suas sombras, conheceu sua crueldade. Ela parecia ser vitima dos outros por ser ingénua, € 0 conto nos mostra que, na verdade, ela era cruel consigo propria. Conhecer nossa sombra nos traz 0 conheci- mento da sombra das outras pessoas. Este conto nos ensina que precisamos descer até a nossa natureza mais interior, encontrar com a Bruxa para aprendermos a deixar morrer aquil que no nos serve mais. Aprendermos os mistérios da vida e da morte ¢ organizar de nossas emogdes ¢ ideias. Algo que somente o feminino consegue fazer com maestria (MOURAO, 2016). 3. Metodologia Este trabalho foi realizado com a abordagem qualitativa e de pesquisa-agdo, bus- cando uma intervengao psicosocial e produgao de conhecimento. Foi explorado um es- tudo de caso, mais especificamente duas sessdes de psicoterapia de orientagao psicodra- ‘matica com a mesma cliente. Como instrumento de andlise, as sessdes foram descritas, ‘com recortes de narrativas e processamento teérico da terapeuta. Também foi apresentado ‘um breve histérico e contextualizagao de fatos acerca do sujeito. 3.1. Objetivo Geral 24 Trabalhar o resgate da intuigao na cliente em questo a partir da leitura de um . construgdo artesanal de uma boneca (objeto intermediario) e posterior trabalho ico com a mesma, trabalhando assim com as teorias e técnicas psicodramaticas, a de facilitar a condugao de um trabalho de busca do eu esponténeo-criativo-instintivo cliente. Especificos a) Utilizar um conto como disparador de uma atividade dramatica. b) Associar a descrigtio de resgate da intuigao e do arquétipo da Mulher Selvagem (como descrito por Estés) ao conceito de resgate do eu espontineo-criativo Moreniano. 3.2. Local As sessGes de atendimento psicoterapéutico foram realizadas no consultério par- lar da autora do presente trabalho de pesquisa, equipado com recursos adequados para pratica profissional, localizado na cidade de Aracaju (Sergipe). 3.3. Sujeito A narrativa da experiéncia clinica parte do relato de caso de uma cliente (C) da ‘autora do presente trabalho (J). Carolina tem aproximadamente 35 anos, é natural de Ara- ‘caju, trabalha como coordenadora em uma instituiglio de ensino superior privada na mesma cidade ¢ esta sendo acompanhada em sessdes semanais de psicoterapia de orien- ta¢io psicodramatica ha aproximadamente 3 anos. Alguns dados foram modificados ou aproximados para garantir o sigilo de informagGes. A cliente permitiu a publicagao da pesquisa por meio de assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido (anexo 1). 3.4, Instrumentos Para a realizago das duas sessdes de psicoterapia descritas, foram utilizados os seguintes recurs 25 a) Livro Mulheres que Correm com os Lobos ~ Mitos e histérias do arquétipo da Muther Selvagem, da autora Clarissa Pinkola Estés (2014). O texto foi lido inicialmente pela cliente na sua verso em PDF. b) Equipamento de som. ©) Papel EVA de vérias cores, papel crepom, tinta guache, pincéis, recortes de revista, fita adesiva colorida, cola, lapis de cor, lapis pastel, hidrocor, caneti- has e tesoura (anexo 2). 3.5. Procedimentos Foi realizada - no espago de duas sessbes de psicoterapia individual - uma inter~ psicoterdpica artistica de confeego de uma boneca (anexo 3) e posterior trabalho ico. Na primeira sessdo, 0 aquecimento ficou por conta da releitura de alguns tre- do capitulo 3 do livro Mulheres que Correm com os Lobos - “Farejando os fatos: 0 da intuigdo como iniciagdio”, no qual se encontra 0 conto Vasalisa, j4 descrito jormente, que foi utilizado como iniciador da atividade. A cliente j4 havia lido 0 lo na integra em casa. Logo apés houve 0 momento de confeceao da boneca. Na \éa sesstio, retomamos a temitica e partimos para a etapa de dramatizagio e aplica- de técnicas classicas do psicodrama (duplo, espelho, inversio de papéis, soliléquio, {sta no papel), jé descritas previamente, utilizando a boneca como objeto interme- io. A intervengao foi finalizada com a etapa de compartilhamento. As sessées foram adas, a fim de facilitar a transcri registrado. 4. Relato de Caso e Processamento Tedrico 4.1.Conhecendo a cliente Carolina esté sendo acompanhada por mim ha aproximadamente 3 anos. A sua familia foi trazida desde o inicio como uma das principais demandas do trabalho terapéu- tico, sendo um assunto delicado e complexo, A fim de nao expor demasiadamente a his- ‘6ria, irei resumir esta complexidade com as palavras abandono ¢ rejeigio. O abandono partiu dos homens da familia. Seu pai e seu irm&o foram embora, viver outras vidas, se tomaram quase indisponiveis de manter uma relagZo com Carolina e sua mie. A tltima, 26 ‘sua vez, desde a infancia tratava a filha com muita rejeigdo. Tinha citimes dela com pai, era extremamente exigente e nada que a filha fazia era do seu agrado. Seu carinho dedicagao foram reservados ao marido e ao filho. Neste contexto conturbado, cresceu uma mulher que tinha como objetivo ser in- ndente, ética, competente ¢ auténoma. Extremamente racional, Carolina se especia- una sua area de estudo, seguiu a carreira académica e, com muito esforgo, conseguiu Posigdo de destaque na sua empresa. Era nitido nas suas histérias que o trabalho 'va a maior parte do seu tempo, energia e pensamentos. Aos poucos fomos enten- ido como isso tem tudo a ver com o hist6rico das suas relagdes familiares pessoais, ‘todas as decepgdes que ela j4 viveu. Aqui incluo 0 abandono do pai, do irmao e de um nado namorado, assim como a relago dificil com a mae. Com o passar dos anos, acompanhei diversos marcos da sua vida. Destaco a saida casa da mae e a primeira vez em que ela morou sozinha, a compra de alguns bens mo carro e apartamento) com o seu préprio dinheiro, o afastamento total do ex-namo- inicio de um outro relacionamento, muito mais saudavel e mais adequado as suas sidades, a subida de cargos na empresa, tomadas de decis6es dificeis no trabalho melhora gradual em relago a sua satide, tanto fisica quanto mental. Neste momento, Carolina sente-se mais estavel, esté fazendo planos para o futuro, satisfeita com o trabalho (apesar das dificuldades de um cargo tdo importante) ¢ est lo mais tempo para descansar e cuidar de si mesma. Parece que esse terreno se tornou fil para que cla desse alguns passos em dire¢o a um “retomo ao lat” - um processo de ‘ar outras camadas dela mesma - ¢ a uma reflexdo em relagio ao seu pasado familiar. ymnamos, depois de muito tempo, a falar sobre a sua familia, Isso veio como uma dica As vezes, as coisas realmente ndo s4o 0 que parecem, Toda essa estabilidade abalou amas estruturas e a fez sentir que precisava se voltar novamente para temas tidos como rados da sua vida, mas que na realidade estavam apenas adormecidos. Nesse contexto, sugeri a leitura do capitulo 3 do livro Mulheres que Correm com Lobos, intitulado “Farejando os fatos: o resgate da intuigdo como iniciagao”, pensando seria uma boa reflexiio a respeito de elementos como a mie boa demais, a mae ma, a ‘entrada na floresta, 0 encontro com a bruxa, o resgate da intuigdo e o “deixar morrer” Talvez eu ndo imaginasse o quanto esse texto a abalaria e a faria refletir, Na sesso se- ‘Guinte, ela chegou cheia de comentirios a respeito da leitura, associando facilmente os a itos a sua vida, Parecia que ela estava montando um quebra-cabegas. Nesse dia, 0 trabalho ficou mais restrito a fala, escuta ¢ pequenas intervengdes, mas ja estava ando uma ideia na minha cabeca, a qual pus em pritica na sesso seguinte. Des- rei agora as duas sessbes posteriores, as quais deram origem ao presente trabalho de isa, 4.2, 1° Sessio Hoje Carolina chegou sem pautas especificas. Eu decidi reaquecer o assunto sobre livro para iniciar a atividade planejada, Eu relembrei um pouco sobre 0 conto, sobre elemento da historia, sobre como cada personagem faz parte de um todo, que é a onista, Eu selecionei alguns trechos do livro que descrevem o significado da boneca talisma em diversos contextos. O talisma que a mulher tem em relagao a sua propria ’igdio. Acessar esse simbolo seria um resgate a intuigao. Quando Vasalisa pergunta & boneca que caminho seguir, quando ela a alimenta 05 biscoitos, ela confia nessa intuigao e da & mesma credibilidade. Carolina falou sente que essa intuigdo vem dela, que ja esti intrinseca e que ela tem buscado utilizar jis hoje em dia. E uma coisa sem explicagao, como os sentimentos e como fenémenos irituais. livro nos mostra que a intuigao muitas vezes é passada de mulher para mulher, ‘com o passar das geragdes, como de mae para filha, ou outros tipos de vinculos signifi- ‘cativos. E uma heranga transgeracional. Ela disse na sesso anterior que ela ndo sente que essa intuigo foi passada para ela pela mie, como se fosse o presente que Vasalisa recebeu da mic. J- Vocé nfio acha que tudo o que vocé jd passou com a sua mae pode ter propor- cionado o desenvolvimento da sua propria intuigo? C - Eu munca pensei por esse lado, mas faz sentido. Realmente parece ter aconte- cido dessa forma. A intuigo que Carolina recebeu da mie nfo parece ter vindo como um presente, sim como um fardo a ser carregado. ‘C—Eu era muito revoltada com a mae que eu tinha, e com as coisas serem como cram, Eu tenho uma forte ligagio com o espiritismo e um dia fui a um centro espirita 28 ‘conversar com uma pessoa, Ele psicografou a minha historia e a da minha mie, e explicou que essa relagio de nés duas vem de muitas outras vidas passadas. Nés jé nos relaciona- ‘mos de muitas outras formas em outras vidas, Em algum momento eu jé fui mae da minha mike, eu ja fui mae do meu pai, os papéis ja se trocaram varias vezes. E como se, a cada nova vida, Carolina jogasse um papel diferente para aprender alguma coisa com isso, e esse processo é muito antigo. Quando ela teve a compreenso spiritual de que isso vem de muito tempo, isso a deixou mais tranquila sobre isso e menos angustiada sobre a mde que tem. Isso foi muito esclarecedor e fez com que ela passasse a se ouvir mais. Eu propus que nés faléssemos um pouco mais sobre as bonecas enquanto amule- tos, e separei alguns trechos do livro para reaquecer a temética. “A boneca de Vasalisa pertence as provisdes da Velha Mae Selvagem. As bone- ‘cas sio um dos tesouros simbélicos da natureza instintiva. No caso de Vasalisa, a boneca representa vidacita, a pequena forga da vida instintiva que tanto é feroz quanto resistente. Nao importa o problema que estejamos enfrentando, ela leva uma vida oculta dentro de nos. Ll ‘A boneca esté relacionada aos simbolos do duende, do elfo, da fada ¢ dos andes. Nos contos de fadas, eles representam uma profunda pulsagéo de sabedoria dentro da ‘cultura da psique. Sao eles aquelas criaturas que continuam o trabalho interior e prudente, gue so incansaveis. Eles estéo trabalhando mesmo quando nés adormecemos, e especi- almente quando estamos dormindo, mesmo quando nio temos plena consciéncia do papel que estamos desempenhando. Dessa forma, a boneca representa o espiito interior das mulheres: a voz da razio, do conhecimento e da conscientizagao intima. A boneca assemelha-se ao passarinho dos ccontos de fadas que vem sussurrar no ouvido da heroina, Ele é quem revela 0 inimigo ‘oculto e a atitude a tomar diante da situagaio. Essa 6 sabedoria do homunculus, o pequeno ser interior. Ele é a ajuda que nem sempre esta visivel, mas que esta sempre disponivel. (Fei) 29 relacionamento entre a boneca e Vasalisa simboliza uma forma de magia em- patica entre a mulher ¢ a intuigdo. E isso o que deve passar de mulher para mulher, essa atividade abengoada de se vincular a intuig&o, de testé-la ¢ de alimenté-la. Nés, & seme- Ihanga de Vasalisa, fortalecemos nossos lagos com nossa natureza intuitiva quando pres- tamos atengio & voz interior a cada curva da estrada. “Devo ir para esse lado ou para 0 ‘outro? Devo ficar ou partir? Devo resistir ou ser flexivel? Devo fugir disso ou correr na sua diregdo? Essa pessoa, esse acontecimento, essa empreitada, é verdadeira ou falsa? Ld ‘As bonecas servem de talismas. Os talismas so lembretes do que € sentido, mas no visto; do que existe, mas nao é de evidéncia imediata. O numen talismanico da boneca €0 que nos recorda, o que nos diz, o que vé adiante de nés. Essa fungi intuitiva pertence a todas as mulheres. # uma receptividade maciga e fundamental” (ESTES, 2014). J.-E mais ou menos o que a gente estava conversando anteriormente. E uma coisa que nio da para explicar, mas que a gente aprende ao longo do caminho. De vez em quando temos que retomnar e fazer algumas perguntas. Mas isso nao é uma coisa que est separada de nés. C-Aham, isso mesmo. J bolso e pergunta a boneca se vai para um lado ou para 0 outro. Quando ela tem uma E muito didético a autora explicar dessa forma. A Vasalisa coloca a mao no resposta, dé alguns biscoitinhos para ela. E a questo de alimentar a intuigao. Entio, a cada vez que eu sigo a minha intuig4o, eu estou a alimentando, porque estou confiando. Eu acredito isso € vou seguir em frente. Entdo, qual ¢ a minha proposta de hoje? Aca- bando com esse suspense. CC (risos) J ~ Eu quero propor que vocé construa uma boneca. Eu tentei escolher a forma ‘mais pratica para isso, usando alguns materiais de ficil manejo. Nés no precisamos ter~ minar isso hoje, nfo sinta essa pressio, mas podemos pelo menos comegar a tomar contato com isso. A ideia seria construir essa boneca para acessar a natureza instintiva dela como talisma. 30 Eu apresentei a Carolina os materiais, que incluem: EVA de varias cores, papel ‘crepom, tinta guache, recortes de revista, fita adesiva colorida, cola, lépis de cor, lapis, pastel, hidrocor, canetinhas e tesouras. Eu dei algumas sugestdes de como iniciar, como fazer o molde da boneca em ‘primeiro lugar no EVA, e depois pensar nos outros detalhes. Lembrando de no seguir ‘necessariamente uma légica, mas sim a intuigdo. Ela desenhou o formato de canetinha ‘em EVA branco, depois adicionou detalhes do seu rosto, como os olhos, nariz e boca. Cortou cuidadosamente o corpo. Enquanto ela trabalhava, conversamos sobre como ela gostava muito de pintar e quando era crianga, mas com o passar dos anos foi abandonando essa pratica. “alamos sobre como os caminhos que ela seguiu na vida no despertam muito a criativi- desta forma, e é notorio que ela aproveita os momentos em terapia nos quais eu onho alguma atividade artistica, O seu trabalho & muito diferente disso, mas d para, ber que ela é muito criativa mesmo em um ambiente corporativo, algo que parece ‘um diferencial em relago aos seus colegas de trabalho. A criatividade exigida em seu Iho é mais relacionada a resolugao de problemas. J~Voc8 tinha bonecas quando era crianga? C—Sim, muitas! Daquelas mais realistas, que pareciam bebés. Tinha varios tipos, yparque, no bergo, no balango. Eu gostava e colecionava. Eu gostava demais, mas brin- muito pouco, eu gostava mesmo era de arrumar. Eu gostava de brincar na rua tam- mas amava as minhas bonecas! Demais, demais. Aqueles bebés... Conversamos mais um pouco sobre essa temética e, enquanto isso, 0 molde ficou J—Vamos lé entiio. O que vocé pensa em colocar primeiramente na boneca? C—O cabelo. J~Ok, vamos escolher o material para fazer 0 cabelo, Ela escolheu recortes de revista e fez um molde para encaixar na cabega. Logo escolheu uma estampa para fazer um vestido. J Quando voeé leu o capitulo, imaginou a boneca de que jeito? C—Dee pano. (risos). Pequena, menor do que essa. J—Vocé pensou em alguma das suas bonecas? Ou esta lembrando de alguma delas ppara criar essa? C-Nao, eu estou criando agora mesmo, com o que me vem na cabeca. JVoed lembra das suas bonecas? Tinha alguma preferida? C — Lembro, tinha sim! Eu gostava bastante de uma que veio com um cavalinho brinquedo. Foi a iltima que eu doei, eu conservei por muito tempo, fiquei até uns 30 com ela, Hoje em dia s6 tenho uns bichinhos de peliicia. J- Vocé tem vontade de comprar bonecas hoje em dia? C—Nfo... eu acho bonito s6. Acho que, se eu tivesse uma filha, ela teria varias. ‘gostava muito, meu pai sempre trazia uma quando ele voltava de viagens de trabalho. era muito atento e sempre me dava as que eu queria, Eu gostava mais daquelas que iam com bebés, que eu era a mae que tinha que cuidar. Eu nfo gostava de bonecas Barbies. Ela vestiu a boneca, fez detalhes nos pés e nas mos, completou o rosto com so- has e adicionou brincos, colar e pulseira. J—Essa boneca esta te lembrando alguma coisa que vocé ja viu antes? Outra bo- algum personagem, alguma pessoa, ou ela é completamente nova? C—Humm, nao. Ela é nova. IE ela esté te despertando algum pensamento ou sentimento? ‘C—Hum, nao sei. Eu queria melhorar ela, ti meio feinha. Queria melhorar 0 ca- dela. Ela achou a proposta um pouco dificil a prineipio, porém gostou de executar e ‘esse lado artistico dela. A sesso foi encerrada e ficamos de finalizar na semana 4.3. 2" Sessiio 32 Iniciamos a sesso conversando sobre 0 hiato de duas semanas em relago a0 nosso tiltimo encontro. Ela acabou tendo compromissos de tiltima hora e ndo conseguiu ‘comparecer duas vezes seguidas. Seu novo cargo tem exigido bastante dela, como a pro- dugo de mais relatérios, treinamentos e reunides. Apesar disso, ela declarou estar tran- quila ¢ sem demandas especificas, entdo decidimos retomar o trabalho com a boneca. J: Considerando que cada momento é {inico, olhando agora para essa boneca, 0 que vocé esti sentindo? Como vocé a vé? C: Acho que da mesma forma. Quando eu montei a boneca, eu lembrava muito de ‘quando era crianga, eu gostava de brincar com as minhas bonecas. Arrumava, desarru- ‘mava, e arrumava de novo. J: Olhando para essa boneca daqui, nesse momento na sua vida, nesse contexto, 0 voeé pensa dela? Chamaria a sua atengio? Vocé a acha interessante? 1 olharia pra ela e pensaria que uma crianga a fez. J: Talvez o seu lado crianga realmente a tenha feito. C: Sim! (tisos) Neste momento eu tentei reaquecer alguns pontos da tiltima sesso, na qual fala- sobre a boneca enguanto amuleto herdado da mie de Vasalisa, a qual permaneceu mndida de todo mundo durante a historia. Para ela, esse conceito de heranga materna faz muito sentido, considerando a sua histéria de vida, mas é importante pereeber a historia de Carolina com a sua mae pode ter ajudado na construgao do seu proprio leto de intuigao. J: Voeé consegue pensar em outros elementos que fizeram parte da sua historia de € que podem estar aqui nessa boneca, ou nesse amuleto? C: Acho que os elementos sio realmente os emaranhados de acontecimentos da tha vida. Isso se esbarra no que a gente j4 tinha conversado antes, que eu tenho a ssio de ser, eu mesma, a minha propria boneca. Eu vou construindo a minha intui- com as experiéncias que eu passo, reforgando as coisas boas, ou criando defesas con- algo que eu achei que nao foi bom. 33 Tentando conhecer mais sobre a boneca, ela disse que nfo consegue pensar em ‘um nome para ela, Carolina ficou mais fixada nesse objeto enquanto amuleto, ¢ nfio muito ‘como boneca. C: Da mesma forma que Vasalisa pensou que tinha confianga naquela boneca, eu penso nisso também. E uma fonte de energia para conseguir alguma coisa, ¢ me proteger de alguma coisa. E uma protegio. I: Voce se vé nessas caracteristicas? Como se isso fosse um espelho seu? C: Sim, consigo. E ela ndo tem caraeteristicas que eu no tenho, mas algumas que eu preciso fortalecer, como a confianga em mim mesma, Entio eu preciso de um simbolo de alguma coisa para acreditar que aquilo existe. J: Isso acontece muito no seu trabalho, ndo é? Diversas vezes voce jé relatou que recebeu étimas avaliagdes e reconhecimento dos seus chefes e colegas, ¢ s6 a partir dai conseguiu perceber que era realmente competente e merecia esses elogios. C: Exatamente. E na época de colégio também. Quando eu tirava notas boas, ‘mesmo tendo estudado, néo era que eu esperava. Eu nunca esperei o melhor de mim, cou que alguém fosse ver isso, por mais que eu me dedicasse. Eu nao sei por que. J; Esse amuleto entio esté te ajudando a trabalhar questdes do mundo interno, nao do mundo externo. C: Isso. J: No conto vimos que a boneca ajudou Vasalisa a enfrentar varias questdes do mundo extemno, principalmente quando ela entra na floresta. Mas, quando vamos para 0 processamento teérico da hist6ria, vemos que cada elemento ali se refere ao mundo in- temo da personagem, ¢ as suas proprias questies. Isso acontece nas nossas vidas, em qualquer contexto, se percebermos que muitas das nossas dificuldades com os outros, ou com algumas situagdes, dizem respeito sobre nbs mesmos. Vamos tentar fazer uma re- trospectiva disso na sua propria hist6ria? C: Essa entrada na floresta, para mim, simboliza eu ter saido de casa. Mesmo com dlvidas se eu iria conseguir vencer isso ou nao, eu fui. Eu ainda me sinto caminhando na floresta. Eu sei que eu estou conseguindo caminhar, estou buscando melhorar, mas 0 ca- minho esta bastante longo. J: O que vocé imagina que tem no final desse caminho pela floresta? Que no conto representa o encontro de Vasalisa com Baba Yaga. C; Eu acho que essa caminhada, por m: longa que seja, é necesséria para me fortalecer onde eu preciso. Eu no sei exatamente 0 que essa bruxa representa, mas eu acredito que seré o momento em que eu vou encontrar comigo mesma. E ai eu talvez olhe para tris e veja o que den certo € 0 que nio deu. I: Se voce pudesse tirar essa boneca agora do seu bolso, tal como fazia Vasalisa, ¢ perguntar se vocé deveria ou no encontrar com essa bruxa, 0 que vocé acha que ela responderia? C: Que sim. Que eu preciso, mas agora nfo. Antes eu preciso me fortalecer. ‘Nese momento eu pego pare Carolina seguri-la ¢ assumir 0 seu papel, assim posso iniciar uma entrevista no papel com a boneca, ou seja, uma entrevista com a perso- nagem incorporada pela cliente. J& habituada com esse tipo de intervengao psicodrams- tica, ela entra facilmente no papel, sem pedir muitas instrugbes. J: Boneca, eu fiquei um pouco curiosa... por que Carolina ainda ndo pode encon- trar com a Baba Yaga? Quais so os seus motivos? + Nao € que agora nao dé. Daria. Mas (pausa) talvez ela nao saiba lidar com a situagio. Se for algo positivo, ok. Mas e se no for? Talvez ela nao esteja tdo fortalecida para enxergar algumas coisas que sio dificeis. J: Vocé se preocupa com ela, no €? Por isso diz. que agora nao dé. Qual é a sua maior preocupagdo em relagdo a esse contato precoce? C: (longa pausa) acho que ela pode reagir de uma forma inesperada e regredir. F necessério que esse encontro acontega para que ela progrida, mas ela precisa realmente saber que as coisas mudaram nos valores dela de hoje, para que ndo haja uma regressto. J: Tem pessoas ou elementos, do mundo real ou imaginério, que podem contribuir para essa caminhada pela floresta? 35 C: Tem pessoas que ela confia, mas nao 100%, pois ela tem dificuldade em con- fiar. E a espiritualidade dela também, que é muito importante. Nao tem um simbolo para isso, € s6 sentiment. Neste momento Carolina pede para retomnar ao seu proprio papel. C: Eu sei que a gente tem que acreditar na espiritualidade, mas eu sei também que a minha vida é aqui, nesse espago fisico, e que eu tenho que passar por situagdes reais. Entiio muitas vezes eu queria estar no mundo espiritual, eu nfo queria estar aqui. Eu acho que lé seria mais facil, J: O que vocé est chamando de mundo espiritual? C:E nao estar aqui. Fisicamente nao estar aqui. Em alguns momentos eu nao quero fazer parte desse mundo, eu no queria conviver com ninguém, eu queria me afastar. J: Voc8 consegue construir na sua cabega um lugar onde vocé gostaria de estar? C: Eu penso em um lugar totalmente afastado, isolado de tudo, com muito verde, muita natureza, mar e rio. Eu s6 queria me afastar de tudo, eu estaria sozinha. J: Ao se imaginar nesse outro lugar, afastado de tudo, as coisas que existem no mundo em que estamos agora: Aracaju, as pessoas que vocé conhece, o seu trabalho, elas deixam de existir? C: Sim, J: Mesmo com tudo isso nao existindo mais, vocé ainda precisa estar sozinha neste lugar isolado? C: Preciso. J: Serd que isso nao é um convite para um recolhimento? Por vezes, “estar s6” nlio 6a mesma coisa de “se recolher”. C: Eu acho que quando a gente se recolhe é um momento de reflexio. Estar s6 é quando eu 16 sozinha, cansada, me preparando para o dia seguinte. Quando vocé est recolhida, tudo ao redor desaparece ¢ vocé nao precisa pensar em mais nada, 36 J: Serd que isso nao é uma dica para gente, Carolina? Talvez haja na sua fala algum tipo de insatisfagao com os aspectos que circundam a sua vida. Esse capitulo do livro fala muito sobre intuigao, nao é mesmo? A sua intuigdo agora esta apontando para onde? C: Acho que, mesmo sentindo vontade de desaparecer, eu néo devo fazer isso. Eu preciso estar aq Neste momento, eu assumo brevemente o papel da boneca e repito para ela o que foi dito anteriormente, fazendo um duplo no papel da intuigao. J: Mesmo que por vezes vocé queira se isolar e ir embora, voce precisa estar aqui. Voeé precisa estar aqui. C: (pausa longa) Eu nao consigo questionar a minha intuigao. Se ela me diz para ficar aqui, eu vou ficar aqui A intuigdo é algo muito instintivo, algo que nao se explica. Nesse caso, Carolina ‘nem mesmo questiona ¢ contra argumenta com essa voz interior. J: “aqui” nao esté tio bom assim, né? Sera que o caminho nao seria melhorar 0 “estar aqui”? C: Eu nao consigo ver formas de me sentir bem aqui, mas eu s6 sei que eu preciso ficar aqui. Eu sugiro que cla tome contato novamente com a boneca, sinta a energia que ela estd passando, e pego para que ela pergunte a boneca o que fazer para as coisas aqui melhorarem. Primeiramente ela pergunta, depois eu pego para ela assumir o papel da bo- neca, repito a pergunta e peco para ela responder. C: (longa pausa) estar aqui ¢ necessério para Carolina, porque ela tem que enfren- tar 0s medos dela. O primeiro passo é esse. Medo de rejeigfio, medo de abandono. E, se 0 outro nfo quiser algo, ela tem que aceitar que isso é uma escolha e ficar bem. Talvez seja. por isso que ainda ndo seja a hora dela encontrar com a bruxa. J: Vocé acha que ela sabe abandonar? Ela sabe rejeitar? C: Acho que nao. Acho que ela sabe tomar decisdes necessarias, mas isso nao. 37 J: Sera, boneca, que temos uma luz. ai? Ha dois grandes medos: ser abandonada e ser rejeitada. Mas ela nao esta entrando em contato com estes elementos sendo a parte ativa, Ela ndo abandona e nio rejeita, s6 0 contrério, s6 a posig&o passiva. Seré que tomar contato com a parte ativa destes papéis pode ajudar em alguma coisa? Podemos pensar nisso em relagao a varias coisas, como abandonar um projeto que no faz mais sentido, rejeitar um trabalho que eu nao tenho vontade de fazer, ou abandonar um sentimento que nao me serve mais. 380 ndo ¢ 0 suficiente, porque ela nao consegue abandonar. Até as mégoas ela no consegue deixar para tras, J: Boneca, acho que isso é um grande alerta! Estou vendo que vocé esta tentando protegé-la, mas talvez niio porque isso ndo seria bom para ela, mas por pensar que ela no vai conseguir. Vocé quer dar algum conselho para ela, mesmo sabendo que ela pode no seguir? Depois de uma pausa muito longa, sem responder nada, pego um soliloquio para Carolina, como ela mesma, C: Eu nao sei muito o que falar, acho que tudo gira em tomo de medo, A cami- nhada por essa floresta e o processo de fortalecimento é para criar protegdes mesmo, Acho que o medo de chegar até o fim nunca vai deixar de existir, mas talvez se chegue com uma resisténcia maior. E isso 0 que acontece no final do conto. Vasalisa retomna para casa depois de tudo © que aconteceu e bota fogo em tudo, queimando elementos que a faziam sofrer antes. O percurso de uma histéria cheia de dificuldades pode indicar um final com grandes trans- formagdes, J: Esta imagem - de destruir entidades simbélicas que te fazem mal - te atrai? C: Destruir ndo, talvez, abandonar. Se eu fosse a Vasalisa, talvez eu no colocaria fogo na casa. Se houvesse um entendimento de que aquilo nfo significa mais nada, eu deixaria para tris. Essa fala dé uma brecha para pensarmos que nés podemos co-existir com os nos- sos problemas e dificuldades, uma vez que aprendemos a lidar com eles. Carolina se de- 38. ‘monstra extremamente criativa ao pensar em um final diferente para a historia, mais ade- quado aos seus proprios sentimentos. Ela pontua ainda que a boneca apoiaria essa deciséo, pois aconteceria depois de um encontro dela com ela mesma, e seria em um momento em que aquelas coisas nao a afetariam mais. A floresta nao pareceria mais to sombria e a ‘casa no scria mais uma prisao. Sinto sua espontaneidade aflorando a cada fala. C: Eu penso que, por mais que a gente viva em um coletivo, nés somos individuos. ‘Todos tém suas escolhas. Muitas vezes, a escolha do outro ndo vai te fazer bem, mas vocé tem que respeitar isso. Respeitar isso pode doer. Quando eu chego num estigio de nao sentir mais dor... pra mim aquilo esta resolvido. Carolina faz uma breve retrospectiva da sua historia com a sua familia, pensando no conceito de “superar”. Parece, por vezes, que no procurar mais a sua familia pode significar que ela superou e aceitou as coisas como so, mas ela no compreende bem o motivo de agir assim. As historias ndo se tomaram irrelevantes ¢ ela pensa que isso é um problema dela, ao pensar que as pessoas nao sto relevantes na sua vida. Ao mesmo tempo ‘em que ela no quer procurar a familia, Carolina sente um estranhamento em relagdo a isso, como se ela estivesse crrada de ter se desprendido da familia, Conversamos sobre como isso pode indicar nao apenas uma questo de ter superado a familia, mas talvez um medo de se sentir rejeitada por eles ao retornar. Carolina sente que no trabalho a sua jornada ja esta mais avangada. E como se, na floresta do mundo profissional, ela ja estivesse bem mais adiante no caminho. Ela jé pas- sou por varias questdes ¢ situagdes complexas que a fortaleceram o bastante para que esse ‘caminho pareca ser menos assustador. Muito desse processo foi vivenciado em terapia ao longo dos anos, com trabalhos de desenvolvimento da sua espontaneidade. E interessante perceber como podemos estar em momentos muito diferentes nos distintos papéis que ‘ocupamos nas nossas vidas, e como os elementos simbélicos que encontramos podem ter também outros significados. No trabalho, em alguns momentos, ela se sente como a Baba ‘Yaga, alguém que ocupa uma posi¢4o de megera ou de mae mé, mas que pode ensinar muito aos outros, mesmo que através de situagdes e tarefas dificeis. Percebendo que esté em lugares diferentes da floresta nos diversos contextos da sua vida, Carolina destaca que niio pretende abandonar a sua boneca em nenhum deles. A intuigdo ¢ algo que precisa guid-la. No trabalho, em especial, ela faz questo de no largar, pois tem receio de se tornar muito fria e tomar decisdes das quais ela pode se arrepender. 39 Entretanto, na vida pessoal, a intuigdio vem atrelada a um forte medo. Conversamos depois a respeito de que, talvez, um caminho possivel seja desassociar o poder intuitivo dos me- dos, pensando que eles podem co-existir © operar de formas independentes. Ou, até ‘mesmo, enxergar que os medos tém fungdes de autopreservagdo, as quais sfo importantes também, contanto que nao ultrapassem um limite e nos prenda em uma conserva. E pre- ciso que ela nao se cristalize em situagbes indesejaveis. Compartilhar Carolina compartilhou que a experiéncia foi muito boa, Algumas sessdes a deixam desconfortaveis, mas ela sabe que precisa passar por isso para refletir sobre suas questdes. Ela pensa em como o desconforto diante dessas situagdes, dos medos e da dificuldade na Jomada, podem ser superados, Pensamos em conjunto que uma intervengao possivel seria que ela se concentrasse em pequenos passos, ao invés de focar na finalidade. Se ela pensar na cena de voltar para casa, olhar para ela, ¢ decidir abandoné-la, o gasto de energia vai parecer muito grande ¢ ela pode se sentir incapaz de realizar essa ago. Entretanto, con- centrar-se em uma etapa por vez pode ter um grande potencial, pois o gasto de energia no “aqui e agora” é menor. Atravessar a floresta é um longo caminho, mas pensar em chegar apenas até a proxima rocha, ou ao préximo rio, pode nao parecer ser tdo dificil assim. 5. Consideragdes finais - Ou o meu Compartilhar Finalizei estas duas sessdes com a sensagao de misséo cumprida. Ha algum tempo jépercebo que a jomnada de Carolina nesses quase trés anos de psicoterapia tem a ajudado a operar de forma mais espontanea nos diversos papéis que ela desempenha. Entretanto, durante esta intervengao, fica nitido que algo a mais foi disparado. O contato com o con- ceito de arquétipo da Mulher Selvagem talvez tenha despertado algo diferente nela, como © resgate de uma intuigdo ainda mais instintiva, e uma compreensdo maior de si, do outro e da sua histéria, Carolina ainda enfrenta um processo de rejeigdo em relagdio a sua prépria histéria, as pessoas que fazem/fizeram parte da sua vida e a forma como ela lidou com tudo isso. Creio que o diferencial deste momento seja justamente o olhar mais espontineo-criativo em relagdo a questdes antigas, como se ela tivesse conseguido atingir um momento de 40 clareza e maior aceitagdo de quem ela é e do que ainda pode ser, e isso se encaixa com- pletamente na proposta da psicoterapia de base psicodramatica. conceito de “retorno a0 lar”, trazido no conto, pode ser compreendido aqui como 0 desenvolvimento da confi- anga de Carolina em relagio a ela mesma, sem a necessidade prévia de aprovagdio do outro. O que sempre foi trazido como feridas do seu hist6rico familiar tém sido ressig- nificado como uma bagagem cheia de aprendizados. A relagtio de Carolina com a mae permanece como uma questo constante, porém tem sido modificada progressivamente. Ags poucos ela vé o processo de “deixar morrer” mais como uma transformagdo simbé- lica do que como uma eliminagao de componentes da sua historia. Ainda ha muito a ser trabalhado, inclusive em relagao a sua forga intuitiva, mas vejo que a partir da relagao estabelecida entre a cliente a sua boneca, esse acesso seré feito de forma diferente e mais frequente. A boneca cumpriu o papel de objeto interme- diario entre Carolina ¢ cla mesma, ¢ houve um verdadeiro encontro dela com ela mesma, no aqui e agora. Sinto-me contemplada com esse trabalho. Enquanto psicéloga, enquanto (quase) psicodramatista e enquanto muther. Jé disse na introdugao que a escolha do tema deste trabalho foi facil quando decidi ouvir o que estava me chamando, ¢ acho que foi a minha propria intuigao que me conduziu até aqui. Nosso trabalho exige muito estudo, técnica e pritica, mas também acessamos um poder intuitivo. Ha fendmenos que nao conseguimos explicar. As relagGes télicas, tdo importantes nos processos de vinculagiio e efetivagio da psicoterapia, se baseiam no aqui ¢ agora, so movidas pela espontaneidade, pelo encontro, pela empatia em dupla via, e proporcionam encontro existencial. Houve um encontro de Carolina com ela mesma, Houve um encontro dela com a “mulher selvagem” que nela habita. Houve também um encontro entre nés duas, e ele ¢ ressignificado a cada sessio. “Deixar morrer € 0 tema final da histéria. Vasalia apren- deu a sua lig&o. Ela cai numa crise histérica quando a caveira faz arder as mulheres perversas? Nao. O que deve morrer, morre. Como se toma uma decisio dessa? Sabe-se, simplesmente. La Que Sabé sabe. Pega conselhos a ela. Ela é a Mie dos Tempos. Nada a surpreende. Ela jé viu tudo. Para a maioria das mulheres, deixar morrer ndio é contra sua natureza, é contra sua criago. Isso a pode ser modificado. Todas nés sabemos que no fundo de fos ova- rios quando chegou a hora da vida, quando chegou a hora da morte, Podemos tentar nos enganar por varios motivos, mas sa- bemos. Pela luz da caveira incandescente, nés sabemos” (ESTES, 2014, pp. 134-135). 6. Referéncias Bibliogriificas CORUMBA, R. e RAMALHO, C. Descobrindo enigmas de heréis e contos de fadas: Entre a psicologia analitica e 0 psicodrama. Aracaju: PROFINT, 2008 CUNHA, D. F. Tele ¢ transferéncia no campo intersubjetivo. FEBRAP, 1990 CUKIER, R. Psicodrama Bipessoal — sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. So Paulo: Agora, 1992. ESTES, C. L. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histérias do arquétipo da Muther Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. GONCALVES, C. WOLLF, J. & ALMEIDA, W. Ligdes de Psicodrama — introdugao a0 pensamento de J. L. Moreno. Sao Paulo: Agora, 1988. bolos. JUNG, C. G. O Homem e seus io de Janeiro: HarperCollins, 2016. MORENO, J. L. Psicodrama. Sao Paulo: Cultrix, 1975. a2 MOURAG, H. R. Vas: consciente. 2016. [www.fasdapsicanalise.com.br/vasilisa-bela-uma-iniciacao-feminina- , a Bela: Uma iniciagdo feminina nos vales profundos do in- nos-vales-profundos-do-inconsciente]. Acessado em: 10/06/18. ROJAS-BERMUDES, J.G. (1980). Introdugio a0 Psicodrama. So Paulo: Mestre Jou 7. Anexos 7.1. Anexo 1 — Termo de consentimento Livre e Esclarecido §72) Profint TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE) Eu, > abaixo assi- nado, autorizo a PROFINT — Profissionais Integrados Lida, por intermédio da psicéloga Julia Darwich Borges, CRP 19* /1°2753, devidamente assistida pela sua orientadora Prof* Cybele Ma- ria Rabelo Ramalho, a desenvolver estudo sobre sua prética em psicologia clinica como pré-re- quisito para a obtengdio do titulo de Especializagaio em Psicodrama. ‘Titulo do Estudo: © Psicodrama do conto Vasalisa: O resgate da forga intuitiva feminina Objetivo geral: Trabalhar o resgate da intuigdo na cliente em questio a partir da leitura de um conto, cconstrugao artesanal de uma boneca e posterior trabalho dramatico com a mesma, trabalhando assim com as teorias ¢ téenicas psicodraméticas, a fim de facilitar a condugdo de um trabalho de busca do eu espon- ‘tineo-criativo na cliente, Desericdo de procedimentos: Anélises sobre técnicaspsicodraméticas relacionadas a pritia clinica em psicodrama bipessoal a3 Retirada do Consentimento: yoluntério (a) tem a liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar de participar do estudo, néo acarretando nenhum dano ao voluntario. ‘*Aspecto Legal: Elaborado de eoardo com as diretrizes e normas regulamentadas de pesquisa envolvendo seres humanos atende @ Resoluo n° 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saiide do Ministério de Saiide, Brasilia/DP. ‘* Confiabilidade: Os voluntérios terdo direito a privacidade. A identidade (nomes e sobrenomes) do participante no seri divulgada. Porém os voluntérios assinarfo o termo de consentimento Para que os resultados obtidos possam ser apresentados em congressos ¢ publicagées. ‘* Quanto & indenizagio: Nao ha danos previsiveis decorrentes da pesquisa, mesmo assim fica prevista indenizagaio, caso se faga necessério. ATENCAO: A participagaio em qualquer tipo de pesquisa ¢ voluntiria. Em casos de divida quanto 405 seus direitos, entre em contato com a PROFINT, Rua Poeta José Sales de Campos, 794, Coroa do Meio, Aracajw/SE, Tel.: (79) 3021-0757. Lie estou ciente das observagdes supracitadas. Caso necessério, autorizo com consentimento livre e eselarecido que seja produzido trabalho cientifico sobre estudo de caso respeitando sigilo da identidade: ( ) Sim ou ( ) Nao Aracaju, de Junho de 2018. ASSINATURA DO VOLUNTARIO 7.2. Anexo 2 - Materiais

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