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Jonia Ferreira Furtado Claudia C. Azeredo Atallah Patricia Ferreira dos Santos Silveira (Organizadores) Justicas, Governo e Bem Comum na administracao dos Impeérios Ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVIII) corona PRISMAS Justia, Governo e Bem Comum na administraglo dos impérios Ibéricos de Antigo Regime (séculos XV-XVil}) ‘Hinia Ferreira Furtado | Cléudia C. Azeredo Atallah | Patricia Ferreira dos Santos Silveira (Orgs) Ego -Copyreh@® 2036 ftoraPrimas torchele Bectorapismas com agenteeditorial@esitorapnsmes com br (Coleg Estudos do Latim e das Uneratura Cassicas e Renascentistas Diretor cence Consatores cleat acini & ‘erscesoaptmas om br Baa PRISMAS ITOAK A Inquisigao de Goa e os nativos: achegas as originalidades da acdo inquisitorial no oriente® Bruno Feitler Abreviagdes [ANTT: Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. 6: Conselho Geral. BNRJ: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. BNP: Biblioteca Nacional de Portugal. A histéria do tribunal da Inquisi¢3o de Goa é bem conhecida, Criado em 1560, abolido uma primeira vez em 1774 por Pombal e re- criado quatro anos mais tarde, ele foi definitivamente abolido em 1814 por presso dos ingleses. Como no caso do Santo Oficio do reino, 0 tribunal goés foi fundado sobretudo para perseguir judaizantes. No en- tanto, depois de poucas décadas, comecou a ser submergido pelos ca- s0s de cripto-hindulsmo que praticamente monopolizaram as suas ati- vidades até seu encerramento final. O tribunal julgou ao todo mais de 16000 pessoas, c que 0 equipara, por sua grande atividade, ao tribunal de Lisboa, 0 mais importante e ativo do Reino (Cunha, 1995; Dellon, 2014: 265-278). Como também é bem sabido, o conteido dos arquivos do tribunal indiano foi praticamente todo destruido em seguimento & sua abolicao final. No entanto, a documentaco subsistente em Por- tugal e também no Brasil, permitem que se estude como a Inquisic0, Por entre outras institui¢des locais, se adaptou, ou melhor, reagiu, aos ‘250s especificos relativos ao Estado da india, cujo espaco era sujeito a situagbes politicas e socials bastante diferentes da Europa. Faremos Isto a partir de dois &ngulos especificos. Apés uma répida contextua- lizasdo, estudaremos as estratégias postas em pratica pela Inquisico Para lidar com essa realidade asidtica: sobretudo o problema dos “cris- 85 Uma versio previa deste texto sairé no livro Charles Parker e Gretchen Starr Lebeau (org). Judging Faith, Punishing Sin: Inquisitions and Consistories in the Early ‘Modern World. Cambridge University Press (no prelo) Justias, Governo e Bem Comum 95 tos da terra" (populacdo asidtica convertida ao catolicismo) muitas vezes de primeira geracdo que apostasiavam do catolicismo, e as solu- GOes encontradas para levé-los de volta a Igreja. Em segundo lugar ana- lisaremos a situagao especifica do importante numero de ndo-cristdos presos e julgados pela Inquisic’o na Asia, quando esses casos foram rarissimos no contexto europeu ou atlantico, j4 que o tribunal tinha usualmente jurisdi¢ao apenas sobre as pessoas batizadas. As respostas da Inquisico a essas questdes locais fizeram com que o tribunal se im- plicasse nao sé na conservacao da pureza da cristandade, mas também na expansao da fé catélica no contexto especifico da Asia portuguesa, Os cristdios do oriente na Inquisi¢3o A criac3o do tribunal asidtico em 1560, adicionada aquela do tribunal de Coimbra cinco anos mais tarde, estabilizou a rede de tribu. nis inquisitoriais portugueses e ocorreu num contexto de contestacdo religiosa na Europa e da fixa¢ao de uma clara fundamentagao catélica das monarquias ibéricas. O pensamento inclusivo e tolerante do co- mego do Renascimento foi derrotado naqueles anos em decorréncia das polémicas geradas pela Reforma protestante, e a necessidade de uma melhor definico dos principios teoldgicos pela Igreja catdlica fez com que a monarquia portuguesa desse menos espaco de negocia- ‘so em suas relacdes com outras populagdes (Marcocci, 2012). Conse- ‘quentemente, também seus agentes, fossem eles laicos ou religiosos, seguiram a mesma tendéncia. Assim, pelo que toca Goa e os outros territérios do Estado da india, esse endurecimento politico implicou numa forte limitagao da aceitacao de ceriménias ou de costumes no catdlicos, 0 que levou & destruigdo de mesquitas e de templos hindus e a conversiio em massa de boa parte da populacdo local (Priolkar, 1961: 115; Xavier, 208: 123)". A criagao do tribunal indiano em 1560, apés uma primeira tentativa frustrada em 1554, claramente teve como ob- 86 0 detalhe das leis e dos privlégios que favoreciam as conversdes ou proibiam as ceriménias locas, assim como as discuss6es sobre a cronologia da destruiclo dos templos em 0'Costa (1965) e em Mendonca (2002) 96 nia F Furtado | CkiudiaC. A. Atallah | Patricia F, dos S. Silveira (orgs) jetivo reforcar essa politica intolerante em relaglo aos cristios-novos fe também em relacdo 0s cristios da terra e ao cristianismo asiatico. com efeito, 0 primeiro édito inquisitorial de fundaco do tribunal de Goa, datado de 1554, ssim como o definitivo, de 1560, mencionam cristdos-velhos, cristdos-novos e aqueles “novamente convertidos & {6 [catdlica]” como pastiveis de serem presos e julgados pelo tribunal (cunha, 1995: 290-301) Antes da chegada dos primeiros inguisidores do oriente em 1561, a perseguicdo a heréticos e apéstatas ficou a cargo dos tribunais episcopais, que tradicionalmente tinham jurisdico sobre esses casos. Apesar dos diferentes movimentos de converséo forcada da populagso local, s80 poucas as noticias de uma vigilancia estrita das priticas reli- giosas dos convertidos antes dos anos 1560. A razao principal era que ¢5 indianos eram vistos como posicionados no meio de uma “escala ciilizacional” das populagBes que ia dos refinadissimos japoneses 20s povos animistas da América do Sul (Pagden, 1982). Eles deveriam as- sim ser tratados com mansuetude tendo em vista o que se considerava como uma dificuldade natural para entenderem os dogmas do catolicis- mo. Para além dessa naturalizacio das capacidades de entendimento, 0s tedlogos nao esperavem que leigos, que mais é recém convertidos, t- vessem uma compreensio complexa desses dogmas (Nesvig, 2009: 51 54), Deste modo, o estabelecimento do tribunal local foi acompanhado de pedidos de moderacéo para os recentemente convertidos. “Se hasi for nom ay mais christandade” jé dizia o jesuita Melchior Carneiro em carta de 6 de dezembro de 1555 ao saber que se pensava criar de um tribunal da Inquisig8o pera a india’. Na verdade, naquele momento a Preocupacio central das autoridades religiosas era a perseguicdo aos judaizantes, eos primeiros processos conhecidos por questdes de fé no oriente foram contra cristdos-novos de Goa e de Cochim. Em 1539 um «ristdo-novo foi queimado na fogueira em Goa por proferir blasfémias e Por judaizar. Alguns anos mais tarde, em 1543, um outro cristdo-novo, 87. Ele ainda pede que 0 comissério geral da ordem na Espanha, Francisco de Borla, {escrevesse ao rei “que a0 menos dagui a XX anos se ndo faga exame t30 riguroso nas, das destes cristios por sua fraqueza e polo empidimento que seram a se outros fazerem: e se com alguma gente se deve usar brandamente hé com esta por sua ins ‘abildode, e verdadeiramente me parece que N. S. No pidié mais ha estes, sendo onforme ha capacidade e natureza que thes deu.”italicos nossos. (Wicki, 1954: 357) susticas, Governo e Bem Comum 97 chamado Jerénimo Dias, foi julgado pelo bispo de Goa auxiliado por seu vigério geral e por dominicanos e franciscanos, sendo também conde- nado a ser consumido pelas chamas. No domingo seguinte ao do auto da fé, 0 bispo d. Jodo Afonso de Albuquerque, apés a pregacao, leu a bula inquisitorial, clamando a populacdo a que denunciasse os hereges. Também data dessa época os primeiros pedidos conhecidos para que se criasse um tribunal inquisitorial em Goa, na vor do vigério geral Mi- guel Vaz. Pedidos esses que 56 fariam se avolumar com 0 apoio do je- suita Francisco Xavier, que alarmara-se com a liberdade com que judeus e muculmanos convertidos retornavam a sua antiga fé na Asia (Cunha, 1995: 126-129; Tavares, 2004: 116-119), Em 1553 aparecem noticias de apdstatas indianos que apés terem deixado Goa de modo a viver fora do dominio cristo, voltaram para Id e, arrependidos, foram reintegrados ao catolicismo por meio de uma cerimonia publica possivelmente liderada pelos jesuitas (Men- donga, 2002: 298). Aparentemente nunca houve discusséo de uma possivel isengao dos natives asidticos da jurisdi¢ao inquisitorial, como foi 0 caso um pouco mais tarde dos Indios das Américas. No impé- rio espanhol a Inquisi¢ao perdeu jurisdi¢go sobre eles em 1568, e no Brasil, pelo menos nominalmente, o mesmo se deu por uma decisio do cardeal d, Henrique datada de 1579 (Prosperi, 2010: 220, 1038). Assim, no oriente, desde a fundaco do tribunal e cada vez mais, os inguisidores julgaram cristos da terra por delitos de fé. Os inquisido- res no entanto levaram em conta o fato de se tratar de populagdes de conversio recente, e com o apoio das institui¢Bes decisérias do Santo Oficio (0 inquisidor geral e 0 Conselho Geral, mas também o rei eo papa), estabeleceram um conjunto de procedimentos especialmente pensados para o julgamento dos convertidos locais. Levaram em conta ‘a sua recente integracdo ao cristianismo e a facilidade que os convert dos tinham para eventualmente deixar os territérios portugueses, mas sempre com a preocupacao de nao ferir as normas e procedimentos previstos pelo direito para o julgamento da heresia. Essa preocupacdo com as regras legais (os inquisidores por- tugueses eram sobretudo juristas especialistas em direito canénico) & Visivel, por exemplo, na questao da recidiva em casos heresia. Segundo O direito, um segundo lapso em heresia ou apostasia apés uma primer ra reconciliagao a Igreja, pouco importando o quanto o réu estivesse ‘9B Jinia Furtado | cléudia C. A. Atallah | Patricia F ds S. Sitveira (orgs) arrependido, implicava necessariamente na relaxagdo ao braco secu- lar, que Se encarregava da execugo da sentenca inquisitorial com a pena de morte da fogueira. Os inquisidores sabiam que nao podiam aplicar essa regra, pois terminariam por condenar um nlimero enorme de pessoas, e também causar medo e apreensio na populagio local, fo que fatalmente faria diminuir a quantidade de conversées ao catoli- cismo. Essa questo aparece em muitas cartas trocadas entre os inqui- sidores da India e diversos inquisidores gerais e nas préprias regras de funcionamento do tribunal, Esse documento, assinado pelo cardeal d Henrique e datado de Z de marco de 1559, ordenava que 5 que nouamente forem convertides a ffee da secta de mafamede ou gentios cometemdo depojs de cristéos crime de heresia per que sejam presos estes taaes depojs de sua Comfisdo nao hos Recongiliardo nem faram abjurar logo em breue Amtes prymeyro os poram em parte onde sejam Jns- trutos nas cousas da fee E bem emsinados do que pertemcer a sua saluagao E do que Jmporta tornarem A cayr nos seme- thamtes erros € depois disto os Recomelliarado E ajuraram em forma de direyto E Isto Ate se aver proviséo pera nao Serem Relapsos senéo quamdo parecer a0s Imquisydores. (Apud Cunha, 1995: 299-300) © contexto local ressurge numa carta escrita pelo inquisidor Alelxo Dias Falc3o ao inquisidor geral cardeal d. Henrique em janei- ro de 1569 na qual lembrava-o que pedisse o prometido breve papal autorizando uma segunda reconciliacao formal e assim uma segunda chance para os indianos relapsos. Nao se tratava apenas de miseri- Cérdia da parte do inquisidor, mas o breve também teria um impac- to missionério, pois “corvem muito por respeito da conversio e nova christandade que nestas partes ha” (Baio, 1930: 5). Em 1585 a bula ainda no havia sido emitida, e o inquisidor Rui Sodrinho de Mesqui- {3 aproveitando a deixa, tentou fazer com que se incluisse nela “os Mouros e judeus que se baptizaram adultos” (Baigo, 1930: 99), o que finalmente nao aconteceu. Enquanto o breve nao vinha, fez-se necessdrio encontrar ou- {as solugdes: seja diminuir o rigor de um primeiro processo contra os Fecentemente convertidcs, ou simplesmente deixar a causa inconclusa Justigas, Governo @ Bem Comum 99 (ou seja, ndo chegar a uma senten¢a final), como chegou a ordenar 0 cardeal d. Henrique em 1576 especificamente nos casos de recidiva 20 isla. Essa mesma carta menciona um outro mecanismo legal para se levar de volta ao catolicismo aqueles que “em seus coragdes ou apenas por obras exteriores” se convertiam a0 isl3. Os inquisidores deveriam publicar um édito da graca de 30 dias especifico para esses casos, com promessa de misericérdia, mas também de isencao de penas corpo- rais e de confisco dos bens (ANTT, CG, liv. 298: 27-29). Esse método foi claramente inspirado do exemplo do que acontecia nos territérios portugueses no norte da Africa, e pode ter sido usado uma primeira vez na india em 1572 por ordem do cardeal d. Henrique (ANTT, CG, liv, 207: 281). Tanto la (em lugares como Ceuta, Tanger e Mazagao) quanto na Asia, os inquisidores tiveram que fazer uso de métodos alternativos, adaptando-se & situacdo politica local, no que Marcocci chamou de uma “InquisigSo de fronteira”. Essas possesses portuguesas estavam cercadas por territérios de dominaco muculmana onde a Inquisicio ou seus delegados tinham pouco espaco de ago. O Santo Oficio, tao conhecido por seus métodos persecutérios e punitivos, teve por uma vvez que fazer uso de persuasio. Presenga portuguesa no Indic, séeulo x1 im a Fonte: Avelar, 2012: 9 1100 suniaF Furtado | CliudiaC. A. Atallah | Patrica F. dos S. Silveira (ores) Em marso de 1585, por exemplo, o inquisidor geral d. Jorge de Almeida, a pedido dos inquisidores de Goa, envia mais um édito de gra¢a, acompanhado dos imprescindiveis decretos régios de isenc3o de confisco aqueles que se apresentassem 3 mesa do Santo Oficio para confessar seus erros sem terem sido previamente denunciados. Ex- cepcionalmente, tendo em vista a imensid3o do Estado da india, esse édito de graca Vigoraria (apés publicacao) por seis meses, em ver dos usuais trinta dias (ANT, CG, liv. 298: 27-2). Pouco mais de dez anos depois, em marco de 1596, a pedido do arcebispo local e de outras. autoridades religiosas, os inquisidores publicaram em Goa e em algu- mas das fortalezas do Norte, um édito de graca de trés meses dirigido aqueles que tivessem deixado Goa para a terra-firme, mas com poucos resultados (Baio, 1930: 251). A publicacao de éditos de graca e de remissdo da pena de confiscaco de bens foi uma técnica usada ainda varias outras vezes, aparentemente com os mesmos pifios resultados, como 0 admitiram os inquisidores em 1669 (ANTT, CG, liv. 101: 179v). Relacionadas § publicacdo desses éditos, os inquisidores de Goa efetuaram uma série de visitas a diferentes partes do Estado da India, sobretudo (em todo caso até comecos do século XVII) a busca de judaizantes, ja entao raros na capital da Asia portuguesa, como as. cartas enviadas a Lisboa claramente demonstram. O cruzamento das informacdes contidas na correspond€ncia dos inquisidores com aque- as do Reportorio (uma listagem dos processos do arquivo do tribunal de Goa efetuada pelo entao deputado e promotor Jodo Delgado Fi gueira"), com terminus ad quem em 1623, mostra que foram reali zadas visitas a So Tomé de Meliapor e Cochim em 1591, & regio de Ormuz em 1595 e aos territérios do Norte em 1619-1620, esta com resultados muito mais palpaveis que as anteriores (20 menos 434 réus, enguanto em Ormue, apesar de um grande nimero de apresentados, contabiliza-se um total de 57 sentenciados) apesar da frustracdo total 88 0 ttulo completo desse importante documento &: Reportorio gerol de tres mil atte cents processos, que sam todos os despachados neste sancto Officio de Goa & inal partes da india, do anne de Mil & quinhentos & secenta i huum. que comeyou sane nco Oe ato cme deh & seers 8 ite 8s, com at dos to Clade de Goo @NP. Cod 203). Uma bate de daos feta spor ds normentes 6 Reportorio, assim como um estudo sobre ele estéo disponiveis em http,//wmen ™.ca/reportorio/reportorio/ Justigas, Governo e Bem Comum 101 em relago ao descobrimento de casos de judaismo (Sousa, 2014). Os inguisidores planejaram varias vezes efetuar outras visitas &s partes do Sul (estendendo-se até as pracas comerciais de Malaca e Macau, teori- camente ninhos de judaizantes), mas isso nao aconteceu, pelo menos até a data mencionada, tendo em vista primeiro os problemas de sau- de do inquisidor (Rui Sodrinho de Mesquita teve que voltar para Goa quando ja estava a caminho do extremo-oriente), e em seguida a falta de verbas para custear a longa viagem (Baio, 1930: 110-111; 288). € de se notar que enquanto no Atlantico (inclusive no reino) o instru: mento da visita inquisitorial cessa por completo em meados do século XVII (com a notavel, porém muito especifica exce¢ao da visita feita ao Pard em 1765), ela continua a ser usada na india no século XVIII (Be- thencourt, 1987). 0 inquisidor Manuel Jodo Viana visita, por exemplo, 05 territérios do Norte em 1702 (BNRJ, 25, 1, 5, n. 132). Por outro lado, © aumento exponencial de casos de gentilidades, que mais é, de réus nos mais das vezes pobres, que nao teriam como pagar as custas de um processo em forma e que, segundo os inquisidores, fugiriam "para a outra banda” para nao perder seus parcos bens, fez que com que os inguisidores delegassem facilmente seus poderes de reconciliagiio em casos menos graves e que até fossem organizadas reconciliagdes cole- tivas em territérios préximos a Goa Em 1597, por exemplo, os inquisidores escreveram para Lis boa expondo o caso dos muitos homens que pouco depois de conver: tidos ausentavam-se para a terra-firme, “esquecendo-se” do catolicis mo. Eles terminavam por voltar para Goa, mas mostravam um conheci- mento muito limitado, ou mesmo nulo do cristianismo, sem ao menos saber persignar-se. Os inquisidores sugeriram que nesses casos eles pudessem praticar “o regimento antigo, conforme ao qual se nao re- conciliauo nem abjurauao logo em breue, antes os punho em parte onde fossem bem ensinados e instruidos nas cousas da fee”. Caso con- trdrio, continuam os inquisidores, “se a Mesa houuera de correr com elles, fora cousa infinita’, Também mencionam que o retorno desses homens ao cristianismo nao era sempre totalmente espontaneo. Fa- zia-se necessério prometer-Ihes cartas de seguro para incité-los a vol tar, e “quando parece[sse] que se deuefria] fazer”, remeté-los a seus vigérios (Baio, 1930: 258-259), fosse quem sabe para reconcilié-los em casos de pequena importancia, fosse para que se encarregassem da instrugo dos seus fregueses. 102 JiniaF. Furtado | CkiudiaC. A. Atallah | Patricia F. dos S, Silveira (orgs) BEE eee ae erteceeersreresrerrerreesrrare sea Essa negociago do rigor vem, é claro, de mais cedo, e os cris- tos da terra gozavem de um tratamento mais ameno. Em 1574, pessoas *que vern do balaguate [para] pedir perdio e toda a gente da terra com que se non ha de tsar rigor”, ndo eram isolados no carceres secretos, mas enviados a0s mais abertos cérceres da peniténcia, onde “cada dis se diz doctrina, e missa as sestas feiras, e dominguos praticas sprituais” ‘Amesma carta, datada de 20 de novembro, menciona a possibilidade de um procedimento mais simples para os nativos. De modo a expedir (0s muitos casos, “oe tudo se podera remediar polo ordinario faz esta gente sua confisso ao padre que os instrue e trala a mesa e soleniase e despacha-se (Bsigo, 1930: 11)” Essa possibilidade de delegac3o do poder de ouvir confissdes de casos de heresia e apostasia foi efetiva. mente posta em pratica alguns anos mais tarde. O mesmo inquisidor, Bartolomeu da Fonseca, em carta de 1576, informa que “os chrstaoe da tera que ver fazer suas configdes se Ihe ouvem e se remetem loguo a0 padre da companhia que he pay dos christads e se instrue e com seu. escryto torna e se absolve e se toma assento com ele”. Confiava-se as sim ao pai dos cristaos (oficial de nomeacao régia que tinha os catecti- menos a seu cargo) para que fizesse a parte mais delicada do trabalho do inquisidor: julgar da sinceridade do arrependimento do “herege” E mais, “quando do muitos os negocios, deputo hum religioso [a que reconcile formalmerte] aos mais leves (Baido, 1930: 25)’ Diferentes inquisidores gerais lembraram aos inquisidores de Goa da brandura com que deveriam tratar os “novamente convertidos” Ocardeal . Alberto c fez numa carta de margo de 1589, afirmando que um tratamento rigoroso escandalizaria a populacdo nao-cristd e sem duivida repercutiria nos ntimeros de convertidos. No entanto, ele deixa claro que esse tratamento brando cessaria uma vez obtido e publicado 0 tio esperado breve papal sobre os relapsos (ANTT, CG, liv. 298: 94-5). © breve foi finalmente foi emitido em janeiro de 1599, che- Bando em Goa nesse mesmo ano (Marcocci, 2011: 87). Nele, o papa autorizava os inquisidores de Goa a reconciliar os apéstatas locais nfo 86 uma vez, como previsto na legislaco candnica, mais duas ou mes- imo trés vezes antes de uma relaxacdo ao braco secular. Ele também Concedia a que os bens desses réus nao fossem confiscados nos dois Primeiros lapsos, como era usual. Os inquisidores locais no aprecia. am essa ultima novidade, e os desejos de misericérdia dos colegas Justigas, Governe e Bem Comum 103 mais antigos jd ndo fazia parte do seu discurso. Marcos Gil Frazlio e An- tonio de Barros, ao confirmarem a recepcio do breve “acerca dos ne- ophitos”, consideraram-no “assaz benigno, e favorauel para esta gente da terra, inda que fica agora mais ocasionada para se passar com maior facilidade a terra firme pelo costume que tem de o fazer sabendo que ndo perdem os bens porque este sé freo tinha mao nella (Baio, 1930 287)". O breve foi em todo caso respeitado. Como era 0 caso de muitos desses decretos papais, este era valido apenas por cinco anos, devendo ser renovado pela ciria roma- na a pedido do inquisidor geral. Sem duvida um meio de gerar ren- das para a Santa Sé, j4 que cada renovacao devia implicar em taxas e emolumentos, mas também uma maneira para Roma de evitar tomar decisses dificeis de serem desfeitas em caso de mudanga de contexto ou mesmo de entendimento papal. De tempos em tempos os inguisidores de Goa lembrariam a Lisboa a que renovassem o breve dos ne6fitos, como em carta datada de 15 de dezembro de 1603. Em 1606, com o breve amplamente expi- rado, os inquisidores continuavam a espera de sua renovagio, pedido a Lisboa instrugdes de como proceder em caso de recidiva enquanto ‘no fosse emitido novo breve (Baio, 1930: 319)”. O novo breve final- mente chegou em 1608, mas veio entdo tona uma outra questo, desta vez relacionada a interpretacao do decreto papal. Em comegos do século XVII a presenca catélica romana em Goa e em outras partes da Asia ja beirava os cem anos, e a decisio do Conselho Geral do Santo Oficio no caso de um certo Francisco Rangel, de que ele fosse reconciliado uma segunda vez, em 1605, por genti lidades (BNP, céd. 203: 316; 327v}, parecia contradizer a opiniao dos inquisidores locais e também o espirito do breve papal. Rangel era um cristo da terra, mas como descrito pelos inquisidores de Goa, “uete- rano baptizado de ito dias e ja filho de paes christdos e ndo dos nov- 89_Em 1608 os inquisidores ainda estavam a espera da renovacio (BaiSo, 1930: 333). £m 1624, com a validade outra vez expirada, os nquisidores pedem que o novo breve tenha uma validade de dez anos. Inquisidores Francisco Borges de Sousa € Jodo Fernandes de Almeida ao ingusidor gerald. Ferno Martins Mascarenhas, Goa 27 de janeiro de 1624. A documentagio contém ainda varias outras mengaes & cor plo: ANTT, CG, livro 104, #6 tinua necessidade de renovacio do breve, Por e 6 Mago 34, doc. 8 104 JiniaF Furtado | Claudia C. A. Atallah | Patricia F. dos S, Silvera (orgs) ‘amente convertidos de que falaua o ditto breue” (Baio, 1930: 371) Apesar da excecdo apl cada pelo Conselho Geral ao caso de Francisco Rangel, que apesar da recidiva nao foi condenado & morte, 0s inquisi. dores de Goa geralmente usaram da graca especial prevista no breve apenas aqueles de conversio recente, e no indiscriminadamente com todos os “christdos e negros da terra” (Baio, 1930: 424). As dificulda- des de comunicagao ea imensa distancia que separava Lisboa de Goa acabou por causar desentendimentos entre as instncias centrais da Inquisicao e os inquisicores do oriente. No mesmo momento em que os inquisidores goeses afirmavam sua vontade de aplicar estritamente © breve papal, 0 inquisidor geral d. Pedro de Castilho recebia infor- mages de que os “negros da terra” batizados na infancia, mesmo os educados em “colégios de religiosos”, nao estavam sendo relaxados 20 braco secular nem seus bens sendo confiscados. Numa carta de 1610, ele relembra que aquelas condicdes especiais previstas no breve deve- riam ser aplicadas apenas nos casos dos batizados adultos e com ma instruso (ANTT, CG, liv.298: 298) ‘A mudanga na percepco dos inquisidores sobre como lidar com a populacao local ¢ visivel numa carta de dezembro de 1611, as- sinada por Jorge Ferreira e Gongalo da Silva, na qual comentam o caso especifico de muculmaros e de hindus que, apés uma primeira prisso pela Inquisicio, convertiam-se ao catolicismo em troca da cessacao do proceso e de uma absolvicio. Os muitos casos de apostasia em ter- ras fora de seu alcance (na verdade simplesmente do outro lado do rio), fizeram com que desejassem poder usar de mais rigor “seguindo a opinigo comum dos doutores”, j4 que a benevoléncia anterior ndo estava dando resultados (Baldo, 1930: 456-7). Por outro lado, o medo de que um maior rigor pudesse frear o nimero de conversées, adicio- nado a pobreza dos locais e & imagem de uma dificuldade congénita ‘na assimilagao de um catolicismo mais conforme ao esperado, fez com que na maior parte do tempo os inquisidores julgassem os casos de Bentilidade com alguma condescendéncia. € de se notar que em 1732 O breve dos neéfitos ainca estava sendo aplicado®, o que nao impediu 80 Oneéfito Luis de Melo de Bacaim foi julgado uma primeira vez por gentilidades em 1722, e uma segunda vei em 1734 por relapsia e também por dare incltar 2 utr9s que dessem falso testemunho, e por chantagem, Ele foi reconeiliado gracas or “privilégio do breve", BNP, cd, 203, f. 138. Justicas, Governo.e Bem Comum 105 com que asisticos fossem sentenciados a pena maxima © primeiro caso de pena capital por gentilidade data do auto da fé de 13 de setembro de 1587, quando foi queimada a efigie do fugitivo Luis Pereira. Até entdo cerca de cem pessoas j haviam sido executadas na fogueira por judaismo, mas o numero de relaxados por gentilidade s6 faria aumentar com o tempo, e o tribunal de Goa emitiu frequentemente a sentenca de relaxago até a primeira abolicio do tribunal em 1774. Em seu Ultimo auto da fé antes dessa data, dos mais de cem réus que ali ouviram suas sentencas, trés pessoas e as efigies de cinco outras foram relaxadas ao brago secular por gentilidade (BNP, liv, 202: 7/2/1773), enquanto no reino a ultima pessoa a ser queimada na fogueira (0 padre Malagrida), no que ja poderia ser visto como uma ‘excepcionalidade, o fora quinze anos antes. Para além do problema dos relapsos, os inquisidores de Goa tiveram que lidar com outros dilemas legais. Em 1584 eles informam Lisboa que “muitos mesticos, escravos e cristdos da terra se passam aos mouros nossos vizinhos” para fugir & justi¢a comum, ou, no caso dos escravos para fazerem-se muculmanos e serem “mais favorecidos dos reis, € outros ainda “por outros respeitos de homens, e outros por fra- queza, por necessidades em que se vem”. De voltaa terras cristas, eles afirmariam que a conversao ao islé teria sido apenas externa, “e que ‘em seu coraco nunca foram mouros nem se apartaram de nossa Santa Fé Catélica’. Esse poderia ter sido realmente 0 caso, mas esse discurso também péde resultar desses retornados acharem que tal confissio de atos exteriores seria mais benevolamente recebida pelos inquisidores do que a confissao de uma conversio completa ao isla com uma igual mente sincera reconversio 20 catolicismo. Nao era assim que os inqui- sidores, com sua logica juridica viam a coisa. Muito pelo contrario, eles tomavam essas confisses como extremamente suspeitas e fingidas Poor isso escreveram para Lisboa para perguntar o que fazer com aqueles que negavam a “inten¢o” pela qual se converteram ao isla ou ao hin- dulsmo (ANTT, CG, liv, 298: 78-81). 0 inquisidor geral d, Jorge de Almei- da respondeu que aqueles que confessavam “ter acreditado naquelas seitas” deveriam ser recebidos com muita misericérdia e reconciliados, enquanto os que negassem a intencdo (tendo contra eles provas teste- munhais), deveriam ser relaxados ao braco secular como impenitentes. D. Jorge também mencionou uma série de condicionantes que na prati- 106. JiniaF Furtado | Claudia C. A. Atallah | Patrica F. dos S Svea (orgs) ca deixaram 20s inquisidores locais a tarefa de decidir da sinceridade ou no dos “apresentados” em questo (ANTT, CG, liv 298: 78-81)". Vérias décadas mais tarde, em 1634, 0 problema ainda nao fora satisfatoria- mente resolvido, ea carta enviada naquele ano aos inquisidores de Goa pelo inquisidor geral, pedindo a eles sua opiniao sobre o assunto, nem por isso deixava de dizer que os cristdos da terra no deveriam mais ser julgados de acorde com a intengdo pela qual apostasiaram, como até nto havia sido o caso, “por parecer que convem ao servico de Deus e redugio de suas almas” (ANTT, CG, lv. 101: 60). © aumento dos casos envolvendo cristios da terra de origem hindu sé faria aumentar com 0 tempo. Em 1603, 0 inquisidor Jorge Ferreira lamentava-se de estar “esta ilha de Goa toda emficionada, € chea de idolatria, e se a mesa ouuer de correr ordinariamente com esta gente da terra que de sua colheita he trabalhosa de encaminhar bem ha que fazer estes dous anos que uem” (Baio, 1930: 327). 0 au- mento da carga de trabalho fez que com os inquisidores pedissem que fosse nomeado um terceiro notério para o tribunal em 1640, e dez anos mais tarde um terceiro inquisidor, no que foram atendidos pelo Fei, que era quem pagava os emolumentos dos ministros inquisitoriais (ANTT, CG liv. 101: 107; 177), Pouco a po.co, como foi o caso com os cristos novos, a popu lacdo convertida dos territérios portugueses na India (e seus descen- dentes) acabaria per ter um certo entendimento dos procedimentos inguisitoriais, fazendo apresentacdes em massa como modo a obter condiges especiais de reconciliaco a Igreja. Em janeiro de 1649 os inquisidores escreveram que todos os moradores da ilha de Jud esta- vam ou apresentados ou indiciados. Queriam que o inguisidor geral thes enviasse um édito de graca, pois de outro modo “assolar-se-a de todo aquele lugar. 0 édito também evitaria as confiscacdes do pouco ue tinham, confisco que segundo os inquisidores faria com que todos fugissem “para a outra banda’. As primeiras confiss6es haviam sido tomadas por seus pérocos e por outros sacerdotes indianos sem os Gevidos cuidados legais, e fazé-lo tomaria tempo demais. Uma visita inquisitorial, com a possibilidade de se reconciliar os casos mais leves om tramites simplificados, seria o modo de se concluir tudo “suave- 81 Aquestio ¢ outra verlevantada em 1597 ¢ em 1604 (ANTT, C6, iv 298: 198; 249) 1ustigas, Governo e Bem Comum 107 mente” (ANTT, CG maco 31 doc. 32: 5). Quatro anos mais tarde o mes- mo caso se apresenta em Bardés, e Lisboa ordenou que os inquisidores aplicassem ali “o mesmo remédio” dado em Jud, que consistiu num dito de graca acompanhado da remissao régia do confisco dos bens. ‘Ambos episddios tiveram como desfecho procedimentos despachados localmente possivelmente por mais de um “ministro, ou seja inquisi- dores e/ ou deputados (ANTT, CG, liv. 101: 155-v). Uma lista de 111 pessoas (sobretudo de convertidos de pri- meira geracdo) que abjuraram num auto da fé celebrado em Salsete com a presenca de apenas um jesuita enquanto delegado inquisitorial, em 1686, indica que nos casos mais leves de heresia~o respeito de cos- tumes e de tradig6es locais consideradas como idélatras ~ os inquisido- res escolheram usar de métodos mais expeditivos, que incluiam a de. legagdo de poderes a comissarios (CGSO, maco 31, doc. 3). Como para outras questdes, a politica de delegacdo de poderes aos comissarios variou no tempo. Apés um primeiro momento de delegacao ampla de poderes aos comissarios para que pudessem investigar e até reconciliar réus em casos especificos, em 1621, esses poderes foram retirados em 1632 (Feitler, 2008). Os procedimentos parecerem terem-se fixado no ‘comeco do XVIII, quando o inquisidor Manuel Joao Viana, ao efetuar uma visita aos territérios do Norte em 1701-2, redigiu um regimento que deveria ser seguido pelos comissérios inquisitoriais locais. Esse do- cumento exortava os comissérios (no mais das vezes, naquela época, clérigos regulares de diferentes ordens) a serem “brandos, afaveis e benévolos” aos que se apresentassem a eles para confessar culpas ou fazer dentincias. O inquisidor insistia a que “nunca mostra(ssem] agas- tamento ou indigna¢do alguma perante eles", indicando a jé mencio- nada condescendéncia com que os inquisidores viam 0s cristaos locais, Em comecos do século XVIII a maior ocupacao dos comissarios parece ter sido certificar que os cristos usassem roupas especificas “para por cles serem reconhecidos por tais” e ndo “cabayas e toucas ou topis de sorte que se presuma que pelos trajos possam ser desconhecidos por cristos. E também nao trardo a barba a modo gentilico” como também deviam certificarem-se de que "nao haja galos com crista nem cabri- tos que no tenham orelhas cortadas”. Aqueles que nao respeitassem essas e outras proibigdes os comissérios deveriam admoestar com ca- ridade, e somente em caso de resisténcia impor “alguma pena ou pe- 108 siniaF Furtado | Claudia C. A. Atallah | Patricia F dos 5. Silveira (orgs) piténcia moderada que no pareca vingativa ou rigorosa’’. Eles também devetiam admoestar os pérocos locais e outros sacerdotes a que os aju- dassem na aplicacio dessas restricdes (BNRI, 25, 1, 5, n. 132) Esse detalhismo do inquisidor, assim como os usos que para nds pode parecer ao mesmo tempo bastante exéticos e ao mesmo tempo anddinos coloca a questo do que exatamente era caracteri- zado por “gentilicades” pelos inquisidores. € no entanto dificil de responder a essa questo ~ e assim conhecer as razdes pelas quais a maioria dos réus do tribunal goés foi presa ~ tendo em vista a perda quase total dos processos. A lista de processados por “praticas gen- tiicas” e delitos afins de adoracdo ou consulta a “pagodes” (templos ou imagens hindus), a busca por tesouros, ceriménias divinatorias ete. julgados pelos inquisidores de Goa até 1623 perfaz praticamente me- tade do total de 3438 casos, No entanto, uma boa parte desses casos foi simplesmente designada como de “praticas gentilicas” (cerca de 660 casos), sem nenhuma outra explicacdo sobre que praticas seriam ‘essa (BNP, cd. 203). As listas de autos da fé subsistentes, cuja série omega nos anos 1680 e vai até a abolicdo final do tribunal em 1814, parece no s6 corfirmar esse dado, mas também mostrar que essa designacdo genérica de praticas “gentilicas” era ainda mais generali- zada (BNP, céd. 201 e 202). Que praticas gentilcas seriam essas? Um Edito emitido pelo tribunal de Goa em 1736 (a ser publicado em Goa € nos territérios & sua volta) permite que se tenha uma boa ideia no sé de que atos eram esses, mas também qual era a principal preocu: pacdo do tribunal: controlar a vida cotidiana dos cristos nos mais mi- nimos detalhes (Pr olkar, 1962: 97-107). Esse edital excepcionalmente longo descreve detaihadamente diferentes ceriménias matrimoniais, funerdrias e de nas:imento, costumes alimentares e vestimentas tradi- cionais vistas come pags. Estes incluiam, entre outros, ter alimentos Preparados por “mulheres principais ou mulheres vestidas com roupas molhadas”, ou plantar tulos/ (planta venerada pelos hindus) em seus “Jardins, quintais, coqueirais ou outras propriedades’. O edital comeca Pela proibicdo de coabitacdo entre cristos e nao cristéos, apontando para a vontade das autoridades a que se chegasse a uma total “lusita- nizago” da popula;ao local. Se justapusermos 0 contetido desse édito com o regimento dos comissarios de 1702 e aos nimeros de processos Por gentilidade, poderemos concluir que no século XVIII a Inquisigao sustgas, Governo e Bem Comum 109 tinha-se tornado uma espécie de policia de costumes, com admoesta- $@es misericordiosas mas também com a aplicacdo de todo o rigor do direito, dependendo do caso. Mais uma vez, tendo em vista a quase total destruigdo dos processos de Goa, € dificil distinguir claramente o que poderia contar para que os réus fossem tratados diferentemente, a ndo ser nos casos dos convertidos ao catolicismo ja adultos, que be- neficiavam-se do previsto no breve papal dos nedftos. Também havia claramente uma questo econémica nessa metodologia, ainda mais quando os faltosos viviam longe da sede do tribunal. Os inquisidores de Goa tenderam a instaurar processos eles mesmos, com 0 encarceramento do réu no préprio tribunal, apenas, quando estes tinham condigdes financeiras de arcar com as custas da prisdo e do préprio processo, mas é claro que a gravidade do caso os levaria a agir diferentemente. Inquisicao, gentios e mouros Os tribunals inguisitoriais (e isso inclui tanto os medievais quanto 0 espanhol, 0 portugués e o romano da época moderna) foram criados com 0 objetivo especifico de levar de volta ao seio da Igreja os cristdos que de um modo ou de outro trairam a promessa feita em seus nomes na pia batismal, ou seja: respeitar e seguir tudo 0 que ensina e manda a Igreja Catélica romana. O alvo principal era a heresia, mas rapidamente outros delitos também entraram sob sua jurisdicao; da so- domia a bigamia, da feiticaria a0 “sigilismo” e & maconaria, Esta asser tiva implica no fato das pessoas ndo-batizadas, como os infiéis (judeus € musulmanos) e os pagios (politefstas ou animistas), nao estarem sob a jurisdicao do tribunal da fé. No entanto, alguns casos raros ocorreram no contexto europeu de judeus nao batizados de origem portugues que apés viverem por longos anos em Portugal e até no Brasil sem dar nas vistas, foram julgados por se fazerem passar por cristos batizados. Também em Modena, na Itélia, o tribunal da Inquisi¢ao local chegou a julgar judeus por “porem a cristandade em risco”, fosse por impedir que judeus se convertessem ao catolicismo, fosse por tentar fazer com que convertidos apostatassem (Feitler, 2003: 116, n. 15; Aron-Beller, 2011) 110 nia F Furtado | CléudiaC. A. Atallah | Patricia F. dos 5, Silvera (orgs) que era incomum no ocidente, parece ter sido em certos momentos corriquelro no mundo indiano, levando a que a Inquisisio tivesse um papel bastante original na relacao com a populacao local. 0s territériosasiéticos do império portugués, contrariamente 20 que acontecia no reino ou mesmo no Brasil, ndo eram exclusiva- mente cristios, apesa* da destruicdo dos templos e das tentativas de erradicagao e de prolbigdo de préticas locas. Além disso, 0s pequenos e dispersos territérios portugueses estavam cercados por dominios hindus ou muculmanes. A Inquisicao teve assim que lidar com a popu- lacio ndo crista, sobretudo hindus, que moravam em Goa e em outros territrios portugueses e, na india, a ago da Inquisigdo e a misslo ter- rminaram, em alguns aspectos, por se combinar (Marcocci, 2011). Nos primeiros e violentos tempos, marcados por guerras, cercos e revoltas (insurreigao de Bardez em 1557, cerco de Goa pelo exército do sultdo de Bijapur em 1570-71, revolta de Cuncolim em Salsete em 1583) ali mentados por uma resistencia cotidiana ao poder catdlico portugues 0 Santo Ofclo foi imediatamente visto como um poderoso coadjuvan te & atividade prosélit (Xavier, 2008: 333-79), Entre suas responsabi- lidades estava 0 julgar delitos cometidos por convertidos locais que fugiam e apostatavam para além do dominio portugués. A vigilancia das autoridades civis, com efeito, nfo parecia operar: em 1561 0 vice- -tei Francisco de Coutinho pediu a que nao fosse tomado “por Erasmo” tendo em vista sua indiferenga pelo que tocava o destino daqueles si- ditos (Marcocc!, 2012: 400). Chama atencéo o fato do tribunal punir indistintamente crist3os e néo-cristdo que impedissem a converso a0 catolicismo, ou pusesse em risco a frégil fé dos cristéos locais. Esses poderes, como 0 mostrou Marcocci (2012: 400-1), foram confirmados pela Mesa da Consciéncia e Ordens em 1569, mas usados frequen- temente de modo distorcido e arbitrario. Entre os processos abertos contra gentios ou inféis entre 1561 e 1623 (62 “gentios” e cerca de 26 “mouros” de um total de 3438 casos), alguns terminariam pela con- cessio da absolvigao do réu ou pelo perdéo da culpa em troca por sua conversio ao catolicismo. J4 em 1568, 0 naique Vitul, da paréquia de So Jodo, e sua familia, converteram-se ao catolicismo de modo a que ele fosse perdoado por ter vendido um escravo cristdo a um novo se- hor muculmano (BNP, ¢6d. 203; 639v). Do mesmo modo, o hindu An- tecamotim foi condenado em 10 de agosto de 1575 por levar cristios Justicas, Governo.e Bem Comum 111 q a terra firme para que voltassem a “gentilidade”, mas foi em seguida perdoado ao converter-se ao catolicismo (BNP, céd. 203: 105). A lista dos processos julgados até 1623 contem varios outros casos similares de ndo-cristdos julgados “por impedimento contra a fé", alguns dos quais terminaram por converterem-se ao catolicismo (BNP, céd. 203). © Reportorio também menciona alguns raros casos de infiéis julgados or sodomia que indicam que a Inquisi¢ao estava disposta a usar de todos os meios para alcangar o objetivo de uma india portuguesa pu- ramente catélica, uma India espelho do Portugal metropolitano. Amet @ Encené, muculmanos de Bacaim (um dos territérios portugueses do Norte da india), foram presos e julgados por sodomia, e 0 proceso suspenso e encerrado em 27 de janeiro de 1612 depois da deciso de ambos converterem-se ao catolicismo (BNP, céd. 203: 152; 297v]. Essas atividades do Santo Oficio local chamaram a atencio dos jesuitas que, possivelmente por temerem o modo brusco com que essas pessoas estavam sendo convertidas, escreveram ao inquisidor geral informando-o da pratica. Numa carta datada de marco de 1580, © inquisidor geral d. Jorge de Almeida escreveu por sua ve2 aos inguisi- dores reconhecendo “o muito cuidado e zelo que tendes de favorecer @ ajudar a converséo dos gentios dessas partes e 0 que nisso tendes feito e bom exemplo que dais e além de ser essa obra de tanto servico de Nosso Senhor, que é que principalmente se deve pretender e aqui todos temos tanta obrigacdo"”. 0 apoio do inquisidor geral era comple- to: “folgarei muito de levardes sempre avante esse negocio. (..] Além do premio verdadeiro que devels esperar de Deus por isso, terei muito lembranca de volo gratificar em tudo o que se oferecer de vossa honra gosto”. Apesar disso, pedia aos subordinados que “com muita vig lancia e vossa prudéncia dardes ordem a que no haja supersticées algumas gentilicas nas pessoas que novamente se convertem a nossa Santa Fé” (CGSO liv. 311, f1. 46). Com 0 tempo, a autoridade das instituigdes catélicas locals estabilizou-se, € a pratica dos ritos e costumes indianos foi cada ver mais restrita nos territérios portugueses, sobretudo em seguimento 8 polémica dos anos 1610-1630 sobre os ritos malabares (Zupanoy, 1999). Em 1615, os inguisidores escandalizavam-se das autorizagdes dadas nao s6 pelas autoridades civis mas também pelo arcebispo para que os gentios celebrassem matriménios “com ceriménias gentlicas” ra prépria ilha de Goa, e um ano mais tarde estavam julgando hindus 112 JuniaF Furtado | cléudia C. A, Atallah | Patrica F. dos 5. Silveira (orgs) rae eae que fizessem ceriménias “protestativas da honra e veneragio que dio da Deménio", como sacrificios (Baio, 1930: 531; 545; 610). A Inquisicao parece assim ter reivindicado jurisdicdo sobre ca- sos como esses, ¢ julgou cada vez mais pessoas nao batizadas que nao respeitavam as proibizSes de rituais hindus e mugulmanos piblicos e mesmo privados. O cuase total desaparecimento da documentacao relativa as pessoas julgadas entre 1623 e meados dos anos 1680 im- pede que identifiquemos com clareza quando esses casos come¢aram ater a relevancla numérica que terdo na virada do século XVII para o XVII. Contudo, de todas as listas de autos da fé da série que come- ga em 1685, consta um grande numero de hindus, e também algum mugulmanos, sentenciados por fazerem rituais proibidos no territério portugues, alguns dos quais terminaram por se converter, como no impressionante caso azontecido em Goa nesse mesmo ano. No dia 22 de julho de 1685 muitos “gentios” foram presos por celebrarem um casamento hindu na ilha de Goa. Com o proceso ainda em andamento eles requereram o batismo e o procedimento criminal ‘ess0u e as culpas abandonadas. Ficard quem sabe para sempre a divi da se a conversao foi espontanea ou ocorreu por sugestao (ou ameaca) dos inquisidores. Em todo caso, apés terem sido instruidos pelos jesuitas. ‘no colégio de So Paulo, que também servia de casa dos catecimenos, foram batizados pelo pai dos cristaos, o também jesulta Luis de Abreu Alista desses muitos batismos, ordenados pelo inquisidor Manuel Gon- salves, mostra que foram realizados em diferentes ceriménias ocorridas entre fevereiro e outubro de 1686 (0 que de certo modo implica num pe- tiodo importante de possivel catequese) em diversas pardquias de Goa, contabiliza um total de 102 pessoas, registradas por grupos familiares. Pai, mae e filhos (ANT, CGSO, maco 31, doc. 28). As listas de autos da {€ dos anos seguintes nio faz clara referéncia a esse tipo de conversao, mas os frequentes casos registrados de gentios cuja sentenca fora de absolvido, sem nenhuma outra informacao, podem muito bem indicar 2505 do escambo fim do processo // conversio (BNP, cd. 201) Esses casos de pessoas presas por realizarem matriménios om 0s rituais locais, por ter imagens hindus em casa, ou mais geral- mente por estarem presentes em “ceriménias gentilicas em nossas ter- ‘25, ou por participarem de “ofertas e sacrificios a0 Diabo feitos em ‘ossas terras” (BNP, céd, 201: 9v; 12; 17), praticamente inexistentes no século XVI, se tornam frequentes no fim do XVII e uma causa maior de Justigas, Governa e Bem Comum 113 processos durante a primeira metade do século XVill, quando come- am a diminuir para finalmente desaparecer nos anos 1770 (BNP céd. 201, 202, 866. ANTT, CG mago 31) quando as praticas do hinduismo e do isI8 foram novamente autorizadas na india portuguesa, para des- gosto dos inquisidores (BNP céd. 866: 8-16). Finalmente, uma outra dimensao catequética da Inquisi¢ao indiana surge nas penas impostas a alguns dos cristdos da terra: 0 de- gredo para Portugal e mesmo para o Brasil de pessoas julgadas por “gentiidades” ou por “mouro”. Tratava-se de exilé-los para lugares onde as possibilidades de interac3o com muculmanos ou hindus se- riam muito menores do que no oriente, dando assim menos possibil- dades de relapsia por influéncia externa. Esta parece ter sido a l6gica por detrds da sentenca publicada contra o escravo gujarate Domingos Fernandes, que abjurou por praticar o isl8 no auto da fé de 22 de se- tembro de 1586, e foi “mandado vender para o reino”, o que em todo caso garantiu os direitos de seu senhor. Esse também foi 0 caso do cristao da terra Antonio Lourengo, nativo de Rachol nas proximidades de Goa. Ele foi preso por islamismo e condenado ao exilio em Portugal no auto da fé de 10 de dezembro de 1623 (BNP, céd. 203: 174; 243y). ‘Muito mais adiante, no auto de 21 de abril de 1697, Deugo, brmane jd preso uma primeira vez por “fazer pagodes” em terras portuguesas € enviado 8 casa dos catectimenos apés dizer querer converter-se, foi ppreso uma segunda vez, desta vez com pena de acoites e degredo de dez anos para o Brasil (BNP, céd. 201: 46) Estas algumas achegas a atividade do Santo Oficio no oriente mostram que durante boa parte de sua longa existéncia no Estado da india, e diferentemente do que aconteceu nos territérios portugueses do Atlantico, a Inquisicdo lidou diretamente com as populagdes locais, convertidas ao catolicismo ou ndo™, Essa caracteristica Unica da Inqu: sigo goesa fez com que a instituigo assumisse uma face disciplinado- ra muito mais ampla do que a do seu equivalente ocidental, Para além da sua tradicional imagem ameacadora e punitiva, ela também assu: miu, sobretudo a partir da segunda metade do século XVI, e paralela- mente & aco do clero local (regular e secular) uma func missionsria auxiliar, supervisionando a populacdo local, crista e nao crista 92. Vale notar que as originalidades da agdo inquisitorial no Atléntico, mormente no Brasil, exstram, mas devem-se mais sociologia dos réus, ¢ no tanto aos métodos inquisitorais. Ver Feitler (2013) 1114 JuniaF Furtado | Claudia C. A. Atallah | Patricia F. dos S. Silveira (orgs) Bibliografia ARON-BELLER, Katherine. Jews on Trial, The Papal inquisition in Mode- na, 1598-1638. Manchester: Manchester University Press, 2011. AVELAR, Pedro. Histéria de Goa. Alfragide: Texto, 2012 BAIKO, Anténio, A Inguisi¢éo de Goa. Correspondéncia dos inquisido- res de Goa (1569-1630). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, CUNHA, Ana Cannas da. A inguisicio no Estado de india, 0: fia. Origens (1539- 1560). Lisboa: Torre do Tombo, 1995. senses D‘COSTA, Anthony. The Christianisation of the Goan Islands. Bombaim: s.e., 1965. DELLON, Charles. 4 inquisicdo de Goa (edigo e estudo: Charles Amiel Anne Lima). So Paulo: Phoebus, 2014. 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