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CAPITULO 3 PARA ALEM DA PREVENCAO Afastada a hipétese preventivista, restam outras perspectivas a serem examinadas. Esclarego que a opcio metodolégica relativa 4 ordem de apre- sentagao das teorias nao obedeceu & cronologia, mas sim, ao menos em certa medida, a relevincia e a penetracéo de cada qual atualmente. O discurso preventivista, como se viu, é dominante, mas nao se pode descartar a im- portincia, dentro ¢ fora da academia, da perspectiva retributivista. Por fim. encerrarei esse capitulo abordando a teoria garantista. Embora, estritamente, ela devesse estar localizada no capitulo correspondente & prevencao, optei por traté-la em separado, porque o relevante na proposta de FERRAJOLI para 0 desenvolvimento da tese aqui apresentada é justamente o aspecto que nao coincide com a visio preventiva tradicional. 3.1. AMETAFISICA DA RETRIBUICAO ‘As tcorias retributivas so alcunhadas absolutas pois so supostamente autorreferenciais, vale dizer, nia perseguem nenhuma finalidade externa a elas mesmas, nao possuem como objetivo outra coisa sendo a sua propria realizagao. Isso, no entanto, é uma verdade parcial. Uma teoria, por as dizer, retributiva pura, de fato nao concede nenhuma outra explicagao para a pena além da classica quia peccantum. Mas € possivel enxergar-se a retribuicao como parte de uma finalidade extrinseca, ainda que tal finalidade nao seja a prevencio de delitos fururos. Ainda assim, fato ¢ que a dinimica autorreferente ¢ a dificuldade de (ou renuncia a) encontrar uma finalidade socialmente til tem sido. uma caracteristica presente nos principais modelos retributivos, tal como foram desenvolvidos a0 longo da histéria e dos quis passarei agora a tratar. 3.1.1. Retribuicdo moral - KANT A mais perfeita ideia da pena como ret pela filosofia kantiana e éa partir dela, também, que se estabelece a dicotomia ici moral foi construida insuperavel entre valores morais e utilitarismo. Em Critica da Razéo Pura (1781), KANT havia desenvolvido uma ideia fundamental para toda a sua filosofia: a possibilidade de formulacio de juizos sintéticos aprioristicos, que permitem 0 conhecimento dos objetos (fenémenos) antes de qualquer experiéncia, através unicamente do emprego da razio. Com isso, estabeleceu as premissas para a resposta & pergunta “o que posso conhecer?”." Em Critica da Razéo Pritica (1788), a seu turno, KANT passa a se ocupar com a questao de como compreender os postulados da moral, de como responder a pergunta: “o que devo fazer?”, questao que é mais desen- volvida na Fundamentagdo da Mevafisica dos Costumes depois em Metafisica dos Costumes (1797), sua obra filossfico-juridica capital Apoiando-se na distingao entre ndmeno ¢ fendmeno, KANT deseavolve a ideia de que o homem tem de si uma perspectiva dupla: como pertencente a0 mundo sensivel (fendmeno), vé-se submetido as leis da natureza, estranhas asi (heteronomia); como pertencente ao mundo inteligivel (némeno), vé-se submetido & lei moral, da qual ele préprio é legislador (autonomia). A lei moral posta pela vontade do ser racional é expressa na conhecida formula: “age s6 segundo maxima tal que possas 20 mesmo tempo querer que cla se torne lei universal”. Essa lei, posta pela vontade do ser racional ¢ & qual essa mesma vontade encontra-se subordinada de forma vinculante (im- perativa), apoditica e universal, constitui o imperativo categérico da moral. Imperativo categérico porque com ele no se quer alcancar nenhum outro fim (imperativo hipotético). Ao obedecer a essa lei, aa¢a0 moral é simples- mente a expressio de uma vontade auténoma (que obedece & sua propria Ici). E também uma agao livre, tanto em um sentido negative (posto que independente das leis naturais), quanto em um sentido positive (posto que em conformidade com sua propria legislacao), Estabelecidaa distingio entre lei da natureza (hererdnoma) ea lei dali berdade (auténoma, enquanto relacdo entre o sujeito racional ¢ 0 imperativo categérico que ele préprio legisla), KANT postula uma segunda separacio, dividindo a lei da liberdade em lei ética e lei juridica. A diferensa & que a primeira exige que o fundamento intemo da acio coincida com a lei da liber- dade, ou scja, afete o aspecto interno da aso, enquanto a segunda somente 112, Nailie Bautista Pizarro RainerZacrn, Libertad Derecho y Fundamenscin de la Pena Bogs Universdad Exterudo de Colombia 2010p. 3 4. = PARAALEM DA PREVENGAO se preocupa com 0 seu aspecto exterior. E a partir desse cardter externo que se poderd verificar a legalidade da agéo. E justamente porque se ocupa do carter externo daa¢io, o qual, internamente, pode nio estar de acordo com alei da liberdade, que a lei juridica tem carder coercitivo "3. Para KANT, “o dieito é 0 conjunto de condigoes sob as quais 0 arbitrio de um pode conciliar-se com o arbitrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade”*. Dessa forma uma agio sera conforme o direito na medida em que permite a liberdade do arbitrio de cada um segundo a lei universal, ¢ serd ilegal quando prejudicar a liberdade do outro, segundo essa mesma lei." E, em decorréncia, seri legal, porque conforme a lei universal, a agio que se contrapée ao absticula a liberdade, ou seja, sera legal a coacio. No Estado de Direito (CANT reconhece uma etapa pré-juridica do Estado), as normas que compdem 0 ordenamento juridico, na medida em que correspondem & yontade geral, nfo constituem um sistema alheio a0 sujeito, mas lhe sio préprias e ditadas pela razio. Dessa forma, a pena é um imperativo categérico pois nao pode ter outro fundamento sendo o fato de que o sujeito violou a lei que lhe era propria. Dito de outra forma, allei penal constitui um enunciado sintético a priori que une, incondicionalmente, dois fatos externos: 0 crime e a pena. Com a imposicio necesséria da pena ob- tém-se a justa compensacio do crime, pune-se quem delinque tio somente para cumprir-se esse mandado da justica.'" Qualquer outro fundamento ou finlidade implica considerar a pena um imperativo hipotético e, por outro lado, tratar 0 sujeito como meio, como objeto € nao como fim. A mais contundente mecafora dessa posicdo é estampada no conhecido exemplo dos ilhéus: “Mesmo se uma sociedade civil tivesse de ser dissolvida pelo assentimento de todos os scus membros (por exemplo, se um povo habitante de uma ilha decidisse separar-se e dispersar-se pelo mundo), o tltimo assassino restante na prisio teria, primeiro, que ser executado, de modo que cada um a cle fizesse o merecido por suas ages, €.a culpa sanguiniria nao se vinculasse ao povo por ter negligenciado essa 113. Nathilia Bautsta Pizarro, in: Reiner Zaczyk, Likertad, Derecho y Fundamentacién de la Pena. Bogoi: Universidad Externado de Colombia, 2010,p. 4243, 114, Rainer Zaczyk. Libertad, Derecho y Fundamentacion de la Pena. Bogoté: Universidad Exterado de Colombia, 2010, 147 113. Nahe Bautsta Paro, in: Rainer Zaczy, Libertad, Derecho y Fundamentcin é la Pena. Bogoti Universidad Extemado de Colombia, 2010. . 44 116, Immanuel Kast. La Metafisica de ls Costumibres. 4a ed, Madrid: Teenos, 2008, p. 166-161. (iadugio eee) punicéo, uma vez que de outra maneira o poro pode ser considerado como oF colaborador nessa violagdo publica da justiga’ Segundo a perspectiva kantiana, portanto, qualquer teoria relativa da pena é absolutamente inconcebivel. A pena jamais pode ser imposta como meio de promover algum outro bem 20 préprio criminoso ou ao restante da sociedade: "Precisa sempre ser a ele infligida somente porque ele cometeu um crime, pois um ser humano nunca pode ser tratado apenas a titulo de meio para fins alheios ou ser colocado entre os objetos de direitos, as coisas” O raciocinio estritamente retributive marca nao 36 a fundamentasio da pena como também 2 sua medida: se a conduta ilicita consistiu na afetagio da liberdade alheia o justo é que seafete a liberdade do criminoso, exatamente nna mesma medida. Em consequéncia, KANT defende expressamente 2 adogio da lei de talio: “Mas que tipo e que quantidade de puniso correspondem ao principio emedida da pena publica? Nada além do principio da igualdade (na posicao do ponteiro na balanga da justiga), inclinar-se no mais para um lado do que para o outro. Em conformidade com isso, seja qual for o mal imerecido que infliges a outra pessoa no seio do povo, o infliges a ti mesmo. Se o insultas, insultas a timesmo; se furtas dele, furtas de ti mesmo; se o feres, feres a ti mesmo; se 0 ‘matas, matas a ti mesmo. Mas somente a lei de talido (jus calionii) —entendida, éclaro, como aplicada por um tribunal (nao por teu julgamento particular) —é capaz de especificar definitivamente a qualidade e a quantidade de punicaos todos os demais prineipies sio flutuantes ¢ inadequados a uma sentenga de pura e estrita justica, pois neles estio combinadas consideracées estranhas.!? E inclusive a pena de morte resta plenamente justificada. E curiosa a resposta de KANT 8 posicio de BECCARIA, seu contemporineo, a respeito desse aspecto: “Opondo-se a isso o Marqués de Beccaria, movido por sen- timentos compassivos de aferada humanidade (compassibilitas) apresentou sua assergio de que qualquer pena capital é equivocada porque nio poderia estar contida no contrato civil original, pois se estivesse, todos os integrantes de um povo teriam que haver consentide em perder a vida em caso de ter assassinado um outro individuo (do povo), ao passo que é impossivel para 17 tmamel Kant Le Metieade a Contant Aa, Ma Tees 2008p 106169, rao 1, elo ota et em io lp oe 119, Immanvel Kant, La Metafisia de las Cestumbres. 4a ed. Mads: Tecnos, 2008, p. 167. (Tradusio lee). CeITULO' - PARAALEMON PREVENGAD qualquer um consentir com tal propria vida. Isto nao passa de ofits e de artimanha juridica. Ninguém & objeto de puni¢ao porque a quis, mas porque quis uma acdo punivel, pois no constitui punigao se aquilo que é feito a alguém é 0 que ele quer, eé im- possivel querer ser punido. Dizer que quero ser punido se assassino alguém & dizer nada mais do que me submeto, juntamente com todos os outros, 3s leis, que naturalmente também serao leis penais se houver qualquer criminoso em meio a0 povo. Na qualidade de um co-legislador ao ditar a lei penal, é possivel que eu nao possa ser a mesma pessoa que, como stidito, é punida de acordo com alei, pois como alguém que é punido, a saber, como criminoso, nio é possivel que eu possa ser uma voz na legislagao (0 legislador € sagra- do). Consequentemente, quando redijo uma lei penal contra mim mesmo na qualidade de criminoso, é a razdo pura em mim (hommo nownenon) legislando com respeito a direitos, que me sujeita, como alguém capaz de perpettar o crime, ¢ assim, como uma outra pessoa (homo phaenomenon),’ Jei penal, junto com todos os demais numa associacio civil. Em outras pala- vias, nao é 0 povo (cada individuo nele encerrado) que dita a pena capital, mas o tribunal (a justica publica) e, assim, um outro individuo distinto do ctiminoso; ¢ 0 contraro social néo contém neahuma promessa de deixar-se punir, c, deste modo, dispor de si mesmo e da prépria vida, isto porque sea autorizacio para punir tivesse que ser baseada na promessa do transgressor, no seu querer deixar-se punir, teria também que Ihe caber julgar a si mesmo punivel ¢ 0 criminoso seria 0 seu préprio juiz. O ponto capital do erro nesse sofisma consiste em sua confusio do préprio julgamento do criminoso (que tem necessariamente que ser atribuido a sua raza) de que ele tem que perder sua vida com uma resolugio da parte da vontade para tirar sua propria vida, assim em representar como ut mento sobre um direito ea realiza¢io deste direito.” idos em uma tinica mesma pessoa o julga- © pensamento kantiano apresenta o inegivel mérito de detectar 0 perigo embutido nas teorias relativas que surgiam & época e que, inspiradas pela filosofia utilitarista, munidas de um discurso - como escreve KANT “de afetada humanidade”-, poderiam conduzir & coisificacio do ser humano. Até hoje, quem quer que fale sobre dignidade humana e proporcionalidade em Direito Penal acharé em KANT seu bastiéo. Enuetanto, 0 alicerce tcoldgico no qual se funda sua premissa, ber 120. Immancel Kant. La Metafisca de las Costumbres 4a ed. Madrid: Teenos, 2008, p. 172 (Trad livre). TEORIA DAPENK SACRFICIG VINCANCAE RETO PENAL como a severidade das consequéncias as quais conduz, fizeram com que a teoria kantiana da pena, na sua pureza, fosse abandonada. De fato, tal como foi concebida, a teoria kantiana parece insustentivel nos dias atuais (c considcrando as distincias que a separam de nés, seria estranho se fosse diferente). F, desnecessirio explicar que fundamentar qual- quer instituto juridico em um dogma religioso é absclutamente inconcebivel nos Estados laicos modernos. De outra mio, a cega adocio do jus talionis presta-se a legitimar graus de violéncia estatal dificilmente compativeis com 0s ordenamentos constitucionais democraticos. Os defensores do neo-retributivismo, no entanto, sobretudo na Ale- manha, consideram possivel desenvolver uma fundamentagao juridica da pena partindo de conccitos essenciais do pensamento kantiano c descnvol- vendo-os, de mado que tais objesdes possam ser superadas. Examinarei essas propostas mais adiante. 3.1.2. Retribuicao juridica - HEGEL Da introdugio de Principios da Filosofia do Direito (1820) consta a frase lapidar que sintetiza a filosofia hegeliana: “O que é racional é real eo que & real é racional”"!, Com ela se expressa a superacao da perspectiva subjetiva da filosofia kantiana. A primeira parte da obra citada ocupa-se justamente do Direito Abstrato e é nela que se situa a questio do delito e da pena. No contexto do exacerbado idealismo construido por HEGEL, 0 delito nio ofende apenas a individualidade da vitima ou viola um impe- tativo moral, ele constitui uma violacao a propria ordem juridica. Dessa forma, aquele que pratica o crime, por exemplo um furto ou um homic{dio, no nega simplesmente o direito particular do ofendido sobre a vida ou a propriedade, mas nega o direito em geral, nega o direito de todos (inclusive o seu préprio) & vida ou & propriedade. Enguanto negagao do direito, o delito constitui uma contranorma é como tal, uma nulidade, uma negacio de si mesmo (assim, quem mata est enunciando que ninguém tem direito & vida, nem mesmo ele préprio). A pena ¢ a negacio da contranorma representada pelo crime, é, portanto, a negagdo da negasio, ou seja, a alirmacio do diteito. Nem crime nem pena devem ser concebidos em termos morais 121, G.W. Friedrich Hegel. Princpios dala Puosofa del Derecho. Barcelona: Echasa,2005,p. 59 (Tradugio live). subjetivos de mal e bem, mas como termos de uma relagio dialética entre 0 justo € o injusto, E como forma de recompor o direito, do qual todos parti- cipam, inclusive o criminoso, a pena dignifica-o como ser racional. Conforme HEGEL, “se considera-se 0 delito e a sua supresséo, ou seja, pena, simplesmente como um prejuizo, pareceré por certo como irracional querer um mal simplesmente porque jé existia um mal anterior. Nas diversas teorias sobre 2 pena —da prevengao, ameaga, intimidacao, corregaa, etecetera —esse carter superficial de malignidade é suposto como elemento primor- dial, e 0 que, a0 contririo, deve resultar, se considera de modo igualmente superficial como um bem. No entanto, nio se trata de mal e nem deste ou daquele bem, mas sim, de uma forma especifica, do justo e do injusto. (...) Nessa discussio a tinica coisa que importa é que 0 delito deve ser eliminado, no como a produgdo de um prejufzo, mas como a violagao de um direito.”** A teoria hegeliana é alvo de criticas similares aquelas dirigidas & teoria kantiana. Por um lado, a auséncia de finalidade socialmente util tornaria a violéncia da pena pura irracionalidade incompativel com os Estados laicos e democriticos. Por outro, critica-se a “metafisica” (no sentido pejorative) relagao de causalidade que une o delito e a pena em termes de vinculacio légica ne- cessdtia sob o signo do conceito de justica que, além de vago, é também indemonstrdvel (na medida em que nada permite constatar empiricamente que a pena de fato “neutralize” o crime). Por fim, hé a possibilidade de, a partir dessa ideia de contraposicao ou neutralizac2o, justificarem-se pelo talido punigdes exacerbadas e incompati- veis com a maioria das ordens constitucionais atuais. Nao obstante, assim como KANT, HEGEL também é a base para construgoes te6ricas modernas de relevo, como a teoria da prevencao geral positiva de JAKOBS (ja examinada) ¢ de todos os seus p1 que dele pouco dissentem. incipais discipulos 3.1.3. Neo-retributivismo anglo-sax6nico - HIRSCH Datei agora um salto temporal dos séculos XVIII € XIX paraa segunda metade do século XX. icio do século 122, GW.Predrich Hegel Prncpios dala Filosofia del Derecho, Barcelona: Edhasa, 2005, 185/186 (ra- dco ive) Oséculo XIX ¢ a primeira metade do século XX foram dominados pelo paradigma da prevengio, primeiso sob a forma de prevengio geral negativa e a seguir sob a forma de prevencio especial positiva, de modo que durante esse periodo os discursos retributivos, embora nfo tenham jamais desaparecido, permaneceram eclipsados. Foram as deformacées geradas pelo modelo preven- tivo, e ao final a propria faléncia desse modelo, que derama eles novo impulso. Nos paises de civil Jaw, 0 pensamento correcionalista encontrou con- traponto no principio da legalidade. Nos paises de common law, no entanto, © impacto foi mais radical, e degenerou, muitas vezes, em um altissimo grau de indeterminacao legal ¢ judicial das penas. Como explica HIRSCH, “a ideologia dominante nos Estados Unidos até 0 inicio dos anos secenta era a ideologia reabilitadora. Como € sabido, de acordo com esse ideal, nem a lei nem o juiz podem determinar © tempo exato de condenagio, jé que o tempo de pena depende da evalugio da pesoa condenada no interior da institui¢ao. Em consequéncia, a lei, em geral, se limita a estabelecer um marco muito indeterminado (que pode ser desde esta- belecer apenas a prisio, ou prisio de um anoa perpétua) para cada delito.” ‘A indeterminagao das penas, levada a cabo de forma dréstica no sistema anglo-saxo, nao apenas cria o problema da falta de limites ao poder do Estado sobre 0 cidadao, mas também conduza um quadro punitivo carente decoerén- cia ou proporcionalidade, haja vista a enorme disparidade entre condenagoes por delizos semelhantes, decorrente da visio pestoal de cada juiz ¢ das auto- ridades penitencirias, visio essa inescapavelmente turvada por preconceitos de toda sorte, tais camo raga, classe social do apenado ou quaisquer outros. Por isso é compreensivel que tenha sido justamente nesses paises (e no naqueles de tradicdo romano-germanica) que tenha eclodido com mais intensi- dade o movimento em prol da determinacio das penas, no bojo do qual situa-se a teoria neo-retributivista do just deserves, ou teoria do justo merecimento. Em 1976, ANDREW VON HIRSCH, um dos principais expoentes do retributivismo moderno, escreve Doing Justice™, livro que contém a pri- meira exposi¢ao sistematica da teoria do merecimento. Nessa obra o autor parte justamente da critica As condenagées inde- terminadas (indeterminate sentencing) e 3 falta de limites objetivos e prévios 123. Andnw Von Hirsch, Consurey Cabtgar Madeid Trott, 1098 p. 11/12. (Traduo livre) 124, Androw Von Heh, Doing lustice. 4a ed, Nova York: Hl and Wang, 198. ARAM OA PREVENAO para a intervengio estatal, ¢ prope um retorno ao paradigma da proporcio- nalidade entre o delito e a pena e das sentengas legalmente determinadas. A maior preocupagio desse modelo é a criagio de mecanismos que permitam concretizar o principio da proporcionalidade da forma mais ob- jetiva ¢ mensurdvel possivel. Para tanto, o autor desenvolve os conceitos de proporcionalidade ordinal (aquela que permitira equilibrar os crimes dentro de uma escala pré-determinada, guardando as relagdes de congruéncia, in- congruencia e espacamento entre eles) ¢ cardinal (que permite estabelecer os limites da prépria escala — conccito que, justamente por nio ser relacional, apresenta a maior dificuldade conceitual), que devem guiar os legisladores ¢ juizes como forma de atingir aquele objetivo. A partir da década de 80 alguns Estados americanos (sendo pioneiro © Estado de Minnesota) estabelecem comisses penolégicas com a incum- béncia de elaborar planilhas (sentencing guidelines) que, vinculando 0 tipo de crime aos antecedentes do agente, determinassem o tipo e a quantidade de pena. O modelo das guias penolégicas foi adotado a partir de entao por cerca de metade dos Estados americanos. ‘A proposta neo-retributivista é muitas vezes acusada de fundamentar teoricamente o movimento punitivista, e o espetacular aumento do encarce- ramento na sociedade americana a partir da década de 80. Contudo, penso que a critica néo procede. De fato, parte dos opositores do modelo reabilitador professavam um discurso autoritério e criticavam 0 correcionalismo por consideré-lo excessivamente brando (em virtude do largo e discricionario uso do pro- bation), ineficiente ¢ dispendioso. E. certo também que, em um contexto j4 contaminado pela crescente demanda punitiva, a proposta de maior dererminagio legal das penas tende a resultar na fixagio de penas deter- inadas mais severas. Mas 0 fato de ter sido cooptada pelos movimentos punitivistas no significa que a teoria da pena merecida seja em si ou tenha um potencial especialmente conservador ou autoritério. ‘Ao contririo, a teoria do merecimento nasceu da necessidade de conter o arbitrio estatal, que impulsionado pela sanha preventivista nao parecia en- contrar limites. Relata HIRSCH que Doing Justice foi escrito por requisicao do Comité para o Estudo da Prisio, um grupo fundamentalmente académico 125. Andrew Von Hirsch, Censurar y Castgar. Madd Trott, 1958, p13. cde tendéncia liberal, ¢ nese contexto o principio da proporcionalidade foi apresentado como um meio para restringir o poder de punir estatal e para limitar o emprego de sangées severas, na medida em que se defendia que as penas baseadas em predigoes de periculosidade eram inadmissiveis." De fato, a teoria proposta por HIRSCH é expressamente reducionista. Em Doing Justice o autor ja propunha uma escala cardinal em que a priséo estava limitada a crimes graves (0s praticados com violéncia bem como os casos mais graves de crimes do colarinho branco), e mesmo para esses a privasio da liberdade deveria durar até 0 maximo de 3 anos, exceto para 0 homicidio, em que 5 anos seria o limite”. ‘As penas no prisionais deveriam ser consideradas em si mesmas e nio como alternativasa prisio, de forma que, para grande parte dos delitos (leves ¢ médios) elas fossem a tinica opsio do juiz. Da mesma forma, defendia que o descumprimento dessas penas nao deveria conduzir & aplicagao da ptisio, salvo em casos extremos, notadamente aqueles em que o descump: mento consistisse em si mesmo na pritica de outro delito grave o suficiente para receber pena de prisio'™. HIRSCH propés abertamente, em face da realidade acual, uma po- litica de redusio gradual, continua e global de todas as penas, até que se atingisse o ponto de virada e comecasse a haver um significativo aumento na taxa de criminalidade™”, Ainda, a corroborara visio de que a teoria do merecimento tinha como fundamento a limitacao do poder punitivo, importa saber que as guias pe- nolégicas foram claboradas por comissdes especiais que, embora dotadas de forca legislativa, eram independentes do poder legislativo, justamente para cvitar a tentagao politica de clevar as penas a cada vez em que existisse uma onda de medo ou de indignagio popular. Ocorre que os poderes Icgislativos dos Estados, para atender as de- mandas do eleitorado ou contentar certos grupos de pressio, passaram a editar leis para aumentar a severidade das penas originalmente estabelecidas pelas comiss6es penolégicas para determinados crimes (sobretudo para os 126. Andrew Von Hirsch, Censurary Castigar. Maid Tot, 1998, p. 140. 127. Andrew Von Hirsch Censurary Castigar Madd: Tota, 1998, p. 80. 128 Maid: Tota, 1998, p. 100. 1. y Maid: Tota, 1998, p. 108 130. Andrew Von Hirsch. Censurary Castigar Madd: Tota, 1998, p. 185. BL. Andrew Von Hirsch. Censurary Castigar Madd: Tota, 1998, p. 13. PARA ALEN OA PREVENEAD crimes relacionados ao consumo, posse ¢ trifico de drogas), ¢ impe imposigio de penas popular (organizeda no movimento denominado true sentencing) € com apoio (inclusive financeiro) do Governo Federal, varios Estados aprovaram. leis que eliminaram a possibilidade de livramento condicional, impondo o cumprimento de 85% da condenacio™. intas da prisio. Além disso, também por pressio Tais movimentos de endurecimento, embora derivados também da critica ao modelo reabilitador, nao sao decorrentes ¢ nem guardam relagao necessiria com a proposta neo-retributivista, Na verdade estéo muito m alinhados & teoria da prevensio geral e especial negativas, e ao modelo neo-pre- ventivista que, como ja visto, encampa sem pudoresa neutralizagio de su) € grupos perigosos como fim legitimo da pena, rompendo com o principio de proporcionalidade e permitindo a punigio exacerbada mesmo para crimes leves, nos moldes das leis popularmente denominadas three strikes and youre ‘out, aprovadas em boa parte dos Estados americanos a partir da década de 90". cos Na realidade, é a ideologia da prevencio geral 0 que permite justificar a severidade dos castigos.* O problema da teoria da pena merecida tem natureza diversa, ¢ € 0 mesmo que constitui o “calcanhar de Aquiles’ de todos os discuisos reti- butivos anteriores: a dificuldade de fundamentacio. Pois ou se admite um fundamento inteiramente autorreferencial e metafisico (como em KANT e HEGEL), ou deve-se procurar uma razo externa. Para HIRSCH, 0 castigo expressa reprovacao e por isso deve ser pro- porcional ao grau de reprovabilidade do comportamento delitivo. Mas uma tal afirmacio suscita novamente as perguntas: Por que se deve reprovar? Por que se deve fazé-lo com a pena? Eis a resposta de HIRSCH: “A censura considera a vitima. Ela no so- mente foi lesionada, mas ofendida pelo ato culpavel de alguém. Por isso nao € suficiente reconhecer que a lesdo ocorreu e expressar simpatia (como seria apropriado se alguém tivesse sofrido um dano em uma catéstrofe natural). A censura, ao dirigir 2 desaprovagio & pessoa responsivel, reconhece que 0 dano 4 vitima ocorreu por culpa do outro. A censura também considera 0 causante, Transmite-se a ele uma mensagem que faz referéncia a seu ato, a 132. Ardrow Von Hirsch Censirary Casigar Madrid: Trot, 1098, p 13-14 133, Andrew Von Hirsch Censurary Castigar. Madrid: Trota, 1998, 134, Andrew Von Hirsch Censurary Castigar: Madi: Troua, 1998, p (Teadugio tive). saber, que culpavelmente lesionou alguém ¢ que se lhe desaprova por té-lo feito, Se espera algum tipo de resposta moral por sua parte — uma mostra de preocupasio, o reconhecimento do dano ou um propésito deemenda—uma reagao diferente seria, se a censura é justa, por si s6 criticivel.'> A resposta é, a meu ver, insuficiente. E suscita novas indagagoes: ainda que se reconhega quea reprovacao das faltas é um “dever moral”), por que €o Estado que deve reprovar? E por que deve reprovar através da pena? Se a questio é io somente demonstrar censura, nao seria um indice tio ou mais claro de reprovacio uma enfitica e dura admoestacao piiblica? A falta de respostas a essas perguntas obriga HIRSCH aadmitir, junto &finalidade retributiva, uma finalidade preventiva geral & pena, concebendo portanto uma fundamentacio dual do castigo penal: “A funcao preventiva da sangao consiste, penso, em prover razes de prudéncia; razes que estio vinculadas e complementam as raz6es normativas expressas na censura penal. O Direito Penal, através da censura implicita em suas sang6es, expressa que aconduta é m4 e com isso provém ao agente razes morsis para desistir. No entanto (dada a falibilidade humana) ele pode se sentir tentado. O que o de- sestimulo da prudéncia pode fazer é prover uma raz adicional — a prudéncia —para resistir tentacdo."" O que conduz a novos problemas, pois como ja se viu, dentre todos os defeitos das teorias preventivas talvez o principal seja que clas sio naturalmente incompativeis com a idcia de proporcionalidade entre a conduta e a sangio, o que demanda do autor considerivel esforso para explicar como um escopo de prevengao pode ser admitido no bojo de sua teoria sem o risco de se converter em um Cavalo de Troia. Desta forma, a tese neo-retributivista, tal como apresentada, parece inadequada nao por apresentar potencial especialmente autoritério ou fun- damentar o endurecimento penal (risco inclusive minimizado por ela), mas por carecer de uma fundamentacio auténoma consistente e que prescinda do recurso & consecucao de questiondveis objetivos morais ou normativos de cardter preventivo. 3.1.4. Neo-retributivismo romano-germanico - ZACZYK Como se viu, nos paises de civil aw os efeitos da disseminagao da perspec- tiva correcionalista no foram sentidos com a mesma crueza que nos Estados 138. Andrew Von Hirsch Censurary Castigar. Madd: Tota, 1998, 9.36, (Tradugo lvre). 136. Andrew Von Hirsch, Censurary Castiga: Madd: Tota, 1998, 9.39, (Tradugo livre) Unidos ¢ na Inglaterra, Ainda assim, a percepeio das filhas das tcorias relativas dos seus efeitos (por exemplo, a confusio entre periculosidade e culpabilidade que subjaz dadocao do sistema duplo-bindrio na Alemanka) abriu espaco para uma retomada do discurso retributivista, alicercado sobre a construcio filoséfi- ca legada pelo idealismo alemao de viés kantiano e hegeliano. Exporei a seguir a posicio de ZACZYK, destacado representante dessa vertente na atualidade. ZACZYK apoia sua concepsio sobre a filosofia kantiana, sobretudo sob o aspecto da constituicio e do desenvolvimento da ideia de liberdade. © imperativo categbrico moral (“age s6 segundo maxima tal que possas a0 mesmo tempo querer que cla se torne lei universal”) conduz & nogio bisica de liberdade ou autodeterminasao, na medida em que o sujeito deve obedecer a uma lei da qual sua propria razao é legisladora, Para ZACZYK, alliberdade é © tinico direito inato dos homens enquanto seres racionais. Ocorre que, em um mundo finito a liberdade é potencialmente violenta, pois a autodetermi- nagio de um exclui a dos demais. Por isso, os homens devem entrar em um. estado civil, ou estado de direito piiblico em que cada um possa participar e ter assegurado em scu contetido o dircito & liberdade. © delito consticui uma leséo & liberdade alheia, e enquanto ral, pertence a um “cstado de natureza” (posto que o estado de dircito piblico é a situasio de garantia da liberdade de todos). Mas, por outta lado, como acontecimen- to interpessoal entre dois sujeitos racionais e que possuem a liberdade como direito inato, o delito no é um mero fato empitico, mas tem em si uma na- tureza juridica ou um carter juridico provisério, ou seja, é jurfdico mesmo como negacio. Ocorre que uma reacio 20 delito nao é possivel no estado de natureza, porque entio resultariaindeterminada em seu fundamento e medida, mas deve necessariamente set uma reagio juridica. Por isso, o delito deve ser considerado como o ponto de conexio entre 0 estado de natureza e o estado. de direito piblico™”. E 2 vinculacdo entre o crime e a pena que promove essa transigo em que os direitos provisérios do estado de natureza tornam-se pe- remptérios, permanentemente vilidos e vigentes, no estado de direito puiblico. Segundo ZACZYK, empregando as categorias kantianas alli penal é um jufzo sintético a priori, que vincula dois termos, ¢ 0 terceiro elemento que promove essa vinculasao é justamente o estado de dircito puiblico™. 137. Rainor Zaczoe Libertad, Derecho y Fendamentaciin de la Pena, Rogoté: Universi Fxterady de Colaba, 3010, p. 125. 138, Rainsr Zaczyl, Libertad, Derecho y Fondamentaciin de la Pena, Bogot& Universidad Externado do Colaba, 2010, p. 127 TEOIA DA ZENA: SACRFIEIO VINGANGAE DIRSITO FENAL O estado de dircito puiblico é constituido pelo conjunto de leis para um povo e que representam a vontade da comunidade & qual pertence proprio delinquente, de forma que as lesoes que ele inflige aos outros, inflige a si mesmo. E essa repercussio retroativa é revelada de maneira concreta pela lei penal, ja que a pena constitui exatamente uma redugo correspondente da liberdade do agente". Esse raciocinio conduziu KANT & defesa da lei de taliéo, como expressio radical dessa relagio. ZACZYK, no encanto, sustenta que, a partir do préprio modelo kantiano, a ideia de proporcionalidade nao pode ser interprerada desse modo. Segundo ele, ”o principio da retribui¢io ndo pode ser entendido como um principio material, porque isso reduz o problema 2 um acon- tecimento fisico. Nao se trata de compensar com a pena a morte de um ser humano com a morte de outro ser humano. A pena unicamente pode ser entendida como uma instituigao juridica razoavel € por esse motivo 0 principio da Talido s6 pode ser entendide como um principio formal. A lesio a0 direito contida na morte de outro ser humano deve ser superada através da instituicao da pena.” ZACZYK, portanto, fundamentando-se sobre premissas kantianas, de- senvolve-as para além de KANT, chegando, em alguns pontos, a conclus6es contririas a ele. O foco de sua teoria, de fato, é 0 papel central da liberdade do ser humano, que por um lado é incompativel com todas as teorias pre- ventivas, ¢ por outro também o é com algumas derivagoes do préprio KANT (como, por exemplo, a defesa da pena de morte). E interessante observar que as criticas as teorias retributivas, no mais das vezes, sio ataques enderecados diretamente As suas versées kantiana ou hegeliana, com o que se faz a teoria retroagir duzentos anos, como sea partir de KANT e HEGEL nio tivesse havido avangos ¢ desdobramentos. ROXIN, por exemplo, defende que a teoria da retribuicéo néo pode se sustentar cientificamente, pois “o Estado, como instituicao humana, no écapaz de realizar a ideia metafisica de justia nem esté legitimado a isso”. Prossegue afirmando que “a ideia de que se pode limitar ou suprimir um mal (ods de uma crenga ou fé, A qual o Fstado nio pode obrigar ninguém, a partir )) causando outro mal adicional (o sofrimento da pena) sé € suscetivel 159, Rainer Zaczvk. Liverta, Dercho y Fundamentacin de la Pen. Bogot: Universidad Exernado de Colombia, 2010, 9 127 140, Rainer Zaczvk. Livertaé, Dercho y Furdamentacin de la Pena. Bogoti: Universidad Exernado de Colombia, 2010, 128. (Tradudo ive) do momento cm quc jé mio recebe 0 seu poder de Deus, mas do povo.”"# Entendo que as criticas que rechagam de plano e com um 36 golpe as teorias retributivas modernas devem ser vistas com reservas. A uma porque a tio decantada base metafisica (a prépria conotagio modema e pejorativa do termo metafisica, utilizado quase que como sindnimo de mistica obscurantis- ta, consiste em um equivoco conceitual) e indemonstrivel ndo é em absoluto exclusividade das teorias absolutas. As relativas também se apoiam em uma premissa assaz indemonstrivel, que é a crenca em que o Direito Penal possa cvitar a pritica de atos de agresso. A duas porque vinculam ditas teorias a um modelo religioso, que embora fosse presente na teoria kantiana, nao é condicio de validade das teorias retributivas, tal como hoje sio desenvolvidas. Ea trés porque as consequéncias mais indesejaveis da teoria kantiana, a seve- ridade das penas e o encampamento irrestrito da lei de talido, por exemplo, também nao sao decorréncias necessarias a partir das premissas que suportam a toria retributiva, como também ja visto. A falha que a proposta de ZACZYK herda da teoria kantiana, e que considero realmente insuperdvel, é que nio se logra esclarecer, sequer meta- fisicamente, a vinculacao necessiria entre crime e pena Como admite o préprio ZACZYK: “Segundo Kant, a lei penal é um imperativo categérico. Essa formulacio é surpreendente, porque Kant in- troduziu o imperative categérico nas obras fundamentais para a filosofia priticae o fez no singular. O imperativo categérico é um enunciado que rege incondicionalmente e que converte uma acio em dever. Nessa definigao, 0 imperativo categérico nao é simplesmente transladavel ao direito.”"* De fato, em Fundamentacdo para uma Metafisica dos Costumes KANT € explicito quanto a isso: ‘Assim pois o imperative categérico € Ginico e sem divide é esse: age somente segundo aquela maxima em relagio A qual possas querer que se converta em lei universal.”"® Dessa forma, nao se pode transportara relagio direta entre agio devida € 0 imperativo categérico (age como se a maxima de tua acio pudesse ser universalizada), que é uma relacdo que se dé no ambito interno do sujeito, para a relagao entre crime e pena, ou seja, entre dois fatos externos ¢ cujos 14. Cas Roxn, Derecho Penal parte gener. 2a ed. Madi: Civits, 1997, 4, Traut) 142, Rainer Zaczy Libertad Derecho y Pundaeniacin de s Pena. Boge: UniveideExiemado de Colombia, 200, p.105-(Trad ine). 143, Kant Fundamentacibn para une Metafsica de las Cosumbves, Madrid: Alianza, 2008, p. 104. (Tradu- ie livre sujeitos séo distintos, Portanto, como essa lei fundamental da razéo pura pritica, como é chamado 0 imperativo categérico em Critica da Razéo Pritica, nio admite reproducio nem multiplicacao alguma, em Metafisica dos Costumes deve-se entendera formulagao de maneira diferente: alei penal é uma maxima priti- ca que se impose incondicionalmente, ou seja, é um juizo sintético a priori." Entretanto, mesmo que a lei penal seja um jutzo sintético a priori (posto que é fruto da razio), no qual esto unides o fato e a pena, nao decorre que haja uma relagao necesséria entre esses dois termos, ou pelo menos nao se cxplica suficientemente ewa relagio. Como admite ZACZYK, “quando Kant fala da lei penal como um imperative catepérico, o qual, no obstante, tem que ser um imperative juridico-categérico, isso mostra que através dele uma agio externa (0 fato) se vincula incondicionalmente com outra ago (a pena). No entanto é necessétia uma fundamentagao auténoma dessa vinculacio porque o conceito de pena nio pode ser derivado apenas do conceito de delito.” “Em outras palavras, que faz.com que a pena seja predicado aprioristicamente (universalmente) vilido para o sujeito representado pelo delito? problema da vinculasao entre delito e pena pode ser inicialmente enfrentado por exclusio: “ndo reagir a0 fato esta descartado, pois para a co- munidade juridica ficaria claro que o estado de paz existente antes do fato na verdade mio estava garantido. Vingar o fato seria uma simples reacio emo- cional incompativel com a razio pratica. lgualmente seria impensivel tratar 0 fato apenas como um acontecimento entre o autor ea vitima e deixar-lhes aliberdade de regular novamente a reasio pois isso desconheceria que o fato punivel nao perturba simplesmente uma relagio ideal de duas partes que se pode compensar, como acontece com o dieito civil”, No entanto, nao se esclarece qual é a efetiva fundamentagao para a necessidade de reagio penal desencadeada pelo fato. ZACZYK conclui: “As dificuldades que o préprio Kant encontrou na determinagio da medida da reagao que deve ser imposta mostram que nessa parte do processo de reflexio 144, Rainer Zaczsk. Libertad, Derecho y Fundamertacir de ls Pens. Bogot: Universidad Fxtemado de (Coloria, 2010, p. 124 Trad lors) 14S. Rainer Zaczsk. Libertad, Derecho y Fundamertacix de la Pen Bogot: Universidad Extemado de (Colombia, 2010, p- 108, Trad livre), 146, Rainer Zaczsk. Libertad Derecho y Fundamertacix de ls Pen. Bogot: Universidad Extemado de (Colombia, 2610, p- 149-130. (Traduydo le), CA2ITULO — PARA LEM DA PREVENCAD ainda no se alcancou total clareza; tampouca se determinou completamente a relacio basica entre o fato ¢ a reacéo."” E esa é uma pergunta que efetivamente a proposta de ZACYZIK nao logra responder. 3.2, TEORIAS ECLETICAS - ROXIN A reiterada percep¢ao dos defeitos de todas as teorias preventivas deu origem a teorias de compromisso, que buscam justificar a pena a partir de miltiplas finalidades preventivas, agregando-lhes inclusive, por vezes, também um aspecto retributivo que lhes possa servir de limite. O principal representante da teoria ecktica € CLAUS ROXIN, de forma que me ocuparei aqui da teoria tal como por ele concebida. Como se sabe, a questo da finalidade da pena tem importancia cen- tral no sistema penal funcionalista concebido por ROXIN, cujos esforsos dirigiram-se justamente & construgao de uma teoria do delito a partir da perspectiva da politica criminal, vale dizer, a partir dos fins ou das fiungées do Direito Penal. Por isso mesmo, desde o inicio de sua trajetéria académica, na década de 60 do século passado, até os dias de hoje, essa questao tem sido objeto privilegiado de sua investigagao, cujo resultado é uma construgae que cocupa lugar destacado entre as modernas teorias da pena. No hoje classico texto Sentido ¢ Limites da Pena Estatal', publicado pela primeira vez em 1966, ROXIN constata que “se reduzirmos a ilimitada literatura filosdfica e juridica &s suas proposicées fundamentais veremos que até hoje nio propuseram mais que trés solugdes”™?, sendo elas retribuicio, prevencio especial positiva e prevencio geral negativa. E a partir da andlise critica dos fundamentos e deficiéncias desses modelos clissicos, edifica sua teoria unificadora. Ao logo de décadas de pesquisa e reflexio, tanto o ponto de partida quanto as linhas centrais da concepgio de ROXIN permaneceram essen- cialmente inalteradas. No texto publicado em 2001 nomeado Cambio en la teoria de los fines da la pena’, continua a afirmar que ‘em que pesem todas as 17. Rainer 2aceyk. Libertad, Derecho » Pundamentacién de la Pena. Boge: Universidad Dxtrnado de Celomba, 2010, p. 51-(Traduo lies). rn Problemas Fundanentai de Direite Penal 3 ef. Lishoa, Bi. Veg, 1998, p15 047 149, Clu Roxin, Problemas Fundamentais de Dircito Penal, 3. el Lisboa, Ed. Vega, 1998, p. 16 150, Chu Roxin, Cambo en i teoria des fines dels pen (2001) in: La Teoria eel Delt en a discusion actual Lim: Gre, 2007, p. 7 TEORA DA ENA: SACRFICI VINGANGAE DIREITO PENAL modificactes fundamentais da constitwicdo estatal e das relagbes socials, hd séculos sempre tem sido oferecidas as mesmas tis concep;des que disputam predominio na discusiio cieniifica, na legislagao e na justica penal” para, ao final, expor sua prépria teoria eclérica, apresenrando-a agora com ainda mais convicedo, porque iluminada pelo desenvolvimento juridico e social de novas formas de sangao, Para ROXIN, a finalidade do Direito Penal é garantir as condigies minimas de convivéncia social, e apenas quando outras medidas menos agressivas nao forem capazes de assegunt-las (protepio frigmentdria e subsididria de bens juridicos) Significa que, em primetro lugar, a finalidade legirima do Direito Penal é garantir que se mantenham as condicées minimas para a cocxisténcia pacifica entre os individuos, coexisténcia que estaria irremediavelmente ameagada se fosse permitido que cada um lesasse, a seu bel prazer, os intereses dos outros. Para ‘ROXIN, se fose passivel matar, lesar a integridade fsica ou subirair os pertences de alguém, a consequuéncia seria uma guerre desesperada de rodes consra todas, a aiutojustiga, a anarquia e a inseguranga.'* A fingao do Direito Penal enquanto protecdo fragmentdria e subsididria de bens juridicos opera através da ripificacao de condutas as quais é asociada uma pena. De forma que a finalidade da pena hd de estar alinbada com a _fingéo do Dircito Penal. E necessdrio que se refaga, enudo, muito brevemente, o camino wrilhado por ROXIN, desde a critica das teorias cldssicas até a construséo da teoria unificadora e sua “modernizagio”. Segundo ROXIN, a teoria retributiva, apesar da vantagem de impor ao poder punitive o limite da culpabilidade, desatende a fungao atribuida ao Direi- 10 Penal (qual seja, a inibigao de comportamentos socialmente nocivos) ao exigir «4 punigéo do infrator mesmo em situagées em gue, “no caso concreto, a puri nio é necessdria para a preervacao da paz social, apresentando até mesmo efeitos socialmente nocivos, o que contraria a fungao do Direito Penal, que se limita a provegao de bens juridicos™*. Em segundo lugar, a ideia de revribuigdo ndo transmite para a execugao penal nenhum conceito apropriado a possibilitar ao agente uma vida livre de pena no futuro, apenas conduz ao ressentimento e a in- sensibilizagdo, favorecende, portanto, a reincidéncia, ao inués de preveni-la. Por 151, Claus Ronin, Como en acai de los ines de a pon (2001) In: Teta del Deis on ican actual, Lima Gre, 2007, p11 (radu live) 152. Claus Rani, lurodigdo a» Dinato Peal ea» Dns Procesal Perl. Belo Hovis: Del Rey, 2007 9.06 153, Claus Roxin.Intrducdoao Drcito Penal ao Dirste Processual Penal. Belo Horizonte: DelRey, 2007, pio. CAOITULO - PARAALEM DA PREVENCAO fim, a abordagem puramente ideal, metafisica, da teoria rerributiva, coniraria « fungio social da pena. A teovia da prevencéioespecial é.a que melhor se compatibiliza com a funcio social do Direito Penal (tal como desenhada por ROXIN), na medida em que concebe, como finalidade da pena, impedir que 0 agente pratique novos crimes, seja através da neurralizagdo pelo aprisionamento, seja pela intimidagao (pre- vengéco especial negativa), ou pela cuamada ressocializagio (prevengéo especial positina). Contra ela levantam-se duas criticas importantes: o perigo das penas exacerbadas ou ilimitadas (mas que podem ser consideradas necessdvias para a prevencéo de futures delitos) ou, no extremo oposio, a justificaso de situagies de ‘absoluta impunidade. Exxplica-se: quando néo existsse nenhum perigo de reinci- dincia (imagine-se um homicidio pratica em uma situacdo de conflito especifica ¢ irrepettvel) 0 criminoso deveria ficar impune, 0 que é dificilmente aceitdvel, segundo ROXIN, considerando-se as pessoas lesadas e a coletinidade. Sobre a teoria da prevenéo geral, tanto negativa quanto positiva, também cla estd em conformidade com a fungao social do Direito Penal, a tutela subsi- ditria de bens juridicos, com a vantagem de explicar por que a punigdo seria necessiria, mesmo que néo houvesse 0 visco de reincidéncia pessoal do infrator. A critica que remanesce é a mesma langada & prevengéo especial: a ideia de prevengao geral ndo fornece uma limisapdo da medida da pena. O imperative (preventive pode condusir a penas draconianas e cada vex mais duras, incompati- ‘veis com os principios de um Estado de Direito liberal. Além disso, a execusito de uma pena que visasse a intimidagéo da sociedade infringiria a propria dignidade /umana, e tenderia menos it socializagdo do que @ prépria execugéo resributiva. Argumenta-se também sobre a imposibilidade de qualquer comprovasao empi- rica da oficdcia da prevengdo geral negativa: é duvidosa a indemonstrdvel relagao entre a pena estatal ¢ a diminuigéto da violencia. A partir dessas eriticas ROXIN concebe sua propria teoria como uma sintese entre prevengiio e justia, como wma teoria di unio, segundo a qual a pena sb é Legitima quando é preventivamente necesidria, ¢ ao mesmo tempo é juste’, sendo 154, Claus Renin. lntodaydo ao Dis I, Bo Horionte: De Rey, 2007 TI Acritca no extant, pares inconsistent em fz da fu Rexin ao Dire Pen {poteqinsubsiira de bens jrdics). Desa perpetiva, atendor nto + culpbiidade quanto 8 fing de tutta de bens jurdics do Direite Penl, qual oinconvesientede deixar spuneo assassin? petit cae me ore Rog once Ce ‘idénciapesaal doar: nem de cena pelacoletiidade, b pe ser comvincenement expicado poruma ors rt 155. Class Rin, Cambio en seo de os fines dea poms (201) In: La Teoria el Deltona dicusin sch Lima Grjle, 2007p que nessa relagdo tem prepondenincia e exerce papel postivo a prevengao (sobretudo aespecial), enquuanto que a retribuicio tem papelsecundario e negativo (limitagé). A weoria da unio consuufda por ROXIN softe duas criticas principais: A primeira, por tentar reunir artificialmente elementos heterogéncos ¢ oriundos de sistemas jusfilosdficos diversos (prevencéo geral, prevencio especial, retribuigao). ROXIN responde a essa objesio afirmando que 0 ponto de conexio entre essas figuras é uma teoria do estado democratica e respeitosa aos direi- tos humanos. E que, nesse contexto (estado democratico de direito), uma justificagéo cumulativa é a iinica que pode fundamentar suficientemente jus puniendi estatal."% ‘A segunda critica é de que uma teoria da unio nao é capaz de sanar, por adicio, os defeitos das teorias preventivas individualmente consideradas. Em resposta a ela, ROXIN procura resgatar e defender uma diversifi- cagio ou modemizagio dos aspectos preventives que compoem os fins da pena. Aideia é de que 0 avango frutifero da teoria da pena pode advir menos dos altos niveis da teoria abstrata (que se mantém essencialmente a mesma, desde o Iluminismo), do quedo olhar sobre a realidade social e sobre as novas formas de sangao. Dito de outra forma, afirma que os problemas apresenta- dos pela teoria preventiva residem mais na forma como ela é concretamente implementada do que na sua conceituagio teérica. Quanto & prevengio especial, que teve posigao proeminente na teoria da pena do pés guerra, seu descrédito atual deve-se, segundo ROXIN, a0 fracasso da pena privativa de liberdade como instrumento de ressocializasio. Nada disso, no entanto, depie contra a finalidade preventiva especial em si ‘mesma, mas sim contra o uso amplo e disseminado da pena de prisio. Por isso, segundo ROXIN “nio é uma correta via politico-criminal desqualificar a prevencao especial. Ao contrério se recomenda, precisamente por razées de prevencio especial, evitar a privacio da liberdade tudo 0 que permita a sua compatibilizacéo com as exigéncias de prevengio geral. Na pratica, significa que tem que ser introduzidas alternativas a privagao da li- berdade e outras medidas sociais promotoras de uma ressocializagéo ou pelo menos que nao a prejudiquem.”!57 136, Claus Roxi, Cambio en la tori de los fines de la pena (2001) In: La Teoria de Delite en ladscusion actual Lima! Grey, 2007, p. 73. (Tradugo lve) 157. Claus Rosia, Cambio en la teora oe los fines dela pena. In: La Teoria del Delto en la iscusion actual CAPITULO 9 ~ PARAALEMLOA REVENGAO ‘Nessa linha, as penas alternativas & prisio, como por exemplo a com- pensacéo da vitima por parte do autor eo trabalho comunitario, oferecem muito mais oportunidades preventivo-espociais que as privagbes da iberda- de." Além disso, na medida em que implicam um compromisso ative do condenado, recolocam-no como parte ativa da realizagao do fim da pena, 20 invés de objeto ao qual cabe apenas suporté-la passivamente, o que também constitui uma relevante mudanga de perspectiva.'? Quanto as criticas langadas & teoria da prevengio geral, ROXIN anota que a prépria substituicao da ideia de prevengao geral negativa (enquanto inti- midagio— nio demonstrivel - dos cidadéos potencialmente criminoses) pela de prevengao geral positiva (enquanto sensagao de seguranga e de inquebran- tabilidade do ordenamento juridico, transmitida a todos os cidadios figis a0 direito) j& configura uma mudanga e um avango na teoria da prevengo geral. Além disso, segundo ROXIN, no imbito da prépria prevengio geral positiva pode haver uma maior diversificagao, que corresponde & jé comenta- da nogao de prevencio geral positiva limitadora ou integradora. Nessa linha, © conceito de prevengao geral positiva passa a encampar trés efeitos distin- tos: 0 efeito pedagdgico, prestando-se o direito penal a deixar claro quais as regras basicas cuja violacao € inaceitavel; o efeito da confianga, gerado pela percepgao de que © Direto sc impés € prevaleceu; € 0 efeito de pacificagio, na medida em que a resolugio do conflito através da intervengio estatal restabelece a paz juridica.'® Nio obstante essa possibilidade de diversificagao da teoria da prevengio geral, com importantes repercussses politico-criminais (como impor o limite da pena justa, j4 que as penas draconianas sio prejudiciais para o efeito de confianga e pacificagio juridica da pena), ROXIN defende a preponderancia do papel da prevencio especial sobre a geral, e assume que a primeira tem uma relacdo muito mais estreita com a pena, ji que esta vinculada a um delito Lim: Gril, 207 9.757% Cbg) ee eens iso seas gees ge nn pn ora mm evi gneiss eee ee eee eee ee cuneate ig oe Pome ee re et ia co ge ce See ars ms ies eins condo pups nem ene ces Sa Ss ee 2 on fc ap La eds Dean a so, rete ci sep ep La ers Dia cin se ee tee) jf cometido e a um autor concreto. Jé a prevengio geral pretende ser efetiva antes do cometimento do delito, e impedi-lo. Essa atribuigao, a de prevenir delitos futuros, na realidade sé em pequena parte pode ser desempenhada pelo Direito Penal." Isso porque, como reconhece ROXIN, a maior eficécia preventiva se dé como controle social realizado pela policia e néo com a ameaca abstrata de pena: “O meio mais efetivo de prevengio geral nao é o Cédigo Penal ou a justica penal, masa densidade do controle, quer dizer, uma vigilncia mais intensa da populagio. (...) Para a tco! dos fins da pena resulta disso 0 en- tendimento de que a prevengio geral também pode alcangar-se com mérodos extrapenais (nao somente de controle, mas também, por exemplo, de pedago- gia social, ou assegurando-se tecnicamente os objetos de perigo), de maneira que uma politica criminal eficaz tem que ir muito além do Direito Penal.” ‘A defesa da teoria eclética vem ainda sustentada por outra ideia: 20 lado da diversificacéo das manifescagées concretas das clissicas teorias da pena, também ha a diversificagio da énfase que recai sobre cada uma delas nas diferentes etapas da realizacdo do Direito Penal." ‘Assim que, na etapa legislativa da cominagio de pena aos delitos, 0 acento recai sobre a prevengio geral, tanto negativa (enquanto intimidagao), quanto positiva (enquanto aprendizagem): “As cominagées penais tém, enquanto nao se tenha produrido o delito, uma fungio exclasivamente preventivo-geral. Nese estégio, entre todas as formas de apaticao da prevencio geral, somente atuam o (escasso) efeito intimidatério ¢ o efeito da aprendizagem.""4 Como ambas as fungies exigem que os tipos sejam compreensiveis e definidos, revela-se a estreita ligacao entre a prevengio geral e 0 principio da legalidade (nsllum crimen sine lege), sublinhada ja por FEUERBACH. ROXIN reconhece novamente, no entanto, que as necessidades preven- tivo-gerais presentes na cominagio das penas ultrapassam em muito o ambito do Direito Penal. For um lado, como jé dito, a fungao da prevencio geral negativa é desempenhada com mais eficiéncia pela policia c pelas instincias 161. Claus Roxin, Cambio en laeoriade los fines dela pena In: La Teoria del Delo en i discus actu Lime: Geile, 2007, . 80. 162. Claus Roxin, Cambio en lacoriade los fines dela pena In: La Teoria del Delio en i discus atu Lima: Guy, 2007, p. 80/81 (Tladuyso lv). 163. Claus Roxin, Cambio en laeoriade los fines dela pena In: La Teoria del Delo en i discus actu Lime Grey, 2007p 82 Claus Roxin, Cambio en la tcoria de los fines de la pena. In: La Teoria del Delo en a discusién actu, 2007, 82. (Tradeyso Inte). FARA ALEM OA PREVENCAO de controle social do que pelo suposto temor despertado pela ameaca penal. Por outro lado, quanto & prevengao geral positiva, a aprendizagem das regras elementares de ética social no pode ser deixada 4 mera leitura do Cédigo Penal: a escola deve incluir em seu plano pedagégico 0 ensino de compor- tamentos socialmente competentes, © que pode prevenir delitos de melhor maneira que os esforgos posteriores da execugio penal, que com frequéncia no so capazes de compensar os déficit sociais."® Na etapa judi de prevencio geral quanto a de prevensio especial, embora a énfase em uma ou outra possa variar segundo a gravidade do delito. al de imposicio das sangdes acentuam-se tanto a fungio O fato é que nessa etapa configura-se uma relacio inversamente pro- porcional entre a gravidade do crime e as necessidades de prevengio geral (nos aspectos de confianga e pacificagio): quanto mais grave o delito, mais a prevencao geral exige que a pena corresponda completamente a medida da culpabilidade. Ao contrario, quanto a delitos médios ou leves as necessidades de prevencio geral sio menos exigentes, de modo quea san¢ao pode quedar abaixo dos limites da culpabilidade, por razGes de prevencio especial: “E que os delitos menores perturbam a paz social de maneira comparativamente leve € uma reintegracao social do delinquente serve mais & seguranca publica do que um rigor promotor da reincidéncia.”" Por fim, na etapa da execugio da pena o acento recai apenas sobre a prevengo especial, enquanto fungao de ressocializago, abandonando-se por completo os efeitos preventivos gerais, especialmente a intimidasao, que em épocas passadas imprimiam 4s penasa fei¢ao de suplicio publico. ‘Trata-se, porém, de fungio de dificil cumprimento, como reconhece o préprio ROXIN: “Certamente, devido aos déficits de realizagao ja men- cionados e devido aos prejuizos de toda pena privativa de liberdade, até 0 momento nio se pode alcangar, na medida desejada, a finalidade da execugio penal. Isto levou a que na Alemanha somente em 6% das condenacées se estabeleca 0 cumprimento de uma pena privativa de li- berdade e a realizagao seja praticada mais evitando do que executando a pena privativa de liberdade.”"” 165. Claus Rosin, Cambio en [a teora de los fines dela per. In: La Teoria del Delt ex la discusin actual Lins: Grjley, 2007p 83 166. Claus Rosin, Cambio en la teora dels Fines dela per. In: La Teoria del Delt ex la discusin actual Lins: Grjley 2007-9. 83. (Tradugaolivre) 167. Clans Roxin, Cambio en J teora de ls Fines dela per. In: La Tear del Dalit ex la discusién ctu Lina: Grjley, 2007,p.85.(Tradugaolivre) Nio obstante, segundo o autoré ainda importante que se empreendam sérios esforgos de ressocializagao, especialmente aos presididrios que cam- prem penas de longa duragao."** Malgrado a importincia e consisténcia da teoria de ROXIN, 0 fato é que seu raciocinio multifuncional nao logra resolver os problemas levantados em relagao as teorias isoladas. Na pratica, a rcuniao das teorias, ao contidrio de superar os seus defeitos, potencializa-os, na medida em que, aceitas todas aquelas finalidades (intimidar, reforcar valores, reabilitar 0 cidadao etc) os riscos do descontrole da ingeréncia estatal sio maximizados. E esse exatamente o cendrio que se tem atualmente: aumentam-se as penas em abstrato a pretexto de prevencio geral, criam-se empecilhos para © gozo de dicitos da execugio em nome da prevencio especial, pune-se 0 autor de crimes pontuais e de dificil repeticao em nome da justica, e dessa forma a demanda punitivistaacha-se permanentemente justificada. O hones- to reconhecimento das limitagées inerentes & prevencao geral (cujos efeitos sio escassos) e especial (cuja realizacao até hoje nao se alcancou) nao impede que tais fundamentos, uma vez que legitimados no bojo da teoria da pena, continuem produzindo 0s efeitos nocivos j4 apontados. Ao fim e ao cabo, 0 fato é que a teoria eclética de ROXIN continua acreditando (ainda que essa renga seja agora turvada pelo dado de realidade) nas prevengOes geral e espe- Gal, e considerando ambas como objetivos legitimos e posstveis (em alguma medida) para a pena, reativando, portanto, discursos j4 deslegitimados. 3.3. TEORIA GARANTISTA - FERRAJOLI Em linhas gerais, e sem a pretensio de esgotar um assunto inesgotivel, as principais teorias justificacionistas so essas até aqui expostas, divididas em preventivas, retributivas e ecléticas. Quanto 4s teorias preventivas, pretendi demonstrar que, logo abaixo da superficie do discurso oficial ou do imaginario popular, o Direito Penal jamais se prestou a prevengio de delitos futures (da forma como preconizam aquelas teorias), seja pela via da prevencio geval, seja pela via da prevengio es- pecial. E, se por um lado tais teorias respondem 3 pergunta ‘por que punir?” com objetivos imorais ou irtealizaveis (ne peccetur), de outra mao ¢ por via de consequéncia a resposta 3 pergunta “como punir?” ganha uma dimensio 168. Cla Rin, CHa es a tte I Sa de la eta ns La Tora del Dein a nai hal ima: Gril, 2007, p85, CCAPMULO 3 — PARA ALEM OW PREVENCEO ilimitada, autoritaria e maximizante. Jas teorias retributivas ou absolutas padecem do incontornivel vicio da peticao de principio, e fornecem como justificagao aquilo que deveria ser justificado. Embora cheguem a uma resposta mais ruzodvel i pergunta “como punir?”, fazem-no As custas de deixar inteiramente irtespondida a questo “por que punis?” (quia peccantum), remetendo-a 4 questio, que sequer é formulada, de “por que proibir?”. Nesse ponto, a teoria da pena relacionada ao sistema garantista de FERRAJOLI, exposta com detalhes em Direito Razdo!, apresenta uma terceira posibilidade de jusiificagdo, ¢ que maz, ao debate um elemento chave para a tese que apresensarei nos capitules posteriores deste livro, e que por iso ‘merece consideragao especial. 3.2.1. Explicacdo, justificagao e motivacao: ideologia naturalista e normativista Para melhor compreensio da construgao de FERRAJOLI importa co- megar esclarecendo os parametros epistemolégicos do seu raciocinio. O rigor ditado pela filiasio juspositivista ca inflexivel scparasio entic Dircito ¢ Moral impem distingdes conceituais precisas. ‘A perspectiva externa descritiva, e ontolégica, consiste na andlise em- pirica, socioldgica e criminolégica a respeito do ser do Direito Penal, de sua efetividade e do papel que concretamente desempenha no cendrio social. A essa perspectiva FERRAJOLI denomina fimpdo do Direito Penal. Para des- cobrir essa fungio, de acordo com critérios cientificos deverdade ou falsidade, desenvolvem-se teorias de explicagdo do Direito Penal.!” A perspectiva externa prescritiva, e deontolégica, consiste na constru- ao de parimetros de legitimagao externa do Direito Penal, por meio de principios normativos exteriores ao direito positivo, ou seja, parametios de avaliago morais, politicos ou utilitarios metajuridicos, que possam definir a finalidade do Di critérios axioligicos, de adequacio ou inadequacio, elaboram-se doutrinas de {justificagao do Dircito Penal.” ito Penal. Para enunciar essa finalidade, de acordo com 160, Femjoli, Dito © Rar: teria do giantismo penal - 3 ed Sto Paulo: Revista dos Tbunai, 2oit, 170, Lig Pero. Disto © Razto:eoris do girantismo penal 3 ed Sto Paulo: Revista doe Tbunai, 201, 19-200 171, Lagi Ferjoli Discto © Rario: tris do garantie penal ~3 ed. Séo Paulo: Revista dos Tribunsi, 201, p18, A perspectiva interna descritiva, juridica, consiste na pesquisa, com base no ordenamento juridico positive, acerca da morivagdo do Diteito Penal estabelecida pelo proprio direito posto. A partir dai se poderd aferira validade legitimidade interna dos insttutos epriticasjurdicas perante esses princ- pios normativos ao ordenamento positive, critérios portanto intrajuridicos."* Os modelos descritivos (externos ou internos) so chamados de teorias esua meta € a explicagdo da realidade ou do diteito. Os modelos prescritivos (extemos) so chamados de dourrinase seu escopo é a justificagio do diteito. A sobreposigio desses planos, a confusio entre funsio (cxtemo descri- tivo) e justificacao (externo prescritive), por um lado, e moti descritivo), por outro, implica sempre em umaconfusio entre direito e moral de tendéncia autoritdria e antigarantista. As doutrinas presas nessa confusio metodolégica, FERRAJOLI chama de ideologias.”* As ideologias dividem-se em ideologias naturalistas e ideologias normativistas, conforma recaia énfase sobre um ou outro dos termos da confusao. Mas, em qualquer caso, a violagao 4 Lei de Hume e a fuso entre ser ¢ dever serimpede a formulagio de uma verdadeita doutrina da justifi- .s40 (interno cago, idénea, a legitimar ou deslegitimar o Direito Penal a partir de um ponto de vista axiolégico exterior. Para FERRAJOLI, a consisténcia légica de uma doutrina de justi- ficagéo depende de sua capacidade de evitar as ideologias naturalistas ou normativistas. A ideologia naturalista consiste na elevacao do ser & condigio de dever ser, ou seja, a confusio entre fungao e finalidade. O modo de evitar-se a autojustificacéo ideolégica naturalista consiste em distinguir com clareza a Jfinalidade e 0 meio para atingi-la. Em primeiro lugar, a finalidade pertence ao plano valorativo ¢ deve ser exterior ao ditcito, ou seja, deve ser um berm extrajuridico. Nao pode ser imanente a eventual fungio sociolégica (a vinganga ou o dominio social, por exemplo), nem imanente ao prdprio ordenamento positivo (a retribuicéo pela lesdo juridica & norma, o reforgo a fidelidade da norma, por exemplo).. ‘Afinalidade éum bem eleito, a partir de critérios axiolégicos (e nao critérios 172 Lai Fro. Ditto Raz: tora do garatnmo penal ~ 3". Sto Paulo: Revista os Tibunais, 2010, p 198. 173 Lag Fao. Dito Raz: tora do garaismo penal ~ 3d. Sto Paulo: Revista dos Tabunas, 010, p 300 ontolégicos de verdade e nem critérios juridicos de validade) e que se situa fora da esfera do direito. Por outro lado, © meio para atingi-la deve ser reconhecido como um ‘mal juridico, isto & como um custo humano ¢ social gerido pelo direito, € que exatamente em razio dessa caracteristica deve ser justificado. Apenas com esse arranjo garante-se & doutrina da justificagio a au- tonomia do ponto de vista axiolégico extemo, distinto daquele ponto de vista externo ontolégico e também daquele interno de tipo juridico, e dessa forma pode ser afastada a peticéo de principio que sobrepoe justificagio ¢ explicagao, a finalidade sob as fiungdes ou sob os efeitos juridicos, o dever scr sob o ser do dircito. A ideologia normativista consiste na elevagao do dever ser & condigao de ser, ou seja, em assumir-se as justificages axiolégicas como explicagdes empiricas, tomar como descritivos modelos ou projetos normativos con- siderados justos. Para evitar-se esse equivoco é preciso que, em primeiro lugar, os meios juridicos sejam efetivamente idéneos & realizacao dos fins determinados, de sorte que a finalidade extrajuridica possa ser alcancada (embora nem sempre 0 seja efetivamente) com 0 Direito Penal ¢ nio © possa sem ele. E isso 0 que permitird, fugindo-se da falécia normativista, aferir empiri- camente se a doutrina justificacionista é idénea a legitimar, e também a deslegitimar, experiéncias concretas. Em segundo lugar, a outra medida necesséria para se evitar a autojustifi- cago normativista é buscar que os custos ¢ beneficios do Dircito Penal sejam homogéneos entre si, de modo que possam ser comparados, considerando-se justificadas apenas aquelas situagdes em que os custos sejam menores. Essa comparasio permitird determinar ndo apenas a justificagao, mas também orientar a quantidade ea natureza das penas, de modo que representem um mal menor do que a falta de realizagao do fim proposto. Para isso € necessirio que © Direito Penal incorpore a perspectiva daqueles que sofrem as penas. Caso contrério, custos, suportados com mais intensidade por um lado, ¢ heneficias, gozados exclusivamente pelo outro, s4o heterogéneos e portanto incomparaveis.'” Nao hi como medir a vantagem ou desvantagem em uma situago na qual a vantagem beneficia A e a desvantagem prejudica B. Além 174. Lui Feral, Dire 2010, 9 50n i azo: tora do garantisto penal -3* ed. So Paulo: Revista dos Tibunas 1 disso, essa providéncia permite afastar a objegio moral kantiana, segundo a qual cada pessoa constitui um fim em si mesma e nenhuma pode ser tratada como meio para fins alheios."* 3.2.2. Critica metaética as teorias da pena Com hase nesses parimetros epistemoldgicos é que FERRAJOLI desen- volve uma critica metaética das teorias da pena (que na verdade nao sio teorias, mas doutrinas, conforme os critérios explanados), que aqui exporei resumida- mente (nio tratarei das criticas propriamente éticas pois elas coincidem, em grande parte, com aquelas que jé foram apresentadas neste trabalho). Segundo a classificacio enunciada, tanto as teorias retributivas quanto da prevengio geral positiva consticuem ideologias naturalistas, na medidaem 0 com justiicasio, Que a rtribuisio oo fortale- cimento dos sentimentos comunitérios sejam uma fangio ou um efeito da pena, nao decorre que essa deva ser sua finalidade. Explica FERRAJOLI: “Precisamente as doutrinas retributivistas e in- tegracionistas séo ideologias naturalistas, vez que corroboram com objetivo o caréter retributivo e funcional da pena, que é um fato, confundindo-lhes a motivagao juridica, ou, pior ainda, a explicacio da funcao com a justificagao, ce assim deduzindo o dever ser do sex. que confundem expl Ja teoria da prevencao especial positiva, para além de todas as incon- tiveis criticas éticas que lhe possam ser langadas, ¢ alvo da critica metaética, que a identifica como ideologia normativista, posto que toma a justificaso axiolégica por explicagio empirica: “Vice-versa, as doutrinas correcionalistas da prevengio especial sio ideclogias normativistas, posto que conferem como fungio 0 objetivo correcional da pena, aceitando-o aprioristicamente como satisfeito, mesmo se de fato nao for realizado ou irrealizavel, e desta feita deduzindo o ser do dever ser.”"”” Segundo FERRAJOLI, a critica meraética as teorias da prevencio geral ¢ especial negativa é menos intensa. Essa doutrina nao decai & ideologia naturalista, na medida em que elege como finalidade um beneficio social rele- vante ¢ externo ao ordenamento juridico. Mas, por outro lado, o objetiva de 175. Laigi eral, Divito « Razio: tori do garanttms penal —¥ ed Sio Paulo: Revista dos Tribunai, 2010p 304, 176. Laigi eral. Drsito« Rasio: tora do garantsms poral _3¥ ed. Sio Paulo: Revsts dos Tribunsi, 2010, p 306, 177. Lag Fema. Diito« Rano: triad garatinnn penal —3 od. So Plo: Revs dos Tans, 2010, p 307. CADITULOS ~ PARAALEM OA REVENGAD prevenir delitos, se tomado isoladamente, é insuficiente para evitar a ideolo- gia normativista, sob o aspecto da heterogeneidade da relacao custo beneficio, o que também lhe rende a critica ética de violagio 4 méxima kantiana, que impede a instrumentalizacao do individuo. Afirma FERRAJOLI: “Mais complexa éa critica metaética das doutrinas utilitaristas da prevencao negativa, seja geral, seja especial. Diferentemente daquelas revibutivistas € daquelas da prevengio positiva, tais doutrinas tm 0 mérito de dissociar os meios penais concebidos como males dos objetivos ex- trapenais idéneos a justificar-lhes. E esta dissociacdo € necessdria: a) para avaliar 09s custos representados pelas penas diante dos danos que estas tem 0 objetivo de prevenir; b) impedir a autojustificagao dos primeiros em razao da confusio entre direito e moral; c) para tornar possivel a justificagao, antes mesmo que das penas, das proibigdes penais, com base em finalidades externas & pena ¢ a0 Dircito Penal. Por mais necessdria que scja, essa condigao nao é, todavia, sufi- ciente para embasar, no plano metaético, critérios de justificacio idéneos nao apenas para legitimar, mas também para deslegitimar as penas. E isso depende do fato de que o objetivo justificante propos.o, inclusive por essas doutrinas utilitaristas, como dissemos no pardgrafo 20.2, é somentea méxima utilidade possivel dos nao desviantes, e ndo também o minimo sofrimento necessirio dos desviantes, de mancira que nenhuma pena resulta em principio injustificada, nio sendo de fato problematizado nem mesmo tematizado o custo das penas suportado por quem, com ou sem razio, a este se submete.”"* Em suma, FERRAJOLI descarta, por defeitos Idgicos de rai rias retributivas e da prevengao positiva. Aceita parcialmente a teoria da prevencio negativa, mas considera-a insuficiente, e a partir desse ponto apresenta sua proposta. 3.2.3. Lineamentos tedricos da teoria e FERRAJOLI ‘Com base nos parimetros epistemolégicos fincados e nas criticas lan- cadas, FERRAJOLI constr6i sua prépria doutrina da justificagao sobre uma dupla base. Aceita 0 fundamento da prevengao geral negativa, maso desdobra em duas dimensdes: a prevencio negativa de crimes a prevengio negativa da vinganga, ou dito de outta forma, da reagio violenta e descontrolada aos crimes. O autor assume que, na auséncia da pena estatal, o desviante e indu- igadas ale, estariam expostos & reacio espontinea e selvagem da sive pessoas 27S. Luigi Feral, Direitoe Razio: tera do garntsmo penal ~3* ed, Sao Paulo: Editon dos Trbunais, 2010, p30" vinganga, e é essa segunda violéncia que o Direito Penal deve também coibir. Tanto as douttinas justificacionistas quanto as abolicionistas negli- genciam o fato de que, na auséncia da pena, outro mal, qual seja a reagio informal, selvagem, espontnea e arbitréria, poderia advir de parte do ofen- dido ou de forcas sociais ligadas a ele. A prevencio, portanto, de violéncia da qual seria vitima o réu, é para FERRAJOLI 0 segundo ¢ fundamental objetivo justificante do Direito Penal’”. Sob essa ética, a pena nao servitia apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas puni¢ées. ‘Tem sua razdo de ser fundamentada tanto no ne peceetur (para que no pequc) mas também no ne punierur (para que nio puna). Protege tanto a pessoa do afendido quanto a do afensor."™ E é esse segundo viés que elide tanto a critica ética que sempre paira sobre as teorias da prevencao negativa (instrumentalizagio do individuo), mas também garante a valoracéo homogénea do custo/beneficio da pena. Explica-se: a perspectiva cléssica da prevengio negativa falha ao distri- buir de forma heterogénea as vantagens e desvantagens da pena, impedindo que cla seja legitimada ou deslegitimada em termos de custo/beneficio. Para © desviante, todo o custo ¢ nenhuma vantagem. Para a sociedade, toda a yantagem € nenhum (ou pouce) custo. A teoria proposta por FERRAJOLI faz o réu titular de vantagens e desvantagens, de mode que é possivel aferir a legitimidade da pena a partir da anilise dessa relacao. Em outras palavras, quando a pena constituir violéncia mais intensa do que a que seria esperada pela reacio espontanea, daramente sé haverd desvantagens e nenhuma van- tagem para o ofensor, o que tornara a pena ilegitima. Essa aferi¢ao permitiria, em razio da sua homogencidade, indicar o limite maximo da pena, além do qual nao se justifica que esta substitua as penas informais.!8* Portanto, embora a proposta de FERRAJOLI nao descure da preven- Gio geral negativa de delitos, a prevensao dos males dirigidos aos desviantes (ou a pessoas inocentes ligadas a ele), sob a forma de uma reagao informal arbitriria e desprovida de controle, é 0 aspecto decisivo da sua construcio, por intimeras razbes. 179, Luigi Feral. Divito « Razio: tori do garantsmo penal - ed. Sto Palo: Revista dos Tibunsin, 2010p 308, 180, Laigi Feral. Dict ¢ Racoon do yarunisno pena 2010 p.309, 181, Luigi Ferrel, Dreio ¢ Razio: tora do garantismo penal 2O10,p. 309, "ed. Ske Paulo: Revisados Tribussis, ed. Sho Paulo: Revisudos Tribunals, CADIULO 4 — BARA ALEM OA pREVENICKO Primeira: é a parte efetivamente inovadora de seu pensamento em relacéo.a0 modelo classico de prevencao geral negativa, aspecto esse normal- mente desconsiderado pelo discurso cientifico e politico. Segunda: do ponto de vista ético, é apenas essa segunda finalidade que afasta a objegio kantiana segundo a qual o homem nio pode ser utilizado como meio para a consecusio de fins que lhe sio estranhos. ‘Terceira: do ponto de vista metaético, é apenas ela que torna possivel escaparao perigo da ideologia normativista, de modo que custos e beneficios, orientados aos mesmos destinatérios, sejam medidos e comparados permitin- do a legitimagio ou deslegitimasie de ordenamentos concretos. Quarta: ainda do ponto de vista metaético, a idoneidade do Penal para impedir as reagées informais ao delito é muito mais clara do que a sua idoneidade para impedir a pritica dec es. Quinta: do ponte de vista fenomenolégico, apenas esse segundo aspec- to pode conduzir 0 Direito Penal a um modelo minimo e garantista, uma vez que a prevengao geral negativa, no sentido da prevencio de delitos, nao fornece nenhum limite & intensidade penal e, bem ao contririo, concede argumentos para um direito maximo e, no limite, para o terror penal legisla- tivo (exasperacio das penas em abstrato) e judicidrio (punigdes exemplares). Na explicagao de FERRAJOLI: “Dos dois objetivos, é 0 segundo, normalmente negligenciado, 0 mais caracteristico e 0 que mais merece ser evi- denciado. Em primeiro lugar porque, enquanto ditbia a idoncidade do Direito Penal de satisfazer eficazmente o primeiro — nao se podendo desconhecer as complexas raz6es sociais, psicolgicas e culturais dos delitos, nao neutralizaveis certamente apenas pelo temor das penas (em vez das vingangas) — é, a0 con- trdrio, muito mais certa a sua idoneidade para satisfizer 0 segundo, mesmo se somente por meio de penas modestas, pouco mais que simbélicas. Em segundo lugar porque, enquanto a prevengio dos delitos e as exiggncias de seguranga e de defesa social sempre estiveram no pice dos pensamentos do legislador e das demais autoridades puiblicas, o mesmo nao se pode dizer no que tange & prevencao das penas arbitrérias e das garantias do acusado, Em terceiro lugar, e sobretudo, porque somente o segundo objetivo, ¢ ndo também o primeiro, € ao mesmo tempo necessirio e suficiente para fundar um modelo de Direito Penal minimo e garantista como aquele formalizado pelo nosso sistema SG. Mais ainda, somente 0 segundo objetivo, ou scja, a tutclado inocentee a mini- mizacio da reagio ao delito, é vilido para distinguir 0 Direito Penal dos outros sistemas de controle social - de tipo policialesco ou disciplinar ou até mesmo terrorista - , que de forma mais égil e provavelmente mais eficiente, teriam condigbes de satisfazer 0 objetivo da defesa social, em relagao ao qual o Direito Penal, mais que um meio, revela-se um custo, ou ainds, em se desejando, um luxo proprio das sociedades evoluidas.”"™* Essa dupla finalidade consiste, portanto, no atendimenta dos interesses de todos, nao desriantes e desviantes. Os primeiros sao protegidos do crime através da ameasa penal. Os segundos, paradoxalmente, séo protegidos da vinganga através da imposigéo da pena. Persegue-se, a um sé tempo, duas finalidades distintas e efetivamente colidentes, tanto assim que tais objetivos so representados pelas partes em oposi¢ao no processo (acusagao e defesa), articuladas segundo o principio do contraditério. A tarefado Direito Penal, em suma, éminimizar a violéncia social advin- da tanto da eventual pritica da agressio, quanto do revide. Apenas assim pode cumprir o seu papel de mecanismo redutorda violéncia, venha ela de onde vier. Crime e vinganga espelham ¢ irmanam, e ambos sio, muitas vezes, formas de cxercicio arbitritio, através da forma arbitréria, descontrolada, desproporcional e destegulada. O objetivo do direito penal é minimizar essa dupla violencia." 3.2.4. Critica a teoria de FERRAJOLI A weoria proposta por FERRAJOLI também é objeto de criticas, das quais irei expor as principai: A assungio da prevengio geral negativa, como fim id6neo a ser perse- guido pela ingeréncia penal, continua sendo problemitica e sua conjugagio com uma outra finalidade nao elide os defeitos que lhe séo increntes, sobre- tudo a sua tendéncia maximizante e autoritiria, assinalada enfaticamente pelo préprio FERRAJOLI. Nesse sentido, aponta GIMBERNAT ORDEIG: “Apesar de sua criti- ca A prevencio geral negativa, Ferrajoli, de forma inconsequente, retoms-a posteriormente para justificar a existéncia do Direito Penal, acrescentando, como segundo critério, explicativo e racional, essa existéncia com a qual 0 Direito Penal também preveniria outra espécie de mal." 12, Lae Fer Dito Raz oa dour poll So Pa: Reta Itai, 183. Laigi Ferajoli. Direito e Razio:teora do garantismo penal — 2 ed. Sio Paulo: Eitora Revista dos ‘Tabanais, 2010, p 311 184. 4yud Slo deCarvalo, Fens ¢ Maids de Sepang no Dirt Pena Braco Sto Paulo Sara, 2013, p.117 CAPITULO 9 ~ PARNALEM OA REVENGAD A prevengao das reagées informais como objetivo eticamente adequado, possivel de ser realizado e apto a assegurar a minimizacéo do Direito Penal, também nao escapa is criticas, oriundas sobretudo dos setores doutrindrios agnésticos ou abolicionistas. SALO DE CARVALHO, duvidando do potencial garantista da pro- posta de FERRAJOLI quanto & prevengio das reagbes informais, coloca a seguinte questo: se uma das criticas apresentadas por Ferrajoli em relago aos, modelos de coacio seria a tendéncia de um sistema penal se converter em um espécie de terrorismo punitivo, uma vez que a inocorréncia da percepgio da diminuigao dos delitos levaria ao gradual aumento das penas, a associagio & prevencio dos injustos castigos pode conduzir ao mesmo raciocinio: a expe- riéncia social em relacao as distintas formas de vinganca privada justificaria a expansio da punitividade."* ZAFFARONT vai além, e duvida da propria premissa da qual parte FER- RAJOLI, ou seja, de que a resposta penal seja necesséria para prevenir reagoes, informais. Nada prova ou sequer demonstra, segundo o jurista argentino, que a auséncia estatal implicaria o surgimento ou aumento da vinganca privada. “O argumento iluminista da necessidade do sistema penal para prevenir a vinganca piiblica ou privada jamais se confirmou, pois no plano real ou social que experiéncia indicaria que ja parece estar bem demonstrada a desnecessidade do exercicio do poder do sistema penal para evitar a generalizagio da vinganca, porque o sistema penal sé atua em reduzidissimo ntimero de casos a imensa maioria dos crimes impunes nao generaliza as vingangas ilimitadas. Ademais, na América Latina foram cometidos cruéis genocidios que ficaram pratica- ‘mente impunes, sem que tenham ocorrido episédios de vinganga massiva.”""* PAULO QUEIROZ, em estudo especifico sobre a teoria da pena pro- posta por FERRAJOLI, opée a ela iniimeras objecées."” Fazendo coro 2o entendimento de ZAFFARONI, afirma que inexiste uma relacio necesséria que liga crimes falta de repressio penal, por um lado, ou a reacio arbitréria, pelo outro. Hé uma variedade de outros modos com. que o atingido pode reagir a agressio, tais como resignasao, esquecimento, 18S. Salo de Carvalho, Pens e Medidas de Seguranga no Direto Penal Briere, SdoPaule: Saraiva, 2013, pu? 186, Jpud Paulo Queiroz, “hstificativa do dirito de punirna obra de Luigi Perak In: Rogésio Dara Santos (org Inrodugie Critica ao sudo do Sista Penal, Flosiandpols: Diploma Leva, 1999, p. 4 187, Paulo Queiroz. “Iustficativado dreito de pune na obra d Luigi Ferajoli In: Rogério Dura Santos (org. Intodugdo Critica ao Fstudo do Sistema Penal. Floandpalis: Diploma Lega, 1999, perdao, crenga na implacabilidade da “justiga divina’, reparaca0, composi Gio, terapia etc. Além disso, normalmente as reacées informais arbitrérias esto relacionadas a fatos dos quais no se ocupa, em principio, o direito penal: suspeitas de infidelidade conjugal, cobranga de dividas, disputas pos- sess6rias, atos de prostituigao etc. De outra mio, a presenca de repressio penal nao implica a auséncia de reag6es informais arbitrérias, tais como atos de linchamento ou represilia a0 sujeito oua pessoas ligadasa cle, mesmo que preso, processado ou sentenciado. De modo queas reagées arbitririas podem ocorrer a despeito do sistema penal Ademais, as reag6es informais arbitrdrias podem ocorrer a pretexto da intervencio penal, como se da com prisdes ilegais, tortura, execusdes de suspeitos de crimes graves por policiais etc. Em determinados casos, a ocorréncia de violéncia entre cidadaos atos de retaliaso ocorrem mesmo por causa da intervengao penal. E 0 que ocorre, por exemplo, com relacio ao trifico de drogas, cuja criminalizacio gera o contexto em que a disputa pelo monopélio do comércio clandestino fomenta intimeros atos de agressdo € vinganga. Outro aspecto salientado por QUEIROZ € 0 fato de que nao faz sentido proclamar que o dircito penal seja mais eficaz. para prevenir reagées informais arbitririas, uma vez que tais reagées sio também crimes (genocidio, hom. cidio, lesées corporais, abuso de autoridade, violacao de domicilio, ou, no minimo, exercicio arbitrario das préprias razées). Por isso, prevenir reagSes arbitririas e prevenir delitos é, em tiltima andlise, uma tinica e mesma coisa. Por fim, segundo QUEIROZ o fim de prevengio de reagdes informais violentas nao é uma exclusividade do direito penal, é na verdade a funcio do proprio direito. Por isso a hipétese de FERRAJOLI nao explica por que esse objetivo nao pode ser alcangado através de outros ramos do dircit: : civil, administrativo, trabalhista. Quanto a ideia de prevengao geral negativa de crimes, me parece ade- quada a critica. A profusa literatura questionando as bases dessa ideia jé foi apresentada no segundo capitulo deste trabalho, portanto apenas sistema- tizarei os argumentos principais que entendo no serem satisfatoriamente superados por FERRAJOLI: Primeiro, do ponto de vista ético, ndo ha como fugir ao fato de que essa doutrina viola o imperativo moral kantiano. Segundo, do ponto de vista metaético, a idoncidade do meio penal para atingir o fim de prevengio de delitos, ou, dito de outra forma, atos de agressio, nio apenas é duvidosa (relembrem-se todos os argumentos relacio- nados 3 ficso do calculador racional), como, ao contririo, é infirmada por inumerdveis estudos que constatam 0 seu efeito positivamente crimindgeno. ‘Terceiro, do ponto de vista fenomenolégico, a doutrina em questo conduzsemprea um movimento de intensificagio da ameaca eda resposta penal. Quarto, deduzir a finalidade preventiva geral negativa do cardter prescritivo das normas juridicas, inclusive as penais, parece um argumento estreite, De fato, se fosse possivel operar essa derivacdo e com tal singeleza, no teria nenhum cabimento toda a profunda c importante discussio sobre as finalidades da pena a qual se dedicaram tantos pensadores 20 longo da histéria. Na constituigio da norma penal, o tipo certamente porta em si um indicio da ilicicude e comunica aos destinatarios as condutas consideradas nocivas e nio desejadas. No entanto, dai deduzir que a finalidade do Di Penal € impedir que tais condutas sejam praticadas é um salto légico que ndo pede ser dado sem excalas, pois depende de indimeras consideragies intermedirias, inclusive sobre a legitimidade ética e a possibilidade pritica desse comando. A formula penal “matar alguém — reclusio de 6 a 20 anos” pode ser lida como a revela¢io de uma finalidade completamente diversa, ¢ um tanto o quanto dbvia: prescrever ao Estado a conduta positiva de poder (dever?) aplicar, aquele que mata, uma pena de 6 a 20 anos de reclusio. ‘A segunda parte do argumento de FERRAJOLI, prevengio da resposta informal & agressao, merece um exame mais detido. ‘Asuméria contestagdo de ZAFFARONI, a meu ver, éinsuficiente para descarti-la de plano. Afirmar que, na presenga do sistema penal a existéncia de atos de agressio impuncs nio conduz a uma escalada de vinganga no equivale a dizer que na auséacia de qualquer sistema penal dar-se-ia o mesmo. Afirmar também que “o argumento iluminista da necessidade do siste- ‘ma penal para prevenir a vinganga pitblica ou privada jamais se confirmou, pois no plano real ou social que experiéncia indicaria que ja parece estar bem demonstrada a desnecessidade do exercicio do poder do sistema penal para evitar a generalizacio da vinganga""* exige, para que nao se converta em mera retorica, uma investigacao um pouco mais aprofundada, com apoio em 188. dpued Paulo Queiroz. “ustifictiva do dreito de punir na obra de Luigi Feel. In: Regétio Dulira ‘Samo on) into Citi so Pstado do Sistema Penal. Fonindpots: Diploma Leen 1998p. 1 dados concretos fornecidos pela etnografia ¢ pela antropologia, a respeito da violencia, da vinganga e do papel do Direito Penal nesse contexto, investiga io qual sera dedicado inteiramente o préximo capitulo. 10, a proposta de FERRAJOLI Sem compartir inteiramente com sua parece interessante por duas razGes. ‘Uma, porque ousa revelar a proximidade entre pena e vinganga, tirando o véu dessa verdade incémoda € trazendo-a para a luz do dia. A vinganga volta ao centro palco. Duas, porque, tendo voltado 20 palco, ela nao é considerada apenas um elemento de figuracio, um fantasma dentre outros mortos dos quais se fala sempre em tempo passado, mas ocupa nesse palco um lugar de destaque, servindo de fundamento para a prdpria teoria ferrajoliana das finalidades da pena. Na tese que proponho a vinganga também desempenha um papel principal, & diferenga de que nel nao encarna o vilio que deve ser expulso pelo heréi (0 Direito): caida a mascara, vé-se que ela é 0 herdi. E 0 que de- monstrarei nas linhas seguintes.

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